Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
HERANÇA INDIVISA aberta por óbito de A…, com o NIF…, representada por B…, residente na Avenida …, n.º …, ..., …-…, em Lisboa, apresentou um pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT), com o objectivo de obter a declaração de ilegalidade e de inconstitucionalidade do indeferimento (tácito) da AT quanto ao pedido de revisão da liquidação de Imposto do Selo (IS), devidamente identificada, relativa ao ano de 2012, no montante de €10.297,40.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD em 19.08. 2016 e automaticamente notificado à AT.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 18.10.2016.
A AT respondeu, defendendo a sua absolvição da instância, face à verificação da excepção de incompetência do tribunal ou, caso assim não se entenda, da excepção de caducidade do direito de acção, alegando ainda a improcedência do pedido.
Foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em face do teor da matéria contida nos autos, tendo-se relegado o conhecimento das excepções invocadas pela Requerida, na sua resposta para a decisão a proferir a final.
II. MATÉRIA DE FACTO
Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:
A) A Requerente é dona e legítima proprietária do prédio urbano sito na Avenida …, n.ºs … –…, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …, sob o artigo …;
B) O referido prédio esta constituído em propriedade total e é composto por 21 andares e divisões independentes, entre os quais 16 são afectas a habitação;
C) A Requerente foi notificada, no montante total de €10.297,40 (dez mil, duzentos e noventa e sete Euros e quarenta cêntimos), do acto de liquidação de IS, referentes ao prédio identificado, relativo ao ano 2012, que consta do documento n.º 3 junto aos autos pela Requerente;
D) Os andares e divisões independentes com afectação habitacional foram objecto de liquidação de IS, sendo o Valor Patrimonial Tributário (VPT) global superior a €1.000.000 (um milhão de euros);
E) O VPT dos andares e divisões identificados foi determinado separadamente, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 2, alínea b) do Código de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI);
F) A 7 de Janeiro de 2016, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa do acto de liquidação de IS devidamente identificado;
G) A 22 de Julho de 2016, a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado.
Não existem factos com relevo para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.
Este Tribunal firmou a sua convicção na consideração dos documentos juntos aos autos pelas Partes.
III. MATÉRIA DE DIREITO
A principal questão material que se coloca nos presentes autos reconduz-se a saber qual é o VPT tributário relevante para efeitos de aplicação da verba 28 e 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) relativamente ao prédio urbano habitacional constituído em regime de propriedade vertical, que integra andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, devidamente identificado nos autos.
A Requerente funda o seu pedido nos seguintes argumentos:
a) Não se encontra no Código do IMI nenhuma norma que permita concluir no sentido de que o VPT do prédio em regime de propriedade vertical deve ser obtido pelo somatório do VPT que foi atribuído isoladamente às partes que o constituem;
b) Tendo em conta que as normas de incidência estão sujeitas ao princípio da legalidade tributária, parece inexistir base legal à liquidação de IS com base na soma do VPT de cada uma das partes do prédio;
c) As normas de incidência dos tributos devem ser interpretadas nos seus exactos termos, sem recurso à analogia, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação (Vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no âmbito do proc. 7648/14, de 10.07.2014).
d) No caso concreto, todos os “andares e partes suscetíveis de utilização independente” dos prédios aqui em análise (afectos à habitação) têm um VPT inferior a €1.000.000;
e) Deste modo, a verba 28.1 da TGIS não pode ser aplicada sobre aqueles “andares e partes susceptíveis de utilização independente”.
