Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 245/2016-T
Data da decisão: 2017-01-06  IVA  
Valor do pedido: € 15.649,60
Tema: IVA – Dever de fundamentação
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Decisão Arbitral

 

I.              RELATÓRIO

 

A…, NIF…, residente na Rua …, n.º … –…, …, … (doravante apenas designado por Requerente), apresentou, em 27-04-2016, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o art. 102.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).

O Requerente pede a anulação, com fundamento na sua ilegalidade, dos actos de liquidação adicional de IVA do quarto trimestre de 2011 (2011-12T) e dos três primeiros trimestres de 2012 (2012-03T, 2012-06T e 2012-09T), e respectivos juros compensatórios, num total de € 15.649,60.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 28-04-2016 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 29-06-2016 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 14-07-2016.

Na sequência do pedido apresentado pelo Requerente a prescindir da inquirição das testemunhas inicialmente arroladas, foi dispensada a reunião do art. 18.º do RJAT e concedido às partes o prazo de 10 dias para apresentação de alegações escritas sucessivas, o que ambas vieram a fazer.

 

II.           DO PEDIDO DO REQUERENTE

 

Nos presentes autos, vem a Requerente solicitar a anulação dos seguintes actos de liquidação adicional de IVA dos períodos de 2011-12T a 2012-09T, e respectivos juros compensatórios, num total de € 15.649,60:

N.º

Ano

Trimestre

Imposto

Juros

2015 …

2011

4.º

€ 3.987,56

 

2015 …

2011

4.º

 

€ 533,87

2015 …

2012

1.º

€ 3.762,46

 

2015 …

2012

1.º

 

€ 537,67

2015 …

2012

2.º

€ 3.509,02

 

2015 …

2012

2.º

 

€ 366,68

2015 …

2012

3.º

€ 2.668,81

 

2015 …

2012

3.º

 

€ 283,53

 

As liquidações contestadas foram efectuadas na sequência de uma inspecção externa levada a cabo pelos serviços de inspecção da Direcção de Finanças de  …, aos exercícios de 2011 e 2012.

Para sustentar o seu pedido, o Requerente imputa aos actos identificados diversos vícios que implicarão a sua anulabilidade, a saber:

a) a falta de fundamentação dos actos de liquidação uma vez que “(…) não existe em todo o relatório de inspecção nem nas notificações, referência a uma única norma do código do IVA, supostamente violada, para fundamentar os actos tributários de liquidação de IVA e respectivos juros compensatórios que ora se impugnam. (…) O ora requerente desconhece (e um outro destinatário normal também desconheceria) quais os motivos de direito que fundamentam o entendimento da AT, e um qualquer destinatário normal também os desconheceria, porque não existe uma única referência ou mera remissão para uma qualquer norma que fundamente as liquidações de IVA ora em apreço. Em face do acima exposto nada mais é necessário argumentar para que os actos tributários de liquidação devam ser anulados, com fundamento na alínea c) do art. 99.º do CPPT” – cfr. arts. 19.º, 25.º e 26.º do pedido de pronúncia arbitral.

b) a violação da alínea c) do n.º 6 do art. 16.º do CIVA uma vez que as quantias recebidas do B… que deram origem aos recibos verdes emitidos a título de adiantamento de despesas pagas por conta e em nome do cliente foram efectivamente utilizadas para pagamento de aquisição de bens e serviços em nome e por conta do cliente. Como refere o Requerente, “No caso concreto em apreço o adquirente dos bens ou dos serviços é o B… – a entidade a quem foram prestados os serviços ou a que adquire os bens – sendo que as facturas que titulam a venda de bens ou a prestação dos serviços foram emitidas em nome do B… pelos diversos fornecedores. O sujeito passivo ora requerente limitou-se a receber quantias do B… utilizando essas quantias para pagar, em nome e por conta do B…, os bens e serviços adquiridos pelo B… a diversos fornecedores de bens e serviços” – cfr. arts. 30.º e 31.º do requerimento inicial. Nessa medida, a situação de facto em causa está expressamente excluída da base de incidência do IVA, nos termos da norma invocada.

