Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 64/2013-T
Data da decisão: 2014-01-23  IVA  
Valor do pedido: € 7.482,00
Tema: Incumprimento das obrigações acessórias; Pedido de revisão oficiosa
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Decisão Arbitral

 

 

 

Processo arbitral n.º 64/2013-T

Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”)

Anos 2002 a 2006

 

           

  1. RELATÓRIO

 

                 A..., contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ... Parede, na qualidade de responsável subsidiário, sócio único e gerente de B...– , LDA., adiante “Requerente”, com o número de identificação fiscal …, entidade entretanto extinta (tendo sido dissolvida e liquidada), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (adiante referido por RJAT[1]).

 

                 A Requerente pretende a pronúncia anulatória relativa às liquidações oficiosas de IVA reportadas aos anos 2002 a 2006, no montante total de € 7.482,00, na sequência do despacho de indeferimento do Pedido de Revisão que submeteu ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

                

                 A fundamentar o seu pedido alega, no essencial, que a sociedade encerrou a sua actividade, a título definitivo, no final de Dezembro de 2001 inexistindo operações tributáveis em IVA a partir dessa data, a que acresce as liquidações oficiosas não terem sido efectuadas com base nos critérios do artigo 83.º do Código do IVA (correspondente ao actual artigo 88.º deste Código), por a Autoridade Tributária e Aduaneira não ter apurado elementos concretos que permitissem a respectiva quantificação, nem se encontrarem fundamentadas.

 

                 Neste contexto, considera que as liquidações oficiosas violam os princípios da boa-fé, da imparcialidade, da justiça e da tributação do rendimento real e suscita a inconstitucionalidade das normas que fundamentam a “escolha do valor das liquidações oficiosas”, ao abrigo dos artigos 18.º, n.º 1, 104.º, n.º 2, 266.º e 268.º, n.ºs 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”). Invoca, também, a inexistência de fundamentação das liquidações oficiosas, a falta de notificação das mesmas e dos seus fundamentos e a preterição da audiência prévia no âmbito da decisão de indeferimento do pedido de revisão, concluindo que aquelas liquidações enfermam de erro nos pressupostos e de vícios de forma.

 

                 É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, autora dos actos tributários, sucessora da anterior Direcção-Geral dos Impostos.

 

                 O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, em conformidade com o artigo 6.º, n.º 1 do RJAT, designou como árbitro do Tribunal Arbitral Singular Alexandra Coelho Martins, tendo o Tribunal sido constituído em 5 de Junho de 2013.

 

                 A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu por excepção e suscitou a incompetência do Tribunal Arbitral, por entender que o mesmo não pode conhecer um pedido de apreciação de inconstitucionalidade (referente à norma do artigo 78.º da LGT e às “normas que fundamentam a escolha do valor das liquidações oficiosas”) nem se pode pronunciar em abstracto sobre a interpretação de uma norma.

 

                 Invoca também a intempestividade do Pedido de Revisão Oficiosa, por preclusão do prazo a que se refere o artigo 78.º, n.º 1 da LGT, alegação que, a confirmar-se, configura, de igual modo, uma questão prévia (embora a Autoridade Tributária e Aduaneira não a qualifique dessa forma), pois implica a consequente extemporaneidade do pedido de pronúncia arbitral.

 

                 A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu por impugnação, sustentando que a Requerente carreou tardiamente (2012) a cópia da escritura de dissolução e liquidação (2002) e que tal documento não prova que não tenham sido praticados actos tributáveis até à data da cessação oficiosa (2006). Acresce que não considera admissível a imputação do incumprimento das obrigações tributárias – de pagamento, declarativas ou contabilísticas – da Requerente a terceiros, em concreto, à sociedade de técnicos de contas contratada, em virtude de tais obrigações serem legalmente da competência do sujeito passivo que pratica as operações tributáveis (artigos 29.º e 33.º do Código do IVA).

 

                 Conclui que as liquidações oficiosas se encontram fundamentadas em conformidade com os requisitos do artigo 77.º, n.º 1 da LGT e 125.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) e peticiona a procedência da excepção ou, caso assim não seja decidido, a improcedência da acção. 

 

                 Em 18 de Setembro de 2013 realizou-se a primeira reunião do Tribunal Arbitral Singular, nos termos e com os objectivos previstos no artigo 18.º do RJAT, incluindo o debate contraditório sobre as excepções suscitadas, cujo conhecimento e decisão foi relegado para final, tendo sido determinada a produção de prova testemunhal, que teve lugar no dia 1 de Outubro de 2013, seguida da apresentação das alegações orais das partes, que reiteraram as posições constantes dos respectivos articulados (cf. Actas das Reuniões do Tribunal Arbitral).

 

                 Em 5 de Dezembro de 2013, realizou-se a última reunião do Tribunal Arbitral na qual se prescindiu do registo sonoro da prova testemunhal que na anterior reunião de inquirição de testemunhas, por razões técnicas, não foi viável efectivar. Face às vicissitudes do processo, foi prorrogado o prazo para emissão da decisão arbitral por dois meses.

 

                 Atendendo a que a procedência das excepções, a verificar-se, obsta ao conhecimento das demais questões, procede-se, de seguida, à sua apreciação, logo após fixação da matéria de facto relevante.

 

           

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

2.1.           Factos provados

 

                 Com relevância para a apreciação das questões decidendas foram provados os seguintes factos:

 

  1.  

                 B...–, LDA., sujeito passivo de IVA enquadrado no regime normal trimestral, com sede na Rua …, na Parede, foi dissolvida e liquidada por escritura pública em 11 de Janeiro de 2002, constando da referida escritura que a sociedade não tem activo nem passivo e a advertência da obrigatoriedade de registo no prazo de três meses na competente Conservatória – cf. cópia da escritura constante do Processo Administrativo, Parte 3 de fls. 6 a 8, Informação da Direcção de Serviços do IVA no Processo Administrativo, Parte 4, de fls. 2 a 8, e Documento 2 junto com o pedido arbitral.

