DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
Em 26 de agosto de 2016, o A…, SA, com o NIPC … e com sede na Praça…, n.º…, …-… … (doravante designado por Requerente), veio, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 99.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, 1.º, 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação adicional de Imposto do Selo emitida pelo Serviço de Finanças de ... …, da quantia de € 916,80, referente à aquisição, em dezembro de 2013, do prédio urbano inscrito sob o artigo … da freguesia de …, concelho de ..., no âmbito do processo de insolvência a correr termos pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., com o n.º ....
Pede ainda a Requerente a condenação da Requerida na restituição da quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, atribuindo ao pedido o valor económico de € 944,36.
Síntese da posição das Partes
a. Do Requerente:
Como fundamentos do pedido de pronúncia arbitral, invoca a Requerente o seguinte:
1. Em 11 de dezembro de 2013, o Requerente adquiriu o prédio urbano destinado a habitação, inscrito na matriz predial da freguesia de …, concelho de ..., sob o artigo…, apreendido para a massa insolvente, no âmbito do processo de insolvência de B… e C…, pelo valor de € 114 600,00;
2. Previamente à adjudicação, o Requerente apresentou, no Serviço de Finanças competente, a declaração para liquidação do IMT e do Imposto do Selo, tendo sido emitidos os comprovativos da isenção de IMT, ao abrigo do n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE;
3. Tendo sido notificado pelo Serviço de Finanças de ... … para proceder ao pagamento da liquidação de Imposto do Selo, o Requerente procedeu ao seu pagamento, em 15 de janeiro de 2016;
4. Não obstante, apresentou reclamação graciosa da referida liquidação, que viria a ser indeferida com o fundamento de que “Para efeitos de isenção de Imposto de Selo, prevista na alínea e) do art.º 269 do CIRE, só os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”;
5. O Requerente considera beneficiar de isenção de Imposto do Selo ao abrigo da alínea e) do artigo 269.º, do CIRE, norma que “abrange (incontestadamente) quer a transmissão de imóveis efetuada em conjunto com a empresa; ou o estabelecimento de que fazem parte, quer a transmissão isolada de imóveis, em separado da empresa ou estabelecimento que integram”;
6. Defende que, tendo o ato de liquidação adicional de Imposto do Selo impugnado sido baseado numa errada interpretação da alínea e) do artigo 269.º, do CIRE, enferma do vício do erro sobre os pressupostos de direito, cuja consequência é a sua anulabilidade;
7. E que, não se mostrando reunidos os pressupostos legalmente estabelecidos, a liquidação impugnada é nula, por falta de atribuições da AT, que criou um imposto não permitido por lei, sendo ainda nula, por falta de fundamentação de facto e de direito;
8. Defende o Requerente que a AT violou, entre outros, os princípios da segurança jurídica e da proibição da retroatividade da lei fiscal ao aplicar a sua interpretação a um facto tributário passado e inteiramente decorrido ao abrigo da lei antiga;
9. Por outro lado, a vez que a AT havia reconhecido ao Requerente o direito à isenção do Imposto do Selo, não poderia o benefício fiscal ser revogado após o decurso do prazo de um ano sobre o reconhecimento, “por aplicação conjugada do disposto nos arts. 141.º, n.º 1, do CPA e 58.º do CPTA”.
Termina o Requerente por formular os pedidos de (i) declaração de nulidade ou anulação da liquidação de Imposto do Selo que impugna e de (ii) condenação da Requerida no reembolso da quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios, atribuindo ao processo o valor económico de € 944,38 (novecentos e quarenta e quatro euros e trinta e oito cêntimos).
