Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 75/2016-T
Data da decisão: 2016-12-07  IRC  
Valor do pedido: € 110.234,74
Tema: IRC - Transferências transfronteiriças. Preços de transferência
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Requerente: A…, Lda.

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

Acórdão Arbitral

 

I – Relatório

 

1.      A contribuinte sociedade "A…, Lda.", com o NIPC … (doravante "Requerente"), apresentou, no dia 9 de Fevereiro de 2016, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante "RJAT"), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante "AT" ou "Requerida").

2.      A Requerente vem pedir a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do acto de liquidação adicional do IRC nº 2015…, e o correspondente acto de liquidação de juros compensatórios nº 2015…, praticados pela Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira e referentes ao exercício de 2012, no montante total a pagar de €110.234,74. Arrola duas testemunhas.

3.      O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 26 de Fevereiro de 2016.

4.      Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 13 de Abril de 2016.

5.      O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 29 de Abril de 2016; foi-o regularmente e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), 5º, 6º, n.º 1, e 11º, n.º 1, do RJAT (com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro).

6.      Nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 17º do RJAT, foi a AT notificada, em 29 de Abril de 2016, para apresentar resposta.

7.      Por Despacho do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD de 27 de Maio de 2016 procedeu-se à substituição do Árbitro Presidente, por escusa do Árbitro Presidente inicialmente designado.

8.      A AT apresentou a sua Resposta em 30 de Maio de 2016, acompanhada de cópia do Processo Administrativo.

9.      Nessa resposta a AT alega, em síntese, a total improcedência do pedido da Requerente, invocando uma excepção de intempestividade e de caducidade do direito de acção, e opondo-se à produção de prova testemunhal (também arrolando, contudo, à cautela, uma testemunha).

10.  Em Requerimento de 9 de Junho de 2016 a Requerente veio pronunciar-se sobre a excepção invocada pela AT na sua Resposta, sustentando a respectiva improcedência.

11.  O Despacho Arbitral de 15 de Junho de 2016 veio solicitar das partes a indicação da matéria de facto sobre a qual pretenderiam ouvir as testemunhas.

12.  Em Requerimento de 30 de Junho de 2016 a Requerente veio indicar que pretendia inquirir a testemunha arrolada sobre os factos constantes dos arts. 50º a 60º, 62º a 69º, 89º a 93º, 101º, 116º, 117º, 120º a 133º, 137º e 139º a 142º do Requerimento Inicial.

13.  O Despacho Arbitral de 19 de Julho de 2016 designou, nos termos do artigo 18º do RJAT, o dia 16 de Setembro de 2016 para realização da reunião de inquirição de testemunhas, solicitando ainda da Requerente cópia do contrato ao abrigo do qual a B… paga uma licença à C… .

14.  Em Requerimento de 28 de Julho de 2016 a Requerente veio, por um lado, solicitar uma nova hora de início para a reunião de inquirição de testemunhas; por outro lado, veio indicar a sua preferência por alegações escritas; e por fim declarou não ter em sua posse o contrato referido no Despacho Arbitral de 19 de Julho de 2016, não obstante ir procurar obtê-lo.

15.  O Despacho Arbitral de 29 de Julho de 2016 fixou nova hora de início para a reunião de inquirição de testemunhas, ao mesmo tempo que estabeleceu que as alegações se fariam por escrito.

16.  Em Requerimento de 1 de Setembro de 2016 a Requerente veio solicitar a alteração do rol de testemunhas anteriormente apresentado por ela.

17.  O Despacho Arbitral de 1 de Setembro de 2016 admitiu essa alteração do rol de testemunhas, advertindo para a necessidade de se acautelar problemas de fluência em português advindos do facto de a nova testemunha ser de nacionalidade estrangeira.

18.  O Despacho Arbitral de 14 de Setembro de 2016 determinou o adiamento da reunião de inquirição de testemunhas, por súbito impedimento de um dos árbitros.

19.  O Despacho Arbitral de 22 de Setembro de 2016 fixou para 20 de Outubro de 2016 a nova data da referida reunião.

20.  Todavia, por Requerimento de 29 de Setembro de 2016 a Requerente veio solicitar a marcação de nova data, o que foi deferido por Despacho Arbitral de 30 de Setembro.

21.  No dia 15 de Novembro de 2016 teve lugar a reunião de inquirição de testemunhas.

22.  Procedeu-se à inquirição da testemunha arrolada pela Requerente, D… . Do Senhor E… obteve-se somente uma declaração de parte (por recurso a tradução e retroversão simultâneas), visto que, na sua qualidade de Gerente da Requerente, não poderia ser ouvido como testemunha. A Requerida prescindiu do depoimento da testemunha por si arrolada.

23.  No final da audiência a Requerente e a Requerida foram notificadas para apresentarem alegações escritas em prazos sucessivos de 10 dias.

24.  O Tribunal fixou a data de 29 de Dezembro de 2016 como limite para a prolação da Decisão Arbitral.

25.  A Requerente apresentou em 25 de Novembro de 2016 as suas alegações escritas.

26.  A Requerida apresentou as suas alegações escritas em 5 de Dezembro de 2016.

27.  O processo não enferma de nulidades e, resolvidas que sejam as questões de excepção suscitadas, não subsistem mais questões, prévias ou subsequentes, prejudiciais ou de excepção, que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final.

28.  A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

29.  As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade, nos termos dos arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

II – Fundamentação: a matéria de facto

 

II.A. Factos que se consideram provados e com relevância para a decisão

 

1)      A sociedade "A…, Lda." foi constituída em 15 de Novembro de 1993, tendo recebido a actual designação por alteração do contrato de sociedade em 2011.

2)      A sociedade exerce a actividade de importação, exportação e comercialização de produtos gráficos concebidos e executados por artistas deficientes manuais, e encontra-se registada por "Actividades de Preparação da Impressão e de Produtos" com o CAE…, enquadrada em IRC no regime geral de tributação.

