Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 199/2016-T
Data da decisão: 2016-12-09  IRC  
Valor do pedido: € 184.968,90
Tema: IRC – Artigo 32.º do EBF; Circular 7/2004; Autoliquidação; Ónus da prova
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Rui Ferreira Rodrigues e  Luísa Anacoreta, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 30 de Março de 2016, A…, SGPS, LDA., pessoa coletiva n.º…, com sede no…, n.º … …, …, … … Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade da decisão do procedimento de Revisão Oficiosa n.º …/15, relativo ao acto de autoliquidação de IRC constante da Declaração Modelo 22 de IRC identificada com o código …  …-…, referente ao exercício de 2010, e do acto de liquidação de IRC n.º 2016…, no valor de € 184.968,90.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que:

                                                              i.      A autoliquidação de IRC de 2010 aplicou no que toca aos encargos financeiros o disposto na circular nº 7/2004, de 30 de Março a qual consubstancia a interpretação da AT do disposto no art. 32º nº 2 do EBF;

                                                            ii.      Aquando do apuramento do lucro tributável de IRC referente ao exercício de 2010, limitou-se a aplicar aos encargos financeiros (juros) por si suportados a fórmula constante da referida Circular 7/2004, de 30 de Março;

                                                          iii.      A AT já anulou parte da liquidação de 2010, no valor de €139.242,78 indicado no quadro 07 da declaração Mod. 22, relativo à participação social que foi por si adquirida na B…, LDA, mediante entrada em espécie;

                                                          iv.      Quanto ao montante de € 184.968,90 (correspondente à diferença entre o valor inicial da liquidação de € 324.211,68 - € 139.242,78 valor anulado pela AT), a AT só poderia, no âmbito daquelas que são as suas competências mover-se no sentido de desenvolver um método que respeitasse a afectação directa e real, porque só esse seria compatível com o princípio da legalidade constitucionalmente consagrado;

                                                            v.      Demonstrado que a fórmula criada pela Circular nº 7/2004 constitui um método de imputação criado, exclusivamente, pelo denominado direito circulatório (e não uma mera interpretação administrativa do artigo 32.º do EBF), a mesma viola o princípio da legalidade, previsto no art. 103º nºs 2 e 3, 112º, nºs 5 e 6 e 165.º, nº 1, alínea i) da CRP e art. 8º nº 2 da LGT;

                                                          vi.      O critério circulatório em causa é susceptível de provocar entorses significativas ao princípio constitucional da tributação pelo lucro real “a fórmula instituída pela circular também violava o princípio da tributação pelo lucro real e, por conseguinte, o disposto no artigo 104.º, n.º 2, da CRP”;

                                                        vii.      Atenta a ilegalidade (e inconstitucionalidade) do método indirecto de determinação dos encargos financeiros não dedutíveis que foi adoptado pela AT no nº 7 da circular nº 7/2004 “deverá igualmente concluir-se que qualquer acréscimo realizado de acordo com o critério indirecto previsto naquela circular atenta contra o disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, sendo ilegais os actos de liquidação que incorporem esse acréscimo”.

 

  1. No dia 31-03-2016, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 25-05-2016, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 13/06/2016.

 

  1. No dia 05-09-2016, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

  1. Atendendo aos princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      A Requerente, anteriormente denominada C…, SGPS, LDA., é uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS).

2-      No final do exercício de 2010, a Requerente detinha participações sociais nas seguintes sociedades:

Sociedades

Valor de aquisição

B…, Lda.

 € 7.466.453,00

D…, S.A.

€ 3.500.000,00

E…, S.A.

€ 3.483.676,00

F…, S.A.

€ 149.094,00

G…, S.A.

€ 6.250,00

Total

€ 14.605.473,00

 

3-      No dia 10 de Julho de 2003, a Requerente subscreveu uma quota da sociedade B…, LDA., no valor de € 6.910.553,30.

4-      A subscrição daquela participação social foi integralmente realizada em espécie, mediante a transferência para a mesma do estabelecimento comercial da própria Requerente.

5-      Em 27 de Dezembro de 2006, a Requerente adquiriu mais duas quotas da mesma sociedade:

                                                              i.            uma com o valor nominal de € 188.931,46, pelo preço de € 551.000,00; e

                                                            ii.             outra com o valor nominal de € 4.899,00, pelo valor de € 4.900,00.

6-      Em 23 de Janeiro de 2007, a Requerente adquiriu uma participação social na sociedade D…, S.A., pelo valor global de € 3.500.000,00.

7-      Em 4 de Fevereiro de 2009, a Requerente subscreveu uma participação social na sociedade G…, S.A., pelo valor de € 6.250,00.

8-      Em 24 de Maio de 2010, a Requerente adquiriu uma participação correspondente a 75% do capital social da sociedade E…, S.A. no valor de € 3.483.676,00.

9-      Em 30 de Julho de 2010, a Requerente adquiriu uma participação social na sociedade F…, S.A., correspondente a 13,82% do respectivo capital social, pelo valor de € 149.093,96.

10-  No exercício de 2010, a Requerente suportou encargos financeiros no valor global de € 804.291,00, que incluem o valor de € 721.454,00 a título de juros;

11-  Os encargos financeiros em apreço dizem respeito aos diversos financiamentos que foram obtidos pela Requerente, nomeadamente junto de instituições de crédito.

