Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
A…, NIF …, residente na Rua…, n.º…, … (doravante apenas designada por Requerente), apresentou, em 28-03-2016, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com as alíneas a) do art. 99.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).
O Requerente pede a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS do ano de 2010, e do indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra a mesma, com consequente reembolso do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 29-03-2016 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 25-05-2016 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 05-07-2016.
Notificada para se pronunciar, a Requerida apresentou requerimento em que sustenta a legalidade do acto de liquidação impugnado, pugnando, assim, pela improcedência do pedido deduzido pelo Requerente.
Por despacho de 10-10-2016 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e concedido às partes prazo para apresentação de alegações escritas sucessivas.
II. DO PEDIDO DO REQUERENTE
O Requerente pede a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS do ano de 2010 e respectivos juros compensatórios, no montante de Euro 7.025,57 (sete mil e vinte cinco euros e cinquenta e sete cêntimos), bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra aquela.
Alega o Requerente que a liquidação contestada é ilegal porque, na determinação do rendimento colectável referente à mais valia imobiliária declarada em 2010 com a venda de imóvel de habitação própria e permanente do Requerente, não foi tido em conta o reinvestimento feito em 2012.
Com efeito, no ano de 2010 o Requerente vendeu, pelo preço de € 105.000,00, a sua casa de habitação própria permanente que havia adquirido em 2006 pelo preço de € 65.000,00.
Do montante realizado, € 54.833,27 terão sido utilizados para amortizar o empréstimo bancário contraído para aquisição do referido imóvel. O saldo restante, no montante de € 50.200,00, foi reinvestido na construção de imóvel destinado à habitação própria permanente do Requerente e do seu agregado familiar e que foi devidamente inscrito na matriz em Junho de 2012. O valor do reinvestimento fora incorrectamente declarado na Mod. 3 de 2013 mas, alertado para o erro, o Requerente entregou as competentes declarações de substituição de 2012 e 2013 onde corrigiu a situação.
Entende o Requerente que “Com a construção da nova habitação o requerente despendeu a quantia global de 81.580,02 €. Valor que deve ser considerado como de reinvestimento com a mais valia obtida com a anterior liquidação.” – cfr. arts. 17.º e 18.º da petição inicial.
Conclui, assim, o Requerente que “Face ao exposto, tendo em conta o valor com a amortização no empréstimo contraído na anterior habitação e o valor gasto com a construção da nova habitação, a mais valia obtida no ano de 2010 deverá ser excluída de tributação. E, como tal, anulada a liquidação objecto do presente pedido”.
A par da anulação da liquidação do imposto e respectivos juros compensatórios, o Requerente pede que a Requerida seja condenada ao pagamento de juros indemnizatórios.
III. DA RESPOSTA DA REQUERIDA
Na resposta apresentada, a Requerida contesta as alegações do Requerente, defendendo a legalidade da liquidação contestada.
Para sustentar os actos de liquidação e de indeferimento da reclamação graciosa, a Requerida invoca que o Requerente não apresentou qualquer documentação justificativa do reinvestimento declarado, não tendo, assim, cumprido com o ónus da prova que sobre si impendia. De acordo com o que resulta da resposta “O Reclamante, aqui Requerente, tinha que trazer aos autos de procedimento documentos para prova do reinvestimento realizado, nos termos do n.º 6 do artigo 10.º do CIRS” (cfr. ponto 20).
Conclui, por isso, a Requerida alegando que “Analisando todo o procedimento, competia ao reclamante, aqui requerente, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos invocados quanto à matéria do reinvestimento, o que não aconteceu!” pelo que sustenta a total improcedência do pedido de pronúncia arbitral deduzido pelo Requerente.
IV. SANEADOR
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
A. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
1. A 27/03/2006, o Requerente e cônjuge adquiriram, pelo preço de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros), a fracção autónoma designada pela letra “B” integrante do prédio urbano sito na Rua …, n.º … e …, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …, concelho de Matosinhos sob o artigo…, destinada a habitação própria e permanente.
2. A aquisição em causa foi feita com recurso a crédito bancário no montante total de € 62.500,00 (sessenta e dois mil e quinhentos euros).
3. A 18/08/2010, o Requerente e cônjuge alienaram a fracção autónoma descrita no ponto 1 pelo preço de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros).
4. Na mesma data, o Requerente e cônjuge amortizaram o empréstimo contraído para aquisição do referido imóvel num total de Euro 54.833,27 (cinquenta e quatro mil oitocentos e trinta e três euros e vinte e sete cêntimos).
5. Na declaração Mod. 3 de IRS do ano de 2010, o Requerente e cônjuge inscreveram no Anexo G os dados da venda efectuada.
6. A título de “Despesas e Encargos”, o Requerente e cônjuge declararam o montante de € 2.889,38 (dois mil oitocentos e oitenta e nove euros e trinta e oito cêntimos).