 

  1.  

                 A Requerente não promoveu o registo da escritura de dissolução e liquidação na Conservatória do Registo Comercial, a qual, sete anos mais tarde, veio a instaurar oficiosamente o processo administrativo de dissolução e liquidação n.º …/2009 – cf. Documento 7 junto com o pedido arbitral.

 

  1.  

                 A Requerente emitiu a última factura por serviços prestados em 24 de Dezembro de 2001 – cf. factura n.º 28, Processo Administrativo, Parte 1 a fls. 16 e depoimento da testemunha … .

 

  1.  

                 A partir de 31 de Dezembro de 2001 a Requerente deixou de entregar declarações periódicas de IVA, não tendo submetido quaisquer modelos C de substituição – cf. Documentos 3 a 5 juntos com o pedido arbitral e depoimento da testemunha … .

 

  1.  

                 Em 2001, a Requerente tinha como Técnico Oficial de Contas…, da sociedade …, Lda., a quem havia contratado para assegurar o cumprimento das suas obrigações contabilísticas e fiscais – cf. depoimento da testemunha … .

 

  1.  

                 O Técnico Oficial de Contas da Requerente tendo tomado conhecimento da dissolução e liquidação da Requerente não efectuou a oportuna comunicação da cessação de actividade da Requerente por motivos pessoais – cf. depoimento da testemunha … .

  1.  

                 A Requerente foi notificada do ofício n.º …, datado de 26 de Outubro de 2002, da Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto sobre o Valor Acrescentado, com o seguinte teor:

 

                        “ASSUNTO:   Falta de Apresentação da Declaração Periódica, dentro do prazo

                                               PERÍODO: 1. Trimestre de 2002

 

                        Informo V. Exa. de que, não foi recebida neste Serviço, dentro do prazo legal, a declaração periódica em referência pelo que se irá proceder à liquidação oficiosa do imposto, nos termos do artº 83º do Código do IVA.

 

                        Essa liquidação oficiosa não será, contudo, efectuada se, entretanto, já apresentou ou venha a apresentar a declaração em falta ou os Serviços de Fiscalização Tributária, na sequência da visita que este Serviço irá solicitar, procederem ao apuramento do imposto a entregar ao Estado, sem prejuízo da liquidação dos juros compensatórios calculados nos termos do artº 89º do Código do IVA e da aplicação da respectiva penalidade.

cf. Documento 3 junto com o pedido arbitral.

 

  1.  

                 A Requerente foi notificada dos ofícios n.ºs … e …, datados de 25 de Novembro de 2003 e de 27 de Janeiro de 2004, respectivamente, também provenientes da Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto, de teor idêntico ao ofício referido no ponto anterior, com a única diferença de respeitarem a períodos de imposto distintos, correspondentes aos 1º e 2.º trimestres de 2003 – cf. Documentos 4 e 5 juntos com o pedido arbitral.

 

  1.  

                 A Requerente entrou em contacto com o Técnico Oficial de Contas, Sr. … e entregou-lhe cópia das notificações que antecedem (pontos 8.º e 9.º supra) para que aquele corrigisse e tratasse da situação, ao que aquele acedeu, não o tendo, todavia, feito – cf. depoimento da testemunha … .

 

  1.  

                 Entre os anos 2004 a 2007 foram emitidas as liquidações oficiosas de IVA identificadas no quadro infra:

 

LIQUIDAÇÕES OFICIOSAS

Número

Data de emissão

Ano

Data limite de pagamento

Valor (€)

29.05.2004

2002

25.11.2004

1.496,40

12.02.2005

2003

11.08.2005

1.496,40

24.06.2006

2004

21.12.2006

1.496,40

04.11.2006

2005

03.05.2007

1.496,40

09.06.2007

2006

06.12.2007

1.496,40

cf. Extracto da Consulta ao sistema da Autoridade Tributária e Aduaneira constante do Processo Administrativo, Parte 1, de fls. 19 a 26, Parte 2, de fls. 1 a 5, e Parte 3, a fls. 18. Também provado por acordo.

 

  1.  

                 Relativamente às liquidações oficiosas de IVA referentes aos anos 2002 e 2003, não consta do Sistema Electrónico de Citações e Notificações qualquer referência ao envio das mesmas, por carta, à Requerente – cf. Extractos do Sistema Electrónico de Citações e Notificações constantes do Processo Administrativo, Parte 3, a fls. 9, 16 e 17.

 

  1.  

                 A liquidação oficiosa referente a IVA do ano 2004 foi remetida à Requerente, em 27 de Junho de 2006, por carta registada sem aviso de recepção, com o registo RY…PT, tendo, no entanto, a carta sido devolvida – cf. Extractos do Sistema Electrónico de Citações e Notificações constantes do Processo Administrativo, Parte 3, de fls. 9, 14 e 15.

 

  1.  

                 As liquidações oficiosas referentes a IVA dos anos 2005 e 2006 foram remetidas por carta registada sem aviso de recepção com destino à Requerente, constando do Sistema Electrónico de Citações e Notificações a menção “Recebido” nas seguintes datas e com os números de registo dos CTT infra identificados:

 

  1. Liquidação do ano 2005 (…, datada de 4 de Novembro de 2006), em 16 de Novembro de 2006, com o registo RY…PT;
  2. Liquidação do ano 2006 (…, datada de 9 de Junho de 2007), em 21 de Junho de 2007, com o registo RY…PT

cf. Extractos do Sistema Electrónico de Citações e Notificações constantes do Processo Administrativo, Parte 3, de fls. 9 a 13.