3)      A actividade da Requerente consiste no envio, a um conjunto de entidades, potenciais clientes, particulares ou pessoas colectivas, de uma gama de artigos acompanhados de um folheto explicativo, em que é apresentado o objectivo da sociedade, que é o de promover a venda de artigos onde estão reproduzidos quadros originais pintados por artistas, com a boca ou com os pés. Entre os artigos enviados pela Requerente aos potenciais clientes incluem-se calendários, postais de Natal, cartões de prendas, cartões de condolências, bloco-notas, agendas, papel de embrulho, entre outros. É também enviado aos potenciais clientes um folheto onde, para além do preço dos artigos enviados, se apresentam as formas de pagamento possíveis.

4)      As pessoas ou entidades que recebem as colecções de artigos podem optar por adquiri-los, ou não, e podem ainda encomendar outros artigos. As colecções de artigos são enviadas para todos os que constem da base de dados que a sociedade adquire para o efeito.

5)      Os sócios da Requerente eram inicialmente a "C…" (maioritária, 99% – doravante designada apenas como "C…", ou como "Casa-Mãe") e E… (minoritário, 1%, e gerente), tendo em 19 de Fevereiro de 2013 a "C…" cedido a sua quota à B…, com sede na Irlanda.

6)      Nos exercícios de 2011 e 2012 foram realizados, pela Requerente, pagamentos e transferências transfronteiriços destinados a entidades fornecedoras sediadas em regiões com regime tributário privilegiado, comunicados à AT através de declaração modelo 38 – Declaração de Transferências Transfronteiriças.

7)      Foram feitos pagamentos ao fornecedor B…, na Irlanda, apurando-se que a facturação não acompanhou o circuito físico das mercadorias, que provinham da Alemanha, da França e da Bélgica directamente para a Requerente.

8)      A B… é uma filial da "C…" com sede no Liechtenstein (detida a 99,99% do Capital Social).

9)      A Requerente faz encomendas à B…, e esta adquire-as aos fornecedores alemães, franceses e belgas, que as expedem directamente à Requerente.

10)  Em 2011 e 2012 a facturação da B… à Requerente representou, aproximadamente, 60% e 67,5% do valor global do custo das mercadorias vendidas e matérias consumidas apurado pela Requerente.

11)  Em 16 de Outubro de 2014 foi iniciada uma acção de inspecção, sob a ordem de serviço nº OI2014…, pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Serviços de…, centrando-se em "Acções controlo às transferências transfronteiriças", visando verificar a justificação das operações subjacentes às referidas transferências transfronteiriças ordenadas a instituições financeiras e tendo por destinatários entidades localizadas em países, territórios ou regiões com regimes de tributação privilegiada.

12)  No âmbito dessa acção de inspecção, a Requerente foi notificada, por ofício nº…, de 25 de Março de 2015, para fazer prova do preço pago ao fornecedor B… pela mercadoria correspondente às facturas n.os … a …, emitidas em 2011 e 2012, mormente para efeitos de enquadramento no regime do artigo 63º do CIRC e da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.

13)  A Requerente respondeu a essa solicitação em 24 de Abril de 2015.

14)  Em 11 de Junho de 2015 a Requerente foi notificada de um projecto de Relatório de Inspecção (nos termos que constam do Processo Administrativo cujo teor se dá como reproduzido) e do seu direito de audição, que não exerceu.

15)  A acção de inspecção concluiu-se em 2 de Julho de 2015.

16)  Em 7 de Julho de 2015, por ofício nº…, foi a Requerente notificada do Relatório de Inspecção, e do Despacho que o mesmo mereceu.

17)  Do Relatório de Inspecção consta a conclusão de algumas das correcções à determinação da matéria colectável se devem ao incumprimento do disposto no artigo 63º do CIRC (e Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro) e do Princípio de Plena Concorrência, dada a alegada existência de relações especiais e a prática de preços de transferência, o que conduziria à desconsideração parcial como custo fiscal do valor pago à B… (um alegado empolamento de custos que redundou em "economia" de imposto, na medida em que as mercadorias poderiam ter sido pagas directamente aos seus fornecedores por preços inferiores).

18)  O acto de liquidação adicional do IRC nº 2015…, e o correspondente acto de liquidação de juros compensatórios nº 2015…, praticados pela Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira e referentes ao exercício de 2012, foram notificados à Requerente no dia 28 de Setembro de 2015, sendo o dia 19 de Novembro de 2015 a data limite fixada para o pagamento do montante resultante daqueles.

19)  Os exercícios da Requerente de 2008, 2009 e 2010 já tinham sido objecto de acções inspectivas, em resultado das quais tinham sido desconsiderados custos ao abrigo do artigo 65º do CIRC, e aplicado o regime de tributação autónoma previsto no artigo 88º, 8 do CIRC.

20)  Em 18 de Novembro de 2015 a Requerente pagou os € 110.234,74 liquidados.

 

II.B. Factos que se consideram não provados

 

Com base nos elementos documentais disponibilizados nos autos e consensualmente aceites pelas partes, e com base na prova testemunhal apresentada na audiência de julgamento, verifica-se que, com interesse para a decisão da causa, ficou por provar:

1.      Que as quantias pagas pela Requerente à B… correspondem efectivamente ao valor dos direitos de utilização das imagens e outros materiais provenientes da Casa-Mãe.

2.      Que existe um acordo de partilha de custos entre a Requerente, a B… e a Casa-Mãe, a "C…", e qual o seu teor. Efectivamente, na audiência de 15 de Novembro de 2016 a Testemunha arrolada pela Requerente conformou que, não obstante ser directora da A…, não tem acesso ao contrato de licença firmado entre a Requerente e a B…, não lhe competindo, por isso, verificar se o custo unitário das colecções encomendadas pela Requerente à B… corresponde, ou não, a uma aferição objectiva do valor das obras que compõem as colecções.