b. Da Requerida:
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar processo administrativo, em que, citando jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e dos Tribunais Arbitrais Tributários, veio defender a legalidade e a manutenção do ato de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:
1. Está em causa a verificação dos pressupostos da isenção prevista na alínea e) do artigo 269.º, do CIRE, alegando o Requerente que a aquisição do imóvel a que se reporta a liquidação impugnada, no âmbito da liquidação de determinada massa insolvente, se encontra abrangida pela referida norma;
2. Porém, tal interpretação carece de suporte legal, porquanto, no caso concreto, os insolventes são pessoas singulares que à data da transmissão do imóvel não exerciam qualquer atividade industrial, comercial ou agrícola;
3. A redação atual da alínea e), do artigo 269.º, do CIRE prevê a isenção de Imposto do Selo para os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta, integrados no âmbito da liquidação da massa insolvente, com a reserva de o insolvente ser uma empresa ou estabelecimento;
4. A nova redação da alínea e) do artigo 269.º, do CIRE, dispondo sobre benefícios fiscais, não padece de inconstitucionalidade orgânica, por lhe ter sido introduzida pelo artigo 234.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2013;
5. As alterações introduzidas pelo artigo 234.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, aos artigos 269.º e 270.º, do CIRE, consistiram apenas em acrescentar a isenção de Imposto do Selo e de IMT, respetivamente, às transmissões da empresa ou de estabelecimentos desta, integrados no âmbito de planos de recuperação de empresas;
6. Por último, a alegação do Requerente de que a revogação do benefício fiscal é ilegal, por violação dos artigos 140.º e 141.º, do CPA, não pode proceder, porquanto a AT não poderia deixar de liquidar o imposto devido, desde que respeitado o prazo de caducidade (artigo 45.º, n.ºs 1 e 4, da LGT).
Termina a AT por requerer a dispensa de realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, por não haver exceções a apreciar, se encontrarem fixados os factos sobre os quais é requerida a decisão e estar em causa matéria exclusivamente de direito.
II. SANEAMENTO
1. O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 18 de novembro de 2016, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
3. O processo não padece de vícios que o invalidem e não foram invocadas exceções que o tribunal arbitral deva apreciar.
4. Pelo despacho arbitral de 27 de dezembro de 2016, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, deferido o requerimento de substabelecimento apresentado pelo mandatário da AT e convidadas as Partes a, querendo, produzirem alegações escritas sucessivas pelo prazo de 10 dias, com início na Requerente, sendo esta advertida de que deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente até 10 de fevereiro de 2017, data fixada para a prolação da decisão arbitral;
5. Por requerimento de 2 de janeiro de 2017, posteriormente reformulado em 9 de janeiro de 2017 e notificado à AT em 17 do mesmo mês, veio o Requerente dar por reproduzido o anteriormente alegado na p. i., prescindido da produção de alegações.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
A – Factos provados:
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e ao processo administrativo (PA) apresentado pela AT, fixa-se como segue:
1. No âmbito do processo de insolvência de B… e C…, que correu termos pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ... sob o n.º ..., foi emitido pelo Economista Administrador Judicial, Dr. D…, em 11 de dezembro de 2013, o título de transmissão de que consta a adjudicação ao Requerente, pelo valor de € 114 600,00, do “Prédio Urbano destinado a habitação, composto de cave para garagem e rés-do-chão com 3 assoalhadas, sito na Rua da…, …(…), freguesia de …(…) inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo n.º…” e que “O adjudicatário apresentou os comprovativos de liquidação do Imposto de Transmissões Onerosas de Imóveis e de Imposto de Selo que seguem em anexo ao presente título (…)”;
2. Por ofício do Serviço de Finanças de ...…, remetido a coberto do registo dos CTT n.º RF … PT e rececionado em 1 de outubro de 2015, foi o Requerente notificado para exercer o direito de audição, nos termos do artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da Lei Geral Tributária, no prazo de 20 dias a contar da data da notificação, sobre o projeto de liquidação adicional ao registo de IMT n.º …/2013, de 06/12/201, no valor de € 1 367,93 e de Imposto do Selo, da quantia de € 916,80. Mais se notificava o Requerente de que nos 30 dias subsequentes ao termo dos 20 dias para audição prévia, deveria proceder ao pagamento dos mencionados impostos, mediante guias a solicitar naquele Serviço de Finanças, e que, após o termo do prazo para pagamento voluntário seriam devidos juros de mora e extraída certidão de dívida, para cobrança coerciva;