A Requerida defende por sua vez o seguinte:
a) O IS pago pela Requerente ao abrigo da verba 28.1. da Tabela anexa ao Código do IS não é devido, pois, como tem sido defendido pela doutrina e pela jurisprudência, nos prédios em regime de propriedade total com andares susceptíveis de utilização independente, com valores patrimoniais próprios, não é admissível a soma aritmética desses valores de forma a alcançar-se o VPT de €1.000.000 ou superior, para aplicar a verba 28.1 da Tabela anexa ao Código do IS;
b) Por isso, dada a situação de injustiça notória e grave dos actos de liquidação de IS, imputáveis aos serviços, a Requerente apresentou o pedido de revisão das liquidações de IS identificadas na petição arbitral;
c) Contudo, a Requerente não foi notificada de qualquer decisão da AT sobre o seu pedido de revisão, tendo ocorrido o indeferimento tácito do pedido apresentado, por aplicação dos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º da Lei Geral Tributária (LGT), em 6/05/2016;
d) Não se encontra no Código do IMI nenhuma norma que permita concluir no sentido de que o VPT do prédio em regime de propriedade vertical deve ser obtido pelo somatório do VPT que foi atribuído isoladamente às partes que o constituem;
e) Tendo em conta que as normas de incidência estão sujeitas ao princípio da legalidade tributária (cfr. artigo 103.º da CRP e artigo 8.º da LGT), parece inexistir base legal à liquidação de IS com base na soma do VPT de cada uma das partes do prédio;
f) Uma vez que as normas de incidência dos tributos devem ser interpretadas nos seus exactos termos, sem recurso à analogia, tornando prevalente a certeza e a segurança, na sua aplicação, a AT não pode realizar uma operação de liquidação com base numa norma de incidência do imposto nos termos liquidados;
g) De facto, não pode a AT distinguir onde o próprio legislador entendeu não o fazer, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, bem assim como o princípio da legalidade fiscal previsto no artigo 103.º da CRP, e ainda os princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade fiscal.
h) Pela situação exposta, dada a situação de injustiça notória e grave de acto praticado pela AT e que aos serviços desta é imputável, apresentou a Requerente o pedido de revisão das liquidações de IS identificadas.
Na resposta apresentada, vem a AT apresentar a sua defesa por excepção e por impugnação, com os seguintes fundamentos:
a) A Requerente pretende sindicar o que designa por “indeferimento tácito” em sede do pedido de revisão oficiosa apresentado, reputando-o de ilegal;
b) No entanto, é notório que a AT, não tendo proferido decisão expressa sobre o pedido apresentado, (ainda) não se pronunciou, por um lado, sobre a admissibilidade dos pressupostos do pedido de revisão, nomeadamente no que concerne à legitimidade, tempestividade, adequação do meio, estabelecidos no artigo 78.º da LGT e, por outro lado, e consequentemente, não se pronunciou quanto à materialidade subjacente (a legalidade das liquidações de imposto de selo);
c) Ou seja, tal indeferimento tácito não comporta, evidentemente, a apreciação da legalidade do acto de liquidação do tributo, que a Requerente pretende, de forma mediata, ver anulado, por este tribunal arbitral;
d) Na verdade, decorre do artigo 97.º, nº 1, al. d) e n.º 2 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) que, por um lado, são impugnáveis “os actos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação”, e, por outro lado, são recorríveis “os actos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação”;
e) Face ao supra exposto, e sendo manifesto que não estamos perante um acto administrativo em matéria tributária que comporte a apreciação da legalidade do ato de liquidação, o mesmo não pode ser sindicável através de impugnação judicial, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT;
f) Razão pela qual o meio contencioso a utilizar seria, nos termos da alínea p) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 97.º do CPPT, o anteriormente denominado “recurso contencioso” (actual acção administrativa, de acordo com o artigo 191.º do CPTA), previsto e regulado pelos artigos 37.º e ss. do CPTA;
g) Uma vez que as competências materialmente deferidas ao tribunal arbitral restringem-se apenas às expressamente elencadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, está fora das competências materiais do Tribunal Arbitral, a sindicância e/ou análise do “indeferimento tácito” do pedido de revisão, quando é certo que o mesmo não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação, e não pode, por isso, ser objeto de impugnação judicial;
h) Assim, como refere o n.º 2 do artigo 97.º do CPPT, a sindicância jurisdicional sub judice será sempre, e apenas, dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, através da acção administrativa, encontrando-se, assim, inequivocamente, subtraída à competência dos tribunais arbitrais.
