Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 250/2016-T
Data da decisão: 2016-11-09  IUC  
Valor do pedido: € 501,63
Tema: IUC - Liquidação do imposto único de circulação
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Decisão Arbitral

 

 

I. - RELATÓRIO

 

A - PARTES

 

A sociedade, A…, SA, pessoa colectiva n.º…, com sede na Rua … n.º…, …-…, …, Matosinhos, doravante designada por “Requerente”, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por “RJAT”), tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira (que sucedeu, entre outras, à Direcção-Geral dos Impostos) a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.

B - PEDIDO

1 - O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 03 de Maio de 2016 e notificado à AT em 13 de Maio de 2016.

2 - A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o signatário, em 29-06-2016, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa como árbitro de Tribunal Arbitral Singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.

3 - As Partes foram, em 29-06-2016, devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do nº 1, do artigo 11.º e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 28-07-2016.

5 - O Tribunal Arbitral, ao abrigo do art.º 16.º, alínea c) do RJAT (Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro), e tendo em conta o teor do despacho proferido em 25 de Outubro de 2016, considerou dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do referido diploma legal.

6 - A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:

a) - Declare a anulação da liquidação relativa ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), referenciada na Nota de Cobrança constante do processo, referente ao ano de 2015, respeitante ao veículo com a matrícula …-…-…, identificado nos autos;

b) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do montante de € 501,63, que indica como valor do pedido, relativo a € 497,00, a título de IUC e € 4,63 referente a juros compensatórios;

c) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios pelo pagamento dos montantes indevidamente liquidados e pagos.

C - CAUSA DE PEDIR

7 - A Requerente, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:

8 - Que foi notificada da liquidação registada sob n.º 2015…, relativa a IUC e a Juros Compensatórios, respeitante ao ano de 2015, referente ao veículo automóvel com a matrícula …-…-…, cuja propriedade lhe foi atribuída.

9 - Que para evitar a instauração de futura execução fiscal, procedeu ao pagamento da quantia liquidada referente ao IUC e aos Juros Compensatórios no valor total de €501,63.

10 - Que desde 31-07-1997 não é proprietária do veículo automóvel em causa no processo, uma vez que, nessa data, procedeu à venda do referido veículo à empresa B…, SA.

11 - Que a referida empresa vendeu, por sua vez, em 17-02-1998, o veículo em questão à empresa C…, Lda, Pessoa Colectiva com o n.º… .

12 - Que não é proprietária do veículo automóvel com a matrícula …-…-… há mais de dezoito (18) anos, tendo diligenciado junto do IMT, IP a apreensão dos documentos dessa viatura.

13 - Que, no quadro do exercício do seu direito de audição prévia, relativamente à liquidação identificada no processo, deu a conhecer à AT todos os factos e elementos documentais destinados a demonstrar que não era proprietária da viatura em questão à data da referida liquidação.

14 - Que a AT tinha conhecimento há mais de treze (13) anos de todos os factos e elementos documentais destinados a demonstrar que o último proprietário da viatura em questão era a empresa C…, Lda.

15 - Que o registo automóvel não reflecte a verdadeira propriedade do veículo, não podendo a Requerente ver-se confrontada com um acto tributário incidente sobre património que não lhe pertence.

16 - Que a AT presumiu a titularidade do veículo em causa na esfera jurídica da Requerente como critério de incidência do IUC, mas que as presunções constantes das normas de incidência são sempre ilidíveis.

17 - Que a expressão “considerando-se como tais” constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, configura uma presunção legal, que, face ao disposto no art.º 73.º da LGT, é ilidível, na medida em que aí se determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

18 - Que a AT embora dispondo de todos os elementos documentais que lhe permitiam conhecer o último proprietário conhecido do veículo em causa, absteve-se de encetar diligências junto desse mesmo proprietário, não observando o principio do inquisitório, de modo a alcançar a verdade material.