3. Em anexo ao ofício indicado no ponto anterior foram notificadas ao Requerente as demonstrações das liquidações ali mencionadas, sendo a do Imposto do Selo (verba 1.1 da TGIS) efetuada à taxa de 0,08% sobre o preço declarado de € 114 600,00, de que resultou a coleta de € 916,80;
4. No termo da liquidação de Imposto do Selo, emitida em 11 de dezembro de 2015 (DUC…), vem referido tratar-se de “Liquidação adicional corretiva de imposto de selo, registo de IMT n.º …/2013, de 06/12/2013 (…) Para efeitos de isenção de Imposto de selo prevista na alínea e) do art.º 269 do CIRE, só os atos de venda, permuta ou cessão de elementos dos ativos das empresas – entendidas como organizações complexas – se poderão considerar abrangidos pela previsão legal. Deste modo, não estão abrangidos por esta previsão legal os insolventes que sejam pessoas singulares e não exerçam uma atividade industrial, comercial ou agrícola”;
5. A liquidação impugnada, com prazo limite de pagamento voluntário em 14 de dezembro de 2015, foi paga pelo Requerente em 15 de janeiro de 2016, no âmbito do processo de execução fiscal n.º …2016…, pela quantia global de € 944,38, em que se incluem custas e juros de mora;
6. Em 21 de março de 2016, o Requerente apresentou reclamação graciosa tendo em vista a anulação da liquidação de Imposto do Selo ora impugnada que, registada sob o n.º …2016…, viria a ser objeto de indeferimento, conforme despacho do Senhor Chefe do Serviço de Finanças de ...…, de 20 de julho de 2016, notificado à Exm.ª Mandatária do Requerente em 25 julho de 2016 (Registo dos CTT n.º RF … PT);
7. O despacho de indeferimento da reclamação graciosa limitou-se a confirmar a informação prestada pelo técnico responsável pela instrução do procedimento, na qual, após indicação de que o prédio de que se trata se destina a habitação, se diz: “Para efeitos de isenção de Imposto de Selo, prevista na alínea e) do art.º 269 do CIRE, só os actos de venda, permuta ou cessão de empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente. Deste modo não estão abrangidos por esta previsão legal os insolventes que sejam pessoas singulares e não exerçam uma actividade industrial, comercial ou agrícola”;
8. De acordo com a situação cadastral inscrita no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes da AT, o insolvente B…, com o NIF … e domicílio fiscal na Rua…, …, …-… ... (freguesia de…), iniciou a atividade com o CAE … – Outras atividades de acabamentos em edifícios, integrada na categoria B de IRS como atividade empresarial, em 2 de janeiro de 2008 e que cessou o exercício da mesma, quer para efeitos de IRS, quer de IVA, em 30 de novembro de 2011;
9. A situação cadastral inscrita no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes da AT da insolvente C…, com o NIF … e domicílio fiscal na Rua…, …, …-…... (freguesia …), indica que esta iniciou a atividade com o CAE…– Outras atividades de serviços, n. e. (categoria B – Rendimentos profissionais), em 5 de novembro de 2003 e que cessou o seu exercício, para efeitos de IVA e de IRS, em 28 de abril de 2004.
B – Factos não provados:
Não existem factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.
III.2 DO DIREITO
1. As questões a decidir:
As questões colocadas pelo Requerente a este Tribunal Arbitral Singular são, entre outras, as de saber (i) se a liquidação de Imposto do Selo impugnada (verba 1.1, da Tabela Geral do Imposto do Selo) viola a previsão do artigo 269.º, alínea e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), devendo ser anulada por erro sobre os pressupostos de direito; (ii) se a interpretação dada pela AT à referida norma, na génese da liquidação impugnada, a torna nula, por consubstanciar um ato praticado para além das atribuições da mesma AT; (iii) se a liquidação impugnada carece de fundamentação de facto e de direito, em violação dos artigos 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP), 124.º e 125.º, do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e 77.º, da Lei Geral Tributária (LGT), que conduza à sua nulidade; (iv) se, ao emitir a liquidação impugnada, a AT violou o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, por aplicar a sua interpretação da norma a um facto tributário passado, inteiramente ocorrido ao abrigo da lei antiga e, (v) se a isenção de que o Requerente beneficiou à data da aquisição do imóvel a que a liquidação do Imposto do Selo se reporta poderia ser revogada, após o decurso do prazo de um ano em que era legalmente possível a sua revogação.