c) a violação da alínea b) do n.º 1 do art. 116.º do CIRS que, no entendimento do Requerente, deve ser interpretado no sentido de que “(…) a obrigação legal de documentar refere-se aos comprovativos das “importâncias” recebidas pelo ora requerente “as quais, quando devidamente documentadas não influenciam a determinação do rendimento”; (não se refere – como entende incorretamente a AT – aos comprovativos das despesas do B… pagas pelo Requerente por conta do B…, as quais – despesas -, estejam ou não estejam devidamente documentadas, nunca influenciam a determinação do ora requerente).” – cfr. art. 49.º do requerimento inicial. Assim sendo, tendo o Requerente documentado tais recebimentos através da emissão dos competentes recibos verdes, foi cumprida a obrigação prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 116.º do CIRS, não havendo qualquer fundamento para requalificar tais recebimentos como honorários.

Mas, mesmo que se entendesse que o Requerente não cumprira adequadamente as obrigações de registo e organização da contabilidade impostas no art. 116.º do CIRS, tal incumprimento seria apenas passível de uma contra-ordenação, não podendo sustentar qualquer liquidação adicional de imposto, seja de IRS, seja de IVA: “O suposto não cumprimento da referida obrigação acessória não é fundamento para suportar uma liquidação adicional de imposto. Dito por outras palavras, para exigir uma liquidação adicional de impostos, legal, é necessário que seja violada a “obrigação principal do sujeito passivo efectuar o pagamento da obrigação tributária” (cfr. art. 31.º da LGT) não basta o suposto incumprimento de um dever acessório” – cfr. art. 62.º do requerimento inicial.

d) a violação do art. 6.º do RCPIT que impunha à Requerida o dever de busca da verdade material que se traduz, em concreto, na obrigação da Requerida “(…) aferir se, em substância, os recebimentos das importâncias objecto da presente análise, se destinaram a reembolsar despesas pagas pelo requerente por conta do B…, ou se tais recebimentos não estavam associados a nenhum reembolso de despesas pagas pelo requerente por conta do B… e por esse motivo deveriam ser considerados para efeitos de cálculo do rendimento auferido pelo sujeito passivo ora requerentes e incluídos na base tributável de IVA” – cfr. art. 64.º do requerimento inicial.

e) a violação da presunção de veracidade das declarações dos contribuintes nos termos do art. 75.º da LGT. No entender do Requerente, ao longo do relatório de inspecção, a Requerida não apresentou qualquer facto ou argumento que permitisse afastar a presunção de veracidade dos recibos verdes emitidos pelo Requerente e das declarações emitidas pelo B…, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 119.º do CIRS. 

f) a existência de dúvida fundada relativa à quantificação do facto tributário. A actividade desenvolvida pelo Requerente – perito avaliador – implicava não só gastos com deslocações e estadias, mas também como a emissão de certidões (de registo predial e de registo comercial) e outros documentos necessários ao exercício das peritagens de avaliação de bens móveis e imóveis. Nessa medida, “(…) não é de todo credível que durante um ano a trabalhar em exclusivo para o B… na qualidade de perito avaliador, o ora requerente não tenha desembolsado €1 (para pagar uma certidão de registo de um bem ou para pagar uma cópia certificada de um qualquer documento) por conta do seu cliente B…” – cfr. art. 88.º do requerimento inicial. Esta fundada dúvida quanto à causa de tais pagamentos inquina a própria operação de quantificação do facto tributário pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 100.º do CPPT, haverá que concluir pela anulação do acto tributário contestado.

Em face de tudo o que vem alegado, o Requerente conclui requerendo a anulação das liquidações adicionais de IVA e correspondentes juros compensatórios “por força do previsto no artigo 99.º alíneas a) c) e d) do CPPT, com fundamento nos vícios de (i) errónea qualificação dos factos tributários, (ii) de errónea quantificação dos factos tributários, (iii) inexistência de fundamentação e (iv) de preterição de formalidades legais.”