12-  Os juros decorrentes de empréstimos contraídos junto de instituições de crédito, concretamente junto do BANCO H…, S.A., do BANCO I…, S.A., e do BANCO J…, S.A., ascenderam a € 477.318,00.

13-  Em 17 de Dezembro de 2007, a Requerente (e outras sociedades do Grupo empresarial a que pertence) celebrou como o BANCO H…, S.A. um contrato de abertura de crédito por conta corrente (grupado, em que as sociedades poderiam usufruir dos fundos disponibilizados até ao limite estabelecido no contrato), com o limite de crédito de € 7.500.000,00.

14-  O referido contrato foi sucessivamente alterado e aditado, tendo o limite de crédito sido aumentado para € 10.000.000,00.

15-  Em 15 de Abril de 2009, a Requerente celebrou com o BANCO I…, S.A., um contrato de abertura de crédito com o valor de € 6.000.000,00;

16-  Na cláusula 2.ª do referido contrato consta que «os fundos mutuados (…) destinam-se exclusivamente a ser utilizados pela CREDITADA para apoio de tesouraria».

17-  Em 29 de junho de 2009, a Requerente celebrou com o BANCO J…, S.A. um contrato de abertura de crédito com o valor de € 6.000.000,00 onde se indica que «este montante destina-se ao financiamento de necessidades pontuais de tesouraria (…)».

18-  Em 24 de Maio de 2010, a Requerente celebrou, em conjunto com outras entidades do Grupo, um aditamento ao contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada inicialmente outorgado entre a sociedade K…, SGPS, S.A. e o BANCO L…, SA, passando a ser também beneficiária do valor inicialmente mutuado, no montante de € 4.000.000,00.

19-  No referido contrato foi expressamente indicado que o financiamento tinha como finalidade o apoio à tesouraria das entidades mutuárias.

20-  O contrato de abertura de crédito com o BANCO L…, SA, não determinou, no decurso do ano de 2010, o pagamento de quaisquer juros por parte da Requerente, posto que a Requerente não utilizou esses fundos no exercício de 2010.

21-  Os restantes financiamentos foram obtidos pela Requerente junto da sua participada B…, LDA., tendo implicado o pagamento de juros no exercício de 2010 no valor total de € 244.136,00.

22-  Os financiamentos obtidos junto da referida participada destinaram-se à generalidade da actividade da ora Requerente, não tendo qualquer utilização específica.

23-  Em 16 de Maio de 2011, a Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 com referência ao exercício de 2010, identificada com o código …-… .

24-  Na referida declaração Modelo 22 de IRC, a Requerente declarou um resultado líquido do exercício negativo no valor de € 169.290,95.

25-  Para esse mesmo resultado líquido do exercício concorreram (como componente negativa) os gastos de financiamento suportados pela ora Requerente no exercício de 2010, no valor global de € 804.291,00 (que inclui o montante de € 721.454,00, a título de juros).

26-  Aquando do preenchimento da Declaração Modelo 22 de IRC, a Requerente efetuou os seguintes ajustamentos (acréscimos no Quadro 07): (i) um acréscimo no montante de €688,34, referente a IRC e outros impostos que direta ou indiretamente incidiam sobre os lucros, e (ii) um acréscimo no montante de €324.211,68, respeitante a encargos financeiros que, à data, a Requerente considerou não serem dedutíveis por força do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF.

27-  Para determinar o valor a ajustar (acrescer) ao abrigo daquele preceito legal, a Requerente utilizou a metodologia prevista na Circular n.º 7/2004, de 30 de março, da Direção de Serviços do IRC (DSIRC).

28-  Depois de feitos todos os ajustamentos no Quadro 07, a Requerente apurou um lucro tributável no montante de € 155.609,07.

29-  Uma vez que tinha prejuízos fiscais de exercícios anteriores de valor superior, a Requerente deduziu os prejuízos fiscais reportáveis até à sua concorrência com o montante apurado a título de lucro tributável, tendo, por isso, apurando uma matéria colectável de € 0,00 (zero euros).

30-  Em consequência de tais operações, a Requerente não apurou colecta de IRC no exercício de 2010;

31-  A Requerente autoliquidou, ainda, na mesma declaração Modelo 22 de IRC, o valor de € 2.334,14 a título de derrama municipal.

32-  Na mesma declaração a Requerente apurou um valor final a recuperar de € 2.933,83.

33-  Após a apresentação da indicada declaração Modelo 22 de IRC, a Requerente foi notificada da demonstração de IRC n.º 2011…, na qual a Administração tributária veio corrigir a importância de derrama municipal autoliquidada pela Requerente para € 1.167,07.

34-  No dia 15 de Maio de 2015, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa contra o acto de autoliquidação de IRC acima identificado, defendendo que o mesmo tinha sido praticado com base num erro de facto e de direito, uma vez que o ajustamento - acréscimo ao lucro tributável - do valor de € 324.211,68, efectuado de acordo com a Circular n.º 7/2004, de 30 de março, não deveria, no entender da Requerente, ter sido realizado, e solicitou que o apurado fosse corrigido, passando a ser negativo (prejuízo fiscal) no montante de € 168.602,61.

