Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 126/2013-T
Data da decisão: 2014-01-27  IVA  
Valor do pedido: € 127.734,18
Tema: Conceito de “atividade económica” para efeitos do IVA
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Acórdão arbitral

Processo n.º 126/2013-T

 

Os árbitros José Poças Falcão, Árbitro Presidente, Nuno Azevedo Neves e João Menezes Leitão, árbitros vogais, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, acordam:

 

I. Relatório[1]

 

1. A…, SA, atualmente denominada AA…, SA, pessoa colectiva n.º …, com sede na Avenida … ... (a seguir a Requerente), apresentou em 28.05.2013, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, com as alterações posteriores (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a seguir RJAT), pedido de pronúncia arbitral, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (a seguir, Requerida ou AT), relativamente à decisão, por subdelegação, do Subdiretor Geral da Direção de Serviços do IVA, proferida em 07.02.2013, que negou provimento ao recurso hierárquico formulado pela Requerente.

 

2. Em conformidade com os artigos 5.º , n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a) e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo o Senhor Doutor Juiz José Poças Falcão, com as funções de Árbitro Presidente, e os Senhores Drs. Nuno Azevedo Neves e João Menezes Leitão, como árbitros vogais, que aceitaram o encargo.

 

3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD,  o Tribunal Arbitral ficou constituído em 29.7.2013.

 

4. No requerimento de pronúncia arbitral (a seguir requerimento inicial ou RI), a Requerente formulou os seguintes pedidos:

A. “Dar como provada a presente ação arbitral e, consequentemente, anular a decisão das autoridades tributárias de indeferimento ao Recurso Hierárquico apresentado pela Requerente, em virtude de tal decisão se fundar em pressupostos de facto que não correspondem à situação da Requerente, porquanto entenderam incorretamente que as obras de conservação, manutenção e requalificação realizadas pela Requerente no parque habitacional da CMC, no âmbito dos contratos-programa que, desde 2007, estas entidades têm vindo a celebrar anualmente, não consubstanciam prestações de serviços efectuadas a título oneroso, encontrando-se, por esse motivo, fora do âmbito de incidência de imposto e, por conseguinte, que o imposto incorrido com a aquisição, por parte da Requerente, dos recursos, única e exclusivamente utilizados neste âmbito, não é passível de dedução na sua esfera”;

B. “Subsidiariamente, e por daí não decorrer qualquer prejuízo para a Fazenda Pública nem para a economia do imposto, a possibilidade de obter a restituição do imposto que se considere ter sido liquidado a mais nos serviços de construção civil adquiridos pela Requerente, em virtude de ter sido aplicada a taxa normal de IVA ao invés da reduzida, à luz do enquadramento em IVA propugnado pelas autoridades tributárias em resposta ao mencionado PIV, admitindo-se a dedução do referido imposto incorrido (à taxa normal) na aquisição dos mencionados serviços, mediante a correspondente liquidação de imposto (à taxa reduzida) nos serviços que a Requerente facturou a CMC a título de serviços de construção civil”.

 

5. A AT apresentou resposta, na qual peticionou a improcedência do pedido de pronúncia arbitral com base em as obras de conservação e requalificação levadas a cabo pela Requerente no quadro do contrato-programa celebrado com o Município de ... não constituírem uma prestação de serviços, “já que que a contraprestação a obter não constitui o contravalor efetivo do serviço prestado”, mas reveste unicamente a natureza de subsídio à atividade. Para além disso, a título preliminar, invocando que as liquidações adicionais efectuadas à Requerente relativamente ao período de Dezembro de 2008 a Dezembro de 2009 foram anuladas por despacho de 05.08.2011, a Requerida suscitou, na sua resposta, as seguintes duas questões susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito: i) a questão prévia da incompetência do tribunal coletivo; ii) a exceção da inimpugnabilidade do ato objecto do pedido de pronúncia arbitral.

 

6. Na primeira reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT, conforme ata de 30.10.2013, foi admitida a pronúncia por escrito da Requerente à matéria das questões prévias suscitadas pela AT, bem como a eventual subsequente pronúncia por escrito por parte da Requerida. Por requerimento de 31.10.2013, a Requerente pronunciou-se no sentido da improcedência da exceção e da questão prévia suscitadas pela Requerida, juntando para o efeito dois documentos. A AT não replicou.

 

7. Dado que as partes não solicitaram a produção de alegações orais, por despacho de 8.11.2013 do Presidente do Tribunal Arbitral Coletivo foi relegada para final a apreciação da questão prévia e da exceção suscitadas pela Autoridade Tributária e fixada a data de 29.01.2014 como dies ad quem para a prolação da decisão arbitral.

 

II. Objecto do processo e questões a decidir

 

8. Atento o pedido de pronúncia arbitral que foi deduzido, o presente processo tem como objecto imediato a decisão (junta como doc. n.º 1 ao RI) de 07.02.2013 do Subdiretor-Geral, da Direção de Serviços do IVA, no uso de competências delegadas, que indeferiu o recurso hierárquico objecto do procedimento n.º… , interposto pela Requerente do indeferimento tácito de reclamação graciosa, com base nos fundamentos constantes da Informação … de 28.01.2013.

 

9. Nessa Informação … de 28.01.2013, que, por força da declaração de concordância da decisão de indeferimento, constitui parte integrante deste mesmo ato (art. 77.º, n.º 1 da LGT e art. 124.º do Cód. do Procedimento Administrativo), concluiu-se o seguinte: i) “Estando em causa a dotação de receitas entre duas pessoas coletivas de direito público no quadro de transferências de atribuições entre elas não constitui uma contraprestação de uma prestação de serviços, estando portanto excluída do conceito de atividade económica”; ii) “A realização de obras de conservação e requalificação por iniciativa própria da recorrente ou mediante contrato programa em que não seja definida qualquer contrapartida, não constituem prestações de serviços efetuadas a título oneroso, estando, portanto, fora de incidência do imposto”; iii) “Aquando da realização de contratos programa que determinem a realização de obras de requalificação e manutenção mediante o pagamento de uma contraprestação financeira, há tributação em sede de IVA apenas quando o contrato estabelecer um conjunto de prestações recíprocas. Quando tais contraprestações revistam unicamente a natureza de subsídios à atividade, não são as mesmas sujeitas a tributação”.