 

III.        DA RESPOSTA DA REQUERIDA

 

Em sede de resposta, a Requerida veio contraditar as alegações do Requerente, concluindo pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, respondendo a cada um dos pontos suscitados pelo Requerente como segue:

a) quanto à alegada falta de fundamentação dos actos de liquidação entende a Requerida que o Requerente poderia ter recorrido ao expediente previsto no art. 37.º do CPPT para que fosse feita notificação ou emitida certidão contendo os elementos que o Requerente entendesse estarem em falta. Sem prejuízo, defende a Requerida que a fundamentação constante do relatório de inspecção foi de tal forma clara e compreensível que permitiu ao Requerente a adequada apreensão das razões que justificaram os actos de liquidação identificados, razões essas, aliás, que o Requerente detalhadamente contestou no pedido de pronúncia arbitral.

b) a alínea b) do n.º 1 do art. 116.º do CIRS impõe ao sujeito passivo a obrigação de, dentro de um total de recebimentos auferidos, diferenciar aqueles que dizem respeito a reembolso de despesas efectuadas em nome e por conta de clientes de modo a que tais valores não sejam considerados na determinação do rendimento tributável, documentando essas mesmas despesas. Como refere a Requerida “A exigência que decorre do artigo em apreço, não permite que, em substituição da documentação a justificar as despesas, o sujeito passivo apresente uma mera declaração.(…) Ora, não tendo comprovado que as importâncias recebidas a título de adiantamento por conta e em nome do cliente o foram efectivamente, bem andaram os serviços ao considerar as mesmas como honorários e, em consequência tributa-las tanto em sede de IRS como em sede de IVA” – cfr. arts. 52.º e 55.º da resposta.

Para a Requerida também não procede a alegação de que a violação do art. 116.º, n.º 1, alínea b), do CIRS daria apenas lugar a uma coima, não podendo justificar qualquer liquidação adicional de imposto. Tal entendimento implicaria a violação do disposto no n.º 2 do art. 31.º da LGT, levando à possibilidade “de deixar incólume uma liquidação de imposto assente em pressupostos errados, com prejuízo para o Estado, para aplicar apenas uma coima” – cfr. art. 59.º da resposta.

c) não houve qualquer violação do art. 6.º do RCPIT, nem do princípio do inquisitório, tendo a Requerida actuado com a devida diligência ao solicitar ao Requerente a apresentação dos documentos comprovativos das despesas efectuadas em nome e por conta dos clientes. Acresce que, não obstante os pedidos efectuados pelos serviços de inspecção, o Requerente não logrou dar resposta suficiente e adequada aos pedidos de esclarecimento efectuados pela Requerida, em violação do dever de colaboração, nos termos do n.º 4 do art. 59.º da LGT.

d) não houve qualquer violação da presunção de veracidade das declarações dos contribuintes nos termos do art. 75.º da LGT uma vez que esta presunção não se verifica sempre que as declarações, contabilidade ou a escrita do sujeito passivo revelem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem a matéria colectável real, tal como resulta do n.º 2 do art. 75.º da LGT. Sucede que a escrita do Requerente não se encontra organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal atenta a inexistência de documentação justificativa das despesas de harmonia com a alínea b) do n.º 1 do art. 116.º do CIRS. Assim sendo, a presunção invocada pelo Requerente não será aqui invocável.

e) quanto à existência de dúvida fundada relativa à quantificação do facto tributário defende a Requerida que a questão deve ser decidida em função das regras de repartição do ónus da prova, sendo que, nos termos do art. 74.º da LGT, recaía sobre o Requerente a comprovação dos factos que alega e em que assenta o direito invocado. A falta de cumprimento do ónus da prova por parte deste não pode, contrariamente ao pretendido pelo Requerente, ser valorada como dúvida fundada que justifique a aplicação do n.º 1 do art. 100.º do CPPT.