 

  1.  

                 Em 31 de Dezembro de 2006 a Autoridade Tributária e Aduaneira promoveu a cessação oficiosa de actividade da Requerente, indicando como motivo o artigo 33.º, n.º 2 do Código do IVA – cf. Processo Administrativo, Parte 1, de fls. 21 a 26, e Parte 4, a fls. 9.

 

  1.  

                 Em 12 de Junho de 2009, a Conservatória do Registo Comercial de Cascais publicou o aviso relativo à notificação à Requerente do Processo Administrativo de Dissolução e Liquidação n.º …/2009 – cf. Documento 7 junto com o pedido arbitral.

 

  1.  

                 Em 7 de Setembro de 2011, a Requerente apresentou junto do Serviço de Finanças de Cascais … um requerimento de Revisão de Situação Tributária ao abrigo do artigo 78.º da LGT, pedindo a anulação das liquidações oficiosas dos anos 2002 a 2006 – cf. Processo Administrativo, Parte 1 de fls. 3 a 6 e Documento 8 junto com o pedido arbitral.

 

  1.  

                 Na mesma data (7 de Setembro de 2011), a Requerente procedeu à comunicação da cessação de actividade Serviço de Finanças de Cascais …através da entrega da Declaração respectiva (modelo n.º 1888), inscrevendo como data de cessação 31 de Dezembro de 2001. A Declaração de Cessação de Actividade acompanhou o pedido de revisão referido no ponto anterior – cf. Processo Administrativo, Parte 1 de fls. 3 a 6 e Documento 8 junto com o pedido arbitral.

 

  1.  

                 Em 12 de Junho de 2012, a Requerente apresentou junto do Serviço de Finanças de Cascais …um requerimento adicional, em complemento ao anterior Pedido de Revisão procedendo à junção da certidão da escritura pública da respectiva dissolução e liquidação, que havia sido outorgada em 11 de Janeiro de 2002 – cf. Processo Administrativo, Parte 3, a fls. 4, e Documento 9 junto com o pedido arbitral.

 


  1.  

                 A Requerente foi notificada, em 2 de Janeiro de 2013, do indeferimento do Pedido de Revisão dos Actos Tributários, baseado na Informação n.º …, de 10 de Dezembro de 2012, da Direcção de Serviços do IVA, sobre a qual recaiu despacho concordante do Subdirector-Geral, datado de 13 de Dezembro de 2012 – cf. Processo Administrativo, Parte 4, de fls. 3 a 13, e Documento 1 junto com o pedido arbitral.

 

  1.  

                 Os principais fundamentos do indeferimento do pedido de revisão retiram-se dos seguintes excertos da Informação n.º …:

 

                        “16. Atendendo ao anteriormente exposto, conclui-se que, mesmo quando oficiosa, a revisão do ato tributário pode ser impulsionada a pedido dos contribuintes, no prazo de quatro anos a partir da liquidação, cumprindo à Administração Tributária efectuá-la, como resulta do disposto nos nº 1 e 6 do artº 78º da LGT e na alínea a) do nº 4 do artº 86º do CPPT.

                        17. Por outro lado, refere o nº 2 do artº 78º da LGT que “Sem prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”. No entanto, a situação em apreço não configura qualquer erro na autoliquidação que, nos termos da citada norma se possa considerar imputável aos serviços, na medida em que as liquidações oficiosas surgiram em resultado do não cumprimento das obrigações declarativas por parte do sujeito passivo.

                        18. Nesta conformidade, atendendo ao disposto no artº 97º do CIVA, conjugado com os artigos 70º e 102º, nº 1, ambos do CPPT, não evidenciando os atos tributários qualquer erro imputável aos serviços e tendo as liquidações oficiosas de IVA sido efectuadas, em 2004/05/29, 2005/02/12, 2006/06/24, 2006/11/04 e 2007/06/09, notificadas à requerente, em 2004/06/11, 2005/02/25, 2006/07/17, 2006/11/16 e 2007/06/21, respetivamente, tendo o pedido de revisão dos atos tributários sido interposto, em 2011/09/07, verifica-se ter sido ultrapassado o prazo previsto no nº 1 do artº 78º da LGT, pelo que deve o pedido de revisão oficiosa ser considerado intempestivo.

                        (…)

                        20. Não obstante o pedido se apresentar extemporâneo, face aos prazos previstos no artº 78º da LGT e aos fundamentos apresentados, conforme já referido no capítulo III da presente informação, foram, no entanto, observados os factos e as alegações da requerente, não se tendo vislumbrado a ocorrência de qualquer ilegalidade ou verificado qualquer erro por parte dos serviços.

                        (…)

                        24. Constata-se que a requerente não acrescentou elementos ao processo capazes de comprovar, de forma inequívoca, que não foram praticados atos tributáveis, desde a data em que afirma ter deixado de desenvolver a atividade (2001/12/31) e até à cessação oficiosa (2006/12/31), por forma a poder considerar-se aquela data como a da efectiva cessação de atividade, com a consequente anulação das liquidações oficiosas em questão.

                        (…)

                        26. Assim, atendendo à intempestividade do pedido, dado que foi interposto após o decurso de qualquer prazo previsto no artº 78º da LGT e não se confirmando os pressupostos invocados, somos de opinião que não deve ser atendida a pretensão da requerente, não devendo ser dado provimento ao pedido de revisão oficiosa, sendo, consequentemente, de manter as liquidações em causa.”

                 – cf. Processo Administrativo, Parte 4, de fls. 3 a 9.

 

  1.  