 

III – Fundamentação: a matéria de Direito

 

III.A. Posição da Requerente

 

a)      A Requerente começa por alegar que a apresentação do pedido de pronúncia arbitral é tempestiva, dado ter sido apresentada antes de 17 de Fevereiro de 2016, altura em que se esgotaria o prazo de 90 dias estabelecido no artigo 10º, 1, a) do RJAT (contado a partir de 19 de Novembro de 2015, data-limite para o pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte).

b)      A Requerente invoca ainda a falta de fundamentação, de facto e de direito, directa ou por remissão, dos actos de liquidação que lhe foram notificados, em violação do disposto no artigo 77º, 2 da LGT, e mesmo do regime do artigo 63º do Regulamento Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, ou do artigo 153º, 1 do Código do Procedimento Administrativo, ou até dos arts. 103º, 2 e 268º, 3 da Constituição.

c)      Daí retira a Requerente o argumento de que ocorreu preterição de formalidade legal essencial, agravada por falta de notificação da Requerente para exercício do seu direito de audição prévia, nos termos do artigo 60º, 1, a) da LGT.

d)     Quanto à interpretação subscrita pela AT relativamente aos factos apurados no Relatório de Inspecção, a Requerente, sem contestar os factos, contesta aquela por não levar em conta o impacto da especificidade da actividade desenvolvida pela Requerente nas suas relações com a B…– tornando ilegítimas comparações directas com preços praticados em relações com entidades terceiras independentes.

e)      A Requerente sublinha que é a B… que disponibiliza a outras empresas, como a Requerente, material que é fornecido àquela pela Casa-Mãe, a "C…" com sede no Liechtenstein.

f)       Sendo assim, o valor pago à B… seria o correspondente à aquisição dos produtos comercializados comercializados pela Requerente, e não corresponde, nem podia corresponder, ao valor da matéria-prima adquirida pela B… aos fornecedores alemães, franceses ou belgas, já que estes apenas se encarregam do trabalho gráfico e da produção de suportes para as criações da própria B… (como filial da "C…"), sendo estas as obras produzidas pelos artistas que ela representa.

g)      O que foi pago à B…, e através dela à Casa-Mãe, são encargos como os suportados em função de:

-          Honorários, bolsas e subsídios atribuídos aos criadores das obras;

-          Encontros, eventos e exposições das obras originais;

-          Despesas de transporte dessas obras;

-          Seguros de transporte e armazenamento das obras;

-          Constituição de bases de dados;

-          Reprodução das obras;

-          Serviços administrativos.

h)      Os montantes que correspondem à facturação dos fornecedores alemães, franceses e outros não abrangem, pois, a necessária remuneração devida à B… pela utilização das imagens cuja reprodução é objecto da actividade daqueles fornecedores, e que a Requerente comercializa.

i)        Trata-se, sustenta a Requerente, de um valor necessariamente subjectivo, mas centrado na remuneração dos criadores das obras de arte de cuja reprodução se trata – pelo que as operações com a B… não revestem qualquer carácter anormal.

j)        Por outro lado, a Requerente assinala o facto de o índice CMVMC (Custo das Mercadorias Vendidas e Matérias Consumidas) ter diminuído nos anos de 2011 e 2012 por comparação com o exercício de 2010, o que no seu entender desmentiria a tese, expendida no Relatório de Inspecção, de que se trataria de um empolamento de custos visando obter "economias" de imposto.

k)      Alega a Requerente que não tem cabimento a aplicação, ao caso, do regime dos Preços de Transferência, seja porque não há relações directas com qualquer entidade sediada em regiões com regime tributário privilegiado (visto que as relações são estabelecidas com a B… e não com a Casa-Mãe, "C…", essa sim estabelecida no Liechtenstein), seja porque as operações com a B… não apresentam qualquer característica de anormalidade, seja ainda porque não existem operações susceptíveis de serem comparadas com aquelas levadas a cabo pela Requerente para se poder determinar, para efeitos do artigo 63º do CIRC, se foram, ou não, estabelecidas condições diferentes daquelas que vigorariam entre entidades independentes.

l)        Em suma, a Requerente, não desmentindo que existem relações especiais entre ela e a B…, sustenta em contrapartida que não existiram condições anormais nas operações em apreço, condições diversas daquelas que se estabeleceriam entre entidades independentes, e que a diferença de preços praticados pela B… e pelos fornecedores da B… mais não faz do que reflectir o valor acrescentado por esta, e que no essencial é o valor das obras dos artistas.

m)    Contra aquilo que se alega no Relatório de Inspecção, a Requerente afasta a ideia de que tenha havido ajuste de preços com o objectivo evasivo de redução ou eliminação da carga fiscal, ocultando uma transferência de lucros entre entidades em situação de relações especiais de forma a colocar a riqueza sob a alçada de regimes que desoneram, parcial ou totalmente, a tributação de tais proventos.

n)      No seu entender, o que ocorreu foi o resultado de mera autonomia contratual, com preços ditados por considerações de natureza económica sem escopo elisivo ou evasivo, pelo que não poderia entender-se estar aqui em crise o "standard" de Plena Concorrência – mesmo que estivessem preenchidos os demais pressupostos da figura dos Preços de Transferência.

o)      Além disso, a Requerente sublinha que era à AT que competiria produzir prova da existência dessas condições anormais que, a verificarem-se, poderiam integrar a prática de Preços de Transferência – mas que essa prova, imposta pelo artigo 63º do CIRC, não foi produzida no seio da acção de inspecção, ou no seu final.

p)      Acresce que, não existindo operações susceptíveis de serem comparadas com aquelas levadas a cabo pela Requerente, fica comprometida a escolha de métodos de determinação do preço praticado no mercado de livre concorrência, falhando o requisito de comparabilidade de que depende a aplicação da metodologia estabelecida no artigo 4º, 2 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro e o estabelecimento do "valor justo de mercado", coincida este, ou não, com o "preço de plena concorrência".

q)      Pior, alega a Requerente, é que, em resultado da acção inspectiva, e em consequência do seu entendimento de que se aplica o artigo 63º do CIRC, a AT terá recorrido a um método diverso dos previstos na Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, entendendo que o Princípio da Plena Concorrência impunha a consideração exclusiva, como custo atendível, do valor facturado pelos fornecedores à B…– o que a Requerente entende implicar a total desconsideração do contexto comercial particular em que as operações em apreço se desenvolvem, um contexto em que a B… acrescenta valor às mercadorias comercializadas pela Requerente.