35-  A título subsidiário, a Requerente indicou ainda que, mesmo admitindo a eventual aplicação da metodologia prevista na indicada Circular n.º 7/2004, de 30 de março, ter-se-ia que expurgar para efeitos desse cálculo a participação social que foi adquirida na B…, LDA, mediante entrada em espécie, posto que, relativamente a esta, em caso algum se poderia dizer que a mesma foi adquirida com recurso a financiamento externo.

36-  Após análise do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, a Administração tributária proferiu decisão, aceitando anular o acréscimo do montante de €139.242,78, correspondente aos encargos financeiros que a Requerente erradamente imputou à aquisição de parte da participação que detinha na sociedade B…, LDA.

37-  Quanto aos restantes vícios que a Requerente apontou ao acto em apreço, a AT defendeu que:

                                                              i.            «a referida Circular limitou-se a fazer a interpretação das novas regras jurídicas introduzidas pelos nºs 1 e 5, do artigo 38º da Lei nº 32-B/2002, de 30.12, no então artigo 31º, atual artigo 32º do EBF, ressaltando da sua análise que a mesma traduz um esforço de análise coerente e objetiva das normas jurídicas que lhe subjazem»;

                                                            ii.            «Em conformidade com o exposto, não se vislumbra na elaboração da referida Circular, quaisquer vícios emergentes das suas instruções. Pois não se verifica qualquer intenção legislativa por parte da DSIRC, mormente pela instituição de quaisquer normas de incidência, de determinação de taxa e de liquidação, as únicas suscetíveis de violação do princípio da legalidade fiscal previsto no nº 1 do artigo 8º da LGT, por decorrência dos nºs 2 e 3 do artigo 103º da CRP, nem se retirando das instruções vertidas naquela orientação genérica quaisquer intenções suscetíveis de adulterar ou violar as normas jurídicas que estão na sua génese»; e

                                                          iii.            «Sobre a alegada violação do princípio da tributação segundo o rendimento real pela desconsideração dos encargos financeiros, importa salientar que tal não decorre das instruções emanadas na Circular, mas sim da interpretação que terá que ser dada ao disposto no artigo 32º do EBF, em resultado do quadro normativo-legal que regulamenta o regime de neutralidade fiscal aplicável às SGPS».

38-  A propósito da «inconstitucionalidade material da norma constante do n.º 2 do artigo 32º do EBF, na interpretação de que autoriza a segregação de encargos financeiros não dedutíveis de acordo com a fórmula constante dos pontos 7. e 8. da Circular nº 7/2004 e sem admissão de prova em contrário», a Administração tributária concluiu também que não lhe cabia «pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade ou não de determinada norma, uma vez que, nos termos do artigo 202º da CRP “os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”, sendo o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 221º da CRP, “o Tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional” e, nos termos do artigo 223º da CRP “compete ao Tribunal Constitucional apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade, nos termos dos artigos 227º e seguintes”».

39-  Em 15 de Fevereiro de 2016, a Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2016 … que veio refletir a referida decisão de indeferimento parcial, na qual se indica um montante a recuperar de € 5.145,22;

40-  A notificação da referida demonstração de liquidação refere expressamente que a liquidação efectuada corresponde à execução da decisão proferida no procedimento de revisão oficiosa a que corresponde o número interno …2015… .

41-  Neste último acto, a Administração tributária apurou derrama municipal no valor de € 122,75.

42-  O acto de liquidação n.º 2016…, apenas traduz a redução do acréscimo que a Requerente efectuou (no valor inicial de € 324.211,68) para € 184.968,90, permanecendo este último valor como acréscimo para efeitos de apuramento do lucro tributável do exercício de 2010.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

B. DO DIREITO

 

i. da excepção

a.        

Previamente à discussão do mérito da causa, suscita a AT a questão da incompetência material do tribunal arbitral decorrente da circunstância do pedido de pronúncia arbitral ter sido formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa.

Argumenta a Requerida, então, que o pedido de pronúncia arbitral sub judice vem formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) relativo ao ano de 2010, em circunstâncias de tempo em que se mostrava já decorrido o prazo de reclamação graciosa a que alude o artigo 131º do CPPT, pelo que, atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º e 2.º, alínea a), ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, verificar-se-á a incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir o pedido.

Fundamenta a AT o seu entendimento essencialmente no disposto no artigo 2.º/a) da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, que exclui dos litígios cognoscíveis pelos tribunais arbitrais em funcionamento no CAAD, as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

            Entende a Requerida, face a este normativo, que o mesmo deve ser entendido na literalidade com que o lê, proscrevendo do âmbito da jurisdição arbitral tributária as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidas de reclamação nos termos das referidas normas do CPPT.

            Toda a argumentação da Requerida na matéria, contudo, acaba por se reconduzir a sustentar que foi intenção do legislador restringir a competência da jurisdição arbitral tributária, no que ao conhecimento de ilegalidades de actos de autoliquidação diz respeito, unicamente às situações em que exista uma reclamação apresentada nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT, porquanto é isso que, na sua leitura, diz no texto da norma interpretada.

            Sempre ressalvado o respeito devido, não se descortina, de entre as razões oferecidas pela Requerida, uma razão substancial que explique a razoabilidade do entendimento que sustenta. Efectivamente, não se vislumbra qualquer razão substancial – e a Requerida nada apresenta nesse sentido – para que, atentos os condicionalismos e especificidades próprios de cada um dos meios graciosos em causa, nos mesmos termos em que os tribunais tributários estão vinculados, não seja cognoscível em sede arbitral a legalidade dos actos de autoliquidação objecto de pedido de revisão oficiosa, apresentado para lá do prazo de reclamação graciosa.