 

10. É sabido, no entanto, que, quando o ato administrativo em matéria tributária envolve a apreciação de um ato de liquidação, a legalidade deste último, não obstante não ser o objecto imediato do recurso, é indiretamente objecto de apreciação pelo tribunal. Na verdade, conforme é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Administrativo, “constituindo embora o despacho administrativo de indeferimento o objecto imediato da impugnação, é, contudo, o ato tributário de liquidação – seu objecto mediato - que verdadeiramente se controverte na impugnação” (vd. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11.09.2013, proc. n.º 01138/12, na base de dados consultável em www.dgsi.pt).

 

11. Deste modo, cabe assinalar que os atos de liquidação de imposto que se encontram em causa no presente processo são as liquidações adicionais de IVA, relativas aos períodos compreendidos entre Dezembro de 2008 e Dezembro de 2009, no valor total de €127.734,18 (juntas aos autos no âmbito do doc. n.º 9 junto ao RI), que correspondem ao imposto reputado pela AT indevidamente deduzido pela Requerente, liquidações adicionais essas que se descrevem no quadro subsequente:

 

Liquidações adicionais de IVA

Liquidação n.º

Período de tributação

Valor (euros)

Dez-08

34.278,06

Jan-09

1.594,30

Fev-09

3.540,91

Mar-09

3.016,35

Abr-09

8.219,78

Mai-09

6.545,69

Jun-09

13.215,59

Jul-09

13.391,02

Ago-09

5.960,55

Set-09

13.386,98

Out-09

14.115,55

Nov-09

5.368,17

..

Dez-09

5.101,23

 

12. Atentas as posições assumidas e os fundamentos alegados pelas partes no âmbito do presente processo arbitral, as questões a apreciar e decidir, tal como se retiram do RI da Requerente e das questões prévias suscitadas na resposta da Requerida, são as seguintes:

 i) a incompetência do presente tribunal arbitral coletivo;

ii) a inimpugnabilidade do ato objecto do pedido de pronúncia arbitral;

iii) a qualificação como prestação de serviços para efeitos de IVA das operações relativas a obras de manutenção, conservação e requalificação promovidas pela Requerente no âmbito de contrato-programa celebrado com a Câmara Municipal de ....

 

III. Matéria de facto relevante

 

13. Analisada a prova documental produzida, não impugnada, e o processo administrativo tributário (PAT) junto, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:

 

I. A Requerente é uma empresa pública municipal, com sede na … ..., que tem atualmente, na sequência da alteração dos estatutos inscrita no registo sob a apresentação AP. …/…, o seguinte objecto social: “a exploração, administração e gestão social, patrimonial e financeira dos imóveis e equipamentos afetos à habitação social, à educação e ao desporto, próprios ou pertencentes ao Município de ..., a promoção e gestão de programas e concursos destinados à habitação jovem, específicos e adequados aos diversos graus de autonomia e progressão dos jovens residentes no concelho de ..., assim como o desenvolvimento e aprofundamento das políticas sociais de habitação. O objecto social compreende o exercício das seguintes atividades, designadamente: a) Administração do património supra indicado, promovendo as compras, vendas ou permutas que a Câmara Municipal de ... determinar; b) Execução das obras que a gestão dos imóveis e equipamentos municipais supra citados exija, através de administração direta ou empreitada; c) Manutenção e conservação dos imóveis e equipamentos municipais que vierem a ser definidos; d) Celebração, administração e fiscalização dos contratos, acordos ou outros vínculos jurídicos referentes aos imóveis e equipamentos municipais referidos no nº 1; e) Proceder à cobrança das rendas e às respectivas atualizações, nos termos e condições fixados pela lei aplicável, bem como as ações judiciais competentes, nomeadamente para despejo, entrega de coisa certa e pagamento de quantia certa; f) Elaborar estudos e projetos relacionados com o seu objecto social”; e tinha anteriormente, conforme artigo 3.º dos estatutos elaborados outorgados em 2009, como objecto social principal “a gestão social, patrimonial e financeira dos imóveis pertencentes ao Município de ...” e, complementarmente, “administrar o património indicado (...), promovendo, além do mais, as compras, vendas ou permutas que a Câmara Municipal de ... determinar”, “executar obras que a gestão dos imóveis supra citados exija, através de administração direta ou empreitada” (cf. certidão permanente com o código …e os estatutos juntos como doc. n.º 2 ao RI).

 

II. O artigo 19.º dos estatutos sociais da Requerente, conforme doc. n.º 2 junto ao RI, estabelece o seguinte:

“1.  Deverão ser elaborados contratos-programa entre o Município e a A... onde se definam pormenorizadamente o objecto e missão desta, bem como as funções de desenvolvimento económico local que a A... deve desempenhar.

2. Os contratos-programa integrarão o plano de atividades da A... para o período a que respeitem.

3. Dos contratos-programa constará obrigatoriamente o montante dos subsídios e indemnizações compensatórias que a A... terá direito a receber como contrapartida das obrigações assumidas”.

 

III. A Requerente celebrou em 29 de Abril de 2009 contrato-programa com o Município de ..., respeitante a “cooperação técnica e económica relativo à exploração e gestão do património habitacional da Câmara Municipal de ...”, conforme doc. n.º 3 junto ao RI.

 

IV. Nos considerandos deste contrato-programa refere-se o seguinte:

- “A A... (...) é uma empresa pública municipal integrante do sector empresarial local que tem por objecto estatutário, entre outras atividades, a gestão social, patrimonial e financeira dos bairros do Município de ..., devendo proceder à execução das obras que a gestão dos empreendimentos habitacionais exigir, devidamente detalhadas no Plano de Atividades para 2009 aprovado pela Câmara Municipal de ..., visando criar condições para a melhoria da qualidade de vida dos seus residentes”;

- “Existe um conjunto de competências que, pela sua própria natureza, podem ser mais rápida e eficazmente levadas a efeito se forem executadas pela A...”;

- “O Plano de Atividades para 2009 e os respectivos instrumentos previsionais de gestão aprovados pela Câmara Municipal de ... inclui a realização de várias intervenções nos empreendimentos habitacionais sob gestão da A..., devidamente discriminadas e orçamentadas”;

- “Deste modo, há que transferir para esta empresa municipal os fundos financeiros necessários à recuperação e à manutenção dos fogos, assim como dos espaços envolventes, designadamente jardins, espaços de lazer ou desporto”;

- “Em conformidade com o estabelecido no n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 53-F/2006, a realização de transferências financeiras dos municípios para as empresas municipais, cujo objecto se integre no âmbito da função de desenvolvimento local, exige a celebração de um contrato-programa”.

