Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 30/2012-T
Data da decisão: 2012-08-01  IRC  
Valor do pedido: € 246.400,33
Tema: Falta de fundamentação, violação do direito de audição prévia, desconsideração de prejuízos fiscais, regime transitório
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Processo n.º 30/2012-T


 

Decisão arbitral


 

I. RELATÓRIO

  1. …, SA, (adiante designado Requerente), pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua … LISBOA, requereu, em 25 de Janeiro de 2012, a constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto no artigo 30.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (adiante, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação da demonstração de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas n.º … e da demonstração de acerto de contas n.º …, referente ao exercício de 2004, com todas as consequências legais.


 

  1. Em 1 de Setembro de 2008, o Requerente impugnou judicialmente o referido acto de liquidação, processo que corre os seus termos sob o n.º … BEPRT na … Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.


 

  1. Por terem decorrido mais de dois anos desde a apresentação da impugnação judicial junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto sem que tenha havido decisão, o Requerente solicitou, ao abrigo do n.º 1 do artigo 30.º do RJAT, a submissão do processo ao tribunal arbitral.


 

  1. No pedido, o Requerente optou por não designar árbitro.


 

  1. Nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o colectivo de árbitros, composto por José Pedro Carvalho, na qualidade de árbitro presidente, Amândio Silva e Marcolino Pisão Pedreiro, na qualidade de árbitros adjuntos.


 

  1. A reunião prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT teve lugar no dia 25 de Janeiro de 2012, data a partir da qual se considera constituído, para todos os efeitos legais, o tribunal arbitral (cfr. ata de constituição do tribunal).


 

  1. Nestes termos, o tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.


 

  1. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são em súmula, as seguintes:


 

Alegações da Requerente


 

8.1 Em Março de 2007, o Requerente foi notificado da demonstração de liquidação de IRC n.º …, referente ao exercício de 2004, no qual foi apurado um imposto a pagar de € 246 400,33.


 

8.2 Como desconhecia os fundamentos daquela liquidação, requereu, em 26/03/2007, a passagem de certidão, nos termos do artigo 37.º do CPPT, com os respectivos fundamentos.


 

8.3 Simultaneamente, apresentou, em 20/06/2007, uma reclamação graciosa com objectivo de demonstrar a ilegalidade daquele ato.


 

8.4 Em resposta, a ora Autoridade Tributária indeferiu a reclamação graciosa argumentando, em primeiro lugar, que a “fundamentação da liquidação está nos actos tributários que levaram a alterações dos vários resultados apurados no período compreendido entre 1996 e 2002, que tiveram reflexo no reporte de prejuízos do exercício de 2004” e, em segundo lugar, quanto aos prejuízos fiscais que geraram a liquidação adicional, “no exercício de 2004, a reclamante só podia deduzir ao lucro tributável os prejuízos fiscais de € 2 467 341, 75 e € 2 673 159,10”.


 

8.5 Não se conformando, o Requerente sustenta que o ato tributário ora impugnado padece dos vícios de (i) falta de fundamentação, (ii) violação de audição prévia e (iii) violação de lei por desconsideração dos prejuízos fiscais, nos seguintes termos:


 

(i) Relativamente à falta de fundamentação, a Requerente alega que todos os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes devem, por imposição constitucional, nos termos do n.º 3 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa, ser fundamentados. Este dever está também expresso no n.º 2 do artigo 36.º do CPPT, bem como nos artigos 124.º e 125.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicáveis ex vi artigo 2.º, al. c) da LGT. Mais refere que tem sido unanimemente defendido pela jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais que a fundamentação deve ser exteriorizada “de modo claro, suficiente e congruente” para que se perceba a motivação e sentido da decisão, permitindo ao contribuinte “ficar habilitado a decidir acatá-lo ou, ao invés, impugná-lo…” (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22/02/2006, proferido no processo n.º 01077/05).

(ii) A decisão enferma ainda do vício de falta de audição prévia, dever consagrado no n.º 5 do artigo 267.º da CRP, ressalvando-se que não estão em causa qualquer das situações de dispensa do exercício do direito de audição prévia previstas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 60.º da LGT nem o direito preclude pelo respectivo exercício nos exercícios de 1996 a 2002 já que os fundamentos da impugnação destes altos são distintos;

(ii) Sem prejuízo, o Requerente acrescenta, por fim, que o ato ora impugnado viola o disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 47.º do Código do IRC (actual artigo 52º) por as correcções efectuadas à matéria colectável dos exercícios de 1996, 1997, 1999, 2000 e 2002 terem sido objecto de impugnação administrativa e/ou judicial e, relativamente ao exercício de 1997, já há uma decisão judicial transitada em julgado que determinou a anulação parcial da liquidação de IRC.


 

8.6 Assim, atendendo à relação de prejudicialidade dos processos em curso com o ato impugnado, requer a respectiva anulação ou, caso assim não se entenda, a suspensão da instância até decisão final dos processos judiciais em curso n.ºs … BEPRT, … BEPRT, … BEPRT e … BEPRT.