Quanto à suposta ausência de ponderação de custos na actividade desenvolvida pelo Requerente, a Requerida invoca que, estando o Requerente sujeito ao regime simplificado de determinação do rendimento, está prevista uma presunção legal de custos, correspondente a 30% dos rendimentos obtidos. A estes custos presumidos subsumem-se as deslocações, estadas e quaisquer outros custos inerentes à sua actividade.

Por tudo isto, conclui a Requerida pela total improcedência do pedido de anulação formulado pelo Requerente, devendo os actos de liquidação contestados manter-se na ordem jurídica porque válidos e devidamente fundamentados.

 

IV.        SANEADOR

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de capacidades tributária e judiciária e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

V.          MATÉRIA DE FACTO

 

                        A. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

1.             Nos anos de 2011 e 2012, o Requerente desenvolvia a actividade de “Peritos Avaliadores”, a que corresponde o código n.º …, da tabela de actividades do art. 151.º do CIRS.

2.             O Requerente estava enquadrado no regime simplificado de IRS.

3.             O Requerente estava enquadrado no regime normal de periodicidade trimestral para efeitos de IVA.

4.             Nos anos de 2011 e 2012 o Requerente teve como único cliente o B…, S.A. (“B”).

5.             O Requerente foi alvo de um procedimento de inspecção externa, de âmbito parcial (IVA e IRS), relativamente aos anos 2011 e 2012, desencadeado ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs OI2015… e OI2015…, de 12-06-2015.

6.             Em sede de inspecção apurou-se que no ano de 2011, o Requerente emitiu recibos a título de prestações de serviços no montante de € 14.278,38, e a título de adiantamento para pagamento de despesas em nome e por conta do cliente no montante de € 71.113,71.

7.             Em sede de inspecção apurou-se que no ano de 2012, o Requerente emitiu recibos a título de prestações de serviços no montante de € 9.663,33, e a título de adiantamento para pagamento de despesas em nome e por conta do cliente no montante de € 47.250,85.

8.             Os recibos emitidos pelo Requerente relativos aos adiantamentos por conta de despesas em nome do cliente não fazem qualquer menção ao IVA.

9.             A 30-09-2015, o Requerente remeteu ao B… uma carta solicitando “comprovativos e justificativos documentais que constam do vosso suporte contabilístico e de pagamento pela vossa tesouraria de valores em meu nome referentes a débito de despesas e encargos com o exercício profissional ao vosso banco.”.

10.         No dia 28-10-2015, o Requerente foi notificado para apresentar os documentos comprovativos / justificativos das despesas pagas em nome e por conta do cliente, das quais foram emitidos os recibos verdes nos anos de 2011 e 2012.

11.         O Requerente não apresentou qualquer documento comprovativo de despesas efectuadas em nome e por conta do B…, não tendo qualquer cópia em seu poder.

12.         No relatório de inspecção remetido ao Requerente pelo Ofício n.º…, de 11-12-2015, os serviços concluíram nos seguintes termos:

Constatou-se que as importâncias recebidas a título de adiantamento para pagamento de despesas por conta e em nome do cliente, não estavam devidamente documentadas, ou seja, o sujeito passivo não tinha na sua posse os comprovativos de suporte a tais despesas, não cumprindo o estipulado no já referido art. 116.º do CIRS.

(…)

Até à data da elaboração do presente projecto de relatório, não foram apresentados pelo sujeito passivo os referidos comprovativos.

Não tendo o sujeito passivo comprovado que as importâncias recebidas a título de adiantamento por conta e em nome do cliente o foram efectivamente, deverão as mesmas ser consideradas honorários e tributadas, quer em sede de IVA e de IRS.

13.         O apuramento da matéria colectável e dos imposto em falta foi efectuado nos seguintes termos:

14.         Em sede de inspecção, o Requerente não exerceu o direito de audição prévia pelo que as propostas de correcção constantes do projecto de relatório convolaram-se em correcções definitivas e deram origem às liquidações contestadas.