19 - Que, tendo recorrido anteriormente ao Tribunal Arbitral Tributário para sindicar a legalidade do IUC, relativo à mesma viatura e respeitante aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, o referido Tribunal reconheceu na decisão proferida no Processo n. 216/2014 - T que a Requerente já não era proprietária do veículo em questão, considerando ilidida a presunção constante do registo.

D - RESPOSTA DA REQUERIDA

20 - A Requerida, tendo sido notificada em 01-08-2016, em conformidade com o disposto n.º 1 do art.º 17.º do RJAT (Decreto - Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro), para apresentar a sua defesa, entendeu não o fazer, não apresentando resposta aos argumentos aduzidos pela Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral, pelo que o processo prossegue a sua tramitação de harmonia com o estabelecido no n.º 1 do art.º 19.º do referido RJAT, tendo-se em conta o estatuído nos n.ºs 6 e 7 do art.º 110.º do CPPT.

E - QUESTÕES DECIDENDAS

21 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.

22 - Face ao exposto, as principais questões a decidir são as de saber:

a) Se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º n.º 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.

b) Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto.

c) Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o anterior proprietário ou o novo proprietário.

F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

23 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

24 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

25 - O processo não enferma de vícios que o invalidem.

26 - Tendo em conta a prova documental integrante do processo, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, tal como se fixa nos termos abaixo mencionados.

II - FUNDAMENTAÇÃO

G - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

27 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:

28 - A Requerente foi notificada da liquidação de IUC e de Juros Compensatórios emitida sob o n.º 2015 …, relativa ao ano de 2015, referente ao veículo automóvel com a matrícula …-…-…, cuja propriedade lhe foi atribuída.

29 - A Requerente para evitar a instauração de futura execução fiscal, procedeu ao pagamento da quantia liquidada referente ao IUC e aos Juros Compensatórios, no valor total de €501,63.

30 - A Requerente, desde 31-07-1997, não é proprietária do veículo automóvel em causa no processo, tendo, nessa data, procedido à venda do referido veículo à empresa B…, SA.

31 - A empresa B…, SA vendeu, em 17-02-1998, o veículo em questão à empresa C…, Lda, Pessoa Colectiva com o n.º … .

32 - A Requerente não é proprietária do veículo automóvel com a matrícula …-…-… há mais de dezoito (18) anos, tendo diligenciado junto do IMT. IP a apreensão dos documentos dessa viatura.

33 - A Requerente, no quadro do exercício do seu direito de audição prévia, relativamente à liquidação identificada no processo, deu a conhecer à Requerida todos os factos e documentos destinados a demonstrar que não era proprietária da viatura em questão à data da referida liquidação.

34 - A Requerida tinha conhecimento, há mais de treze (13) anos, de todas as informações destinadas a demonstrar que o último proprietário da viatura em questão era a empresa C…, Lda.

35 - A AT embora dispondo de todos os elementos que lhe permitiam conhecer o último proprietário conhecido do veículo em causa, absteve-se de encetar diligências junto desse mesmo proprietário.

36 - O Tribunal Arbitral Tributário reconheceu, na decisão proferida no Processo n.º 216/2014-T, que a Requerente já não era proprietária do veículo com a matrícula …-…-…, para efeitos do IUC liquidado, respeitante aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, considerando ilidida a presunção constante do registo.

FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

37 - Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados, relativamente a cada um deles, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.

FACTOS NÃO PROVADOS

38 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.

H - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

39 - A matéria de facto está fixada, importando agora proceder à sua subsunção jurídica e determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas enunciadas no n.º 22.

40 - A questão essencial e decisiva nos presentes autos, traduz-se em saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece ou não uma presunção ilidível.

41 - Sobre a referida questão, a Requerente entende que a expressão “considerando-se como tais”, constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, configura uma presunção legal, que, face ao disposto no art.º 73.º da LGT, é ilidível, na medida em que aí se determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário. A Requerida, por seu lado, como decorre do que se refere no n.º 20, entendeu não se pronunciar sobre o assunto.

I - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO N.º 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC

42 - Sobre esta questão, ou seja, a de saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1, do art.º 3.º do CIUC, consagra uma presunção, deve notar-se que a jurisprudência firmada no CAAD aponta no sentido de que a dita norma consagra uma presunção legal. Com efeito, desde as primeiras Decisões, proferidas sobre esta matéria, no ano de 2013, entre as quais se podem, nomeadamente, referir as proferidas no quadro dos Processos n.ºs 14/2013-T, 26/2013-T e 27/2013-T, até às mais recentes de que se pode indicar a Decisão proferida no âmbito do Processo n.º 69/2015-T, passando por inúmeras Decisões proferidas no ano de 2014, de que se mencionam, a título de mero exemplo, as Decisões proferidas nos Processos n.ºs 34/2014-T, 120/2014-T e 456/2014 - T, todas apontam para o entendimento de que o n.º 1, do art.º 3.º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

A este propósito, deve ainda considerar-se o entendimento inscrito no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 19-03-2015, Processo 08300/14, disponível em: www.dgsi.pt, quando nele expressamente se refe que o art.º 3.º, n.º 1 do CIUC “[…] consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível por força do art.º 73.º da LGT”.

Trata-se de um entendimento que, de todo, se acompanha e que se dá, sem mais, como válido e aplicável no presente caso, não se considerando, por conseguinte, necessário outros argumentos, face à abundante fundamentação vertida nas mencionadas Decisões e no referido Acórdão.

J - DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO.

43 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.

44 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu n.º 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)

Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.

45 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reais (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.

Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.

46 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ n.º 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, n.º 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)

47 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.

48 - Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)

49 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)

50 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 06 de Julho, quando dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)

51 - A conjugação do disposto nos artigos atrás mencionados, particularmente o estabelecido no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro lado, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular a favor de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.

52 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.

53 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.

54 - Assim, se os compradores dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC e do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, que os veículos continuam a ser propriedade da pessoa que os vendeu e que no registo se mantém seu proprietário, sendo essa pessoa o sujeito passivo do imposto, na certeza, porém, que tais presunções são ilidíveis, seja por força do estabelecido no n.º 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afastem as presunções em causa, mediante prova das referidas vendas, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.

L - DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS

55- Não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda dos veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via documental.

56 - Como meio de prova de que procedeu à venda do veículo usado com a matrícula …-…-…, identificado no presente processo, em data anterior à da exigibilidade do imposto, a Requerente juntou cópias de declarações de venda do referido veículo para a empresa B… SA e desta para empresa C…, Lda.

57 - Por outro lado, juntou quer, cópia do pedido dirigido, em 17-01-2012, ao IMTT - Direcção Regional de Mobilidade e Transportes do Norte solicitando a apreensão dos documentos do veículo em referência, quer uma cópia da Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 216/2014-T, que, relativamente à liquidação do IUC relativo aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, respeitante ao veículo em questão, reconheceu que a Requerente já não era, então, proprietária desse veículo, considerando ter sido ilidida a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.

Vejamos,

58 - Entre os referidos documentos é de notar, particularmente, a Declaração, identificada nos autos por DOC. 3, em que o último dos compradores do veículo, com a matrícula …-…-…, ou seja, a empresa C…, Lda, assume, em 29-02-1998, data da compra do veículo em causa, toda a responsabilidade, incluindo a de natureza fiscal, associada à compra em questão.

59 - Deve também considerar-se o pedido dirigido, em 17-01-2012, ao IMTT - Direcção Regional de Mobilidade e Transportes do Norte solicitando a apreensão dos documentos referentes ao veículo com a matrícula …-…-…, na medida em que evidencia que o mesmo não era, à data, propriedade da Requerente.

60 - Note-se que nada permite considerar que os elementos inscritos nos referidos documentos são desconformes com o que, na realidade, ocorreu, documentos que, gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art.º 75.º da LGT, tudo indicando que reflectem e provam os factos neles mencionados, ou seja, que o veículo em questão não era, aquando da exigibilidade do IUC em causa nos autos, referente ao ano de 2015, propriedade da Requerente.