 

9. Por seu turno, a Requerida Direcção Geral dos Impostos apresentou resposta, na qual, se defendeu nos seguintes termos:


 

Resposta da Requerida


 

9.1 Na resposta, a Requerida alega, em primeiro lugar, a ilegalidade e incompatibilidade do pedido subsidiário apresentado pela Requerente, invocando a consequente nulidade do processo, nos termos conjugados do n.º 1, da al. c) do n.º 2 e do n.º 4, todos do artigo 193.º do CPC.

9.2 Mais refere que os pedidos subsidiários, sendo admitidos nos termos do artigo 469.º do CPC, deverão ser recusados, se encontrando-se em oposição, se verificarem “as circunstâncias que impedem a coligação de autores e réus” (n.º 2 do artigo 469.º). In casu, o Requerente não fez prova “nem que se verificam os requisitos para a coligação de autores e de réus, nem, por outro lado, que não se verificam obstáculos à coligação.”

9.3 Atendendo à relação de prejudicialidade entre os processos judiciais em curso e o pedido apresentado, a Requerida invoca também uma eventual excepção dilatória de litispendência porque a decisão que vier a ser proferida poderá contrariar, ou reproduzir, a decisão proferida no âmbito daqueles processos.

9.4 Sem prejuízo da excepção e questões prévias referidas, a Requerida impugna os fundamentos da presente acção, nos seguintes termos:

(i) O ato de liquidação encontra-se fundamentado de forma clara, congruente, suficiente e expressa, respeitando os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 77.º da LGT. Tal fundamentação consubstancia-se, em primeiro lugar, no teor da nota demonstrativa da liquidação adicional e anexo de demonstração de compensação e, em segundo lugar, na fundamentação dos altos tributários que levaram a alterações dos vários resultados apurados no período entre 1996 e 2002 que tiveram reflexo no reporte de prejuízos acumulados do exercício de 2004, validamente notificados ao ora Requerente. Este conhecimento dos fundamentos é, aliás, perceptível “da leitura dos pontos 17 a 22 da referida reclamação graciosa resulta inequívoco que o A. percebeu as razões pelas quais o ato de liquidação foi praticado com o sentido decisório que lhe foi dado, permitindo ao destinatário conhecer os seus fundamentos, de modo a que ele perceba a motivação do seu autor, conforme Acórdão do STA citado pelo A.

(ii) Relativamente à audição prévia, a Requerida considera que, no caso, a Administração Tributária limitou-se, na sua decisão, a aplicar normas legais de natureza estritamente vinculada, mediante uma alteração quantitativa dos valores da conta corrente de reporte de prejuízos que resultaram dos valores declarados pela Requerida ou em resultado da intervenção da Direcção de Serviços de Inspecção Tributária. Neste sentido, salienta-se que a Requerida teve a oportunidade de exercer o direito de audição prévia nos exercícios em que houve correcções, dispensando-se a audição prévia relativa à liquidação adicional do período de 2004.

(iii) Por fim, alega-se ainda que não houve qualquer violação dos n.ºs 1 e 4 do artigo 47.º (actual 52.º) do Código do IRC porque “só faz sentido deduzir prejuízos se efectivamente válidos”. Em conformidade, a AT limitou-se a proceder a correcções que tiveram como suporte a detecção e subsequente emenda de um erro de digitação do prejuízo acumulado de 1999 constante do campo 304 do quadro 09 da declaração modelo 22.

(iv) A Requerida conclui a sua defesa afirmando que a existência de processos judiciais em curso não impede a administração tributária de, nos termos da lei, instaurar processo de execução fiscal. Sem prejuízo, também não foi feita prova do trânsito em julgado da decisão de anulação da liquidação de IRC do exercício de 2007


 

  1. No dia 13 de Abril de 2010, em reunião realizada no CAAD, foi proferido despacho pelo Tribunal Arbitral, em que se decidiram as excepções suscitadas pela AT, conforme acta junto aos autos, nos seguintes termos:

“Na sua contestação, a entidade demandada alega, para além do mais e em suma, o seguinte:

  1. A cumulação ilegal de pedidos efectuada na petição inicial; e

  2. A verificação de litispendência.

Vejamos cada um dos pontos indicados.

*

I. Da cumulação ilegal de pedidos.

Alega a entidade requerida que se verifica nos autos uma cumulação ilegal de pedidos na medida em que o pedido subsidiário formulado na petição inicial seria incompatível com o pedido principal, na medida em que aquele seria “impossível”, “absurdo” e “abusivo”.

Entende-se, todavia, que não assiste razão à entidade requerida.

Com efeito, e desde logo, tem sido entendimento pacífico, quer da doutrina quer da jurisprudência nacionais, que a incompatibilidade entre pedidos principais e subsidiários não gera qualquer nulidade processual, sendo exemplificativos deste entendimento os acórdãos referidos nos pontos 25.º e 36.º da resposta do sujeito passivo à contestação da entidade demandada. Neste mesmo sentido se pronuncia o Prof. Lebre de Freitas, no seu “Código de Processo Civil - Anotado”, vol. I, 2.ª Ed., p 326.

Sem prejuízo, sempre se dirá que se entende que o pedido subsidiário de suspensão da instância formulado na petição inicial não é, em rigor, um pedido nos termos em que o mesmo é pressuposto pelo artigo 193.º/2/c) do Código de Processo Civil. Nesta norma, refere-se a cumulação de pedidos “substancialmente incompatíveis”, estando em causa, por isso, pedidos relativos à própria relação material controvertida, e não à relação processual estabelecida entre as partes em litígio.