                 O IVA liquidado nos actos tributários contestados pela Requerente não foi pago por esta – cf. Processo Administrativo, Parte I, a fls. 1 e de fls. 12 a 15.

 

  1.  

                 Em 2 Abril de 2013 a Requerente apresentou pedido de constituição do Tribunal Arbitral Colectivo – cf. requerimento electrónico no sistema do CAAD.

 

* * *

 

                 No que se refere aos factos provados, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na análise crítica dos elementos documentais indicados relativamente a cada um dos pontos da matéria de facto e no depoimento da testemunha inquirida, …, Técnico Oficial de Contas da Requerente, que se revelou idónea, respondendo às diversas questões através do relato factos, quer em sentido favorável, quer desfavorável à Requerente e assumindo a sua responsabilidade pelo incumprimento das obrigações acessórias por, à data, ter passado por um período de depressão.


 

2.2.           Factos não provados

           

                 Não se provou que:

 

  1. Não tenha existido fundamentação das liquidações oficiosas; e que
  2. O Serviço de Finanças não possuísse nem tivesse apurado elementos que lhe permitisse calcular a facturação da Requerente nos períodos omissos.

 

 

  1. QUESTÕES PRÉVIAS
    1. Sobre a incompetência para conhecer do pedido de apreciação da inconstitucionalidade

 

                 A Autoridade Tributária e Aduaneira começa por fazer referência a uma pretensão da Requerente que não consta do pedido de pronúncia arbitral por esta apresentado.

 

                 Com efeito, a Requerente não deduz um pedido de apreciação em abstracto de uma norma ou a sua declaração de inconstitucionalidade, pedido este que, se tivesse sido formulado, efectivamente não caberia no elenco de pretensões para as quais o legislador considerou competentes os tribunais arbitrais (cf. artigo 2.º, n.º 1 do RJAT).

 

                 A alegação da Requerente, ainda que imperfeitamente expressa, refere-se tão-só à aferição da validade da norma constante do n.º 1 do artigo 83.º[2] do Código do IVA face aos parâmetros constitucionais (artigos 18.º, n.º 1, 104.º, n.º 2, 266.º e 268.º, n.ºs 3 e 4 da CRP), suscitando a inconstitucionalidade das normas que “fundamentam a escolha do valor das liquidações oficiosas”.

                

                 A apreciação da validade das normas legais face aos parâmetros constitucionais não só cabe na competência deste tribunal, quando da aplicação das regras vigentes à situação concreta, pois nos termos do artigo 2.º, n.º 2 do RJAT os tribunais arbitrais devem decidir de acordo com o direito constituído (incluindo o direito que emana da Constituição), como é mesmo imposta pela própria Constituição, que no seu artigo 204.º, dispõe: “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.

 

                 Deste modo, a questão suscitada pela Requerente da inconstitucionalidade do artigo 83.º, n.º 1 do Código do IVA pode ser conhecida por este tribunal no âmbito do controlo difuso previsto no citado artigo 204.º da CRP[3], não estando aqui em causa a apreciação abstracta da inconstitucionalidade da norma. 

 

                 De esclarecer, também, que a apreciação de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, pelo artigo 2.º do RJAT, quando comportem a apreciação da legalidade dos actos tributários, conforme já decidido em diversos arestos arbitrais para os quais se remete (cf., a título de exemplo, os Acórdãos Arbitrais proferidos nos processos n.º 48/2012-T, de 6 de Julho de 2012, e n.º 117/2013-T, de 6 de Dezembro de 2013).

 

                 Na situação vertente o fundamento da intempestividade do pedido de revisão oficiosa resultou da análise prévia da legalidade dos actos de liquidação de IVA, em concreto quanto à existência ou não de erro imputável aos serviços, conforme se extrai da Informação n.º … da Direcção de Serviços do IVA (n.ºs 16 a 18) que contém os fundamentos do indeferimento do pedido de revisão, pelo que se está perante um acto administrativo (de segundo grau) que comporta a apreciação da legalidade de uma liquidação oficiosa de IVA, não se encontrando excluído das competências dos tribunais arbitrais tributários.

 

                 Pelas razões expostas, conclui-se pela improcedência da excepção de incompetência deste tribunal arbitral.

 

  1. Sobre a intempestividade do Pedido de Revisão Oficiosa

 

                 Estão em causa liquidações oficiosas emitidas entre Maio de 2004 e Junho de 2007, reportadas a IVA dos anos 2002 a 2006, tendo o correspondente pedido de “Revisão da Situação Tributária” sido apresentado pela Requerente, junto do Serviço de Finanças, em 7 de Setembro de 2011, ou seja decorridos mais de quatro anos após as mencionadas liquidações.

 

                 Neste âmbito, a Requerente considera ser aplicável a possibilidade de revisão dos actos tributários “a todo o tempo”, constante da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, por se tratar de tributo não pago e se verificar erro imputável aos serviços, posição que a Autoridade Tributária e Aduaneira contesta, por entender não ser imputável qualquer erro aos serviços, encontrando-se, por outro lado, ultrapassado o prazo contemplado na primeira parte da norma (referimo-nos ao nº 1 do artigo 78.º da LGT).

 

                 Para efeitos de contagem dos prazos, e antes de se proceder à análise do mencionado artigo 78.º, n.º 1 da LGT, impõe-se, a título preliminar, apreciar a falta de notificação das liquidações oficiosas suscitada pela Requerente, porquanto a mesma, a confirmar-se, implica a ineficácia dos actos de liquidação face à Requerente.

 

                 Sendo esse o caso (de ineficácia dos actos tributários por falta de notificação), a Requerente ainda se encontra em prazo para reclamar e, portanto, a situação em análise é enquadrável no primeiro segmento do artigo 78.º, n.º 1 da LGT.