i) Não olvidando a incompetência material do tribunal arbitral em face do objeto imediato do presente processo - indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa – (a qual obriga à absolvição da instância), sempre se dirá, por mera cautela, que, quanto ao mediato pedido de “declaração de ilegalidade e/ou inconstitucionalidade dos atos tributários de liquidação do imposto de selo sub judice, identificadas no artigo 19.º” (cfr. al. b) do pedido proferido na PI, in fine), para o qual este tribunal arbitral seria, eventualmente, competente, o mesmo é manifestamente extemporâneo;
j) Na verdade, tratando-se de liquidações referentes ao ano de 2012, emitidas (e pagas) em 2013, há muito que tinha terminado o prazo de pedido de constituição do Tribunal Arbitral, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
k) A verificação da caducidade importa a absolvição total ou parcial do pedido, nos termos do artigo 576º, n.º 3, do CPC.
l) A Requerente não logrou provar ou demonstrar, como, de resto, lhe competia, qualquer situação de injustiça grave ou notória, ou qualquer erro imputável aos serviços, invocando meramente, em suma, ter obtido provimento em decisões recentes no CAAD, face a outras liquidações de Imposto de Selo.
m) Em cumprimento da verba n.º 28.1 da TGIS, na redação dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31/12, cuja norma de incidência refere prédios urbanos, avaliados nos termos do Código do IMI com VPT igual ou superior a €1.000.000,00, e afectação habitacional, procedeu a AT à notificação dos documentos de cobrança com vista ao pagamento das liquidações em causa;
n) Ora, o que aqui está em causa são liquidações que resultam da aplicação directa da norma legal, que se traduz em elementos objetivos, sem qualquer apreciação subjetiva ou discricionária;
o) O conceito de prédio encontra-se definido no artigo 2º, n.º 1, do Código do IMI, estando estatuído no seu n.º 4 que, no regime de propriedade horizontal, cada fracção autónoma é havida como constituindo um prédio;
p) Quanto à liquidação de IMI, tratando-se de prédios em propriedade total, o valor que serve de base ao seu cálculo, será indiscutivelmente o inscrito na caderneta predial como “valor patrimonial total”.
q) O que, expressamente, resulta da letra da lei é que o legislador quis tributar com a verba 28.1 em discussão os prédios enquanto uma única realidade jurídico-tributária;
r) Entende, ainda, a AT, que a previsão da verba 28.1 da TGIS não consubstancia qualquer violação ao princípio da igualdade, inexistindo qualquer discriminação na tributação de prédios constituídos em propriedade horizontal e prédios em propriedade total com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, ou entre prédios com afectação habitacional e prédios com outras afectações;
s) Assim, resulta do facto do IS Verba 28.1. incidir sobre a propriedade de prédios urbanos cujo VPT constante da matriz, nos termos do Código do IMI, seja igual ou superior a €1.000.000,00, que o valor patrimonial relevante para efeitos da incidência do imposto é, claramente, o valor patrimonial total do prédio urbano e não o valor patrimonial de cada uma das partes que o componham, ainda quando suscetíveis de utilização independente;
t) Deste modo, não se pode concluir por uma alegada discriminação, ou violação do princípio da igualdade quando, na verdade, estamos perante realidades distintas, valoradas pelo legislador de forma diferente;
u) Assim, mantem-se integralmente válidas e legais as liquidações do IS, verba 28 da TGIS, ora impugnadas, concluindo-se pela legalidade das mesmas.
Vejamos o que deve ser entendido.
A – Das excepções invocadas pela AT
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Da Incompetência Material do Tribunal Arbitral
De acordo com o disposto nos artigos 16.º do CPPT, 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”) e 101.º do CPC, subsidiariamente aplicáveis ex vi do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, a determinação da competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.
Em consequência, tendo em conta que a procedência da excepção invocada pela AT, a verificar-se, obsta ao conhecimento das demais questões suscitadas, importa delimitar o âmbito de competência da jurisdição arbitral tributária e aferir se a competência do tribunal abrange, ou não, o acto de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado.
Tem sido abordada em diversos processos arbitrais julgados no âmbito do CAAD, a questão da incompetência material dos tribunais arbitrais – Veja-se a este propósito os acórdãos proferidos no âmbito dos processos n.ºs 48/2012, de 06.07.2012, 73/2012, de 23.10.2012 e 76/2012, de 29.10.2012, cujas decisões acompanhamos.