            Por outro lado, mesmo uma leitura literalística da norma em questão, desde que devidamente contextualizada, não conduz inexoravelmente ao resultado defendido pela Requerida nos autos.

            Com efeito, a expressão empregue pela norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março é paralela à própria norma do artigo 131.º/1 do CPPT, o que deverá ser compreendido como uma concretização da assumida, e pacificamente reconhecida, intenção legislativa de que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

            A norma em causa deverá também ser entendida como explicando-se pela circunstância de, na sua ausência – e face ao teor do artigo 2.º do RJAT – se perfilar como possível a impugnação directa de actos de autoliquidação, sem precedência de pronúncia administrativa prévia.        

Ou seja, tendo em conta que face ao RJAT não se configurava como necessária qualquer intervenção administrativa prévia à impugnação arbitral de uma autoliquidação, o teor da Portaria deve ser interpretado como equiparando – nesta matéria – o processo arbitral tributário ao processo de impugnação judicial e não, como decorreria da posição sustentada pela Requerida, passar do 80 para o 8, pegando numa impugnabilidade mais ampla do que a possível nos Tribunais Tributários, e transmutando-a numa mais restrita.

            Assim, razão alguma se vê – e, uma vez mais, nenhum subsídio a Requerida dá nesse sentido – para que se interprete de forma diferente uma e outra norma, tanto mais que a letra da norma da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, acaba por ser menos restritiva que a do CPPT, na medida em que não integra a expressão “obrigatoriamente”, nem se refere a “reclamação graciosa” mas a “via administrativa”. Daí que seja possível uma leitura da própria letra da lei que se contenha no sentido de que apenas está afastado do âmbito da jurisdição arbitral tributária o conhecimento de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa em termos compatíveis com os artigos 131.º a 133.º do CPPT, sendo certo que toda a jurisprudência dos Tribunais Tributários tem sido no sentido de que é compatível com as normas referidas a impugnação dos actos de autoliquidação em causa desde que precedidos de pedido de revisão oficiosa do acto tributário.

E é esta a leitura que se subscreve, na sequência do Acórdão proferido no processo 48/2012T do CAAD, e jurisprudência arbitral subsequente, bem como da doutrina que se tem formado[1], não se deslindando, na medida em que a interpretação efectuada se contém na letra da lei, que daí possa decorrer a violação de qualquer preceito constitucional, maxime, dos indicados artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 111.º e 266.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

            Assim, e face a todo o exposto, não assistindo razão à Requerida nesta matéria, deve a excepção de incompetência do Tribunal Arbitral ser julgada improcedente.

 

b.

            Alega ainda a Requerida que resulta claramente do pedido que a Requerente pretende, também, que o tribunal profira decisão “correctiva” da liquidação de IRC n.º 2016 … relativa ao exercício fiscal de 2010, com a condenação da AT a reconhecer a reposição integral dos prejuízos indevidamente utilizados (consumidos) no ano de 2010.

Considera a Requerida que “ainda que tal pretensão pudesse eventualmente decorrer da execução de julgados que viesse a ser efectuada em caso de a decisão arbitral proferida ser de procedência do pedido, o que só se concede a título meramente hipotético, tal pedido extravasa a competência do presente Tribunal, uma vez que, a competência dos tribunais arbitrais é, desde logo, circunscrita às matérias indicadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, conjugada com o disposto na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, ex vi artigo 4.º do RJAT.”, e que “Como decorre do previsto no artigo 24.º do RJAT, a definição dos actos em que se deve concretizar a execução de julgados arbitrais compete, em primeira linha, à AT, com possibilidade de recurso aos tribunais tributários para requerer coercivamente a execução, no âmbito do processo de execução de julgados, previsto no artigo 146.º do CPPT e artigos 173.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos”.

Pronunciando-se, a Requerida nota que “não efetuou vários pedidos, mas apenas um – o de declaração de ilegalidade da (i) decisão proferida em sede de revisão oficiosa, e, bem assim, (ii) do ato de autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2010 e (iii) do ato de liquidação de IRC n.º 2016…, na parte em que traduzem o acréscimo ao resultado liquido do exercício de 2010 no valor de € 184.968,90 (cf. pedido constante do Requerimento arbitral apresentado pela REQUERENTE)”, e que “indicou que o Tribunal deveria declarar a ilegalidade de tais atos, com as demais consequências legais, nomeadamente a reposição integral dos prejuízos indevidamente utilizados (consumidos) no exercício de 2010 e a restituição à REQUERENTE do valor indevidamente pago a título de derrama municipal, acrescido de juros indemnizatórios nos termos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.”, concluindo que “a indicação das consequências legais ou dos efeitos da decisão não traduz a apreciação de um novo pedido, nem, tão-pouco, extravasa a competência material do Tribunal Arbitral, pelo que deve ser julgada improcedente a exceção suscitada pela AT.”.

Considera-se que quer Requerida, quer Requerente, têm, em parte, razão.