61 - No caso dos autos, importa ter em conta que a Requerente, tendo sido notificada para audição prévia, exerceu esse direito, tendo nesse quadro, disponibilizado à Administração Tributária toda a informação documentada, que suportou o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo, seja, nomeadamente, a respeitante às vendas a que o veículo foi sujeito, bem como à identificação do seu último comprador, seja a relativa à Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 216/2014-T, na qual, relativamente à liquidação do IUC referente aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, respeitante ao veículo em causa nos autos, se determinou a anulação dos actos de liquidação de IUC referentes a esses anos, e a condenação da AT a proceder ao reembolso do imposto indevidamente pago.

62 - Como já se referiu, nomeadamente em decisões relativas a processos em que aceitámos o encargo de ser árbitro, o disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC consagra uma presunção legal, que, face ao disposto no art.º 73.º da LGT, será necessariamente ilidível, o que significa que os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados. Serão, pois, essas pessoas, identificadas nessas condições, a quem, desde logo e em princípio, a AT, antes da liquidação ser concretizada, se tem de dirigir.

63 - Tratar-se-á de um procedimento que, apenas em princípio, assim terá de ser, dado que no quadro da audição prévia, de carácter obrigatório, face ao disposto na alínea a) do n.º 1, do art.º 60.º da LGT, a relação tributária poderá ser reconfigurada, validando-se o sujeito passivo inicialmente identificado, ou redirecionando-se o procedimento no sentido daquele que for, afinal, o verdadeiro e efectivo, sujeito passivo do imposto em causa.

64 - O direito que o contribuinte tem de ser ouvido, o qual se concretiza mediante a audição prévia, deve corresponder e traduzir-se na possibilidade concedida aos particulares de terem uma participação útil no procedimento.

65 - A audição prévia, que, naturalmente, há de ocorrer em momento imediatamente anterior ao procedimento de liquidação, corresponde à sede e momento próprios para, com certeza e segurança, se identificar o real sujeito passivo do IUC.

66 - O referido procedimento de liquidação, como vem assinalado por Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, anotação n.º 5 ao art.º 36.º, serve unicamente para tornar certa a obrigação tributária e, consequentemente, exigível. Neste sentido, acrescentam os referidos autores, na anotação n.º 6 ao mesmo artigo, que “A liquidação, como qualquer acto tributário, sendo um acto definidor da posição da Administração tributária perante os particulares, não constitui a obrigação. Torna-a certa e exigível […]”.

67 - A audição prévia é, de resto, a sede própria, para se procurar a verdade material dos elementos essenciais à liquidação do imposto, entre os quais estará o conhecimento dos verdadeiros sujeitos passivos do imposto, enquanto elementos primeiros da relação jurídica fiscal. A este propósito, cabe referir o que nos dizem os atrás mencionados autores, ibidem, na anotação n.º 5 ao art.º 55.º, quando aí referem que, no domínio do procedimento tributário, a administração tributária, particularmente à luz dos princípios da justiça e da imparcialidade, deve nortear-se por “[…] critérios de isenção na averiguação das situações fácticas, realizando todas as diligências que se afigurem necessárias para averiguar a verdade material, independentemente de os factos a averiguar serem contrários aos interesses patrimoniais que à administração tributária cabe defender”. (sublinhado nosso)

68 - Cabe ainda lembrar o princípio do inquisitório, que fixado no art.º 58.º da LGT, estatui no sentido de que “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”. (sublinhado nosso)

69 - A propósito deste princípio, deve, de novo, aludir-se aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.

O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, ibidem, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.

70 - Não foi este o entendimento perfilhado pela Requerida no caso dos autos, dado que, apesar da informação que lhe foi facultada, seja, relativamente às vendas a que o veículo foi sujeito, seja à identificação do seu último comprador, seja relativamente à Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 216/2014-T, na qual, relativamente à liquidação do IUC referente aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, se decidiu a anulação dos actos de liquidação de IUC, referentes a esses anos, a AT não mostrou um procedimento em sintonia com o princípio da verdade material, o qual, tivesse tido, no presente caso, o devido atendimento, teria conduzido à identificação de um sujeito passivo do IUC diferente da Requerente.