Assim, antes de mais, importa atender ao disposto no n.º 1 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, segundo o qual o Governo foi autorizado “a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária», devendo, segundo o seu n.º 2, “constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.”
Concretizando a referida autorização legislativa, o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, “instituiu a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no seu art. 2.º” fazendo “depender a vinculação da administração tributária de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça” (vide a fundamentação do acórdão arbitral proferido no Processo n.º 76/2012 acima referido).
O âmbito da jurisdição arbitral tributária ficou, assim, delimitado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material, abrangendo a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos (alínea a)).
Através da Portaria de Vinculação (Portaria n.º 112-A/2011, de 20 de Abril), o Governo, pelos Ministros de Estado e das Finanças e Justiça, vinculou os serviços da Direcção-Geral de Impostos e da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, sendo que a estes serviços corresponde, presentemente, a Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro, que aprova a estrutura orgânica desta Autoridade, resultante da fusão de diversos organismos.
Nesta Portaria, estabelecem-se condições adicionais e limites de vinculação tendo em conta a especificidade das matérias e o valor em causa.
Dispõe o artigo 2.º da Portaria de Vinculação:
Artigo 2.º
Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.”
Conclui-se, assim, que o processo arbitral tributário tem por objecto, mediato ou imediato, o acto tributário de liquidação, enquanto acto de determinação do quantitativo do imposto a pagar (colecta), por aplicação de uma taxa à matéria colectável.
Ora, no caso em apreço, a Requerente peticiona pela declaração de ilegalidade e inconstitucionalidade do indeferimento (tácito) da AT quanto ao pedido de revisão oficiosa do acto de liquidação de IS relativo ao ano 2012 apresentado.
Conforme resulta da alínea a) do artigo 2.º supra citado, a declaração de ilegalidade de actos de liquidação pode ser efectuada como corolário do princípio da legalidade de um acto de segundo grau (o acto de indeferimento do pedido de revisão do acto tributário). O pedido de pronúncia arbitral sobre o indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado é um acto de segundo grau que aprecia (no caso, tacitamente), a legalidade do acto de liquidação de IS sub judice. Por isso, entende-se que o Tribunal Arbitral é competente para apreciar a pretensão da Requerente, nos termos do artigo 2.º, n.º 1 a) do RJAT.
Ademais, conforme resulta da Lei de autorização legislativa (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), “O processo arbitral tributário deve constituir um meio judicial alternativo ao processo de impugnação judicial”. Em consequência, também a esta luz, e contrariamente ao defendido pela AT, o processo arbitral tributário abarca o indeferimento (tácito) do pedido de revisão oficiosa apresentado relativamente a actos de liquidação de IS. De facto, ao invés de recorrer ao processo arbitral tributário, a Requerente poderia ter optado por impugnar judicialmente o indeferimento em causa, sendo esse o meio processual adequado, de acordo com o disposto no artigo 97.º e 99.º do CPPT.
Considerando que o pedido de revisão oficiosa apresentado pugna pela revisão do acto de liquidação de IS de 2012, não estando em causa qualquer acto que vise apenas a declaração ou reconhecimento de um direito, conclui-se que este tribunal arbitral é competente para decidir sobre a petição arbitral apresentada do indeferimento do pedido de revisão oficiosa, nos termos das disposições conjugadas previstas no artigo 95.º, n.º 1 e 2 d) da LGT, no artigo 99.º do CPPT e no artigo 2.º, n.º 1 a) do RJAT.
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Da Caducidade do Direito de Acção
Dispõe o artigo 78.º da LGT o seguinte:
“1 - A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.
2 - (Revogado pela alínea h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016 de 30 de março)
3 - A revisão dos actos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de se tratar de erro material ou de direito, implica o respectivo reconhecimento devidamente fundamentado nos termos do n.º 1 do artigo anterior. (Redação da Lei 55-B/2004, de 30 de Dezembro)
4 - O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte. (Redação do n.º 1 do artigo 57º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro)
5 - Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional. (Redação da Lei 55-B/2004, de30 de Dezembro) (Anterior n.º 4.)