7. No quadro 5 do Anexo G, o Requerente e cônjuge declararam os seguintes valores:
(i) no campo 505: € 54.833,27 (cinquenta e quatro mil oitocentos e trinta e três euros e vinte e sete cêntimos) correspondente ao montante amortizado;
(ii) no campo 506: € 50.166,73 (cinquenta mil cento e sessenta e seis euros e setenta e três cêntimos) correspondente ao valor a reinvestir na aquisição de imóvel para habitação própria permanente;
(iii) no campo 507: € 5.162,35 (cinco mil cento e sessenta e dois euros e trinta e cinco cêntimos) correspondente aos valores reinvestidos nos 24 meses anteriores;
(iv) no campo 508: € 4.694,20 (quatro mil seiscentos e noventa e quatro euros e vinte cêntimos) correspondente aos valores reinvestidos no próprio ano.
8. Em 27/07/2011, o Requerente foi notificado da liquidação de IRS de 2010 que não teve em conta a declaração da intenção de reinvestimento, na qual se apurou uma colecta líquida de € 23.542,22.
9. Na sequência da reclamação graciosa deduzida pelo Requerente, foi aceite pela Requerida a suspensão da tributação das mais valias declaradas por efeito da intenção de reinvestimento.
10. As despesas declaradas nos campos 507 e 508 do Anexo G da Mod. 3 não foram aceites pela Requerida por não preencherem os requisitos legais e temporais para efeitos de consideração como reinvestimento.
11. Na sequência desta correcção, foi efectuada nova liquidação de IRS do ano de 2010, da qual resultou uma colecta líquida de € 17.779,14.
12. A decisão de não aceitação das despesas inicialmente declaradas nos campos 507 e 508 do Anexo G da Mod. 3 não foi objecto de recurso hierárquico ou impugnação judicial.
13. Em 04/06/2012, o Requerente e cônjuge procederam à inscrição na matriz de uma moradia construída num terreno para construção de que eram proprietários e que deu origem ao prédio urbano actualmente inscrito sob o artigo … da união das freguesias de …, … e … .
14. A moradia foi avaliada pela Requerida tendo sido atribuído o valor patrimonial tributário de € 180.050,00 (cento e oitenta mil e cinquenta euros).
15. Para construção da moradia objecto de reinvestimento, o Requerente efectuou despesas no valor total de € 66.735,55.
16. O prédio em causa foi afecto a habitação própria permanente do Requerente e cônjuge.
17. Na declaração de substituição da Mod. 3 de IRS do ano de 2012, entregue em 10/10/2014, o Requerente e cônjuge inscreveram no quadro 5, campo 510, o montante de € 50.200,00 (cinquenta mil e duzentos euros) a título de reinvestimento nos dois anos seguintes.
18. Em Janeiro de 2015, o Requerente foi notificado da liquidação oficiosa de IRS n.º 2015…, referente ao ano de 2010, da qual resulta uma colecta líquida de € 24.205,94 e juros compensatórios de € 590,89.
19. A liquidação oficiosa identificada foi efectuada considerando como rendimento tributável a totalidade da mais valia imobiliária declarada na Mod. 3 do ano de 2010.
20. A liquidação adicional identificada no ponto 18 foi paga a 19/02/2016.
21. Em 05/05/2015, o Requerente apresentou reclamação graciosa relativa à liquidação de IRS mencionada no ponto 18.
22. Pelo ofício n.º …/…, de 2015-11-11, o Requerente foi notificado da proposta de indeferimento da reclamação graciosa deduzida.
23. Por despacho de 18/12/2015, recebido pelo Requerente a 30/12/2015, foi indeferida a reclamação graciosa com os seguintes fundamentos:
24. A 28/03/2016 o Requerente deu entrada do pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos.
B. Factos não provados
Não se comprovou que parte das despesas apresentadas pelo Requerente, num total de € 14.844,47 (correspondente à diferença entre o valor indicado no art. 17.º da petição inicial e o valor considerado provado no ponto 15 supra) tenham sido efectivamente incorridas com a construção do imóvel objecto de reinvestimento.
No mais, não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.
C. Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada e não contestada.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
A. Da liquidação de imposto
A questão a decidir nos presentes autos prende-se com a aplicação da exclusão de tributação prevista nos n.ºs 5 a 7 do art. 10.º do CIRS às mais valias imobiliárias obtidas pelo Requerente no ano de 2010 decorrentes da alienação da sua habitação própria permanente em virtude do reinvestimento efectuado na aquisição de outra habitação própria permanente.
Em sede de reclamação graciosa, a Requerida concluiu que não haveria lugar a qualquer exclusão de tributação uma vez que o Requerente não apresentou quaisquer documentos comprovativos dos custos incorridos na construção da nova habitação própria permanente. No entender da Requerida, o Requerente não deu cumprimento ao ónus da prova que sobre ele impendia, nos termos do art. 74.º da LGT, pelo que a decisão só poderia ser no sentido do indeferimento. Isso mesmo se retira da proposta de indeferimento, subscrita pela entidade decisora, quando se refere que “Quanto à prova do valor reinvestido nos 24 meses anteriores à data da realização, da prova do reinvestimento no ano de alienação, bem como a prova do reinvestimento no segundo ano seguinte à data da realização, o reclamante nada provou”.