15.         A 20-01-2012, o B… emitiu uma declaração relativa aos rendimentos pagos ao Requerente no ano de 2011 em que consta que foi pago a título de rendimentos da categoria B – Trabalho Independente o montante de € 14.278,38, com imposto retido na fonte de € 3.069,84.

16.         A 20-01-2013, o B… emitiu uma declaração relativa aos rendimentos pagos ao Requerente no ano de 2012 em que consta que foi pago a título de rendimentos da categoria B – Trabalho Independente o montante de € 9.663,33, com imposto retido na fonte de € 2.077,62.

 

 

B. Factos não provados

 

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

 

C. Fundamentação da matéria de facto

 

A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental invocada e não contestada, incluindo o procedimento administrativo junto aos autos pela Requerida.

 

VI.         MATÉRIA DE DIREITO

 

Como supra referido, no pedido de pronúncia arbitral, o Requerente contesta a legalidade dos actos de liquidação de IVA e juros compensatórios dos períodos de 2011-12T a 2012-09T, alegando uma série de vícios que, a considerarem-se procedentes, implicarão a anulação daqueles actos, com as demais consequências legais.

O art. 124.º do CPPT, aplicável ex vie alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT, estabelece a ordem pela qual a sentença deve apreciar os vícios invocados pelo impugnante, decorrendo desta ordem que, “(…) uma vez reconhecida a existência de um vício susceptível de levar à eliminação do acto da ordem jurídica com efectiva tutela da posição jurídica do impugnante (designadamente, que obste à renovação do acto com o mesmo sentido), ficará prejudicado o conhecimento de outros vícios imputados ao acto impugnado, pois, se fosse necessário conhecer sempre de todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem da sua apreciação[1].

Vem sendo entendimento do Supremo Tribunal Administrativo – de que são exemplos os acórdãos de 07/12/2010, proc. n.º 0569/10, de 22/03/06, proc. n.º 0916/04, de 24/01/2007, proc. n.º 0939/06, e de 06/07/2011, proc. n.º 0355/11 – que devem ser conhecidos primeiramente os vícios de violação de lei (stricto sensu), e só depois eventuais vícios de forma, porque assim se assegurará uma tutela mais eficaz dos direitos dos contribuintes. Esta regra não é, todavia, absoluta, devendo ser ajustada em função dos elementos concretos da situação em juízo, pelo que razões de ordem lógica podem impor o conhecimento prioritário de vícios de forma, sem conhecimento dos vícios de violação de lei stricto sensu.

Tendo presente este enquadramento, o tribunal opta por analisar, em primeira linha, a alegada falta de fundamentação do relatório de inspecção.

Vejamos:

De acordo com o que resulta do relatório de inspecção, em sede de IRS, a Requerida corrigiu os rendimentos declarados pelo Requerente, nos anos de 2011 e 2012, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 116.º do CIRS, uma vez que o Requerente – apesar de instado para tal - não ter apresentado quaisquer documentos comprovativos de despesas efectuadas por conta e em nome do B…, enquanto único cliente, e que terão justificado os adiantamentos recebidos. Com efeito, entendeu a Requerida que não estando as alegadas despesas efectuadas em nome e por conta do cliente devidamente documentadas – como exigido na referida norma – não seria de aplicar a exclusão de tributação em sede de IRS; nessa medida, as importâncias recebidas e declaradas nos recibos de adiantamento a título de despesas por conta teriam que influenciar a determinação do rendimento em sede de IRS. E foi, assim, que a Requerida procedeu, permitindo quantificar tanto o rendimento como o imposto em falta.

E é apenas isto que é referido pela Requerida.