6 - A revisão do acto tributário por motivo de duplicação de colecta pode efectuar-se, seja qual for o fundamento, no prazo de quatro anos. (Redação da Lei 55-B/2004, de 30 de Dezembro)
7 - Interrompe o prazo da revisão oficiosa do acto tributário ou da matéria tributável o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para a sua realização. (Redação da Lei 55-B/2004, de 30 de Dezembro) (Anterior n.º6 .) “
Em face do disposto no artigo 78.º, n.º 1 e 2 da LGT, entende-se que o pedido de revisão oficiosa do acto de liquidação de IS já identificado é tempestivo e admissível, uma vez que foi efectuado dentro do prazo de 4 anos.
Na verdade, a Requerente apresentou o pedido de revisão oficiosa em 7 de Janeiro de 2016, relativamente ao acto de liquidação de IS, emitido em 22 de Março de 2012, isto é, dentro do prazo de 4 anos, após a liquidação.
Tendo-se verificado o indeferimento tácito daquele pedido em 7 de Maio de 2016, à luz do disposto no artigo 57.º, n.º 1 da LGT, a apresentação da petição arbitral, em 22 de Julho de 2016, é tempestiva, de acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 1 a) do RJAT.
Conclui-se, assim, que não se verifica a caducidade do direito de apresentação da petição arbitral em análise.
Em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações, julgam-se improcedentes as excepções de incompetência material do tribunal arbitral e de caducidade do direito de acção.
B – Da interpretação da Verba 28.1 da TGIS
Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.
Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
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Atendendo às regras de interpretação da Lei, importa saber que a Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, veio aditar à TGIS a verba 28 e 28.1, criando a taxa de IS sobre prédios urbanos de elevado valor patrimonial.
A criação deste novo facto tributário ocorreu no contexto de crise económica e de grave crise nas finanças públicas, com o propósito de aumentar as receitas fiscais do Estado, através da tributação daqueles que revelam maiores indicadores de riqueza.
A taxa especial de IS sobre os prédios de valor superior a €1.000.000,00, também conhecida como “taxa de luxo”, visou garantir a repartição dos sacrifícios por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho.
Nestas circunstâncias, fixou a verba 28 e 28.1, a incidência de IS nos seguintes termos:
“Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a €1.000.000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1. – Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI…… 1%.”
Resulta, portanto, da letra da lei que a taxa prevista na verba 28.1 é aplicável ao direito de propriedade sobre prédio com afectação habitacional, cujo VPT utilizado para efeito de IMI seja igual ou superior a €1.000.000,00.
De acordo com o disposto no artigo 1.º, n.º 6 do Código do IS, “Para efeitos do presente Código, o conceito de prédio é o definido no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI).”
Por sua vez, o Código do IMI determina no seu artigo 2.º, o seguinte:
Conceito de prédio
“1 - Para efeitos do presente Código, prédio é toda a fracção de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou colectiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontrem implantados, embora situados numa fracção de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial.
2 - Os edifícios ou construções, ainda que móveis por natureza, são havidos como tendo carácter de permanência quando afectos a fins não transitórios.
3 - Presume-se o carácter de permanência quando os edifícios ou construções estiverem assentes no mesmo local por um período superior a um ano.
4 - Para efeitos deste imposto, cada fracção autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio.”
Tendo em conta o conceito de prédio estabelecido na Lei, é claro que os prédios constituídos em propriedade vertical constituem prédios, para efeitos da verba 28.1 da TGIS.
Na medida em que o prédio em análise (doravante Prédio) constitui um Prédio, nos termos previstos no artigo 2.º do Código do IMI, este encontra-se literalmente abrangido pela verba 28 e 28.1.
Na verdade, a lei não distingue, em momento algum, entre prédio em propriedade horizontal e prédio em propriedade vertical, limitando-se o n.º 4 do artigo 2.º a estabelecer que no regime da propriedade horizontal cada fracção autónoma é havida como prédio.
Do referido no n.º 4 do artigo 2.º não resulta, contrariamente ao defendido pela Requerida na resposta apresentada, que só as fracções autónomas de prédio em regime de propriedade horizontal são havidas como prédios.
Não obstante, a taxa especial de IS fixada na verba em questão apenas se aplica caso o Prédio constitua um prédio habitacional, cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do CIMI, seja igual ou superior a €1.000.000.