Ora vejamos:
(i) Como decorre quer do termo da liquidação adicional do Imposto do Selo aqui impugnada, quer da informação prestada na reclamação graciosa em que se baseou o despacho do seu indeferimento, a interpretação dada pela AT à norma constante da alínea e), do artigo 269.º, do CIRE, é a de que a isenção ali prevista apenas abrange os atos de venda, permuta ou cessão de empresa ou de estabelecimentos desta (empresa) integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação (de uma empresa) ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente (de uma empresa), não se aplicando às situações em que a aquisição ocorre no âmbito de processos de insolvência de pessoas singulares que não exerçam uma atividade empresarial.
Porém, não é esta a interpretação contestada pelo Requerente que, pelo contrário, defende aplicar-se a isenção de Imposto do Selo prevista na alínea e) do artigo 269.º, do CIRE, à “transmissão de imóveis efetuada em conjunto com a empresa ou o estabelecimento de que fazem parte, quer a transmissão isolada de imóveis, em separado da empresa ou estabelecimento que integram”.
Há, pois, que averiguar se o imóvel transmitido no âmbito do processo de insolvência identificado na p. i., objeto da liquidação impugnada, integrava, ou não, uma empresa ou estabelecimento desta.
O artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, admite as pessoas singulares como sujeitos passivos da declaração de insolvência, embora o Título XII do mesmo Código contenha regras específicas da insolvência das pessoas singulares.
A alínea e) do artigo 269.º, do CIRE, na redação que lhe foi dada pelo artigo 234.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2013), aplicável à situação dos autos, dispõe que,
“Artigo 269.º - Benefício relativo ao imposto do selo
Estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes atos, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:
a)(…);
b)(…);
c)(…);
d)(…);
e) A realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa, bem como a locação de bens;
f)(…)”.
Por seu turno, o artigo 5.º, do CIRE, contém a noção de empresa, que define como sendo “toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica”.
Ora, se, por um lado, à data da abertura do processo de insolvência (2010), o insolvente Alcides exercia uma atividade de natureza empresarial, resta saber se o prédio urbano destinado a habitação de que era proprietário pode ser havido como integrando a empresa de que era titular, a fim de a sua transmissão, no âmbito daquele processo judicial, poder beneficiar da isenção de Imposto do Selo prevista na alínea e) do artigo 269.º, do CIRE.
Para o efeito, convoca-se aqui o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), em 25 de setembro de 2013, no Processo n.º 0866/13, disponível em http://www.dgsi.pt/, decidindo que “I – De acordo com o disposto no art. 269.º, alínea e), do CIRE, ficam isentas de IS as vendas de «elementos do ativo da empresa».
II – Assim sendo, a referida isenção não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de atos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, antes havendo de demonstrar-se que o bem vendido integra o ativo de uma empresa.”.
Não demonstrando o Requerente que o imóvel transmitido no âmbito do processo de insolvência, destinado a habitação, integrava o ativo da empresa de que o insolvente havia sido titular, haverá que extrair-se a conclusão, na esteira do Acórdão citado, de aquela transmissão não poderia beneficiar da aludida isenção de Imposto do Selo.
(ii) Ainda que a interpretação dada pela AT à alínea e) do artigo 269.º, do CIRE, não seja, no caso concreto, idêntica à perfilhada pelo STA no Acórdão em referência, não se poderá afirmar que a liquidação impugnada é nula, por consubstanciar um ato praticado para além das suas atribuições (artigo 161.º, n.º 2, alínea b) do novo Código do Procedimento Administrativo (NCPA), pois uma das atribuições da Requerida é, precisamente, a de “Assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o rendimento, sobre o património e sobre o consumo, dos direitos aduaneiros e demais tributos que lhe incumbe administrar, bem como arrecadar e cobrar outras receitas do Estado ou de pessoas coletivas de direito público”, conforme o artigo 2.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro, que aprovou a orgânica da AT.
(iii) Nem se poderá concordar com a alegação do Requerente de que a liquidação impugnada é nula, nos termos do artigo 133.º, do antigo CPA (atual artigo 161.º, do NCPA), por carecer de fundamentação de facto e de direito, em violação dos artigos 268.º, n.º 3 da CRP, 124.º e 125.º, do antigo CPA (correspondentes aos artigos 152.º e 153.º, do NCPA) e 77.º, da LGT.