r)       Esse acrescento de valor, alega a Requerente, não é de modo algum reconduzível ao papel desempenhado pelos fornecedores independentes, que são meros executantes de tarefas gráficas e comerciais, não lhes cabendo a coordenação da actividade dos criadores das obras nem a assunção das responsabilidades relativas ao controle de qualidade ou às condições de comercialização do produto final.

s)       O que, no entender da Requerente, equivale a dizer que a B… adquire matéria-prima a esses fornecedores e os transforma em produto semi-acabado ou acabado, incorporando o trabalho dos artistas, os custos de transporte e de distribuição, e outros. Esse acrescento de valor é, conclui, incomparável ao que corresponde à intervenção dos fornecedores independentes.

t)       Sendo assim, o método de comparação utilizado pela AT não permitiria justificar os ajustamentos previstos no artigo 63º do CIRC.

u)      A resultante liquidação deveria, pois, ser anulada por violação de normas e princípios aplicáveis, nos termos gerais do artigo 163º do Código de Procedimento Administrativo.

v)      A Requerente pede ainda a anulação da liquidação de juros compensatórios, alegando não ter ocorrido sequer um retardamento de liquidação de imposto devido, e ainda menos um retardamento que fosse imputável à culpa do contribuinte (nos termos do artigo 35º, 1 da LGT).

w)    A Requerente faz notar não apenas que é entendimento pacífico que a simples divergência (não-culposa) de critérios entre contribuinte e administração tributária não constitui retardamento de liquidação que gere o direito aos juros compensatórios; mas também que, ipso facto, a liquidação de juros compensatórios não tornar-se uma consequência automática de toda e qualquer liquidação adicional de imposto.

x)      Observa a Requerente que ficou por fazer a prova dos pressupostos de liquidação de juros compensatórios, mormente quanto aos factos e quanto à culpa – nos termos gerais do artigo 74º, 1 da LGT e do artigo 342º, 1 do Código Civil.

y)      Alega ainda falta de fundamentação do acto de liquidação dos juros compensatórios, em violação do artigo 77º da LGT e do artigo 268º, 3 da Constituição.

z)      Em contrapartida, a Requerente reclama, nos termos do artigo 43º da LGT, juros indemnizatórios, na medida em que pagou já a totalidade do montante liquidado, e na eventualidade de ser julgado procedente o pedido de pronúncia arbitral por ela apresentado.

aa)   No seu Requerimento de 9 de Junho de 2016, a Requerente veio pronunciar-se sobre a excepção invocada pela AT na sua resposta, sustentando que a invocação da excepção assenta num manifesto erro sobre os pressupostos de direito, porque desconsidera aparentemente a conjugação do artigo 10º do RJAT com o artigo 102º do CPPT para o qual aquele expressamente remete, para efeitos de determinação do momento inicial da contagem do prazo para o exercício do direito de acção.

bb)  Ocorreria, assim, uma confusão entre contagem de prazos e estabelecimento de condições de perfeição da notificação (artigo 39º do CPPT), contradizendo o próprio documento através do qual a liquidação foi notificada à Requerente, e que também ele indica expressamente o regime do artigo 102º do CPPT.

cc)   No entender da Requerente, nada disso se altera com a sua adesão voluntária ao sistema electrónico de notificações, já que o artigo 39º, 9 e 10 do CPPT se reporta somente à notificação e não interfere com o regime do artigo 102º do CPPT, a única norma que determina os factos a partir dos quais se inicia a contagem do prazo para o exercício do direito de acção – e a única para que remete o artigo 10º do RJAT. Ainda poderia surgir alguma dúvida se o prazo devesse ser contado a partir do momento da notificação – mas, sublinha a Requerente, a norma faz o prazo de exercício do direito de acção iniciar-se, não do momento da notificação, mas do momento final do prazo para pagamento voluntário, tal como ele é determinado na notificação da liquidação.

dd) Nas suas Alegações, a Requerente, para além de defender a improcedência da excepção deduzida pela Requerida, reeditou, no essencial, a argumentação já antes expendida.

 

III.B. Posição da Requerida

 

a)      Na sua Resposta, a Requerida mantém o entendimento de que a liquidação controvertida consubstancia uma correcta aplicação do Direito, não enfermando de qualquer vício de forma, ou qualquer vício de violação de lei por erro quanto aos factos ou quanto ao direito.

b)      A Requerida começa por invocar uma excepção de intempestividade do pedido e consequente caducidade do direito de acção.

c)      A Requerida entende que, pelo facto de a Requerente ter aderido voluntariamente ao sistema electrónico de notificações (caixa postal electrónica do ViaCTT), se lhe aplica o regime previsto no artigo 39º, 9 e 10, do CPPT – não se lhe aplicando, por força do artigo 102º, 4, do CPPT, o regime geral das notificações.

d)     Assim, tendo a Requerente acedido à sua caixa postal electrónica em 24 de Setembro de 2015, estava esgotado o prazo de 3 meses quando, em 9 de Fevereiro de 2016, apresentou o pedido de constituição do presente Tribunal Arbitral.

e)      A Requerida sustenta, pois, que se verifica a caducidade do direito de acção, uma excepção dilatória que acarreta a absolvição da instância, nos termos do artigo 89º do CPTA e do artigo 278º do CPC, aplicável por força do artigo 2º do RJAT.

f)       Para lá da excepção apresentada, a Requerida defende-se também por impugnação.

g)      Começa por afastar a alegação de vício de falta de fundamentação, assinalando que toda a fundamentação se encontra no Relatório da Inspecção Tributária, sendo, portanto, contemporânea da liquidação – evidenciando, portanto, conformidade com o artigo 77º da LGT (além dos arts. 103º, 2 e 268º, 3 da Constituição).

h)      Para além disso, trata-se da correcção da autoliquidação apresentada pela Requerente, não podendo por isso ser desconhecida da Requerente ou incompreensível para ela. Mais, o próprio mecanismo previsto no artigo 60º, 3 da LGT indicaria, no entender da Requerida, a plena possibilidade de fundamentação com base nas conclusões de um Relatório de Inspecção.