Uma vez que o Código do IS não estabelece o que se entende por “habitacional”, por força do disposto no n.º 2 do artigo 67.º do referido Código, são, também, aqui aplicáveis as regras previstas no Código do IMI, nomeadamente as estabelecidas nos artigos 6.º e no artigo 41.º desse Código.
Da análise das referidas regras, resulta, também, claro que, o Prédio está abrangido pela verba 28.1, enquanto prédio urbano com afectação habitacional.
Resta, portanto, averiguar se o VPT constante da matriz do Prédio, nos termos do Código do IMI, é igual ou superior a €1.000.000.
Ora, conforme decorre da letra da Lei, o VPT do Prédio será aquele que for utilizado para efeito de IMI.
A este propósito, determina-se no n.º 1 do artigo 7.º, do Código do IMI, aplicável ex vi do n.º 7 do artigo 23.º, do Código do IS, que “O valor patrimonial tributário dos prédios é determinado nos termos presente Código.”.
Por sua vez nos n.ºs 2 e 3 do artigo 7.º do Código do IMI, estabelecem-se as regras para a determinação do VPT dos prédios com duas ou mais classificações.
Uma vez que a taxa prevista na verba 28 e 28.1 da TGIS apenas se aplica a prédios de afectação habitacional, as regras estabelecidas no n.ºs 2 e 3 do artigo 7.º do Código do IMI não são aplicáveis à determinação do VPT relevante no âmbito da referida verba.
Na verdade, o VPT dos prédios de afectação habitacional, previstos na verba 28 e 28.1.da TGIS, tem de ser determinado tendo em conta o n.º 3 do artigo 12.º do Código do IMI, segundo o qual:
“Cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respectivo valor patrimonial tributário.”
Assim, tendo em conta que o legislador não atribui qualquer relevância ao facto do prédio estar constituído em regime de propriedade vertical, o VPT deve ser imputado a cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente.
De facto, não se encontra no Código do IMI nenhuma norma que permita concluir no sentido de que o VPT de prédio em regime de propriedade vertical deve ser obtido pela soma dos VPT que foram atribuídos isoladamente às partes que o constituem (Vide, entre outras, as decisões arbitrais proferidas no Processo 50/2013-T, 131/2013-T, 177/2014-T, 396/2014-T).
Tendo em conta que as normas de incidência estão sujeitas ao princípio da legalidade tributária (Cfr. Artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e artigo 8.º da LGT), parece inexistir base legal à liquidação de IS com base na soma dos VPT de cada uma das partes do Prédio.
De facto, a AT não pode realizar uma operação de liquidação com base numa norma de incidência, que não prevê expressamente a base de incidência do imposto nos termos liquidados, pois, que as normas de incidência dos tributos devem ser interpretadas nos seus exactos termos, sem recurso à analogia, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação (Vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no âmbito do proc. 7648/14, de 10.07.2014).
Entende-se, assim, que não existe base legal que permita à AT adicionar os valores patrimoniais tributários dos andares ou partes de prédio susceptíveis de utilização independente, por forma a atingir-se o limiar de tributação elegível de €1.000.000,00, previsto na verba 28 da TGIS.
Em face do exposto, não tendo nenhum dos andares, susceptíveis de utilização independente valor patrimonial tributário superior a €1.000.000,00, não há lugar a incidência da taxa prevista na verba 28 da TGIS.
Em consequência, impõe-se a admissão do pedido de revisão oficiosa e a consequente anulação do acto de liquidação de IS sub judice, assim como o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios da Requerente relativamente ao IS pago, uma vez que a ilegalidade do acto de liquidação é imputável a erro da Requerida, nos termos previstos no artigo 43.º, n.º 1 e 3 c) da LGT.
IV. DECISÃO
Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
A) Julgar totalmente procedente o pedido de anulação do indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado relativamente ao acto de liquidação de IS relativo ao ano 2012;
B) Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir à Requerente o montante de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos legais;
C) Condenar a Requerida nas custas do presente processo, por ser a parte vencida.
V. VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1 a) do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em €10.297,40.
VI. CUSTAS
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €918, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 29 de Novembro de 2016
A Árbitro
Magda Feliciano
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990).