 

                 Assinala-se, desde logo, que a contagem do prazo para reclamar não começa sem que se comprove que a notificação desse acto foi validamente efectuada, pois a eficácia da decisão depende da notificação e os actos só produzem efeitos em relação aos contribuintes quando lhes sejam validamente notificados (cf. artigo 77.º, n.º 6 da LGT e artigo 36.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário - “CPPT”). 

 

                 Neste sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), designadamente no Acórdão n.º 141/11, de 16 de Janeiro de 2013, a propósito do direito de impugnar que, em matéria de prazos, obedece a critérios idênticos aos da reclamação administrativa. Aliás, a contagem do prazo de 120 dias para reclamar é objecto de uma remissão do artigo 70.º, n.º 1 do CPPT para o artigo 102.º, n.º 1 do mesmo diploma, que rege os prazos de apresentação da impugnação judicial e que exige que as prestações tributárias sejam “legalmente notificadas ao contribuinte”(cf. alínea a) do citado n.º 1 do artigo 120.º do CPPT).

 

                 De igual modo, no Acórdão do STA, de 11 de Maio de 2011, no processo n.º 94/11, refere-se que:

 

                        “A possibilidade de contagem de prazos de impugnação a partir de termos iniciais diferentes da notificação, como é o caso da alínea f) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, apenas será viável relativamente a actos que não devam ser notificados, como se prevê no artigo 59.º, n.º 3, do CPTA, o que só sucederá relativamente a impugnações deduzidas por quem não tenha, nem deva ter, intervenção no procedimento tributário.”.

 

                 Retomando o caso concreto, resulta da matéria provada que do Sistema Electrónico de Citações e Notificações (“SECIN”), sistema este que pertence à própria Autoridade Tributária e Aduaneira, não consta qualquer envio por carta das liquidações oficiosas referentes aos anos 2002 e 2003 (que foram emitidas em 2004 e 2005).

 

                 No que se refere ao IVA do ano 2004 (emitida em 2006), o SECIN contém a notação do envio de uma carta registada sem aviso de recepção em Junho de 2006, tendo esta, porém, sido devolvida, sem alusão a diligências adicionais ulteriores.

 

                 Por fim, relativamente às liquidações oficiosas reportadas a IVA dos anos 2005 e 2006 (emitidas em 2006 e 2007), as mesmas foram expedidas por carta sem aviso de recepção, constando do SECIN a menção ao número de registo postal e ao seu recebimento.

 

                 Perante o quadro factual descrito é inequívoco que, quanto às liquidações oficiosas relativas aos anos 2002 e 2003, a Autoridade Tributária e Aduaneira não demonstrou sequer que estas foram expedidas ou remetidas, por carta, com destino à Requerente, ónus que sobre aquela recaía face ao disposto nos artigos 74.º da LGT e 342.º, n.º 1 do Código Civil. Assim, procede a arguição da Requerente relativa à falta de notificação destas liquidações, emitidas sob os números … e … .

 

                 No tocante à liquidação de IVA do ano 2004, emitida sob o número …, o SECIN menciona o envio de uma carta em 27 de Junho de 2006 que, contudo, foi devolvida. Neste âmbito, impunha-se que a carta tivesse sido enviada com aviso de recepção, atento o disposto, quer no artigo 83.º, n.º 2 do Código do IVA[4], quer no regime geral do artigo 38.º, n.º 1 do CPPT e, em caso de devolução, tivesse sido seguido o procedimento, previsto no artigo 39.º, n.º 5 do CPPT. Não tendo sido remetida a notificação nos termos legais e alegando a Requerente nunca a ter recebido não existem garantias de segurança e fiabilidade de que a notificação chegou à sua esfera de cognoscibilidade.

 

                 Deste modo, não tendo a Autoridade Tributária e Aduaneira respeitado os termos legais na notificação desse acto (que implicava o envio de uma carta registada com aviso de recepção), e tendo a carta sido devolvida, não se pode presumir a sua notificação, nos moldes preconizados no Acórdão do STA, de 29 de Maio de 2013, no processo n.º 472/13, a respeito de uma situação similar, em que a notificação não seguiu os termos legais: “além de não dar garantias mínimas e razoáveis de segurança e fiabilidade de que a notificação chegou à esfera de cognoscibilidade do notificado, cria para o mesmo o pesado ónus de prova de um facto negativo impossível de demonstrar: o de que não recebeu no seu receptáculo a carta com a notificação”.

 

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                 Idêntica conclusão se retira para as liquidações oficiosas reportadas a IVA dos anos 2005 e 2006 (emitidas sob os números …), pois estas foram, de igual modo comunicadas por carta registada sem aviso de recepção. Neste caso, apesar de constar do SECIN a menção “Recebido”, a Requerente alega que tal não ocorreu.

 

                 Não tendo a Autoridade Tributária e Aduaneira respeitado a forma legalmente prevista para a notificação desses actos (através de carta registada com aviso de recepção), seria desproporcionado impor à Requerente o ónus de demonstração de um facto negativo (de que não recebeu a notificação), sendo que esta expressamente alega não a ter recebido.