Com efeito, o pedido da Requerente é apenas um, o da ilegalidade do acto de autoliquidação de IRC relativo ao ano de 2010, e do acto de decisão do procedimento de revisão oficiosa, na medida em que o reflecte, em consonância com a competência dos tribunais arbitrais consagrada no artigo 2.º do RJAT.

Tem também razão a Requerente quando indica que “as demais consequências legais, nomeadamente a reposição integral dos prejuízos indevidamente utilizados (consumidos) no exercício de 2010 e a restituição à REQUERENTE do valor indevidamente pago a título de derrama municipal, acrescido de juros indemnizatórios nos termos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.”, são meras decorrências do pedido formulado.

Nesse enquadramento, assiste razão à AT, quando refere que “a definição dos actos em que se deve concretizar a execução de julgados arbitrais compete, em primeira linha, à AT, com possibilidade de recurso aos tribunais tributários para requerer coercivamente a execução, no âmbito do processo de execução de julgados, previsto no artigo 146.º do CPPT e artigos 173.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos”.

Deste modo, não traduzindo a solicitação de que o Tribunal especifique as consequências da decisão anulatória peticionada um pedido autónomo, não estando, portanto, vinculado o Tribunal a pronunciar-se sobre tais consequências, e cabendo à AT a definição dos actos em que se deve concretizar a execução de julgados arbitrais, não se verifica qualquer incompetência material, nos termos arguidos.

 

***

ii. do fundo da causa

 

            Conforme se referiu atrás, está em causa nos presentes autos a apreciação da legalidade da decisão do procedimento de Revisão Oficiosa n.º …/15, relativo ao acto de autoliquidação de IRC constante da Declaração Modelo 22 de IRC identificada com o código …-…, referente ao exercício de 2010, e do acto de liquidação de IRC n.º 2016…, no valor de € 184.968,90, com fundamento, essencialmente em que:

-          a imputação do valor de € 184.968,90, às participações sociais não tem qualquer correspondência com a realidade da ora Requerente;

-          a metodologia constante da Circular 7/2004 não se coaduna, nem com a letra, nem com a ratio do n.º 2 do artigo 32.º do EBF, não podendo, por consequência, servir para realizar o ajustamento que foi efetuado.

Vejamos, então.

 

*

            Estando em causa, na presente acção arbitral, três actos tributários (acto de autoliquidação de IRC constante da Declaração Modelo 22 de IRC identificada com o código …-…, referente ao exercício de 2010, decisão do procedimento de Revisão Oficiosa n.º …/15, e acto de liquidação de IRC n.º 2016…), convém, antes de mais, ter presente a estrutura do contencioso arbitral tributário, de forma a determinar a ordem de apreciação dos actos tributários cuja legalidade cumpre sindicar.

            Como refere Carla Castelo Trindade, “a primeira questão que deve ficar clara: o objecto do processo arbitral tributário é o acto de (...) autoliquidação.[2], sendo que os actos de segundo grau, a que se reporta o artigo 10.º/1 do RJAT, serão meramente referentes da tempestividade do pedido de pronúncia arbitral.

            Deste modo, cumpre apreciar, desde logo e em primeiro lugar a questão da (i)legalidade do acto de autoliquidação de IRC constante da Declaração Modelo 22 de IRC identificada com o código …-…, referente ao exercício de 2010, da Requerente.

 

*

            Ainda antes de prosseguir para a apreciação do fundo da causa, deve-se ainda ter presente que, nos presentes autos de acção arbitral tributária, não é peticionada a anulação, por ilegalidade, do referido acto de autoliquidação, mas, mais especificamente, a anulação parcial daquele, na medida em que traduz, após a decisão do procedimento de revisão oficiosa, o acréscimo ao resultado líquido do exercício de 2010 no valor de € 184.968,90, relativo a encargos com a aquisição de participações financeiras, não dedutíveis nos termos do n.º 2 do artigo 32.º do EBF aplicável.

            Para fundamentar a referida ilegalidade parcial do seu próprio acto de autoliquidação, a Requerente sustenta, em suma, que “o ato de autoliquidação referente ao exercício de 2010 e o ato de liquidação n.º 2016…, são ilegais, na parte em que traduzem o acréscimo ao resultado líquido do exercício no valor de € 184.968,90, por o mesmo corresponder à aplicação de um critério que não se encontra previsto na lei”.

            Do ponto de vista da Requerente, o referido juízo justificar-se-á porquanto:

-          “quer o elemento literal, quer o elemento teleológico do referido preceito legal apontam indubitavelmente para a conclusão de que a limitação prevista no n.º 2 do artigo 32.º do EBF só será de aplicar aos encargos que estejam diretamente relacionados com a aquisição das participações sociais detidas por mais de um ano”;

-          “que a fórmula vertida na Circular n.º 7/2004, de 30 de março, não pode ser analisada de outro ponto de vista, que não o de iure condendo, sendo que, desta perspetiva, facilmente se conclui que a mesma não tem qualquer suporte legal, contrariando, inclusivamente, o método aplicável, que é o da afetação real, como a própria Administração tributária reconhece naquela Circular.”;

-          “a Circular n.º 7/2004, de 30 de março, viola — na medida em que consubstancia a criação ilegítima de uma nova norma de incidência fiscal — o disposto nos artigos 103.º, 112.º, n.º 5 e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP e, bem assim, o artigo 8.º da LGT.”.