Ora, o pedido de suspensão da instância não incide sobre aquela relação material controvertida, mas unicamente sobre a relação processual. Não se trata, por isso, de um pedido subsidiário, nos termos do artigo 469.º do Código de Processo Civil, mas de uma pretensão processual a ser apreciada e enquadrada em sede própria, conforme adiante se verá.

Acresce ainda que, mesmo que assim não fosse, os pressupostos a que se refere aquele artigo 469.º reportam-se à relação entre o pedido principal e o pedido subsidiário e não, conforme parecer pretender a entidade demandada (pontos 16 a 25 da contestação), entre os diversos processos que, in casu, fundamentam o pedido de suspensão da instância formulado pelo contribuinte.

Em todo caso, pelos fundamentos que vêm de se expor, entende-se que não se verifica a nulidade prevista no artigo 193.º/1, 2/c) e 4, do Código de Processo Civil, nem qualquer violação aos artigos 30.º, 31.º e 469.º do mesmo código.

*

II. Da litispendência.

Invoca ainda a entidade demandada a ocorrência da excepção dilatória da litispendência, entre os presentes autos e os processos …/…BEPRT, …/BEPRT, …BEPRT, e …BEPRT.

Uma vez mais, adiante-se já que se entende não assistir qualquer razão à contestante.

Desde logo, na medida em que é ela que invoca a excepção em causa, competir-lhe-ia demonstrar os pressupostos da mesma, não podendo pretender a procedência da mesma, fundada no desconhecimento dos pedidos e causas de pedir, referentes aos demais processos judiciais (artigo 30.º da petição inicial).

Acresce que, conforme refere o artigo 497.º/1 do Código de Processo Civil, a litispendência pressupõe “a repetição de uma causa”, que apenas se dá “quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir” (artigo 498.º/1 do Código de Processo Civil).

Ora, nas acções tributárias de índole impugnatória, como se sabe, a causa de pedir é a ilegalidade do acto tributário impugnado. Deste modo apenas se verificaria identidade do pedido e causa de pedir entre a presente acção e os processos supra-referidos se o acto tributário impugnado fosse o mesmo e as ilegalidades invocados fossem também iguais. Situação que, repete-se, competiria à parte que invoca a litispendência demonstrar.

Sem prejuízo, contudo, daquilo que se acaba de apontar, acrescentar-se-á ainda que se entende que entre processos judiciais e processos arbitrais não será susceptível de operar a excepção da litispendência. Com efeito, a existência de uma instância arbitral, implica a pré-existência de uma cláusula arbitral ou de um compromisso arbitral. Ora, tendo em conta o teor do artigo 494.º/j) e do artigo 287.º/b) do Código de Processo Civil, dever-se-á entender que a instância arbitral prevalece sempre sobre a judicial, sendo causa impeditiva ou extintiva daquela, conforme a sua génese ocorra antes ou na pendência da mesma.

Deste modo, e pelos fundamentos supra, indefere-se a suscitada excepção da litispendência.

***

Na petição inicial o A. formula um pedido, que classifica de subsidiário, tendente à suspensão da presente instância arbitral.

No seguimento do que atrás se expôs, reitera-se que não integra a solicitada suspensão um pedido subsidiário do pedido principal formulado na acção, na medida em que se revestem de natureza distinta, já que o pedido de suspensão respeita estritamente à relação processual, e não já à relação material controvertida objecto do litígio.

Deste modo, configura-se o referido pedido de suspensão da instância como uma questão prévia ao conhecimento do mérito da causa. Ou seja, ou há condições para conhecer do mérito daquela, e há que o fazer, ou o alguma coisa obsta ao conhecimento, para já, desse mérito, e haverá que suspender a instância.

*

Antes de prosseguir na apreciação do fundo da questão que agora nos ocupa, cumpre deixar bem claro o quadro em que a mesma concretamente se coloca.

Com efeito, não se pode em altura alguma deixar de ter presente que nos situamos no âmbito da jurisdição arbitral. Uma jurisdição arbitral específica, é certo, mas inquestionavelmente arbitral.

Neste âmbito vigora, plenamente, o princípio da livre condução do processo pelos árbitros, conforme resulta do art. 16.º/1/c) da LAT, não sendo, portanto, de aplicação automática qualquer norma de natureza processual que não as que, expressamente, resultem daquela lei.

Não quer, evidentemente, o que vem de se dizer significar que as normas processuais ordinárias não contenham conteúdos normativos directamente transponíveis para o processo arbitral, mas tal transposição é sempre, e em qualquer caso, mediada pelo prudente critério dos árbitros, sempre “com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas.” (artigo 16.º/1/c) da LAT).

Para além de nos situarmos no quadro da jurisdição arbitral, encontramo-nos, obviamente, no âmbito da jurisdição tributária. Daqui decorre, então, que as normas processuais em primeira linha transponíveis para a regulação de questões processuais serão, obviamente as do processo tributário, na sua maioria condensadas no Código de Procedimento e Processo Tributário, que, no respectivo artigo 2.º nos diz que “São de aplicação supletiva ao procedimento e processo judicial tributário, de acordo com a natureza dos casos omissos:

a) As normas de natureza procedimental ou processual dos códigos e demais leis tributárias;

b) As normas sobre a organização e funcionamento da administração tributária;

c) As normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários;

d) O Código do Procedimento Administrativo;

e) O Código de Processo Civil.”.