 

V. As cláusulas primeira, segunda, n.º 1, terceira, quinta, sétima e oitava deste contrato-programa, em que o Município de ... surge indicado como Primeiro Outorgante e a Requerente surge indicada como Segunda Outorgante, têm o seguinte teor:

“Primeira

(Cooperação técnica e financeira):

No âmbito do presente contrato-programa, a participação do Primeiro Outorgante traduz-se em cooperação técnica e financeira com a Segunda Outorgante, com vista à prossecução do objecto estabelecido na cláusula seguinte”;

“Segunda

(Objecto)

1. Constitui objecto do presente contrato-programa a prossecução, por parte da Segunda Outorgante, das ações necessárias à administração do património habitacional da Câmara Municipal de ..., da gestão integrada e da execução de obras que a gestão dos empreendimentos exigir, conforme mapa discriminado das intervenções nos empreendimentos habitacionais incluído nas páginas 8 e 9 do Plano de atividades da A..., EM, SA para 2009, de acordo com a seguinte classificação:

a. Obras de conservação/manutenção;

b. Obras exteriores e espaços verdes;

c. Projetos e fiscalização”;

“Terceira”

(Duração do contrato)

O presente contrato-programa tem início na data em que for outorgado por ambas as partes e vigora até 31 de Dezembro de 2009”;

“Quinta

(Contrapartida remuneratória)

1. Para concretização do objecto definido na Cláusula Segunda, a Segunda Outorgante receberá no ano de 2009 a verba de € 1.400.000,00 (...):

Conservação/manutenção ......................................€ 1.134.000,00

Exteriores e espaços verdes...................................€174.000,00

Projetos e fiscalização..............................................€92.000,00

2. O montante referido no número anterior será liquidado mediante a apresentação de facturas e outros documentos comprovativos da execução dos trabalhos realizados”;

“Sétima

(Incumprimento do contrato-programa)

1. O incumprimento, por parte da Segunda Outorgante, das obrigações previstas nas Cláusulas Segunda ou Quarta ou a afectação das verbas transferidas pelo Primeiro Outorgante a fins diferentes do previsto no presente contrato-programa, confere a este último o direito de resolver o contrato.

2. As quantias que já tiverem sido pagas a título de contrapartida remuneratória só devem ser restituídas na medida em que a realização do objecto deste contrato-programa tiver ficado comprometido.

3. O incumprimento culposo, por parte da Segunda Outorgante, concede ao Primeiro Outorgante o direito de resolver o contrato-programa e de reaver todas as quantias pagas a título de comparticipação financeira, quando se verifique a impossibilidade de realização dos objectivos previstos na Cláusula Segunda e, nos demais casos, o incumprimento confere ao Primeiro Outorgante apenas o direito de reduzir proporcionalmente a sua comparticipação”;

Oitava

(Restituições)

1. A restituição das importâncias indevidamente utilizadas deve ser efectuada pela Segunda Outorgante no prazo máximo de 60 (sessenta) dias após a notificação.

2. Não se verificando a restituição voluntária no prazo referido no número anterior, não serão pagas quaisquer prestações previstas na Cláusula Quinta, ou, tendo já sido pagas, os membros dos órgãos da Segunda Outorgante respondem pessoalmente pelo reembolso dessas quantias quando se prove ter havido da sua parte atuação dolosa ou fraudulenta”.

 

VI. A Requerente foi sujeita a uma ação de inspeção, que abrangeu os exercícios de 2006 a 2009, relativamente à qual foi elaborado um Projeto de relatório de inspeção tributária datado de 1.3.2011, conforme doc. n.º 4 junto ao RI, cujo teor se dá aqui por reproduzido, e de que se transcreve o seguinte com interesse para a decisão:

- “Atendendo à natureza residual e, consequentemente, ampla do conceito de prestação de serviços consignado no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA, as operações realizadas entre a A... e a CMC, respeitantes à gestão social, patrimonial e financeira dos bairros municipais designados pela CMC, são considerados prestações de serviços, qualificando-se como operações sujeitas a tributação de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA (respectivamente incidência objectiva e subjetiva)” (p. 25);

- “A A... qualifica como subsídios à exploração, não tributados em sede de IVA, os montantes recebidos ou a receber da CMC para financiar as obras de recuperação de bairros degradados, obras de conservação e manutenção de fogos e obras de execução e manutenção de espaços envolventes e elaboração de projetos fiscalização” (p. 26);

- “Na situação em apreço,

  • os imóveis onde são efectuados obras de requalificação e manutenção são propriedade da CMC e
  • a construção e manutenção de arranjos exteriores constitui atribuições do Município.

Assim sendo, entendendo-se que o dono da obra é a CMC e a A... funciona como um prestador de serviços, encontra-se afastada a qualificação das quantias recebidas como subsídios, constituindo antes a contrapartida de um serviço sujeito a IVA, conforme resulta do estipulado nas regras de incidência subjetiva e objectiva previstas no CIVA, em especial do conceito residual de prestação de serviços contido no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA.

Desta forma, as operações referentes à realização de obras em edifícios e obras e manutenção de arranjos exteriores estão sujeitas à taxa reduzida prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA por enquadráveis na verba 2.19 (verba 2.17 até à alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31/12) da Lista I anexa ao CIVA.

No entanto, dada a introdução da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA pelo Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro, a vigorar a partir de 01/04/2007, considera-se que às obras em edifícios deve ser aplicada a regra de inversão do sujeito passivo” (pp. 27-28).

 

VII. A Requerente procedeu à entrega em 2 de março de 2011 de declaração de alterações, com efeitos reportados a 1 de janeiro de 2007, nos termos da qual, com referência a essa data, se enquadrou no regime de IVA normal mensal, em vez do regime de “exercício exclusivo de transmissões de bens/ou prestações de serviços isentas que não conferem direito à dedução” anteriormente aplicável, com dedução do imposto suportado segundo a afectação real de parte dos bens e serviços utilizados e com pro rata estimado de 24% (cfr. doc. n.º 5 junto ao RI).

 

VIII. A Requerente procedeu, subsequentemente, à submissão em relação aos anos de 2009 e de 2010 de declarações periódicas de IVA para cada um dos períodos dos anos em causa com os valores de IVA a liquidar e a deduzir, conforme declarações constantes do doc. n.º 6 ao RI que aqui se dão por reproduzidas.