71 - Os documentos apresentados pela Requerente, enquanto meios destinados a fazer prova de que o veículo em causa não era à data da exigibilidade do IUC propriedade da Requerente, gozando da atrás mencionada presunção de veracidade, afiguram-se com idoneidade bastante, em ordem à demonstração das transacções a que o veículo foi sujeito, constituindo, a nosso ver, um meio de prova adequado e capaz de ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.

72 - Face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, quer a transferência de propriedade do veículo em questão, por mero efeito da sua venda, antes da data da exigibilidade do imposto, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, o acto tributário em crise, não pode merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque o referido acto assenta numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.

73 - Nestas circunstâncias, tendo em conta, por um lado, que a presunção consagrada no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC foi ilidida e que, por outro, o veículo em questão no presente processo foi vendido em data anterior à da exigibilidade do imposto, não se pode deixar de considerar que, aquando da exigibilidade do imposto, face ao disposto no n.º 3 do artigo 6.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 4.º, ambos do CIUC, a Requerente não era sujeito passivo do imposto em questão.

74 - A AT, quando entende que o sujeito passivo do IUC é, em definitivo, a pessoa em nome de quem o veículo automóvel em questão se encontrava registado, sem considerar que o art.º 3.º, n.º 1 do CIUC consubstancia uma presunção, nem tendo em conta os elementos probatórios que lhe foram apresentados está a proceder à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação, constantes do referido art.º 3.º do CIUC, seja ao nível da previsão, seja da estatuição, o que configura a prática de um acto tributário falho de legalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a sua anulação, por violação de lei.

M - REEMBOLSO DO MONTANTE PAGO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS

75 - Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT, e em conformidade com o que aí se estabelece, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.” (sublinhado nosso)

76 - Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no art.º 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, no qual se estabelece que A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.(sublinhado nosso)

77 - O caso constante nos presentes autos, suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade do acto de liquidação, referenciado neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, a título de imposto e de juros compensatórios, o que no caso dos autos se concretiza no montante de € 501,63, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

78 - Quanto aos juros indemnizatórios, afigura-se manifesto, que, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no n.º 1 do art.º 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de € 501,63, que serão contados, desde a data do pagamento do imposto e dos correspondentes juros compensatórios, até ao integral reembolso dessa mesma quantia.

N - CUSTAS ARBITRAIS

79 - A propósito das custas arbitrais, mais concretamente sobre a responsabilidade pelo seu pagamento, cabe apenas notar que, face ao estatuído no n.º 2 do referido art.º 527.º do CPC, dá causa “[…] às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for” sendo, pois, o que se aplicará no caso dos autos.

CONCLUSÃO

80 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar o acto de liquidação em causa no presente processo, fundado na ideia de que o artigo 3.º, nº.1, do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.

81 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência do facto tributário, considerou a Requerente proprietária do veículo referenciado no presente processo, considerando-a, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade, relativamente ao veículo em questão, já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.

III - DECISÃO

82 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

- Julgar procedente, por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à anulação do acto de liquidação de IUC e de juros compensatórios a que se refere o pedido da Requerente, referente ao ano de 2015, tal como identificado nos autos, respeitante ao veículo identificado no processo;

- Anular, consequentemente, quer o acto de liquidação de IUC, que o acto de liquidação dos juros compensatórios que lhe estão associados, referentes ao ano de 2015, respeitantes ao veículo, tal como identificado nos autos.

- Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.

 

VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC (ex-315.º, nº 2) e 97.º - A, n.º 1 do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 501,63.

 

CUSTAS

De harmonia com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, in fine, no art.º 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa, fixa-se o montante das custas totais em € 306,00.

 

Notifique-se.

Lisboa, 09 de Novembro de 2016

O Árbitro

António Correia Valente

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)