Em sede de IVA, para efeitos de apuramento de eventual responsabilidade tributária, a Requerida apresenta os cálculos que justificam os valores de imposto liquidado, mas não invoca, em momento algum, o fundamento legal para tal correcção, com expressa indicação das normas do CIVA aplicáveis. A Requerida limita-se a invocar os arts. 27.º (cuja epígrafe é “Pagamento do imposto apurado pelo sujeito passivo”) e 41.º (cuja epígrafe é “Prazo de entrega das declarações periódicas”) do CIVA, assumindo tratar-se de imposto liquidado pelo sujeito passivo, mas não entregue ao Estado.

Ora, como consta do probatório e resulta dos recibos emitidos pelo Requerente, as verbas recebidas a título de adiantamento não incluem qualquer referência ao IVA, pelo que a questão em apreço não se subsume à não entrega ao Estado de imposto liquidado; pelo contrário, está-se perante uma situação de imposto que, no entender da Requerida, deveria ter sido liquidado (e não foi), apesar de a Requerida não identificar o quadro legal e as normas do CIVA que permitem fundamentar tal pretensão.

Na verdade, o relatório de inspecção é totalmente omisso quanto a esta matéria, não havendo referência às disposições legais em sede de IVA que justificam as liquidações efectuadas, ao contrário do que se verificou em sede de IRS.

Sobre as regras da fundamentação dos actos tributários, prevê o art. 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, em concretização do art. 268.º, n.º 3, da CRP, que:

“1. A decisão do procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório de fiscalização tributária. 

2. A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.” (negrito nosso).

Resulta, assim, expressamente da lei, que o acto tributário, nomeadamente o acto de liquidação adicional, para ser devidamente fundamentado deve conter, para além das razões de facto, as razões de direito que sustentam a conduta da Autoridade Tributária, ou seja, deve conter referência ao quadro normativo e às disposições legais aplicáveis. Nada disto se verificou no caso em concreto, como supra demonstrado.

Contra este entendimento, a Requerida invoca diversas decisões do STA, nomeadamente o acórdão de 25-05-1993, proferido no proc. n.º 27387, em que aquele tribunal concluiu que “Atento o fim meramente instrumental perseguido pela fundamentação dos actos administrativos, dever-se-á entender que este ficará assegurado sempre que mau grado a inexistência de uma referência expressa a qualquer preceito legal, ou princípio jurídico, a decisão em causa se situe indubitavelmente num determinado quadro legal perfeitamente cognoscível do ponto de vista do destinatário normal”. No entender da Requerida, a não invocação expressa e concreta das disposições legais aplicáveis não implica, necessariamente, a violação do dever de fundamentação previsto no art. 77.º da LGT. Desde que a fundamentação contenha uma adequada descrição da situação e dos factos, por forma a que possa ser compreendida e apreendida pelo seu destinatário, cumpre-se o desiderato do dever de fundamentação, sem que tal implique qualquer perda de direitos de defesa e de reacção para o contribuinte. Contendo o acto referência aos elementos que permitem ao seu destinatário compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo seu autor, ou seja, quando o destinatário possa conhecer as razões que levaram o autor do acto a decidir daquela maneira e não de outra, tem que se considerar o acto como fundamentado, valorando-se a fundamentação como suficiente e adequada.

Não discordando integralmente desta posição da Requerida, a verdade é que, não sendo feita menção às disposições legais aplicáveis, não se pode dizer que o destinatário do acto tributário possa, mesmo assim e apesar dessa omissão, conhecer e compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo. E não pode compreender exactamente por isso: porque uma componente essencial do acto está omissa e não é referida.

Como também decidiu o STA no acórdão de 18-04-1996, proferido no proc. n.º 36830, “Enferma de vício de falta de fundamentação de direito o acto que não contém, nem em si mesmo nem nas informações para que remete, a citação dos preceitos legais ou a invocação dos princípios jurídicos que determinaram o indeferimento da pretensão do requerente.”