 

IX. O montante de IVA a crédito resultante daquelas declarações foi inserido no campo 81 da declaração periódica de fevereiro de 2011 e reportado sucessivamente como excesso a reportar nas declarações periódicas seguintes, sem que tenha sido solicitado o seu reembolso.

 

X. No Relatório de Inspeção Tributária referente aos exercícios de 2007, 2008 e 2009, notificado à Requerente pelo Ofício n.º 037987, de 29 de abril de 2011, junto como doc. n.º 8 ao RI e que aqui se dá por reproduzido, considerou-se o seguinte que se transcreve:

- “convém ressalvar que as correções propostas em sede de IVA no Projeto de Relatório estão em conformidade com doutrina veiculada através de informações da Direção dos Serviços do IVA e tiveram a concordância ao tempo dos meus superiores hierárquicos

No entanto, no decurso da análise do Direito de Audição remetido pelo sujeito passivo, foram novamente reapreciadas as questões de enquadramento  para efeitos de IVA das atividades da A...” (p. 54);

- “no entendimento agora superiormente preconizado, no caso de contratos programas que determinem a realização de obras de requalificação mediante o pagamento de uma comparticipação financeira, só há tributação em sede de IVA quando o contrato estabelecer um conjunto de prestações recíprocas. Não envolvendo os contratos estabelecidos entre a CMC e a A... a troca de prestações recíprocas, as correspondentes comparticipações não configuram uma prestação de serviços para efeitos de IVA, na acepção do n.º 1 do artigo 4.º do IVA” (p. 57);

- “tendo a A... deduzido o imposto suportado nas aquisições de bens e serviços destinados à atividade de obras de conservação e requalificação, o mesmo será corrigido por não conferir direito à dedução, face ao n.º 1 do artigo 20.º do CIVA” (p. 57);

 

XI.  Foram efectuadas à Requerente, na sequência das correções indicadas no Relatório referido no n.º antecedente e relativas ao imposto considerado indevidamente deduzido, as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios relativas aos períodos de imposto compreendidos entre dezembro de 2008 e dezembro de 2009, nos termos dos seguintes quadros (conforme documentos constantes do doc. n.º 9 junto ao RI e que aqui se dão por reproduzidos):

 

Liquidações adicionais de IVA

Liquidação n.º

Período de tributação

Valor (euros)

 

Dez-08

34.278,06

 

Jan-09

1.594,30

 

Fev-09

3.540,91

 

Mar-09

3.016,35

 

Abr-09

8.219,78

 

Mai-09

6.545,69

 

Jun-09

13.215,59

 

Jul-09

13.391,02

 

Ago-09

5.960,55

 

Set-09

13.386,98

 

Out-09

14.115,55

 

Nov-09

5.368,17

 

Dez-09

5.101,23

 

Liquidações de juros compensatórios

Liquidação n.º

Período

Valor (euros)

 

Dez-08

3.031,50

 

Jan-09

136,11

 

Fev-09

289,09

 

Mar-09

237,01

 

Abr-09

617,05

 

Mai-09

471,29

 

Jun-09

906,63

 

Jul-09

873,17

 

Ago-09

367,76

 

Set-09

783,41

 

Out-09

779,64

 

Nov-09

277,67

 

Dez-09

247,10

 

 

XII. A Requerente apresentou em 21 de Julho de 2011 reclamação graciosa, conforme documento constante a fls. 124 a 138 do PAT, contra “as conclusões propugnadas nos relatórios de inspeção tributária relativos aos anos 2006 a 2009 e contra as liquidações adicionais de IVA e respectivas liquidações de juros compensatórios daí resultantes relativas ao período compreendido entre dezembro de 2008 e dezembro de 2009”.

 

XIII. Por requerimento entregue em 29.07.2011, a Requerente solicitou, invocando o disposto nos arts. 90.º do CPPT e 35.º da LGT, que “o valor da liquidação adicional de IVA n.º … relativa a dezembro de 2008 (€34.278,06) seja compensado com o crédito de imposto que subsistia na sua conta-corrente como “Regularizações a crédito” (...)” e que “o valor total das liquidações adicionais de IVA em causa relativas a 2009 (o qual ascende a €93.456,12) seja compensado com o valor do campo 96 “Excesso a reportar” da sua declaração periódica de junho de 2011 (€143.510,58), e até à concorrência do valor das liquidações adicionais de IVA em causa”, bem como a anulação das liquidações de juros compensatórios “atendendo a que a Requerente se encontrou (e encontra) em permanente situação de crédito de imposto” (conforme doc. n.º 1 junto à resposta às exceções e que se dá aqui por reproduzido).

 

XIV. Pelo Ofício n.º G…, de 05.08.2011, da Direção de Serviços de Cobrança-Divisão de Cobrança Voluntária-IVA, relativo a “Acerto à conta corrente após processamento de documentos de correção elaborados pelos serviços de Inspeção Tributária. Crédito sob a forma de excesso a reportar” (junto como doc. n.º 10 ao RI), foi comunicado à Recorrente o despacho do Subdiretor-geral de 05.08.2011 que sancionou as propostas da Informação n.º …, de 05.08.2011, informação essa de que se destaca o seguinte:

“Após consulta às declarações periódicas referentes aos períodos compreendidos entre Dezembro de 2008 e Dezembro de 2009 e de conformidade com o processamento de documentos de correção elaborados pela Inspeção Tributária, verifica-se:

- que foram processados documentos de correção – DCU,s em 2011/04/28 (...);

- que na sequência do processamento dos documentos de correção foram emitidas liquidações adicionais que totalizam o valor de crédito constante na conta corrente do sujeito passivo, bem como as respectivas liquidações de juros compensatórios (...)

Após consulta ao saldo da conta corrente do sujeito passivo constata-se que o valor do crédito de €127.734,18 se mantém disponível.

Assim, (...) propõe-se:

- a anulação das liquidações mencionadas;

- o movimento rectificativo à conta corrente para diminuição do crédito até à concorrência do montante das liquidações adicionais, por contrapartida da anulação das mesmas”.

 

XV. Não tendo sido proferida decisão no âmbito do processo de reclamação graciosa n.º … até 16.02.2012, a Recorrente apresentou nesta data recurso hierárquico contra o indeferimento tácito que presumiu nos termos dos n.ºs 1 e 4 do art. 57.º da LGT, conforme doc. n.º 11 junto ao RI e fls. 3 a 17 do PAT, o qual se dá aqui por reproduzido.