 

                 O aviso de recepção consubstancia uma formalidade procedimental essencial que, segundo entendemos, na situação concreta, não se “degrada” em formalidade não essencial, pois não se afigura seguro ter sido atingido o fim que a lei visava alcançar com a sua imposição, que era o de transmitir à Requerente o teor da liquidação. Neste contexto, seguimos o Acórdão do STA, de 8 de Setembro de 2010, no processo n.º 437/10, segundo o qual: “III - Se não foi dada satisfação a esse requisito da notificação [aviso de recepção] esta é irregular e inválida, se não se demonstrar, por qualquer meio, que a carta chegou efectivamente ao seu destinatário.”. (sublinhado nosso)

 

                 À face do exposto, em 7 de Setembro de 2011, quando da submissão do pedido de “Revisão de Situação Tributária” junto do Serviço de Finanças, a Requerente estava em prazo para apresentar reclamação administrativa dos actos tributários de liquidação oficiosa reportados ao IVA dos anos 2002 a 2006, pois os mesmos ainda não lhe tinham sido validamente notificados e não se tinha iniciado a contagem do prazo para reclamar, conforme decorre do cotejo dos artigos 36.º, n.º 1; 70.º, n.º 1 e 102.º, n.º 1 do CPPT e 77.º, n.º 6 da LGT.

 

                 Neste quadro, o pedido de revisão enquadra-se no primeiro segmento do disposto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT que se transcreve: “A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.” (sublinhado nosso), pelo que o mesmo [pedido de revisão] não é extemporâneo, independentemente de se considerar ou não verificado qualquer erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços.

 

                 Acresce salientar que o facto de ter sido usado o meio procedimental de revisão em vez da reclamação graciosa, não implica qualquer uma valoração negativa, pois “o meio procedimental de revisão do acto tributário não pode ser considerado como um meio excepcional para reagir contra as consequências de um acto de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados)” cf. Acórdão do STA, de 12 de Julho de 2006, no processo n.º 402/06.

 

                 À face do exposto improcede a arguição de intempestividade do pedido de revisão oficiosa por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 


  1. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DA CAUSA
    1. Sobre os vícios de forma: falta de fundamentação; falta de notificação da fundamentação e preterição da audiência prévia no âmbito da decisão de indeferimento do pedido de revisão

 

                 De harmonia com o disposto no nº 3 do artigo 268.º da CRP, dos artigos 124.º e 125.º do CPA, do artigo 77.º da LGT e do n.º 1 do artigo 36.º do CPPT, os actos tributários de liquidação são actos impositivos de deveres e encargos, sujeitos ao dever de fundamentação. A Autoridade Tributária e Aduaneira está pois obrigada a indicar as razões de facto e de direito que subjazem às liquidações oficiosas emitidas. Porém, o dever de fundamentação não se confunde com o dever de comunicação dos fundamentos. Enquanto a falta de fundamentação constitui um vício susceptível de determinar a anulação do acto que dela padeça, o incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de comunicação dos fundamentos não se podem reflectir na validade do acto comunicando.

 

                 No nosso sistema, as eventuais deficiências que a notificação apresente apenas atingem a eficácia do acto notificando e não a sua perfeição ou validade, pois, como claramente resulta do artigo 132.º do CPA e do n.º 6 do artigo 77.º da LGT, a comunicação do acto constitutivo de deveres e encargos é apenas uma condição de eficácia.
É por isso que os problemas existentes quanto ao incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de comunicação dos fundamentos não se podem reflectir na validade do acto comunicando – cf. Acórdão do STA, de 15 de Fevereiro de 2012, processo n.º 0872/11. No mesmo sentido, à luz do Código de Procedimento Tributário (“CPT”) que nesta matéria continha idêntico regime, vejam-se ainda os Acórdãos do STA, de 6 de Outubro de 2005, processo n.º 221/05, e de 24 de Abril de 2002, processo n.º 26636.

 

                 No caso dos autos, a Autoridade Tributária e Aduaneira, em momento prévio ao da emissão das liquidações oficiosas, notificou a Requerente da falta de apresentação de declarações periódicas, informando que iria proceder à liquidação oficiosa de IVA nos termos do artigo 83.º do Código do IVA, caso não fossem apresentadas as declarações em falta (pontos 7.º e 8.º dos factos provados).

 

                 Assim, não se pode propriamente afirmar a ausência de fundamentação dos actos tributários controvertidos (que caso ocorresse não seria causa de nulidade, mas sim de anulabilidade, nos termos do artigo 135.º do CPA), nem a sua não comunicação, improcedendo o vício invocado pela Requerente relativamente à inexistência de fundamentação das liquidações oficiosas.

 

                 Há que reconhecer, todavia, que se suscita o problema da suficiência dos fundamentos exteriorizados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pois a referida comunicação da fundamentação não contém, ainda que de forma sumária, as “operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”, como preceitua o artigo 77.º, n.º 2 da LGT. 

 

                 Neste caso, não estamos, porém, perante um vício invalidante dos actos de liquidação, antes perante uma comunicação insuficiente relativamente à qual se prevê uma consequência jurídica específica, nos termos do n.º 1 do artigo 37.º do CPPT: “pode o interessado, dentro de 30 dias ou dentro do prazo para reclamação, recurso ou impugnação ou outro meio judicial que desta decisão caiba, se inferior, requerer a notificação dos requisitos que tenham sido omitidos ou a passagem de certidão que os contenha, isenta de qualquer pagamento.”.  Completando o n.º 2 do mesmo artigo que “Se o interessado usar da faculdade concedida no número anterior, o prazo para a reclamação, recurso, impugnação ou outro meio judicial conta-se a partir da notificação ou da entrega da certidão que tenha sido requerida”.

 

                 De acordo com este regime, que já se encontrava consagrado, quer pelo CPT, quer pela Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (“LPTA”), e, depois, pelo CPPT e pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA “), não fica esvaziado de conteúdo o direito à notificação constitucionalmente garantido. Nos termos preconizados pelo Acórdão do STA de 6 de Outubro de 2005, processo n.º 221/05: por um lado, não exonera a Administração de notificar integralmente o acto (antes reforça, de certo modo, essa obrigação, permitindo ao particular exigir o seu cumprimento); e por outro, “disponibiliza um meio que garante a integral satisfação desse direito antes da reacção graciosa ou contenciosa contra o acto notificado; por último, porque se limita a dispor sobre a consequência, no que concerne à caducidade do direito à impugnação, da inércia do notificado, perante uma notificação incompleta, sem lhe retirar ou limitar o direito à notificação.