É que, de acordo com Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, o vício de falta da fundamentação legalmente exigida, “[à] face dos critérios de qualificação de vícios dos actos administrativos que se extraem dos arts. 133.º e 135.º do [antigo] CPA [artigos 161.º a 163.º, do NCPA] (…) gera mera anulabilidade.”[1].
Por outro lado, é jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo a de que “A fundamentação do acto administrativo é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto.
Ponto é que a fundamentação responda às necessidades de esclarecimento do contribuinte informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática, de forma a poder desencadear os mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação.
Está suficientemente fundamentado o acto administrativo que, complementado com informação para que remete, permite atingir esse objectivo.” – cfr. o Acórdão do STA, de 29 de setembro de 2016, processo n.º 0956/16, disponível em http://www.dgsi.pt/.
Ora, no caso concreto, a fundamentação de que “(…) não estão abrangidos por esta previsão legal [a alínea e) do artigo 269.º, do CIRE] os insolventes que sejam pessoas singulares e não exerçam uma atividade industrial, comercial ou agrícola”, afigura-se ser suficientemente esclarecedora do iter cognitivo que motivou a AT à emissão da liquidação adicional de Imposto do Selo em análise.
Tem-se, portanto, como não verifica a falta de fundamentação da liquidação impugnada.
(iv) Invoca ainda o Requerente a violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, por a AT ter aplicado, na liquidação impugnada, a sua interpretação da norma da alínea e) do artigo 269.º, do CIRE, a um facto tributário passado, inteiramente ocorrido ao abrigo da lei antiga, ao que a AT contrapõe que a única alteração à redação do artigo 269.º, do CIRE, pelo artigo 234.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2013, consistiu no aditamento ao seu proémio, da referência às transmissões da empresa ou de estabelecimentos desta, integrados no âmbito de planos de recuperação de empresas.
E tem razão a AT.
Efetivamente, o mencionado artigo 234.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, introduziu alterações (que já se encontravam em vigor à data da aquisição do prédio de que tratam os autos) aos artigos 16.º, 268.º, 269.º e 270.º do CIRE, no sentido de contemplar, entre outras, as situações enquadráveis Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto, que aprovou o Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), mantendo o benefício fiscal anteriormente previsto na alínea e) do artigo 269.º, do CIRE.
Por outro lado, a interpretação dada pela AT à referida norma, na liquidação impugnada, não é inovadora, constando já do Parecer n.º 166, da Direção de Serviços Jurídicos e do Contencioso, transmitido à Ordem dos Notários através de ofício da DSIMT, de 16 de julho de 2008, em cujo ponto 14 se concluiu, nomeadamente, que “c) Os benefícios fiscais do art. 269.º, alínea e), abrangem todos os bens imóveis do activo imobilizado ou permutável da empresa, não sendo aplicável quando o insolvente não for uma empresa ou, posto ser empresário em nome individual, os bens imóveis vendidos, permutados ou cedidos não integrem o activo da empresa de que é titular”.
Em face do exposto, conclui-se não ter havido, na situação em apreço, nem a aplicação retroativa da lei fiscal, proibida pelo artigo 103.º, n.º 3, da CRP, nem da interpretação dada pela AT à norma da alínea e) do artigo 269.º, do CIRE.
(v)A última questão que cabe ao tribunal apreciar é a de saber se a revogação da isenção de que o Requerente beneficiou aquando da transmissão do prédio identificado supra, consubstanciada na liquidação adicional de Imposto do Selo ora impugnada, é ilegal, por violação da “aplicação conjugada do disposto nos arts. 141.º, n.º 1, do CPA e 58.º do CPTA”.
Dispunha o n.º 1 do artigo 141.º, do antigo CPA (cfr. o artigo 168.º, do NCPA) que “Os atos administrativos que sejam inválidos só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respetivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida”.