 

XVI. Por decisão de 07.02.2013 (junta como doc. n.º 1 ao RI e que se dá aqui por reproduzida) foi indeferido o recurso hierárquico objecto do procedimento n.º …, interposto do indeferimento tácito da reclamação graciosa, por se considerar “que as situações expostas referentes aos períodos em análise não configuram prestações de serviços sujeitas a IVA nos termos estabelecidos no artigo 4.º do correspondente código”, com base nos fundamentos constantes da Informação … de 28.01.2013 que se transcrevem:

- “a recorrente procede à execução de obras de conservação, requalificação e manutenção urbana em espaços públicos sob gestão municipal e em edifícios da câmara municipal. Está sujeita à superintendência da CMC e presta serviços que originariamente estavam na esfera desta, por delegação de atribuições, ao abrigo da celebração de contratos programa onde são definidas as funções a desempenhar e o montante das comparticipações públicas que tem direito a receber como contrapartida das obrigações assumidas” (n.º 42);

- “Estas atribuições implicam a afetação de meios de financiamento para a sua realização. Contudo, esta fixação em contratos programa de comparticipações financeiras a favor da recorrente em contrapartida das obrigações assumidas nos termos do Estatutos, não significa necessariamente que tais comparticipações revistam a natureza de contraprestação de uma prestação de serviços. Com efeito, na maior parte das situações, admite-se que tais comparticipações tenham a natureza de subsídios à atividade, não sujeitos a tributação” (n.º 43).

- “sendo estas transferências de receitas estabelecidas entre duas pessoas coletivas de direito público; sendo as mesmas calculadas segundo critérios objetivos e não valores calculados subjetivamente, não envolvendo a troca de prestações recíprocas entre ambas as entidades envolvidas; sendo estas atribuições previstas em contratos programa e em cumprimento das obrigações previstas nos Estatutos da ora recorrente; conclui-se não estarmos perante uma contraprestação de uma prestação de serviços, e, nessa conformidade, excluídas do conceito de atividade económica para efeitos de IVA” (n.º 44);

- “Não existe, assim, na transferência de atribuições feita pela CMC à recorrente, a troca de prestações reciprocas, nem a retribuição recebida constitui um contravalor efetivo de serviços prestados. Ainda que se considere que a atividade desenvolvida pela recorrente possa constituir uma atividade económica para efeitos de IVA, não existe entre a recorrente e o Município prestações de serviços efetuadas a titulo oneroso, conforme as normas de incidência objetiva previstas no Código do IVA” (n.º 45).

 

14. A convicção do Tribunal sobre os factos dados como provados resultou dos documentos, não impugnados, especificados nos pontos da matéria de facto acima enunciados e nos relatórios e documentos incluídos no processo administrativo tributário. Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

 

IV. Do Direito

 

15. Preliminarmente, dado poderem obstar ao conhecimento de mérito da causa, determinando a absolvição da instância (cfr. art. 89.º, n.º 2 do CPTA, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. c) do RJAT), importa começar por apreciar as questões atinentes à competência deste Tribunal Arbitral e à inimpugnabilidade do ato que foram suscitadas pela Requerida, dando natural prioridade à primeira (art. 13.º do CPTA, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. c) do RJAT).

 

 

 

 

a) Da competência do tribunal arbitral coletivo

 

16. Na resposta apresentada ao pedido de pronúncia arbitral, alegou a Requerida que “nos termos do artigo 5.º do RJAT o tribunal colectivo é incompetente para apreciar e decidir o presente pedido de pronúncia arbitral”. Para fundar esta alegação, invoca a Requerida que o valor do pedido arbitral reporta-se “ao montante das liquidações adicionais efectuadas no período compreendido entre Dezembro de 2008 e Dezembro de 2009”, liquidações essas “anuladas por despacho de 05.08.2011 do Subdirector-Geral da Autoridade Tributária”, pelo que o objecto dos presentes autos são “conclusões do relatório de inspeção”, o que implica que “nos termos do n.º 2 do artigo 97.º-A do CPPT, ex  vi do artigo 29.º do RJAT, o valor da presente ação tem como limite máximo o valor da alçada da 1.ª instância dos tribunais judiciais”.

 

17. Decidindo, comece-se por notar que o artigo 5.º do RJAT determina que: “Os tribunais arbitrais funcionam com árbitro singular ou com intervenção do colectivo de três árbitros” (n.º 1), sendo que “funcionam com árbitro singular quando: a) O valor do pedido de pronúncia não ultrapasse duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo; e b) O sujeito passivo opte por não designar árbitro” (n.º 2) e “funcionam com intervenção do colectivo de três árbitros quando: a) O valor do pedido de pronúncia ultrapasse duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo; ou b) O sujeito passivo opte por designar árbitro, independentemente do valor do pedido de pronúncia”.

 

18. Em termos diretos, cuida-se nesta disposição da composição dos tribunais arbitrais, portanto, do “corpo de decisão” que pode ser provido de um só juiz (tribunal singular) ou de uma pluralidade de juízes (tribunal colectivo). Na medida, porém, em que a designação do “corpo de decisão” é aferida, no que concerne ao seu valor, em atenção às causas ou aos pleitos, pode-se recorrer ao conceito de competência, o que, de qualquer modo, sempre se legitimaria numa acepção ampla do termo.

 

19. Pois bem, como se observa daquele artigo 5.º do RJAT, para além da opção do sujeito passivo por designação de árbitro, que aqui não releva considerar, o critério para fixação da composição do tribunal arbitral é estritamente o valor do pedido de pronúncia, consoante ultrapasse ou não duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo (rectius dos Tribunais Centrais Administrativos). Trata-se de um critério puramente formal, que se afere simplesmente pela indicação do valor do pedido constante do requerimento do pedido de pronúncia arbitral (cfr. al e) do n.º 2 do art. 10.º do RJAT), o que bem se compreende já que, na ausência de opção pela designação de árbitro pelo sujeito passivo, a respectiva designação cabe ao Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (art. 6.º do RJAT) que não cuida da matéria de cada processo em concreto.

 

20. Ora, consta como “valor da ação” no requerimento de pedido de pronúncia arbitral o montante de € 127.734,18, montante este que ultrapassa duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo (€ 60.000,00 atento o disposto no art. 6.º, n.º 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e no art. 24.º, n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro; cfr. também art. 31.º, nº 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais aprovada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto e art. 44.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).