                 (…)

                 Não há, pois, obstáculo constitucional à aplicação, com a interpretação acabada de expor, do discutido artigo 22º do CPT. No mesmo sentido decidiu o posterior acórdão de 22 de Setembro de 2004, no recurso nº 577/04” .

 

                 Assim, quando a Requerente se apercebeu da existência das liquidações oficiosas de IVA que motivaram a submissão do pedido de revisão em 7 de Setembro de 2011, tinha à sua disposição um meio para satisfazer cabalmente o seu direito à fundamentação (sobre a quantificação), que era o de requerer a passagem de certidão que contivesse os elementos em falta. Não o tendo feito, não ocorre invalidade do(s) acto(s), pois deparamo-nos com um requisito externo aos mesmos, e consolida-se o prazo de reacção administrativa e contenciosa nos termos da disciplina do artigo 37.º do CPPT.

 

                 Improcede, também neste ponto, a invocação de vício formal invalidante por parte da Requerente.

 

                 No que se refere à preterição da audiência prévia no âmbito da decisão de indeferimento do pedido de revisão afigura-se que a mesma constitui uma violação do disposto no artigo 60.º, n.º 1 alínea b) da LGT, não se identificando causa de exclusão ou dispensa desse direito (n.ºs 2 e 3 desta norma). Deste modo, o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa padece de anulabilidade. Contudo, a verificação deste vício ao nível do procedimento de segundo grau, não se comunica aos actos dispositivos de liquidação oficiosa de IVA, pois, quanto a esses, tal vício invalidante teria de verificar-se autonomamente em momento prévio ao da emissão da própria liquidação, não tendo tal sido invocado.

 

                 Assim, procede o vício suscitado relativo à preterição do direito de audição no âmbito do pedido de revisão oficiosa, com efeito invalidante relativamente ao acto de indeferimento desse pedido de revisão, mas desprovido de tal efeito autónomo para os actos de liquidação oficiosa de IVA que não serão inválidos por esse motivo. Em suma, o vício invocado não é passível de invalidar os actos tributários de primeiro grau (liquidações oficiosas) cuja anulação se peticiona.

 

  1. Sobre os vícios substantivos: erro nos pressupostos de facto, dada a ausência de actividade a título definitivo a partir de Dezembro de 2001; erro de direito na quantificação e inconstitucionalidade do artigo 83.º do Código do IVA

 

                 É inequívoco que as liquidações oficiosas surgiram em resultado da violação do dever de colaboração por parte da Requerente, conforme previsto no artigo 59.º, n.º 4 da LGT, designadamente por incumprimento das obrigações acessórias (declarativas) previstas na lei, como sejam a de declaração de cessação de actividade no prazo de 30 dias a contar da data da cessação, conforme dispõe o artigo 32.º[5] do Código do IVA, ou, não cessando a actividade, a de entrega de declarações periódicas nos termos do artigo 40.º[6] do Código do IVA.

 

                 Estamos perante obrigações acessórias ex lege, não podendo o sujeito passivo transferir por título privado (contrato) a sua responsabilidade a terceiros (cf. artigo 31.º, n.º 2 da LGT), pelo que, para este efeito, não releva o incumprimento dos deveres do Técnico Oficial de Contas contratado pela Requerente, argumento que não justifica o incumprimento de obrigações fiscais da própria Requerente, por efeito e imposição directa da lei (sem prejuízo de o invocado incumprimento contratual poder constituir fundamento para esta se ressarcir dos prejuízos sofridos em sede de responsabilidade contratual, se se verificarem os respectivos pressupostos e pelo meio próprio).

 

                 Pelo que não se constata qualquer erro imputável aos Serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira na emissão das liquidações oficiosas não se aderindo, de modo algum, à tese da Requerente de que qualquer erro numa liquidação oficiosa é sempre imputável aos serviços.

 

                 Acresce, neste ponto, referir que o comportamento da Requerente foi displicente ao longo deste procedimento tributário, pois se se compreende que aquela não tenha inicialmente vigiado o cumprimento das obrigações tributárias por parte do Técnico Oficial de Contas, presumindo que este teria convenientemente tratado da entrega de todas as declarações devidas, já não é razoável que, apesar de não ter qualquer formação na área fiscal, depois de receber sucessivamente as notificações de falta de apresentação das declarações, pelo menos no decurso dos anos 2002, 2003 e 2004, não tenha acompanhado de perto a sanação desta falta e obtido algum comprovativo da mesma por parte do Técnico Oficial de Contas, ou assegurado por outra via o cumprimento dos seus deveres fiscais (por exemplo, através da resolução pessoal e directa do assunto junto do Serviço de Finanças ou da contratação de outro profissional), dando azo às liquidações oficiosas agora contestadas.

 

                 Só em Setembro de 2011, dez anos volvidos sobre a cessação de actividade é que a Requerente apresentou a declaração de cessação de actividade reportada a 31 de Dezembro de 2001. E só em Junho de 2012 procedeu à junção da escritura pública de dissolução e liquidação que havia sido outorgada em Janeiro de 2002.

 

                 No que se refere ao alegado erro de direito na quantificação ao abrigo do artigo 83.º do Código do IVA, não assiste razão à Requerente, porquanto, na ausência de qualquer resposta desta e, portanto da sua ostensiva não colaboração, após a notificação do ofício informando das declarações em falta, a Autoridade Tributária e Aduaneira tinha de proceder à liquidação oficiosa do imposto, com base nos elementos de que dispunha (que eram os valores das operações tributáveis declaradas de períodos anteriores). 