Ou seja, decorre do exposto que a lei processual civil é a última no elenco da legislação a aplicar aos casos omissos em matéria procedimental e processual tributária.

*

De todo o exposto, resulta então, em suma, que a relação processual arbitral tributária é regulada de acordo com o prudente critério dos árbitros “com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas.”, tendo por base as normas processuais tributárias gerais, face às quais o Código de Processo Civil vem em último lugar no que ao preenchimento de casos omissos diz respeito.

É, então, face ao critério assim formulado que haverá que apreciar o pedido de suspensão da instância formulado pela A..

No processo civil, tal matéria vem regulada no artigo 279.º, que diz no seu n.º 1 que “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”.

No caso, verifica-se que nos processos … BEPRT, … BEPRT, … BEPRT, e … BEPRT, está em discussão a legalidade de liquidações de IRC, cuja procedência das respectivas impugnações determinará correcções à liquidação, igualmente de IRC, objecto dos presentes autos.

As questões que haverá que abordar são então as de saber se:

  1. a decisão da causa está dependente do julgamento daqueles processos;

  2. se justifica, em função de uma resposta positiva à questão anterior, a suspensão da instância; e

  3. se tal é admissível em sede de processo arbitral tributário.

*

Compulsada a petição inicial, verifica-se que o A. imputa ao acto tributário impugnado as seguintes ilegalidades:

  1. Falta de fundamentação;

  2. Preterição do dever de audiência prévia;

  3. Desconformidade com o julgado no processo de impugnação da liquidação de IRC n.º …, relativa ao exercício de 1997;

  4. Consideração de actos tributários impugnados administrativa e judicialmente como base das correcções.

Ora, desde logo daqui resulta que a decisão de nenhuma das questões elencadas está dependente do julgamento daqueles processos, pelo que desde logo se entende ser de indeferir a requerida suspensão da instância.

*

Mesmo que se entenda que a petição inicial que dá causa aos presentes autos tem subjacente a pretensão de que o acto tributário impugnado seja anulado em função da ilegalidade dos actos tributários impugnados nos processos … BEPRT, … BEPRT, … BEPRT, e … BEPRT, haveria que apurar se se justificaria a requerida suspensão da instância arbitral, face aos interesses concretamente em causa.

Efectivamente, entende-se que a norma do artigo 279.º/1 do Código de Processo Civil não impõe uma suspensão necessária, verificada que seja a relação de prejudicialidade, ou outro motivo justificado, o que decorre, para além do mais, da utilização da expressão “pode” no texto normativo em causa (neste sentido, p. ex., cfr. Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil - Anotado”, Vol. I, 2.ª Ed., p. 544).

Ora, analisada a situação sub iudice, dever-se-ia sempre concluir pela desnecessidade de a instância ser suspensa.

Na verdade, como argumentos a favor de que tal ocorra, refere, em suma, o A. que se torna necessária tal suspensão, de modo a assegurar na íntegra o efeito útil das decisões a proferir nos processos … BEPRT, … BEPRT, … BEPRT, e … BEPRT, designadamente no que diz respeito ao exercício a que se refere o acto tributário em causa neste processo arbitral, por um lado, bem como a assegurar o seu direito a suspender a execução da quantia liquidada por aquele acto tributário, por outro.

Ora, nem um nem outro passam, de forma necessária, pela requerida suspensão da instância.

Com efeito, e como decorre do artigo 133.º/1/i) do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por força do artigo 2.º/e) do Código de Procedimento e Processo Tributário, na parte em que seja consequente dos actos impugnados nos processos … BEPRT, … BEPRT, … BEPRT, e … BEPRT, no caso de procedência dos respectivos pedidos e na medida dessa procedência, o acto tributário em questão nos presentes autos será nulo, pelo que poderá, a todo o tempo, o A. retirar todas as consequências daquelas decisões, que ao acto ora objecto dos presentes autos se venham a impor.

Argumenta ainda o A. que apenas a pendência de uma acção impugnatória lhe permitirá obstar à suspensão da execução da quantia liquidada pelo acto tributário contra o qual ora se insurge. Tal argumento, de índole estritamente adjectiva e pragmática, não é igualmente decisivo, já que o artigo 169.º/2 do Código de Procedimento e Processo Tributário dá abertura suficiente para acorrer a situações como a figurada.

Daí que se entenda que em concreto não seria justificada a requerida suspensão da instância.

*

Não obstante o que se finda de expor, e mesmo que se entendesse que, da aplicação das normas reguladoras do processo civil resultava a consequência requerida pelo A., o certo é que as normas processuais civis não são, de forma automática, aplicáveis ao processo arbitral tributário, sendo antes, como se viu já, a sua aplicação meramente subsidiária de outras normas e condicionada pelo princípio da livre condução do processo pelos árbitros, “com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas.”.