 

*

            Conforme decorre dos factos dados como provados:

-          Aquando do preenchimento da Declaração Modelo 22 de IRC, a Requerente efetuou os seguintes ajustamentos (acréscimos no Quadro 07): (i) um acréscimo no montante de € 688,34, referente a IRC e outros impostos que direta ou indiretamente incidiam sobre os lucros, e (ii) um acréscimo no montante de € 324.211,68, respeitante a encargos financeiros que, à data, a Requerente considerou não serem dedutíveis por força do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF.

-          Para determinar o valor a ajustar (acrescer) ao abrigo daquele preceito legal, a Requerente utilizou a metodologia prevista na Circular n.º 7/2004, de 30 de março, da Direção de Serviços do IRC (DSIRC).

-          Após análise do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, a Administração tributária proferiu decisão, aceitando anular o acréscimo do montante de € 139.242,78, correspondente aos encargos financeiros que a Requerente erradamente imputou à aquisição de parte da participação que detinha na sociedade B…, LDA.

Verifica-se, assim, desde logo, que o montante de € 184.968,90, acrescido ao resultado líquido do exercício de 2010, cuja anulação a Requerente ora pretende, é o remanescente do valor indicado na própria declaração da Requerente, como não dedutível por força do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF.

Antes de mais, diga-se que, no que à apreciação da (i)legalidade (parcial) da autoliquidação da Requerente diz respeito, as alegações relativas à ilegalidade/inconstitucionalidade da Circular 7/2004, integrarão questão que se reputa de irrelevante, na medida em que a referida circular não vincula, por qualquer forma, a Requerente, e se, como está provado, seguiu os seus critérios, fê-lo no âmbito do seu livre poder de decisão, e não por qualquer obrigação que, para si, resultasse daquela  mesma Circular.

            Daí que, in casu, e no que diz respeito ao acto de autoliquidação, não releve qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade de que a referida Circular possa enfermar.

            No mais, a Requerente alega ainda que a determinação do valor relevante de encargos financeiros não dedutíveis para efeitos da norma do EBF em causa, deve ser feita directamente, tendo sido dado como provado que os financiamentos obtidos junto das instituições bancárias tiveram como finalidade contratual a aplicação em necessidades de tesouraria, e que os financiamentos obtidos junto da sua participada destinaram-se à generalidade da actividade da ora Requerente, não tendo qualquer utilização específica.

            Conclui, a este respeito a Requerente, que não lhe era, nem lhe é, possível estabelecer qualquer alocação directa dos encargos financeiros suportados em 2010 às referidas participações sociais, pelo que não podia efectuar-se qualquer ajustamento (acréscimo) a luz do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, sob pena de o acto que incorpora o mesmo ajustamento padecer de vício de violação de lei.

            Sempre ressalvado o respeito devido, não se pode subscrever a lógica subjacente à posição da Requerente, que, generalizada, levaria a que sempre que a um contribuinte, culposamente ou não, fosse subjectivamente difícil, ou mesmo impossível, declarar um valor que estivesse obrigado a declarar, se pudesse eximir de o fazer, alegando tal dificuldade ou impossibilidade.

            No caso, o artigo ora em questão – 32.º/2 do EBF – impõe, para além do mais, que “os encargos financeiros suportados com a (...) aquisição [de participações sociais detidas por período não inferior a um ano] não concorrem para a formação do lucro tributável” das SGPS, SCR e ICR.

            Por sua vez o artigo 120.º do CIRC aplicável, impõe aos contribuintes de IRC que apresentem a sua declaração periódica de rendimentos, nos termos da lei, sendo essa declaração, por regra, a base da liquidação de imposto, conforme dispõe o artigo 90.º/1/a) do mesmo CIRC, sendo certo que o modelo de declaração disponibilizado contém campo próprio para fazer constar o valor referente à supra-referida previsão do artigo 32.º/2 do EBF, designadamente o Quadro 07, de resto, e no caso, preenchido pela Requerente.

            Daí que se tenha por inequívoco que os contribuintes de IRC a quem a previsão do artigo em causa do EBF seja aplicável tenham a obrigação de fazer constar da respectiva declaração periódica de IRC o valor dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais detidas por período não inferior a um ano, não podendo pretender eximirem-se de tal obrigação, como parece ser o caso da Requerente, alegando que não lhes é possível estabelecer qualquer alocação directa dos encargos financeiros suportados às participações sociais detidas.

Com efeito, não só o princípio da legalidade não impõe que seja aceite um gasto por força da dificuldade ou impossibilidade subjectiva de demonstração dos pressupostos dos quais a lei faz depender a sua dedutibilidade (no caso, a não terem sido suportados com a aquisição de participações sociais detidas por período não inferior a um ano), como, em concreto, tal dificuldade será – exclusivamente e em primeira linha – sempre objectivamente imputável ao contribuinte que, por ser quem contrai os gastos com encargos financeiros e quem lhes dá destino, é quem poderá demonstrar, melhor que ninguém, se, e quais de tais gastos tiveram por finalidade a aquisição de partes de capital detidas por período não inferior a um ano.

Assim, independentemente da maior ou menor dificuldade – ou mesmo da impossibilidade – subjectiva em determinar o valor relevante para efeitos do artigo 32.º/2 do EBF, estarão os contribuintes abrangidos pela respectiva previsão, obrigados a fazer constar da respectiva declaração de imposto um valor para o efeito – ainda que seja zero, ou um valor indirectamente determinado – não se podendo eximir a tal obrigação sob pretexto que é difícil, ou impossível, concretizar tal valor.