 

                 De igual modo, não se constata que o procedimento previsto no artigo 83.º do Código do IVA e a sua aplicação no caso concreto infrinja os princípios da boa-fé (a Requerente omitiu os seus deveres e foi avisada das consequências desse incumprimento), da imparcialidade (trata-se de uma matéria eminentemente vinculada e não se verifica a falta de ponderação dos interesse e valores em jogo) ou da justiça (pois derivou, em primeira linha, de uma conduta fiscal desconforme da Requerente, que violou o seu dever de colaboração).

 

                 Por fim, não se antevê a inconstitucionalidade do mencionado artigo 83.º do Código do IVA, arguida pela Requerente, alegação que para além de genérica e não circunstanciada, se alicerça em fundamentos inaplicáveis ao imposto em causa, designadamente quanto à tributação sobre o rendimento real, princípio que não tem aplicação no IVA.

 

                 Sem prejuízo do exposto, a incidência de IVA depende da verificação dos pressupostos objectivos previstos na lei, maxime, os relativos à realização de operações tributáveis de transmissão de bens ou de prestação de serviços (artigos 1.º, 3.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1 do Código do IVA).

 

                 Ficou demonstrado, quer através dos documentos juntos pela Requerente, designadamente a referida escritura de dissolução e liquidação, quer pelo depoimento do técnico de contas, que a sociedade foi extinta logo no início de 2002 e que desde o final do ano 2001 não mais realizou operações tributáveis, datando a última factura de 24 de Dezembro de 2001.

 

                 Tendo ficado provada a extinção da Requerente por documento autêntico (cuja validade nunca foi posta em causa pela Autoridade Tributária e Aduaneira), e a ausência de facturação a partir do final de 2001, impõe o princípio da verdade material, que impregna todo o procedimento e processo tributário (cf. artigos 58.º e 99.º da LGT e 13.º e 69.º, alínea e) do CPPT) e o princípio da legalidade (cf. artigos 103.º, n.º 3 e  266.º, n.º 2 da CRP) que essa realidade factual seja tida em consideração, mesmo que tardiamente, se ainda estiverem em aberto os meios graciosos e contenciosos para a sua efectivação, como sucede no caso concreto. Isto, sem prejuízo das sanções aplicáveis à Requerente em sede contra-ordenacional pelo incumprimento dos seus deveres fiscais.

 

                 A Autoridade Tributária e Aduaneira invoca que a apresentação tardia da escritura de dissolução e liquidação não prova que não tenham sido praticados actos tributáveis até à data da cessação oficiosa (2006). Esta posição assenta numa perspectiva incorrecta sobre o ónus da prova, pois, uma vez demonstrada a extinção do sujeito passivo, por documento autêntico, e tendo sido declarada (embora tardiamente) a cessação de actividade com efeitos a 31 de Dezembro de 2001 – elementos que beneficiam da presunção de veracidade prevista no artigo 75.º, n.º 1 da LGT –, cabia à Autoridade Tributária e Aduaneira demonstrar ou indiciar factos que pudessem abalar tal presunção. Não tendo sido apresentados quaisquer indícios de que a actividade da Requerente tivesse tido lugar após a sua cessação de actividade e subsequente extinção, não há porque assumir tal actividade ou a existência de operações tributáveis (cf. artigos 74.º da LGT e 342.º do Código Civil).

 

                 À face do exposto verifica-se o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto arguido pela Requerente, atenta a não demonstração da realização de quaisquer operações tributáveis em IVA após a data da cessação de actividade da Requerente (em 31 de Dezembro de 2001) e da sua subsequente extinção (ocorrida em 11 de Janeiro de 2002).

 

                 Em síntese, impunha-se à Autoridade Tributária e Aduaneira proceder à revisão oficiosa dos actos de liquidação oficiosa de IVA, dado que o Pedido da Requerente era tempestivo e materialmente fundado, deferindo o requerido e anulando estes actos tributários, como corolário do dever de revogar de actos ilegais, que constitui uma consequência dos princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a Autoridade Tributária e Aduaneira tem de observar na sua actividade (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT), que impõem, como regra, que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao previsto na lei – cf. os Acórdãos do STA de 12 de Junho de 2006, processo n.º 402/06, e de 11 de Maio de 2005, processo n.º 319/05.

 

 

  1. DISPOSITIVO

                 À face do exposto:

  1. Julgam-se improcedentes as excepções suscitadas (pela Autoridade Tributária e Aduaneira) de incompetência e de intempestividade do pedido de revisão oficiosa;
  2. Julga-se totalmente procedente a pretensão (implícita) de anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e das liquidações oficiosas de IVA referentes aos anos 2002 a 2006, com a consequente anulação das mesmas.

 

* * *

 

                 Fixa-se o valor do processo em € 7.482,00, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.

 

                 Custas no montante de € 612,00 a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

* * *

Notifique.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2013

 

A árbitro

 

 

Alexandra Coelho Martins

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco.

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 



[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

[2] Actual artigo 88.º do Código do IVA.

[3] O tribunal pode recusar a aplicação dessa norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou, caso assim não entenda, aplicar a norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.

[4] Que dispunha: “O imposto liquidado nos termos do número anterior deve ser pago na Tesouraria da Fazenda Pública competente, no prazo mencionado na notificação, efectuada por carta registada com aviso de recepção, o qual não poderá ser inferior a 90 dias contados desde o seu envio.”.

[5] Numeração em vigor à data dos factos, correspondente ao actual artigo 33.º do Código do IVA. 

[6] Sendo hoje o artigo 41.º do Código do IVA.