Neste quadro, haveria igualmente de considerar-se indesejável a requerida suspensão da instância.

Com efeito, o processo arbitral tributário é, manifestamente, enformado por um vincado princípio de celeridade, que se manifesta, para além do mais, numa intendida simplificação processual e na consagração de prazos rigorosos para a prolação de uma decisão final (cfr. artigo 21.º da LAT).

Ora, a suspensão da instância requerida pelo autor, sem um prazo certo e condicionada ao trânsito em julgado das decisões finais de quatro processos judiciais tributários, seria notoriamente incompatível com a celeridade genericamente pretendida para o processo arbitral e com os prazos previstos naquele referido artigo 21.º em especial, tanto mais que após o trânsito em julgado das decisões em causa, haveria ainda que retomar a tramitação do processo arbitral, com vista à prolação da sua decisão final, com o consequente acréscimo temporal.

Assim, tendo em vista a “obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas”, sempre seria de indeferir a requerida suspensão da presente instância arbitral, o que se determina.”

 

  1. Na supra-referida reunião as partes renunciaram à produção das alegações orais, previstas no n.º 2 do artigo 18.º da LAT.

 

  1. A Requerente juntou, em 30/05/2012, o documento que atesta o trânsito em julgado da decisão proferida no processo n.º …, que correu termos na … Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, e que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pelo Requerente relativa à liquidação adicional do IRC n.º …, referente ao exercício de 1997.

 

  1. A Autoridade Tributária foi notificada da junção do documento referido e, tendo tido oportunidade para se pronunciar, nada disse.

 

Nada mais tendo sido arguido ou requerido, cumpre, agora, proferir decisão.

B. DECISÃO


 

MATÉRIA DE FACTO

Factos dados como provados:

  1. O ora Requerente apresentou para o exercício de 2004 a respectiva declaração de rendimentos modelo 22, na qual apurou imposto a pagar no valor de €2.540.799,94, correspondente a um lucro tributável no montante de €17.483.140,64, uma matéria colectável no valor de €9.772.754,71 (em resultado da consideração do reporte dos prejuízos acumulados dos exercícios anteriores de 1999 e 2003 nos montantes de €5.037.226,83 e €2.673.159,10, respectivamente), uma colecta de €2.443.188,68, e uma derrama de € 244.318,87.

  2. Em Fevereiro de 2007, o Requerente foi notificado da liquidação de IRC n.º…, datada de 01.02.2007, referente ao exercício de 2004, na qual é apurado adicionalmente um montante de imposto a pagar de €246.400,33 através do seguinte documento:

(…)


 

  1. Este acto tributário resultou da desconsideração de parte dos prejuízos acumulados do exercício de 1999 deduzidos ao lucro tributável do exercício de 2004, designadamente, da desconsideração do montante de €2.569.885,08.

  2. Por sua vez a correcção consubstanciada na alteração do reporte do prejuízo fiscal do exercício de 1999 para o exercício de 2004 resulta das correcções anteriormente efectuadas à matéria tributável dos exercícios compreendidos entre 1996 e 2002.

  3. O Requerente requereu, em 26.03.2007, nos termos do disposto no artigo 37.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, a passagem de certidão da qual constassem os fundamentos subjacentes à emissão daquele acto.

  4. Na pendência de resposta ao referido requerimento, ao qual não foi dada resposta, o Requerente foi citado para o processo de execução fiscal n.º…, com vista à cobrança coerciva do montante de imposto apurado no referido acto tributário.

  5. Em 19.06.2007, o Requerente foi notificado de que, em face do não pagamento da dívida no prazo para pagamento voluntário, o Serviço de Finanças do Porto - … iria encetar diligências com vista à penhora dos seus bens.

  6. Com vista à suspensão daquele processo de execução fiscal e pretendendo evitar a prossecução de eventuais actos de cobrança coerciva, o Requerente, não obstante a falta de resposta ao requerimento por si apresentado no dia 26.03.2007, deduziu reclamação graciosa contra o referido acto tributário, em 20.06.2007, tendo feito declaração de reserva do direito de, após notificação dos fundamentos que subjazem à emissão do acto tributário em questão, ampliar a fundamentação da reclamação graciosa apresentada, com vista à demonstração da ilegalidade daquele acto.

  7. Sobre a reclamação graciosa então deduzida viria a recair, num primeiro momento, projecto de decisão de indeferimento, e, posteriormente, decisão definitiva no mesmo sentido, a qual, convolando em definitivo o projecto de decisão, indeferiu totalmente a reclamação graciosa apresentada.

  8. De tal decisão de indeferimento consta, para além do mais, que “(...) a fundamentação da liquidação contestada está nos actos tributários que levaram a alterações dos vários resultados apurados no período compreendido entre 1996 e 2002, que tiveram reflexo no reporte de prejuízos acumulados do exercício de 2004.”, pelo que, tendo sido dada, aquando da decisão desses actos, a oportunidade de exercício por parte do ora Requerido do respectivo direito de audição prévia, fica a administração tributária “(...) dispensada de dar audiência prévia do acto tributário ocorrido no exercício de 2004.”.