O mesmo entendimento se retira da decisão do STA de 28-01-1998, proferida no proc. n.º 21331, “Dado que o objecto da decisão da comissão de revisão a que se refere o CIVA é apenas a quantificação da matéria tributável em IVA, que é uma questão de facto e não uma questão do direito, a fundamentação da decisão do presidente dessa comissão, quando não houver acordo dos vogais, não precisa de indicar as disposições legais aplicadas, pois esta exigência é apenas feita pelo art. 82.º do CPT para a fundamentação dos actos tributários.” (negrito nosso).

Seguimos aqui a orientação de António Lima Guerreiro[2], quando este defende que a fundamentação deve conter sempre a indicação das normas legais aplicáveis, devendo considerar-se insuficiente a fundamentação que não a contenha, mesmo que seja inequívoca. E esta insuficiência constitui causa de anulabilidade do acto tributário.

A fundamentação do acto tributário é um dever que impende sobre a Requerida, correspondendo a uma garantia e a um direito dos contribuintes. A fundamentação cumpre uma função justificativa da legitimidade e racionalidade da administração pelo que não pode considerar-se como um mero elemento formal de que se pode prescindir quando a sua ausência ou insuficiência não provoque a falta de defesa do destinatário. Ela deve, por isso, em obediência ao preceituado no art. 77.º da LGT, expressar, mesmo que de forma sucinta, as razões que moveram a Autoridade Tributária a ter o comportamento que teve e ainda a referir as razões porque tomou determinada decisão, com expressa menção às normas legais que legitimaram tal actuação, pois só assim o contribuinte destinatário conhecerá o itinerário cogniscitivo e valorativo e ficará convencido da legalidade e do rigor da Autoridade Tributária ou em situação de a contestar correctamente[3].

Por tudo isto, considera este Tribunal que o relatório de inspecção remetido ao Requerente e com base no qual foram efectuadas as liquidações contestadas não cumpre os requisitos legais de fundamentação previstos no art. 77.º da LGT na medida em que não inclui “sucinta exposição das razões (…) de direito” que as motivaram, nem a adequada indicação das disposições legais aplicáveis, não se cumprindo, assim, a imposição do art. 268.º, n.º 3, da CRP.

Contra este entendimento não procede a alegação da Requerida no sentido de que o Requerente poderia ter recorrido ao expediente do art. 37.º do CPPT e que, não o tendo feito, tal vício se teria sanado.

Com efeito, contrariamente ao que a Requerida parece defender, o regime do art. 37.º do CPPT concede ao contribuinte uma faculdade para os casos em que a comunicação do acto enferme de alguma das deficiências aí elencadas; não lhe impõe um comportamento com vista a permitir à Autoridade Tributária fundamentar a posteriori um acto que não esteja devidamente fundamentado. Isto é, trata-se de um expediente para colmatar falhas da própria notificação (e que põe em causa a sua eficácia, sem contender, necessariamente, com a validade do acto objecto de notificação) e não omissões ou insuficiências do próprio acto, como é o caso dos autos. Defender, aliás, tal posição seria pôr em causa o próprio regime do art. 268.º, n.º 3, da CRP.

Face ao exposto, os actos de liquidação de IVA e juros compensatórios deverão ser anulados por vício de falta de fundamentação, em violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 77.º da LGT, e alínea c) do art. 99.º do CPPT, aplicável por remissão do art. 29.º do RJAT.

Concluindo-se pela anulação das liquidações de IVA e respectivos juros compensatórios, fica prejudicada, por ser inútil nos termos supra referidos, a apreciação dos demais vícios que o Requerente imputa aos actos em causa.

 

VI.         DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular as liquidações adicionais de IVA dos períodos de 2011-12T, 2012-03T, 2012-06T e 2012-09T, e respectivos juros compensatórios, num total de € 15.649,60.

 

Valor do processo: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 15.649,60.

 

Custas: Nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

 

Lisboa, 06-01-2017

 

O Árbitro Singular

 

 

(Maria Forte Vaz)



[1] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Guia da Arbitragem Tributária, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, Almedina, 2013, págs. 202 e 203.

[2] Cfr. Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 340.

[3] Cfr. acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 14-07-2010, proferido no proc. n.º 00013/02.