É, pois, manifesto que o presente processo arbitral, por força do artigo 5.º, n.º 3, al. a) do RJAT, deve ser apreciado por tribunal arbitral que funcione com intervenção de colectivo de três árbitros, como in casu sucede.

 

21. Acresce que representa orientação firme que a matéria da competência constitui questão prévia a ser apreciada em atenção aos termos em que foi posta a ação, com abstração da solução de direito que o tribunal adoptaria se fosse o competente, pois, antes de decidida a questão da competência, não deve o tribunal antecipar a solução de direito, dado que esta cabe ao tribunal que, para tanto, seja juridicamente competente. A competência afere-se, pois, pelo quid disputatum (quid decidendum) e não pelo quid decisum. Assim, na fórmula clássica de MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91, a competência é “ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.

Deste modo, como, via de princípio, cabe atender, na fixação da competência, ao objecto do processo como configurado pelo autor, em função do pedido formulado e da causa de pedir alegada, segue-se que não releva a posição do requerido quanto aos termos em que deveria ser definida a ação, mas apenas o modo como o autor a desenhou.

 

22. Precisamente, o objecto do processo, o quid disputatum, tal como se retira da formulação dos pedidos e sua sustentação constantes do RI, reporta-se, como acima se indicou, às liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos compreendidos entre Dezembro de 2008 e Dezembro de 2009, no valor total de €127.734,18, pelo que, em consonância com o art. 97.º-A, al a) do CPPT, também por este motivo, se verifica a competência deste tribunal arbitral.

 

23. Termos em que se julga improcedente a suscitada exceção de incompetência do presente tribunal arbitral colectivo.

 

b) A inimpugnabilidade do ato objecto do pedido

 

24. Igualmente com base na alegação de que, pelo despacho de 05.08.2011 acima referido em XIV, foram anuladas as liquidações adicionais de IVA, bem como de juros compensatórios, invoca ainda a Requerida a inimpugnabilidade do ato, considerando que o pedido de pronúncia arbitral incide apenas sobre as conclusões do relatório de inspeção, as quais, por serem meros atos preparatórios, não são passíveis de impugnação.

Consigna-se, com efeito, na resposta da Requerida o seguinte:

- “a anulação das liquidações adicionais é posterior à apresentação da (...) reclamação graciosa, e neste sentido não se entende como é que houve presunção de indeferimento tácito contra o qual a ora Requerente veio apresentar recurso hierárquico, quando na realidade a sua pretensão já havia sido expressamente satisfeita – anulação das referidas liquidações adicionais, por despacho de 05.08.2011”;

- “não está em causa, nos presentes autos, a apreciação de quaisquer atos de liquidação de imposto porquanto (...)  as liquidações adicionais relativas aos períodos de imposto de Dezembro de 2008 a 2009 foram anuladas por despacho de 05.08.2011”;

- “as conclusões do relatório de inspeção com as quais a Requerente não concorda são meros atos preparatórios da decisão final e, como tal não são passíveis de impugnação”;

- “Carecem, pois, os presentes autos de objecto pelo que os mesmos não podem prosseguir”.

Na resposta às exceções deduzidas a Requerente replicou o seguinte:

- por requerimento entregue no Serviço de Finanças de ... – 1 “formulou um pedido de compensação/correção da conta-corrente, tendo solicitado que o valor da liquidação adicional de IVA n.º -… relativa a Dezembro de 2008 (€ 34.278,06) fosse compensado com o crédito de imposto que subsistia na sua conta-corrente como “Regularizações a crédito” e que o valor total das liquidações adicionais de IVA em causa relativas a 2009 (o qual ascende a € 93.456,12) fosse compensado com o valor do campo 96 “Excesso a reportar” da sua declaração periódica de Junho de 2011, até à concorrência do valor das liquidações adicionais de IVA em causa”, requerimento este que foi integralmente deferido pelo Ofício n.º G38072;

- “À semelhança do ato de pagamento voluntário, também a compensação é admitida como forma de extinção de prestações tributárias, de acordo com o previsto no n.º 2 do artigo 40.º da Lei Geral Tributária e nos artigos 89.º e 90.º do Código de Procedimento e Processo Tributário”;

- “Contudo, o pagamento voluntário ou a compensação não precludem o direito que assiste ao sujeito passivo de reclamar/impugnar o ato de liquidação de imposto”;

- “não estamos perante uma situação de extinção de liquidações adicionais de imposto decorrentes de um reconhecimento da AT de que o sujeito passivo tinha, afinal, razão, mas antes uma extinção decorrente do pagamento efectuado pelo sujeito passivo (neste caso por compensação)”.

 

25. Decidindo, deve-se notar imediatamente, tendo em atenção o que já acima se expôs no n.º 11, que não assiste qualquer fundamento à posição assumida a este propósito pela Requerida.

Como decorre dos factos dados como provados sub n.ºs XIII e XIV, a “anulação” das liquidações adicionais de IVA consistiu no “movimento rectificativo à conta corrente para diminuição do crédito até à concorrência do montante das liquidações adicionais, por contrapartida da anulação das mesmas”. Assim, do que se tratou com a dita “anulação” das liquidações adicionais de IVA foi, tal como requerido pela Requerente (cfr. o facto provado sub n.º XIII), da compensação do valor global das liquidações adicionais de IVA seja com o crédito de imposto existente na conta-corrente como “Regularizações a crédito” seja com o valor do campo 96 “Excesso a reportar” da declaração periódica de junho de 2011.

Ora, tendo em conta que as liquidações adicionais de IVA que foram emitidas se destinaram à “anulação dos valores regularizados voluntariamente pelo sujeito passivo” dada a apresentação das declarações de substituição relativas aos período de Dezembro de 2008 a Dezembro de 2009 das quais resultou crédito de imposto, que veio a ser incluído na conta-corrente da Requerente e subsequentemente inscrito no campo 81 da declaração periódica de fevereiro de 2011 e nas subsequentes declarações como “Excesso a reportar”, sem que tenha sido solicitado o seu reembolso (cfr. facto dado como provado sub n.º IX), é evidente que estas liquidações produziram o efeito a que se destinavam, já que a “anulação” das liquidações fez-se em contrapartida da diminuição do crédito de imposto, sendo que, precisamente, tais liquidações foram efectuadas para corrigir o valor do imposto que a Requerente tinha deduzido nas declarações periódicas que apresentou (cfr. facto dado como provado sub n.º VIII). Foi, na verdade, por ter entendido que o imposto suportado nas aquisições de bens e serviços destinados à atividade de obras de conservação e requalificação, face ao disposto no n.º 1 do art. 20.º do CIVA, não conferia direito à dedução, que a AT procedeu a correções técnicas, meramente aritméticas, correspondentes aos valores regularizados voluntariamente pela Requerente, das quais resultaram as liquidações adicionais de IVA e respectivos juros compensatórios.