i)        A Requerida afasta igualmente a alegação de vício de preterição do direito de audição prévia, lembrando que foi a própria Requerente que prescindiu desse direito quando solicitada, face ao projecto de Relatório Final da Inspecção.

j)        Quanto à alegada violação de lei por erro quanto aos factos e ao direito, a Requerida mantém que se aplica o regime dos Preços de Transferência, e começa por lembrar que, em 2012, a Requerente era detida a 99%, e a B… era detida a 99,9%, pela Casa-Mãe, a "C…" com sede no Liechtenstein, e que a facturação da B… à Requerida representou cerca de 67,5% do valor global do CMVMC (custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas).

k)      Sendo a Requerente e a B… detidas pelo mesmo sócio, integrando-se num mesmo grupo internacional, existiam entre ambas relações especiais – o que por si mesmo justificava uma análise das operações à luz do artigo 63º do CIRC, da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, e até do artigo 9º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e a Irlanda, como modo de se apurar a existência, ou inexistência, de respeito ao Princípio da Plena Concorrência.

l)        Essa análise justificava-se, sublinha a Requerida, independentemente de qualquer suspeita ou verificação de intuitos fraudulentos do sujeito passivo, e continuaria a justificar-se mesmo que o Liechtenstein não constasse da lista da Portaria nº 150/2004, de 13 de Fevereiro.

m)    A AT contesta que haja justificação para a Requerente ter omitido a declaração prevista no artigo 63º, 7 do CIRC, não aceitando a aplicação, no caso, da dispensa prevista no artigo 13º, 3 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.

n)      E não aceita o argumento da alegada "não-comparabilidade", pois ela destruiria o Princípio da Plena Concorrência, impedindo qualquer averiguação quanto à existência de Preços de Transferência.

o)      Na prática, a AT sustenta que nada há de singular na situação: a B… pretende somente repercutir nos seus preços os encargos gerais da Casa-Mãe, a "C…" – o que seria aceitável se se fizesse prova da metodologia utilizada para imputação desses encargos da Casa-Mãe à B… e, através desta, à Requerente.

p)      Na falta dessa prova, fica sem se saber, com um mínimo de certeza, qual a parte do preço é respeitante à repercussão dos gastos da Casa-Mãe, e desse modo não pode averiguar-se a conformidade com o Princípio da Plena Concorrência por qualquer dos métodos indicados no artigo 63º, 3 do CIRC e no artigo 4º, 1 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.

q)      Para a Requerida, o que resulta da inspecção é que existiam, entre as partes envolvidas nas transacções, acordos de partilha de custos, como aqueles que são caracterizados no artigo 11º, 1 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.

r)       Mas, enfatiza a AT, a Requerente mostrou-se resistente a comprovar minimamente em que termos se apuram os custos da Casa-Mãe e em que termos esses custos são repartidos e imputados às sociedades participadas, ou que margem de lucro subsiste para cada uma das envolvidas, para que precisamente se possa apurar se o equilíbrio alcançado é equivalente àquele que se encontraria entre entidades independentes.

s)       Na falta de colaboração da Requerente na prestação de informações quando ao modo de repartição de custos, e, portanto, na falta de justificação relativa à aplicação do Princípio da Plena Concorrência, não restou à AT senão desconsiderar esses montantes – a única forma de assegurar que nenhuma vantagem fiscal resultaria dessas operações entre entidades relacionadas.

t)       As regras de ónus da prova impunham que a Requerente comprovasse a forma de cálculo do "valor acrescentado" que, atribuído à B…, ou, através dela, à Casa-Mãe, distanciava os valores facturados do único valor objectivamente comprovado, o da facturação dos fornecedores à própria B… .

u)      Quanto aos juros compensatórios, a Requerida sustenta que a simples falta de uma declaração relativa a um imposto em falta, como no seu entender é o caso nos presentes autos, não deixa de consubstanciar uma falta de diligência no cumprimento de obrigações fiscais, constituindo, pois, justificação bastante para o ressarcimento do Estado através da via dos juros compensatórios.

v)      A Requerida remata a sua Resposta pronunciando-se contra a necessidade de prova testemunhal, que ela vê como insusceptível de preencher as falhas da prova documental (embora, à cautela, arrole também uma testemunha).

w)    Nas suas alegações, a Requerida mantém e explicita os argumentos já aduzidos na sua Resposta, seja em sede de excepção, seja no que respeito ao mérito da causa.

 

III.C. Questões a decidir

 

III.C.1 – Das excepções

 

1.      Defendendo-se por excepção, a Requerida alega que é intempestivo o pedido de pronúncia arbitral, porquanto a Requerente acedeu à sua caixa postal electrónica, aonde se achava a nota de liquidação, em 24 de Setembro de 2015.

2.      Assim, sendo-lhe aplicável o regime especial (face ao geral, do artigo 102º, nº 1, alínea a) do CPPT), do artigo 39º nºs. 9 e 10 do mesmo diploma, quando, em 9 de Fevereiro de 2016, requereu a constituição do tribunal arbitral, estavam já decorridos mais do que os noventa dias de que dispunha para o efeito, conforme disposto no artigo 10º nº 1 alínea a) do Regulamento Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT).

3.      Estão certas as contas da Requerida, mas não é verdadeiro o pressuposto de que parte.

4.      É que, contra o que defende a Requerida, o dies a quo não é o dia 24 de Setembro de 2015.

5.      Na verdade, os números 9 e 10 do artigo 39º do CPPT não contêm uma norma que esteja em relação de especialidade com a alínea a) do nº 1 do artigo 102º do mesmo Código.

6.      Esta última norma dispõe sobre o prazo de impugnação, que fixa em três meses contados do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte, embora o nº 4 admita outros prazos especiais.

7.      Não está neste caso o artigo 39º do dito Código, que estabelece o regime da perfeição das notificações, dizendo-nos os seus números 9 e 10 quando se consideram feitas as efectuadas por transmissão electrónica.

8.      Deste modo, a Requerida tem razão quando aponta a data da notificação da nota de liquidação, mas já essa razão lhe falece quando situa nesse momento o dies a quo para a notificanda impugnar, pois este dia está fixado na alínea a) do º 1 do artigo 102º.