  9. No que concerne ao apuramento do reporte de prejuízos, atenta a conta corrente elaborada nos termos do artigo 47.º do Código do IRC (actual artigo 52.º), pela Direcção de Serviços de Inspecção Tributária (DSIT), anexa ao projecto de despacho de indeferimento, concluiu a administração tributária na decisão da reclamação graciosa apresentada que o ora Requerente “(...) no exercício de 2004, (…) só podia deduzir ao lucro tributável os prejuízos fiscais de €2.467.341,75 e €2.673.159,10 referentes aos exercícios de 1999 e 2003, respectivamente.”.

  10. Em 01.09.2008, o Requerente interpôs, na sequência da notificação, em 28.07.2008, da decisão de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa apresentada, impugnação judicial, que correu os seus termos na … Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto sob o n.º …BEPRT.

  11. O ora Requerente não foi ouvido antes da emissão do acto tributário ora em causa, não lhe tendo sido possibilitado o exercício do direito de audição relativamente à correcção à matéria colectável do exercício de 2004, nem constando tal correcção de qualquer projecto de decisão/relatório que lhe haja sido notificado.

  12. No ex-Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto - 3° Juízo/1.ª Secção e no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, ex-Unidade Orgânica 2, correram uns autos de Impugnação Judicial, registados sob o n.º …, em que foi Impugnante …, S.A. e Impugnada a Fazenda Pública.

  13. Os referidos autos tiveram como objecto a liquidação adicional de IRC n.º…, relativa ao exercício de 1997, do ora Requerente.

  14. Em tais autos foi proferida sentença em primeira instância, em 26.04.2005, que julgou integralmente procedente a impugnação, sentença essa que foi totalmente confirmada por acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, proferido em 03.08.2008, tendo este transitado em julgado em julgado em 17.04.2008.

  15. À data da entrada da petição inicial dos presentes autos encontravam-se pendentes de decisão transitada em julgado os seguintes processos administrativos e judiciais, no âmbito dos quais se discute a legalidade de correcções a que a administração tributária procedeu em exercícios anteriores, com relevância para a determinação do prejuízo fiscal reportado para o exercício de 2004:

  16. Procedimento de recurso hierárquico apresentado em 17 de Dezembro de 1999 das correcções efectuadas à matéria colectável de IRC apurada no exercício de 1996, consubstanciadas num acréscimo ao lucro tributável do ora Requerente no montante de € 4.167.810,96;

  17. Processo de Acção Administrativa Especial n.º …BEPRT, deduzida contra a autoliquidação de IRC referente ao exercício de 1997;

  18. Processo de Impugnação judicial n.º …BEPRT, deduzida contra a autoliquidação de IRC referente ao exercício de 1999;

  19. Processo de Impugnação judicial n.º …BEPRT, deduzida contra a liquidação adicional de IRC n.º …, datada de 21 de Maio 2003, referente ao exercício de 2000;

  20. Processo de Impugnação judicial n.º …BEPRT, deduzida contra a liquidação adicional de IRC n.º …, datada de 7 de Abril de 2005, referente ao exercício de 2002.


 

Factos dados como não provados:

Inexistem.


 

Motivação dos factos dados como provados.

Os factos dados como provados integram matéria não impugnada pelas partes e documentalmente demonstrada nos autos.

Não existem factos dados como não provados, na medida em que todos os factos relevantes para a boa decisão da causa foram dados como provados.


 

Do direito:


 

Conforme decorre da leitura da petição inicial, o Requerente imputa ao acto tributário impugnado as seguintes ilegalidades:

a) Falta de fundamentação;

b) Preterição do dever de audiência prévia;

c) Desconformidade com o julgado no processo de impugnação da liquidação de IRC n.º …, relativa ao exercício de 1997;

d) Consideração de actos tributários impugnados administrativa e judicialmente como base das correcções.

Proceder-se-á então, à abordagem e decisão de cada uma das referidas questões, na ordem em que as mesmas foram colocadas.

*

A. Da arguida falta de fundamentação.

Como é sabido, a fundamentação é uma exigência dos actos tributários em geral, sendo uma imposição constitucional (268º da CRP) e legal (art.º 77º da LGT).

Resumidamente, pode dizer-se que é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência nacionais que a fundamentação exigível tem de reunir as seguintes características:

1. Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;

2. Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do acto, não podendo haver fundamentações diferidas ou a pedido;

3. Clareza: deve ser compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos.

4. Plenitude: deve conter todos os elementos essenciais e que foram determinantes da decisão tomada. Esta característica desdobra-se em duas exigências, a saber: o dever de justificação (normas legais e factualidade – domínio da legalidade) e de motivação (domínio da discricionariedade ou oportunidade, quando é preciso uma valoração).

Ora, se a fundamentação é, nos termos referidos, necessária e obrigatória, tal não pode nem deve ser entendido de uma forma abstracta e/ou absoluta, ou seja, a fundamentação exigível a um acto tributário concreto, deve ser aquela que funcionalmente é necessária para que aquele não se apresente perante o contribuinte como uma pura demonstração de arbítrio.

No caso dos autos, verifica-se que a notificação do acto tributário em crise consiste numa demonstração de liquidação e de acerto de contas, constantes do ponto 2 dos factos dados como provados.