Trata-se da chamada revogação anulatória ou revogação administrativa (conforme a terminologia dos artigos 165.º e seguintes, do NCPA), doutrinariamente distinta da revogação propriamente dita, por “destruir, e não apenas cessar, os efeitos de uma anterior decisão administrativa inválida, sendo tal invalidade a causa determinante do acto anulatório”[2], dentro do prazo do respetivo recurso contencioso (a atual ação administrativa especial a cujo prazo de dedução se refere o artigo 58.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA).
A existência de um anterior ato administrativo inválido é, pois, condição essencial à revogação administrativa, havendo que averiguar se a liquidação de Imposto do Selo objeto dos presentes autos consubstancia a revogação de qualquer anterior ato da AT.
Averiguação que nos remete, necessariamente, para os conceitos de benefícios fiscais automáticos e dependentes de reconhecimento, expressos no artigo 5.º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), nos termos do qual “os primeiros resultam direta e imediatamente da lei, os segundos pressupõem um ou mais atos posteriores de reconhecimento”.
À data da transmissão do prédio de que tratam os autos, as isenções constantes dos artigos 268.º a 270.º, do CIRE, apenas dependiam de reconhecimento prévio da AT, quando aplicadas no âmbito do SIREVE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto, conforme o disposto no n.º 2 do artigo 16.º, do CIRE, na redação que lhe foi dada pelo artigo 234.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
Assim, ainda que o prédio transmitido se não destinasse a habitação e integrasse a empresa de que o insolvente era titular, é duvidoso e o Requerente não prova que tivesse havido recuperação daquela empresa, como decorre do facto de, à data da transmissão, já o insolvente ter cessado a sua atividade empresarial, como decorre da factualidade fixada supra.
Conclui-se assim que, caso o benefício fiscal previsto na alínea e) do artigo 269.º, do CIRE, fosse aplicável à situação dos autos, sempre teria a natureza de benefício fiscal automático, não carecendo de qualquer ato de reconhecimento prévio por parte da AT.
Razão por que não se poderá invocar, como fundamento para impugnação da liquidação adicional de Imposto do Selo, a revogação de um ato administrativo que a AT não praticou (e que seria o do reconhecimento do benefício fiscal previsto na alínea e) do artigo 269.º, do CIRE), por se estar perante um benefício fiscal automático, devendo antes concluir-se que, no exercício do poder-dever de controlo dos pressupostos dos benefícios fiscais, ainda que automáticos (artigo 7.º, n.º 1, do EBF), sempre a AT poderia proceder à liquidação do imposto devido, dentro do prazo de caducidade (artigo 45.º, da LGT), como veio a fazer.
Apreciadas as questões acima enunciadas e, antecipando a decisão, diremos que a liquidação impugnada não é passível de censura, por não padecer dos vícios que lhe vêm imputados pelo Requerente, devendo manter-se na ordem jurídica.
2. Questões de conhecimento prejudicado
Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT), sendo que as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.
Em face da solução dada às questões identificadas supra, fica prejudicado o conhecimento das demais questões atinentes à violação de outros princípios e normas constitucionais invocados pelo Requerente, bem como as relativas à restituição do valor do imposto pago e dos juros indemnizatórios que seriam devidos em caso de anulação da liquidação impugnada, por erro imputável à Requerida.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados decide-se em, julgando inteiramente improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, determinar a manutenção da liquidação de Imposto do Selo (verba 1.1, da TGIS) impugnada.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 916,80 (novecentos e dezasseis euros e oitenta cêntimos), equivalente ao valor da liquidação impugnada.
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 306,00 (trezentos e seis euros), a cargo do Requerente.
Lisboa, 10 de fevereiro de 2017.
O Árbitro,
/Mariana Vargas/
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.
[1] - Cfr. os AA citados, in Lei Geral Tributária, anotada e comentada, 4.º Edição, Encontros da Escrita, 2012, pág. 687, com referência ao Acórdão n.º 594/2008, do Tribunal Constitucional, de 10.12.2008, que “julgou não inconstitucional a interpretação dos arts. 123.º, n.º 1, alínea d), 124.º, n.º 1, alínea a), e 133.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do CPA, no sentido de não ser a fundamentação dos actos administrativos que afectem direitos e interesses legalmente protegidos seu elemento essencial e direito fundamental dos cidadãos cuja violação determine a sua nulidade”.
[2] Assim, Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo, Comentado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1995, pág. 178.