9.      Regra que, aliás, veio a ser reproduzida pelo posterior RJAT, de cujo artigo 10º nº 1 alínea a) consta a mesma disciplina.

10.  Improcede, pelo exposto, a excepção dilatória da caducidade do direito de acção  invocada pela Requerida.

 

III.C.2 – Do mérito da causa

 

a)      Cremos que a apreciação do mérito da causa deve resultar da consideração separada de dois momentos distintos: 1- aquele em se trata de apreciar a legitimidade da correcção proposta pela AT à declaração apresentada pelo contribuinte, mormente indagando se é imputável à Requerente a ausência de prova relativamente aos factos que considerámos não-provados; 2- aquele em que, verificada a violação de deveres declarativos na declaração apresentada pelo contribuinte, se trata de apreciar a adequação da correcção proposta pela AT a essa declaração.

b)      Bastará, para justificar esta apreciação separada, levar em conta a circunstância óbvia de que uma intervenção legítima não é ipso facto uma intervenção adequada. A oportunidade e licitude não bastam para assegurar a justiça dos resultados.

 

III.C.2.1. Da legitimidade da correção proposta pela AT

 

1-      A Requerente, no âmbito da inspecção, quando solicitada a que fizesse prova de «que o preço a pagar ao fornecedor B… IE…U nas facturas por este emitidas nos anos de 2011 e 2012, corresponde ao preço que seria aceite e praticado entre entidades independentes em operações idênticas», nos termos do artigo 63.º do Código do IRC e da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro (doravante, designada por Portaria), informou «considerar que cabe à Autoridade Tributária (AT) a prova da existência de relações especiais, bem como a de que as operações foram efectuadas em condições diferentes das que seriam acordadas entre entidades independentes».

2-      Parece ao Tribunal haver aqui uma confusão de conceitos por parte da Requerente, com impacto directo na forma como a inspecção se desenrolou subsequentemente, e nas consequentes conclusões da AT, motivo pelo qual importa clarificar dois quadros normativos:

  • O cumprimento do princípio de plena concorrência, a que alude o n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC, e que deve estar presente na fixação dos termos e condições das operações comerciais e financeiras levadas a cabo pelos sujeitos passivos de IRC com entidades consideradas relacionadas, atenta a definição do n.º 4 da referida norma; e 
  • A obrigação acessória de preparação de um processo de documentação fiscal em sede de Preços de Transferência.

3-      Quanto a este último ponto, determina o n.º 6 do artigo 63.º do Código do IRC que «o sujeito passivo deve manter organizada, nos termos estatuídos para o processo de documentação fiscal a que se refere o artigo 130.º, a documentação respeitante à política adoptada em matéria de preços de transferência, incluindo as directrizes ou instruções relativas à sua aplicação, os contratos e outros actos jurídicos celebrados com entidades que com ele estão em situação de relações especiais, com as modificações que ocorram e com informação sobre o respectivo cumprimento, a documentação e informação relativa àquelas entidades e bem assim às empresas e aos bens ou serviços usados como termo de comparação, as análises funcionais e financeiras e os dados sectoriais, e demais informação e elementos que tomou em consideração para a determinação dos termos e condições normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes e para a selecção do método ou métodos utilizados».

4-      Esta norma deve ser lida em conjugação com o n.º 13 do mesmo artigo, que dispõe que «a aplicação dos métodos de determinação dos preços de transferência, quer a operações individualizadas, quer a séries de operações, o tipo, a natureza e o conteúdo da documentação referida no n.º 6 e os procedimentos aplicáveis aos ajustamentos correlativos são regulamentados por portaria do Ministro das Finanças», que actualmente é a Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro (cujo teor se mantém sem alterações desde a sua entrada em vigor).

5-      A Portaria, na parte relativa ao processo de documentação fiscal de Preços de Transferência (artigo 14.º) detalha o conjunto de informação que deverá ser preparada pelos sujeitos passivos, devendo os mesmos descrever e documentar, designadamente:

  • A sua actividade e a actividade das partes relacionadas (com menção expressa do enquadramento da relação especial existente, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC) com as quais mantiveram operações vinculadas;
  • A identificação detalhada e quantificação das operações vinculadas (do próprio exercício e dos dois exercícios antecedentes);
  • A sua própria análise funcional, bem como das partes relacionadas com quem mantiveram operações vinculadas;
  • Indicação e justificação do(s) método(s) de Preços de Transferência utilizado(s) para a determinação do preço de plena concorrência;
  • Informação sobre os dados comparáveis utilizados, evidenciando, no caso de recurso a entidade externa expecializada em estudos de mercado, a justificação da selecção, nos casos em que se justifique, a ficha técnica dos estudos e, bem assim, uma análise de sensibilidade e segurança estatística ou, sendo interna a fonte dos dados, a respectiva ficha técnica;
  • Detalhes sobre as análises efectuadas para avaliar o grau de comparabilidade entre operações vinculadas e operações não vinculadas e entre as empresas nelas envolvidas, incluindo as análises funcionais e financeiras, e sobre os eventuais ajustamentos efectuados para eliminar as diferenças existentes.

6-      Face à extensão e detalhe da informação exigida pela Portaria, percebe-se que a Lei tenha estabelecido uma dispensa de um tal regime de documentação fiscal a favor de determinados sujeitos passivos, nomeadamente os de menor dimensão, para evitar custos desproporcionados face aos interesses gerais da tributação.

7-      Esta dispensa consta do n.º 3 do artigo 13.º da Portaria, que estabelece que «fica dispensado do cumprimento do disposto no n.º 1 o sujeito passivo que, no exercício anterior, tenha atingido um valor anual de vendas líquidas e outros proveitos inferior a € 3 000 000».

8-      Não é facto controvertido que no exercício de 2012 a Requerente não atingiu o limite mínimo de proveitos para a preparação de um processo de documentação fiscal de Preços de Transferência.

9-      Contudo, tal não dispensa a Requerente do cumprimento do princípio de plena concorrência nas operações que mantém com partes relacionadas, não sendo também facto controvertido que a B… é sua parte relacionada (concretamente, ao abrigo da alínea b) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC).  