Daquelas demonstrações, como muito bem reconhece a entidade requerida (artigo 51. da sua resposta), pode-se retirar o montante imposto que a Administração Tributária pretende cobrar, prazo de pagamento concedido, a identificação da entidade que procedeu à liquidação, e os meios de defesa e prazo para reagir contra o acto de liquidação.

Para além do que vem de se referir, na demonstração de liquidação, consta um quadro com a indicação dos valores inscritos pelo Requerente na sua declaração de imposto, em que assentou a liquidação originária, e dos correspondentes valores corrigidos pela Administração Fiscal, a respectiva soma e a indicação, como valor a pagar, da diferença entre o valor resultante da liquidação corrigida e o valor da liquidação originária.

Será isto suficiente?

Entende-se que não.

Com efeito, embora sejam indicados (numericamente) os montantes corrigidos, não se explica de onde os mesmos surgem ou qual a sua justificação, não sendo compreensível, para um destinatário médio colocado na posição do real destinatário, face aos elementos efectivamente notificados, o porquê da inscrição nos cálculos apresentados daqueles valores, e não de outros quaisquer.

Tais montantes apresentam-se assim, na notificação efectuada, como uma mera manifestação da autoridade da Administração, do seu arbítrio.

Não colhe, assim, a justificação aventada pela Autoridade Tributária, segundo a qual a “A fundamentação da liquidação contestada está igualmente subsumida na fundamentação dos actos tributários que levaram a alterações dos vários resultados apurados no período entre 1996 e 2002, que tiveram reflexo no reporte de prejuízos acumulados do exercício de 2004.” (artigo 44 da resposta).

Efectivamente, de nenhuma parte da liquidação impugnada resulta qualquer remissão, directa ou indirecta para as fundamentações daqueloutros actos.

Acresce ainda que, muito menos, é explicada a forma como os “actos tributários que levaram a alterações dos vários resultados apurados no período entre 1996 e 2002”, concretamente se repercutiram na liquidação impugnada, sendo certo que não se tratará, sequer, de uma repercussão directa, mas meramente indirecta, resultando do impacto que aqueles actos tributários tiveram nos prejuízos fiscais do Requerente para o ano de 1999 (cfr. pontos 3 e 4 dos factos dados como provados).

É certo que o Requerente terá, de algum modo, intuído, as motivações do acto tributário impugnado, mas tal não terá a virtualidade de convalidar o deficiente cumprimento do dever de fundamentação que assistia à Administração Tributária.

Com efeito, não será aceitável que, perante uma fundamentação inexistente ou insuficiente, se ponha a cargo do contribuinte o ónus de adivinhar aquela, atribuindo ao palpite certeiro um efeito convalidante do défice de cumprimento dos respectivos deveres pela Administração Tributária.

Tal de resto, consubstanciaria não só uma deslealdade, como uma infracção ao princípio da igualdade de armas, na medida em que forçaria o contribuinte a enunciar ele próprio os argumentos fundamentadores do acto impugnado, para de seguida os poder contradizer, em lugar de poder partir de um círculo de argumentação previamente delimitado pela entidade autora do acto.

Não relevará, de igual modo, a formulaica inscrição dos dizeres “Fica V. Ex.ª notificado(a) da liquidação de IRC relativa ao exercício a que respeitam os rendimentos, conforme nota demonstrativa junta e fundamentação já remetida.”.

De facto, e conforme consta da matéria de facto acima assente (cfr. ponto 13), não se apura que tenha havido qualquer procedimento prévio destinado à emissão da concreta liquidação em causa a que, contextualmente, pudesse reportar a referência à prévia remissão de qualquer fundamentação.

Nestes termos, e na medida em que a mera apresentação dos números que sustentam os cálculos subjacentes à liquidação, sem qualquer explicação, directa ou remissiva, quanto à origem e justificação de tais números não permite, objectivamente, o conhecimento do itinerário cognoscitivo e valorativo que culminou na eleição de tais números, e não outros quaisquer, deverá ser considerada procedente a arguida preterição de formalidade, decorrente do incumprimento do dever legal de fundamentação que, nos termos dos artigos 268.º da Constituição da República Portuguesa e 77.º da Lei Geral Tributária, impendia sobre a Administração Tributária, de onde decorre a anulabilidade do acto tributário em causa nos autos.

***

B. Da arguida preterição do dever de audiência prévia.


 

Alega ainda o Requerente que, in casu, a Administração Tributária não terá dado devido cumprimento ao dever de audiência prévia, em obediência ao disposto no artigo 60.º/1/a) da Lei Geral Tributária.

A entidade requerida reconhece a não observância do disposto naquela norma, assumindo a tal respeito uma posição ambivalente.

Assim, por um lado, alega a demandada que, em concreto, a formalidade ali consagrada assumirá carácter não essencial, na medida em que preencheria os pressupostos da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, segundo a qual aquela não terá efeito invalidante quando o seu cumprimento “não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada1.

Por outro lado, alega a demandada que tendo sido dado cumprimento ao dever de audiência prévia relativamente às alterações às liquidações dos exercícios de 1996 a 2002, e sendo tais alterações a causa das alterações à liquidação objecto destes autos, estaria o cumprimento do dever em causa dispensado.

Vejamos.