O valor declarado, gozará, desde que verificados os respectivos pressupostos, da presunção de veracidade consagrada no artigo 75.º/1 da LGT, pelo que, declarado o valor que, no critério do contribuinte, é o adequado, competirá à AT, se dele discordar, produzir prova de que tal valor não é o correcto, seja demonstrando uma alocação directa dos encargos financeiros suportados à aquisição das participações sociais, seja utilizando um critério indirecto – se entender que tal é consentido pelo norma do artigo 32.º/2 do EBF em causa[3] - seja lançando mão dos métodos de tributação indirecta, nos termos gerais da LGT, também desde que verificados os respectivos pressupostos, onde se inclui a “Impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto” (artigo 87.º/1/b) da LGT).

O contribuinte, verificando um erro na sua declaração, poderá rectificá-lo em declaração de substituição, desde que apresentada esta nos termos legais, ou então, peticionar – primeiro graciosamente e depois, se necessário, contenciosamente – a sua anulação.

Neste caso, todavia, estando em causa uma pretensão do contribuinte, assiste-lhe o ónus da prova de que a autoliquidação em questão é (parcialmente) ilegal, nos termos do artigo 74.º/1 da LGT.

            Com efeito, como se escreveu no Ac. do STA de 27-06-2012, proferido no processo 0982/11[4], “estando em causa uma autoliquidação é o contribuinte que vem discordar da própria declaração, impugnando a sua veracidade e até a sua autenticidade” cabendo “à recorrente demonstrar o facto por si alegado”, em concretização do princípio, sumariado, de que “No processo de impugnação judicial o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.”.

            Assim, e estando em causa o valor a considerar para efeitos do artigo 32.º/2 do EBF, considera-se que o ónus da prova que assiste ao contribuinte consiste em demonstrar qual o valor correcto para efeitos da referida norma, e não, meramente, que não lhe é possível indicar um valor.

            No caso, a Requerente, peticionando a anulação do acréscimo ao resultado líquido do exercício no valor de € 184.968,90, que resulta do valor declarado por si para efeitos da segunda parte do artigo 32.º/2 do EBF aplicável, pretende que o valor a considerar para tais efeitos seja zero.

            Todavia, nenhuma prova é feita nesse sentido, não alegando, sequer, a Requerente, que não tenha suportado encargos financeiros com a aquisição de participações sociais relevantes para efeitos daquela norma.

            Efectivamente, o que a Requerente diz é que não consegue determinar um valor para o efeito. Ora, assim, sendo, como a Requerente confessadamente reconhece, gera-se uma situação senão de insuficiência de prova, pelo menos, de fundada dúvida, que tem de ser resolvida contra a parte onerada com o ónus da prova.

            Ou seja, e em suma: declarado, nos termos da lei, um valor pelo contribuinte, a liquidação far-se-á com base na declaração efectuada, como impõe o artigo 90.º/1/a) do CIRC, na redacção aplicável. Tal liquidação apenas poderá ser anulada, por erro de facto ou de direito, desde que a parte que pretende tal anulação, seja ela a AT ou o contribuinte, cumpra o ónus probatório que lhe assiste, demonstrando tal erro, o que, no caso, passa pela demonstração efectiva (para lá de qualquer dúvida razoável) do valor de imposto a liquidar, e não – como ocorre no caso com a Requerente – com a demonstração de uma dificuldade ou mesmo impossibilidade em indicar o valor correcto.

            Não relevará, assim, qual a motivação subjectiva para a indicação de um valor declarado ou qual o método de cálculo utilizado para lá chegar. Em ordem a obter a anulação de um valor declarado, em termos que impliquem a sua substituição por outro, ainda que seja zero, torna-se necessário demonstrar que o novo valor a considerar é o correcto.

            Ora, no caso, a Requerente não o faz; não demonstra, nem sequer alega, que o novo valor a considerar para efeitos da liquidação de imposto (zero), na matéria que nos autos releva (encargos relevantes para a segunda parte do artigo 32.º/2 do EBF), que justificaria a anulação parcial da sua autoliquidação, é o correcto.

            Aliás, a Requerente denota ter consciência do quanto se vem de expor, na medida em que no último artigo do seu Requerimento inicial, conclui que “nenhum ajustamento era devido ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF”. Isto era, de facto, aquilo que lhe competia demonstrar, em ordem a obter a peticionada anulação parcial da sua autoliquidação. Todavia, como se referiu, tal demonstração não foi feita, uma vez que, por tudo quanto se disse, não se pode fazer equivaler a demonstração de que não é possível à Requerente determinar um valor concreto para os efeitos referidos, à demonstração de que tal valor é, no caso, zero, ou, sequer, um valor inferior ao considerado na sua autoliquidação, corrigida pelo acto de decisão do pedido de revisão oficiosa.

            Assim, não se demonstrando nos autos, face à matéria dada como provada, que a Requerente não suportou encargos financeiros com as participações que detinha há mais de um ano, ou que os montantes efectivamente suportados foram inferiores ao valor cuja anulação é peticionada (€ 184.968,90), não poderá a sua autoliquidação ser anulada nos termos peticionados.