 

26. Pois bem, a dita "anulação" das liquidações adicionais de IVA só poderia conduzir à falta de objecto do presente processo impugnatório se se tivessem mantido os créditos por dedução do imposto cuja legalidade se aprecia nos autos, o que representaria o acolhimento da pretensão da Requerente. No entanto, muito ao invés, como se reconhece expressamente na informação na base da decisão do recurso hierárquico junto como doc. n.º 1 ao RI: “As liquidações (...) foram anuladas por movimento retificativo à conta corrente para diminuição do crédito até à concorrência do montante das liquidações, por contrapartida da anulação das mesmas”

Deste modo, a dita "anulação" das liquidações de IVA não respeita efetivamente aos próprios atos tributários em causa, mas concerne simplesmente à dívida que deles emerge que coincide precisamente com o valor do imposto deduzido (nunca reembolsado). Como tal, o que está em causa na decisão constante do doc. n.º 10 junto ao RI é uma "compensação" (rectificação da conta corrente) entre valor do crédito de imposto e o valor das liquidações, o que representa simplesmente a regularização das liquidações adicionais, só se podendo falar, em sentido próprio, em verdadeira anulação quanto às liquidações relativas aos juros compensatórios.

Assiste, pois, razão à Requerente quando sustenta que “não estamos perante uma situação de extinção de liquidações adicionais de imposto decorrente de um reconhecimento da AT de que o sujeito passivo tinha, afinal, razão”, mas simplesmente da extinção das dívidas tributárias por compensação.

 

27. Assim, dado que as liquidações de IVA impugnadas têm na sua base a consideração de que o imposto deduzido tinha de ser corrigido por não haver direito à dedução, e como esta situação se mantém, a "compensação" operada não põe em causa a subsistência das liquidações para efeitos de apreciação da sua eventual ilegalidade, em ordem a verificar se o contribuinte tem ou não direito à dedução e, consequentemente, se os montantes utilizados para efeitos da compensação devem ser novamente creditados a seu favor.

Improcede, pois, a questão da inimpugnabilidade do ato suscitada pela Requerida.

 

28. Nesta sequência, impõe-se consignar que o Tribunal é competente para apreciar o pedido de pronúncia arbitral (art. 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º, e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e não ocorrem quaisquer nulidades, pelo que se segue a apreciação do mérito ou fundo da presente causa.

 

c) QUESTÃO NUCLEAR

 

29. Encontrando-se fixada a matéria de facto dada como provada, interessa decidir se a atividade exercida pela Requerente constitui uma “atividade económica” e, em caso afirmativo, se pode ser qualificada como uma “prestação de serviços efetuada a título oneroso”, tendo em consideração o Direito da União Europeia, a respetiva transposição a nível interno e a interpretação judicial que sobre as mesmas tem vindo a ser levada a cabo pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (de ora em diante abreviadamente designado por “TJUE”). A resposta a estas questões é decisiva para aferirmos se a Requerente tem ou não direito à dedução do IVA, questão nuclear nestes autos.

 

30. Nos termos do artigo 9.°, n.º 1 [anterior artigo 4.º] da Diretiva 2006/112/CE do Conselho de 28 de Novembro de 2006 relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (de ora em diante abreviadamente designada por “Diretiva do IVA”), na versão consolidada de 2013-08-15, considera-se “sujeito passivo qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma actividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa atividade”.

 

31. O conceito de «atividades económicas» é definido no n.º 2 deste artigo como “qualquer actividade de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas, nomeadamente, as operações relativas à exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com caráter de permanência.”

 

32. Este conceito de «exploração» refere-se, em conformidade com as exigências do princípio da neutralidade do sistema comum do IVA, a todas as operações, seja qual for a sua forma jurídica, porém exige que tais operações visem retirar do bem em questão receitas com caráter de permanência (Acórdãos de 4 de Dezembro de 1990, Van Tiem, C- 186/89, Colect., p. I-4363, n.° 18, de 29 de Abril de 2004, EDM, C-77/01, Colect., p. I-4295, n.° 48).

 

33. A jurisprudência do TJUE tem vindo a salientar que, embora o artigo 9.° da Diretiva do IVA confira um âmbito de aplicação muito lato ao IVA, apenas são abrangidas por esta disposição as atividades que tenham um caráter económico (v. acórdãos T‑Mobile Áustria e o., C‑284/04, Colect., p. I‑5189, n.° 34, Hutchison 3G e o., C‑369/04, Colect., p. I‑5247, n.° 28, Van Tiem e o., C-186/89, Colect, p. 1-4363, n.º 17 e Régie Dauphinoise, C-306/94, Colect., p. I-3695, n.º 17).

 

34. Conforme concluiu o TJUE no caso SPÖ Landesorganisation Kärnten/Finanzamt Klagenfurt (C‑267/08) as atividades a que se refere este artigo podem ser acertadamente consideradas «atividades económicas», fazendo da pessoa que as desenvolve um «sujeito passivo», apenas quando se destinam a obter receitas de forma contínua. Por conseguinte, se uma atividade só ocasionalmente produzir receitas ou nem sequer produzir receitas, a pessoa que a desenvolve não é qualificada de «sujeito passivo» com direito a deduzir o imposto pago a montante (Acórdãos de 4 de Dezembro de 1990, Van Tiem, C-186/89, Colect., p. I 4363, n.° 18, de 29 de Abril de 2004, EDM, C-77/01, Colect., p. I-4295, n.° 48 e acórdão T Mobile Áustria, n.º 34).

 

35. Este conceito de receitas deve ser entendido no sentido de uma remuneração recebida como contrapartida da atividade exercida (neste sentido, acórdão de 20 de Junho de 2013,  Unabhängiger Finanzsenat Außenstelle Linz, C‑219/12, n.º 23).

 

36. Impõe-se verificar se as operações realizadas pela Requerente constituem uma “atividade económica” na aceção do artigo 9.º da Diretiva do IVA ou se se situam fora do âmbito de aplicação da mesma.