10-  Neste contexto, e não obstante a já referida dispensa, seria de esperar que a Requerente tivesse, para além do cumprimento de obrigações acessórias em sede de Preços de Transferência, nomeadamente o preenchimento do Anexo H da Informação Empresarial Simplificada (IES) do exercício de 2012, demonstrado que cumpre com o princípio a que se refere o n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC.

11-  E não o fez, referindo que, para além de não lhe caber efectuar tal prova, essa prova seria impossível face à especificidade da actividade levada a cabo pela Requerente.

12-  É um argumento que o Tribunal tem dificuldade em compreender.

13-  Em primeiro lugar, porque a demonstração do cumprimento do princípio de plena concorrência é independente das obrigações documentais que impendem sobre os sujeitos passivos. Aliás, antes da revisão do Código do IRC pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, este Código, no seu artigo 57.º, já impunha sobre os sujeitos passivos de IRC o cumprimento do princípio de plena concorrência, e não foi com a revisão legislativa feita em 2001, com uma maior densificação da norma, e com a introdução da necessidade de se justificar técnica e documentalmente os termos e condições fixados nas operações com partes relacionadas, que esse princípio passou a vigorar.

14-  Além disso, considerando que uma análise de Preços de Transferência implica uma análise das entidades envolvidas nas operações vinculadas, torna-se necessário salvaguardar os designados “ajustamentos correlativos”, previstos não só nos números 11 e 12 do artigo 63.º do Código do IRC, como também nas diversas Convenções para Evitar a Dupla Tributação assinadas por Portugal. Estes “ajustamentos correlativos” terão maior impacto na receita do Estado português nos casos em que a contraparte da operação vinculada seja não-residente, na medida em que o ajustamento efectuado a um custo registado por um sujeito passivo de IRC não terá um efeito “nulo” (ou tendencialmente “nulo”) na receita tributária, resultante do ajustamento correspondente, a nível do proveito.

15-  Este maior impacto nas operações vinculadas mantidas com entidades não-residentes transparece no disposto no n.º 8 do artigo 63.º do Código do IRC, que estabelece que devem os sujeitos passivos efectuar os ajustamentos necessários ao seu lucro tributável em caso de inobservância do princípio de plena concorrência - dever este que é independente das suas eventuais obrigações documentais em sede de Preços de Transferência.

16-  Deste modo, não tendo a Requerente feito qualquer ajustamento ao seu lucro tributável do exercício de 2012 ao abrigo do n.º 8 do artigo 63.º do Código do IRC, e sendo indiscutível a existência (e a preponderância) de operações vinculadas com entidades não-residentes em território português, exige-se da Requerente o cumprimento rigoroso de tal princípio.

17-  Em segundo lugar, é irrelevante o argumento da especificidade da actividade da Requerente.

18-  Na verdade, não é a sua actividade em concreto, ou os termos por si fixados, que foram alvo de escrutínio por parte da AT, mas sim a actividade da B… e a política de preços definida por esta entidade nas operações activas que manteve com a Requerente.

19-  A actividade da B… não reveste qualquer peculiaridade que obste à sua consideração em sede de Preços de Transferência.

20-  Acresce a isto que a Requerente não efectuou as demonstrações necessárias à justificação do cumprimento do princípio de plena concorrência nas operações mantidas com a B…, o que tem impacto em matéria de ónus da prova.

21-  Nos termos do n.º 1 do artigo 75.º da Lei Geral Tributária (LGT), «presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos».

22-  Ora, ficou patente da inspecção realizada pela AT, não só a existência de omissões pela Requerente nas suas declarações fiscais, nomeadamente no Anexo H da IES, como também foi expressa a convicção da Requerente relativamente a não ter que prestar esclarecimentos quanto ao cumprimento do princípio de plena concorrência constante do n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC.

23-  Não ocorrendo no caso qualquer motivo de recusa legítima de prestação de informações, e ocorrendo pelo contrário omissões que impedem o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo, aplicam-se as alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 75.º da LGT, e a Requerente deixa de beneficiar da presunção de verdade declarativa que decorre do n.º 1 do artigo 75.º da LGT.

24-  Tal legitimou plenamente que a AT tenha efectuado correções ao lucro tributável da Requerente, na medida em que a ausência dos esclarecimentos que lhe foram solicitados, e que só a ela pode ser assacada, fez com que a AT não dispusesse de informação suficiente quanto ao cumprimento do princípio de plena concorrência.

 

III.C.2.2. Da adequação da correção proposta pela AT

 

1.      Tendo em conta os elementos probatórios, neles se incluindo os esclarecimentos prestados a este Tribunal pelas testemunhas arroladas pela Requerente, conclui-se que a B…, no exercício de 2012, funcionou como uma entidade agregadora dos fornecimentos necessários à produção dos bens que foram vendidos pelas diversas entidades pertencentes ao Grupo económico liderado pela referida Associação C…, podendo agregar-se os mesmos nas seguintes tipologias de inputs:

  • De natureza material, como sejam os suportes físicos em que tais bens são impressos ou acondicionados (exc. calendários, envelopes, postais, etc). Estes inputs são facturados à B… por fornecedores independentes;
  • De natureza incorpórea, fundamentalmente relacionados com os direitos de autor dos artistas cujas obras são reproduzidas e que são suportados pela Associação C…, sediada no Liechtenstein, a qual cobra uma licença à B… a troco dos direitos de reprodução das obras.

2.      Em função dos fornecimentos acima descritos, a B… factura as diversas entidades que, como a Requerente, vendem o produto final junto dos seus clientes.

3.      A AT não colocou em causa a necessidade de obtenção destas duas tipologias de inputs para que a Requerente disponha dos produtos que comercializa nas devidas condições.

4.      Adicionalmente, e não de somenos, há ainda que considerar a alteração, ocorrida em 2011, nas entidades que se relacionam com a Requerente no âmbito do fornecimento dos bens que esta comercializa. Efectivamente, foi a partir do exercício de 2011 que a Requerente passou a efectuar as suas aquisições junto da B…, sendo que até àquela data, tais aquisições eram feitas junto da Associação C… .