 

***

Peticiona, também, a Requerente a anulação da decisão do procedimento de Revisão Oficiosa n.º …/15, que teve como objecto a sua autoliquidação de IRC, para o ano de 2010, cuja legalidade se vem de apreciar.

            Relativamente a esta parte do petitório, cumpre notar, antes de mais, com Carla Castelo Trindade[5], “que os actos de segundo ou terceiro graus poderão sempre ser arbitráveis, na medida em que comportem, e só nessa medida, eles próprios, a (i)legalidade dos actos de liquidação em causa.”.

            Prosseguindo com a mesma Autora[6], “não são arbitráveis os vícios próprios dos actos de indeferimento (...) de pedidos de revisão do acto tributário porque escapam ao âmbito material da arbitragem tributária”.

Com efeito, o artigo 2.º do RJAT, toma como referente da competência dos tribunais arbitrais, os actos primários (“actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”), sendo os actos secundários unicamente relevantes como referentes da tempestividade da pretensão impugnatória, como resulta do artigo 10.º/1/a) daquele Regime, onde se impõe que os pedidos de constituição de tribunal arbitral sejam apresentados no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.º 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

            Daí que, em primeira linha e como se viu já, se esteja no presente processo a sindicar a legalidade do acto de autoliquidação de IRC da Requerente (objecto directo da competência dos tribunais arbitrais), sendo a legalidade do acto secundário de decisão do pedido de revisão oficiosa – cuja função processual principal é garantir a tempestividade da Requerente para a impugnação arbitral do acto primário – meramente reflexa ou derivada da legalidade daquele.

            Na sequência de quanto se vem de ver, não se apurou qualquer ilegalidade do acto de autoliquidação que constitui o objecto quer da presente acção arbitral e quer do pedido de revisão oficiosa cuja decisão a Requerente contesta.

            Deste modo, não existindo qualquer vício do acto de primeiro grau (autoliquidação) que se reflicta no acto de segundo grau (decisão do pedido de revisão oficiosa), deverá este ser mantido.

De resto, neste contexto, a eventual anulação do acto de decisão do pedido de revisão oficiosa quando – como é o caso – se conclui pela não verificação das ilegalidades arguidas ao acto primário, sempre redundaria num acto inútil, e como tal proibido, já que, vinculada pelo caso julgado, a Autoridade Tributária não mais faria no novo acto que, obrigatoriamente, confirmar o decidido em sede arbitral.

            Daí que deva também ser mantido o acto de decisão do procedimento de Revisão Oficiosa n.º …/15, que teve como objecto a autoliquidação de IRC da Requerente, para o ano de 2010.

 

***

Pede, por fim, a Requerente, a anulação do acto de liquidação de IRC n.º 2016/...

Relativamente a este acto, a própria Requerente reconhece que “o ato de liquidação n.º 2016…, apenas traduz a redução do acréscimo que a REQUERENTE efetuou (no valor inicial de € 324.211,68) para € 184.968,90, permanecendo este último valor como acréscimo para efeitos de apuramento do lucro tributável do exercício de 2010”.

Ou seja, tal acto, é apenas uma reprodução do acto de autoliquidação de IRC constante da Declaração Modelo 22 de IRC identificada com o código …-…, referente ao exercício de 2010, da Requerente, na parte em que não foi procedente o pedido de revisão do acto tributário interposto pela Requerente, relativo àquela autoliquidação.

Ora, mantendo-se na ordem jurídica aqueles dois actos de que o acto de liquidação em causa é consequente, necessariamente que se há-de este manter.

De resto, e em todo o caso, o referido acto, no quadro que se apura, está em conformidade com o disposto no artigo 90.º/1/a) do CIRC, segundo o qual:

“1 — A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:

a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria colectável que delas conste.”.

            Efectivamente, na parte em que não traduz a procedência parcial do pedido de revisão oficiosa oportunamente interposto pela Requerente, a liquidação em causa reflecte a declaração fiscal da requerente, tendo por base a matéria colectável que dela consta, conforme lhe é legalmente imposto.

            Deste modo, deve também ser mantido na ordem jurídica o acto de liquidação de IRC n.º 2016… .

 

*

 

C. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)      Manter na ordem jurídica os actos tributários objecto da presente acção arbitral tributária;

b)      Condenar a Requerente nas custas do processo, abaixo fixadas, tendo-se em conta o já pago.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 184.968,90, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

9 de Dezembro de 2016

 

O Árbitro Presidente

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

O Árbitro Vogal

 

(Rui Ferreira Rodrigues)

 

O Árbitro Vogal

 

(Luísa Anacoreta)

 



[1] Cfr., neste sentido, Carla Castelo Trindade, “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - Anotado”, Almeida, 2016, pp. 96 e ss.

[2]Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - Anotado”, Almeida, 2016, pp. 69.

[3] E, nesse caso, sujeitando-se a uma possível anulação judicial, como tem ocorrido em vária jurisprudência arbitral, subscrita, inclusive, pelos signatários da presente decisão, e dos Tribunais Tributários (cfr. Ac. do TCA-Norte, de 15-01-2015, proferido no processo 00946/09.0BEPRT, disponível em www.dgsi.pt).

[4] Disponível em www.dgsi.pt.

[5]Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - Anotado”, Almeida, 2016, pp. 69.

[6] Idem, p. 70.