 

37. A Requerente tem celebrado anualmente com a Câmara Municipal de ... contratos-programa, no âmbito dos quais lhe são conferidos poderes de administração e de gestão do parque habitacional municipal da Câmara Municipal de ... (cfr. os factos dados como provados sub II e III).

 

38. Ao abrigo dos referidos contratos-programa, a Requerente procede à conservação, manutenção e requalificação do parque habitacional municipal, obrigando-se a Câmara Municipal de ... a cooperar financeiramente com aquela entidade afim de que seja possível a prossecução das ações necessárias à realização de obras no parque habitacional (cfr. os factos dados como provados sub IV e V).

 

39. A referida cooperação técnica e financeira por parte da Câmara Municipal de ... materializa-se através do pagamento de uma “contrapartida remuneratória” por parte deste à Requerente, cujo montante é liquidado mediante a apresentação de faturas e outros documentos comprovativos da execução dos trabalhos realizados (cfr. a factualidade referida sub V).

 

40. Para realização das referidas obras, a Requerente adquire serviços de construção civil a diversos empreiteiros, imputando, posteriormente, o respetivo custo à Câmara Municipal de ..., ou seja, procede à execução de obras nos edifícios, recebendo por parte do Município o reembolso das importâncias despendidas com a aquisição desses serviços aos empreiteiros (cfr. igualmente a factualidade referida sub V).

 

41. Esta atividade desenvolvida pela Requerente não permite obter receitas com caráter de permanência, uma vez que os únicos rendimentos com caráter de permanência que esta obtém provêm do financiamento da Câmara Municipal de ... e se destinam, em exclusivo, a cobrir os custos da sua atividade. Não se deteta nesta concreta atividade qualquer objetivo empresarial ou finalidade comercial, caracterizada nomeadamente por uma preocupação de rentabilização dos seus recursos. Esta finalidade comercial implicaria a vontade, pela Requerente, de rentabilizar os seus recursos, de forma que a atividade por si desenvolvida o fosse em condições comparáveis às do mercado. A Requerente adquire serviços de construção civil a diversos empreiteiros e posteriormente imputa o respetivo custo à Câmara Municipal de ..., sem que exista uma remuneração da sua própria atividade.

 

42. Estamos, assim, perante operações que não decorrem do exercício de uma atividade económica na aceção do artigo 9.º da Diretiva do IVA e, consequentemente, não conferem ao Requerente a qualidade de sujeito passivo de IVA.

 

43. Resulta do artigo 168.º da Diretiva do IVA e do artigo 20.º do CIVA que o sujeito passivo que, agindo nessa qualidade no momento em que adquire um bem ou um serviço, utilize o bem ou o serviço para os fins das próprias operações tributáveis, está autorizado a deduzir o IVA devido ou pago em relação a esse bem ou serviço (v., nesse sentido, acórdãos de 11 de julho de 1991, Lennartz, C-97/90, Colet., p. I 3795, n.° 8, e de 21 de abril de 2005, HE, C-25/03, Colet., p. I 3123, n.° 43).

 

44. É a aquisição do bem pelo sujeito passivo, agindo nessa qualidade, que determina a aplicação do sistema do IVA e, portanto, do mecanismo de dedução (v., neste sentido, acórdãos Lennartz, já citado, n.º 15, e de 16 de Fevereiro de 2012, Eon Aset Menidjmunt, C-118/11, n.º 57).

 

45. O sujeito passivo atua nessa qualidade quando age para os fins da sua atividade económica, na aceção do artigo 9.°, n.° 1, segundo parágrafo, da diretiva IVA (v. neste sentido, acórdão de 8 de março de 2001, Bakcsi, C‑415/98, Colet., p. I‑1831, n.° 29).

 

46. Ora, no caso concreto, não tendo a Requerente agido na qualidade de sujeito passivo no momento em que adquiriu os serviços, nem tendo utilizado esses serviços para a realização de operações tributáveis não poderá deduzir o IVA suportado em relação a esses serviços.

 

47. Pelo exposto, improcede o pedido principal da Requerente.

 

48. Subsidiariamente, a Requerente pede “a restituição do imposto que se considere ter sido liquidado a mais nos serviços de construção civil adquiridos pela Requerente, em virtude de ter sido aplicada a taxa normal de IVA ao invés da reduzida, à luz do enquadramento em IVA propugnado pelas autoridades tributárias em resposta ao mencionado PIV, admitindo-se a dedução do referido imposto incorrido (à taxa normal) na aquisição dos mencionados serviços, mediante a correspondente liquidação de imposto (à taxa reduzida) nos serviços que a Requerente facturou a CMC a título de serviços de construção civil”.

 

49. Com este pedido subsidiário a Requerente pretende que este Tribunal reconheça o seu direito a ser reembolsada do IVA que alegadamente lhe foi liquidado em excesso pelos empreiteiros.

 

49. Recorde-se que o objecto do processo, o quid disputatum, reporta-se, como acima se indicou, às liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos compreendidos entre Dezembro de 2008 e Dezembro de 2009, no valor total de €127.734,18, emitidas pela Administração Tributária para correção do IVA deduzido pela Requerente no pressuposto de que as operações realizadas com a Câmara Municipal de ... constituíam operações que conferiam o direito à dedução do IVA.

 

50. Este pedido subsidiário, porque respeita ao IVA liquidado pelos empreiteiros à Requerente, não tem qualquer correspondência com o objeto do litígio.

 

51. Acresce que, nos termos do artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais;

 

52. A pretensão da Requerente neste pedido arbitral não se insere em nenhuma destas situações.

 

53. Na verdade, a Requerente não requer nenhuma apreciação da legalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta ou de fixação da matéria tributável, apenas o reembolso do IVA que alegadamente lhe foi liquidado em excesso pelos empreiteiros.

 

53. Deste modo, este Tribunal considera-se incompetente para apreciar este pedido subsidiário.

 

V. Decisão

 

   De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar improcedente o pedido principal de anulação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico [A., do pedido de pronúncia arbitral] e;
  2. Declarar este Tribunal Arbitral incompetente para o conhecimento do pedido subsidiário de restituição de imposto [B., do pedido de pronúncia arbitral].

 

VI. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 127.734,18.

 

VII. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Lisboa, 27 de janeiro de 2014

 

Os Árbitros

 

 

 

 

(José Poças Falcão )

 

 

 

 

(João Menezes Leitão)

 

 

 

 

(Nuno Azevedo Neves)

 

 

 



[1] Adopta-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, tendo sido atualizada, em conformidade, a grafia constante das citações efectuadas.