5.      Este dado parece-nos ser relevante, pois a análise da AT centrou-se no custo de aquisição dos bens vendidos pela Requerente, pelo que importará ter presente a evolução do Custo das Mercadorias Vendidas e das Matérias Consumidas (CMVMC) e a sua contribuição no total das vendas registadas pela Requerente durante os exercícios em que ela apenas se relacionou com a referida Associação, bem como nos exercícios em que passou a relacionar-se com a B... . Tal relação consta do quadro seguinte:

 

 

Associação C…

B…

 

2008

2009

2010

2011

2012

Vendas

1.884.819,10

1.950.524,18

1.867.839,00

1.464.514,00

1.438.159,30

CMVMC

1.277.438,78

1.430.632,50

1.518.751,00

1.153.138,00

1.199.352,52

%

67,78%

73,35%

81,31%

78,74%

83,39%

 

 

6.      Sendo certo que o CMVMC da Requerente não é constituído apenas por facturas de cada uma destas entidades, é um facto que este indicador, relativamente às vendas da Requerente, registou, em termos médios, um aumento a partir do momento em que esta se passou a relacionar com a B… .

7.      Numa tentativa de melhor perceber a contribuição de cada uma daquelas entidades para o CMVMC da Requerente em cada um daqueles anos, preparou-se o quadro seguinte, com base na informação constante do Relatório da Inspecção Tributária:

 

 

Associação C…

B…

 

2008

2009

2010

2011

2012

CMVMC

1.277.438,78

1.430.632,50

1.518.751,00

1.153.138,00

1.199.352,52

Facturas

361.268,57

425.569,05

618.951,76

689.984,76

809.572,47

%

28,28%

29,75%

40,75%

59,84%

67,50%

 

 

8.      Ou seja, resulta claro que a remuneração da B… é superior à remuneração da Associação C… . Coloca-se, assim, a questão de saber se tal se justifica economicamente, o que deverá ser suportado através de uma análise funcional da B… e da Associação C… em relação à Requerente.

9.      Do que foi possível conhecer por este Tribunal, não resulta de forma clara uma diferenciação que justifique uma remuneração superior. Não se vislumbra em que medida a B…, do ponto de vista económico, justifica auferir uma remuneração superior à da Associação C…, quando os inputs que ambas prestam à Requerente, nos exercícios em que cada uma delas se relaciona com esta última, são substancialmente idênticos.

10.  Contudo, a correcção operada pela AT não seguiu esta metodologia, antes se focou na comparação entre:

  • O custo em que a Requerente incorreria com a aquisição, junto de fornecedores independentes, dos inputs de natureza material necessários para a produção dos bens que comercializa, como sejam os cartões, postais, envelopes de janela timbrados, etc; com
  • O custo em que a Requerente incorreu com a B… .

11.  Ora, esta comparação é desprovida de sentido.

12.  E é desprovida de sentido porque a B… não actua, como ficou provado, como uma mera fornecedora de inputs de natureza material.

13.  Ficou claro que a B… suporta, junto da Associação C…, custos de licenciamento relativos aos direitos de autor das obras que pretende ver reproduzidas, pelo que é de esperar, do ponto de vista económico, que a B… seja ressarcida desse custo, incorporando-o na facturação que emite às entidades do Grupo a que pertence, como é o caso da Requerente, no âmbito da sua actividade.

14.  O elemento incorpóreo é o elemento essencial dos produtos vendidos pela Requerente, não se compreendendo, assim, a desconsideração, pela AT, do custo que lhe está implícito, na comparação que fez.

15.  Compreender-se-ia que a AT, recusando legitimamente a declaração da Requerente, tivesse optado por qualquer dos métodos de determinação dos preços de transferência que lhe são proporcionados pela conjugação do artigo 63.º do Código do IRC e da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.

16.  Não se compreende que, no exercício legítimo do seu poder de corrigir essa declaração, e em vez de explorar adequadamente os métodos que estão previstos nos arts. 4º a 10º daquela Portaria, superando eventualmente até as dificuldades suscitadas por questões de alegada incomparabilidade (art. 4º, 1, b) da Portaria), tenha feito tábua rasa de elementos que conhecia e não podia desconhecer:

  • seja por corresponderem a uma intuição simples assente em regras comuns de experiência (quem conceberia como normal que a B…, ou a Requerente, se locupletassem gratuitamente com os direitos autorais dos criadores das obras e com os demais inputs de natureza incorpórea?);
  • seja por tê-los tomado em consideração na liquidação de imposto de exercícios anteriores da mesma Requerente.

17.  Em suma, a correcção proposta pela Requerida, posto que legítima, foi inadequada.

18.  Por esta razão, o acto de liquidação é ilegal, por errónea aplicação do artigo 63.º do Código do IRC e dos arts. 4º e seguintes da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.

 

III.C.3 – Dos juros indemnizatórios

 

1.      Para lá da declaração da ilegalidade da liquidação, o Requerente peticiona ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, matéria que se insere no âmbito das competências deste Tribunal, conforme expressamente prevê o nº 5 do artigo 24º do RJAT.

2.      Trata-se de um efeito que decorre da procedência do pedido, na medida em que a anulação dos actos de liquidação torna indevido o anterior pagamento, pela Requerente, da totalidade da quantia liquidada nesses actos.

 

IV. Decisão

Em face de tudo quanto antecede, decide-se:

 

a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando o acto de liquidação impugnado, com restituição à Requerente do imposto e juros compensatórios pagos.

 

b) Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, sobre € 110.234,74, desde 18 de Novembro de 2015 até à integral restituição, à taxa legal do artigo 559º do Código Civil.

 

V. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 110.234,74, nos termos do disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

 

Custas a cargo da Requerida, dado que o presente pedido foi julgado procedente, no montante de € 3.060,00, nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.

 

 

Lisboa, 7 de Dezembro de 2016

 

 

Os Árbitros

 

 

José Baeta Queiroz

(Presidente)

 

 

 

 

Fernando Araújo

 

 

 

 

 

Ricardo Gomes Pedro