Sucede que, não obstante competir ao Requerente comprovar factos constitutivos do direito a que se arrogava, competiria, por sua vez, à Requerida alegar e comprovar factos impeditivos do exercício desse direito, nos termos do art. 74.º da LGT e art. 342.º, n.º 2, do Código Civil. Como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa[1], “É corolário da regra de que o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque, que será sobre aquele contra quem são invocados aqueles factos que recai o ónus da prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos dos direitos invocados, o que está em sintonia com a regra do n.º 2 do art. 342.º do CC. Os factos impeditivos, modificativos ou extintivos são factos que constituem obstáculo ao reconhecimento do direito alegado pelo autor.”.
Tal não sucedeu. Com efeito, a Requerida limitou-se a indeferir a pretensão do Requerente com base na ausência de prova dos factos constitutivos do direito à exclusão de tributação da mais valia imobiliária realizada em 2010, nos termos do n.º 5 do art. 10.º do CIRS. Nada mais foi alegado ou referido pela Requerida que permitisse justificar a recusa da aplicação de tal regime de exclusão.
Ora, nesta sede, e conforme resulta do probatório supra elencado, nomeadamente o ponto 15, o Requerente demonstrou ter suportado custos de, pelo menos, € 66.735,55, com a construção do imóvel objecto do reinvestimento. Este valor devidamente documentado é superior ao montante de reinvestimento declarado pelo Requerente - € 50.200,00 – e que permitiria a aplicação da exclusão de tributação da mais valia imobiliária permitida pelos n.ºs 5 e seguintes do art. 10.º do CIRS.
Considera, assim, este tribunal que, tendo o Requerente apresentado em tribunal prova suficiente e idónea para afastar o fundamento da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, esta terá que ser revogada e, em consequência, terá que ser anulada a liquidação de IRS contestada porquanto se verificam os demais requisitos legais previstos no n.º 5 do art. 10.º do CIRS (concretamente, o requisito temporal e o requisito de afectação final do imóvel objecto de reinvestimento).
Correspondendo o pedido de pronúncia arbitral – à semelhança do que se verifica relativamente à impugnação judicial – a um contencioso de anulação, caberá a este tribunal manter ou revogar o acto administrativo-tributário contestado, não podendo substituir-se a qualquer uma das partes para reconfigurar a relação tributária em apreciação.
Face ao exposto, este tribunal considera procedente a pretensão do Requerente, concluindo que a mais valia imobiliária obtida na venda da habitação própria permanente do Requerente no ano de 2010 está excluída de tributação em sede de IRS, ao abrigo do regime previsto no n.º 5 do art. 10.º do CIRS, por se verificarem os respectivos requisitos legais. Assim sendo, a liquidação oficiosa de IRS de 2010 aqui contestada é ilegal, devendo, em consequência, ser anulada com reembolso ao Requerente do imposto indevidamente pago.
B. Do direito a juros indemnizatórios
A par do reembolso do imposto pago em excesso, o Requerente pede, também, o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do art. 43.º da LGT. A Requerida contesta, alegando que não se verificam os pressupostos legais para tal pagamento, em especial o erro imputável aos serviços.
O pedido é legalmente admissível ao abrigo do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, em conjugação com o art. 100.º da LGT.
Nos termos do n.º 1 do art. 43.º da LGT “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Sucede que, no caso concreto, não resulta comprovado que tenha havido erro imputável aos serviços. Com efeito, a liquidação oficiosa foi efectuada com base nas declarações de rendimento submetidas pelo Requerente e, posteriormente, substituídas, bem como na documentação produzida, em cada momento, pelo Requerente. Acresce que, no âmbito da reclamação graciosa, o Requerente não apresentou a documentação que agora juntou nestes autos e que permitiu a este tribunal dar provimento ao pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IRS contestada. Sem a documentação agora junta, não era possível à Requerida ter decido de forma diferente da que decidiu.
Face ao exposto, considerando que o erro incorrido na liquidação contestada não é imputável à Requerida, não terá o Requerente direito a juros indemnizatórios pelo que se indefere o pedido de pronúncia arbitral, neste ponto.
V. DECISÃO
De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:
(i) considerar procedente o pedido de pronúncia arbitral na parte relativa à declaração de ilegalidade da liquidação oficiosa de IRS do ano de 2010 contestada nos autos, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida, por violação do n.º 5 do art. 10.º do CIRS, devendo tais actos ser anulados com consequente reembolso ao Requerente do imposto indevidamente pago;
(ii) considerar improcedente o pedido de juros indemnizatórios, absolvendo-se a Requerida do pedido, nesta parte.
Valor do processo: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 7.025,57, correspondente ao valor da liquidação impugnada.
Custas: Nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.
Lisboa, 14-12-2016
O Árbitro Singular
(Maria Forte Vaz)
[1] Cfr. Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Edição, 2012, Encontro da Escrita, pág. 657.