*

Alega, então, a Autoridade Tributária que, no caso, o cumprimento do dever de audiência prévia se terá degradado em formalidade não essencial, por não ter “a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada””.

Será assim?

Entende-se que não. Efectivamente, e como muito bem sublinha a jurisprudência citada pela entidade requerida, para que ocorra a pretendida degradação, é imperioso que a pronúncia do contribuinte seja de todo indiferente à formação da decisão administrativo-tributária. É preciso, em suma, que se demonstre que, dissesse o interessado o que dissesse, a decisão a tomar tivesse que ser a mesma, quer no seu sentido, quer nos seus fundamentos.

Ora, tal demonstração no caso está longe de estar feita, muito pelo contrário.

Com efeito, compulsados os factos dados como provados verifica-se, para além do mais e em síntese, que:

  1. A liquidação impugnada data de 01-02-2007;

  2. A mesma liquidação assenta, entre outros factos, numa liquidação adicional efectuada pela Administração Tributária, ao exercício de 1997;

  3. Tal acto tributário foi, oportunamente, impugnado pelo ora requerente, tendo tal impugnação sido julgada procedente, e determinada a anulação daquele, por sentença datada de 26.04.2005, estando a mesma, à data da emissão do acto tributário ora em causa, pendente de recurso.

Ora, estes factos, ocorridos previamente à emissão do acto tributário sub iudice, têm directa relevância conformativa do respectivo conteúdo, não só potencial como efectivamente.

Ou seja: desde logo, os factos em questão, susceptíveis de serem levados ao conhecimento da Administração Tributária aquando do exercício do direito de audição – tivesse o mesmo sido assegurado – teriam desde logo a consequência de implicar que o acto impugnado, ainda que pudesse ter o mesmo sentido dispositivo, seria diferente nos respectivos fundamentos, na medida em que implicaria que estes abordassem e decidissem a questão da respectiva relevância.

Mas mais: embora tal não constitua objecto directo dos presentes autos, na medida em que a questão tal como ora se coloca tem subjacente o trânsito em julgado da decisão anulatória acima referida, sempre se poderá dizer que aqueles elencados factos tinham já, à data da prolação do acto ora sob censura, a força necessária para impor uma decisão distinta daquela ali corporizada.

Com efeito, não obstante não se encontrar transitada em julgado a decisão judicial de 26.04.2005, o certo é que, à data em que foi emitida a liquidação aqui em apreço, a mesma produzia já efeitos na ordem jurídica, prevenindo a produção de efeitos do acto ali anulado.

De facto, concretizando e como se sabe, no nosso ordenamento jurídico os actos administrativos em geral, e administrativo-tributários em concreto, gozam da chamada executoriedade, ou seja, da susceptibilidade de produzir efeitos mesmo antes de se estarem definitivamente estabilizados na ordem jurídica.

Todavia, nos termos do artigo 286.º/2 do Código de Procedimento e Processo Tributário, os recursos jurisdicionais, em direito tributário, têm por norma efeito meramente devolutivo, ou seja, as decisões jurisdicionais em matéria tributária produzem os respectivos efeitos jurídicos, quando esteja pendente o respectivo recurso, até transitarem em julgado ou sobrevir nova decisão que as revogue.

Neste sentido, de resto, pronunciava-se já o Ilustre Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, no seu “Código de Procedimento e Processo Tributário – Anotado e Comentado” (vol. II, Áreas Editora, 2007, p. 835), afirmando: “Isto é, o recurso do Ministério Público ou da Fazenda Pública interposto de decisão favorável ao contribuinte parece ter forçosamente efeito devolutivo …”

Deste modo, aquela supra-referida decisão judicial de 26.04.2005, produzia já efeitos aquando da prolação do acto tributário aqui em causa, pelo que a executoriedade do acto ali anulado havia já, em tal data, sido coarctada por aquela decisão.

Assim, estava já a Administração Tributária legalmente obrigada a ter em conta o teor e sentido daquela decisão aquando da emissão da liquidação ora impugnada, designadamente expurgando da mesma as decorrências do acto ali anulado.

Daí que se afirme que a susceptibilidade de o contribuinte poder, em sede de audiência prévia, levar ao conhecimento da Administração Tributária os factos atrás elencados, não implicaria que o acto que omitiu aquela diligência tivesse fundamentos diversos, como, igualmente, implicaria que o seu conteúdo dispositivo devesse ser diverso.

Deste modo, ao contrário do que pugna a Autoridade Tributária, não se poderá de todo considerar que o cumprimento do dever de audiência prévia “não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada”. Pelo contrário.

*

Pretende ainda a entidade demandada, na respectiva resposta, que o dever de audição prévia do contribuinte – que entende, in casu, integrar uma formalidade não essencial – haveria sido assegurado na medida em que ao mesmo havia sido dada a possibilidade de se pronunciar previamente às alterações efectuadas às liquidações dos exercícios de 1996 a 2002.

Ressalvado o respeito devido, considera-se uma vez mais não lhe assistir razão.

Com efeito, e desde logo, ter-se-á de ter sempre presente que o acto de audiência prévia não é uma realidade etérea que paira diafanamente no éter jurídico.

Antes, tal acto é um entre outros que integra a sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Tributária, materializada num acto tributário. Ou seja, dito de forma mais breve, o acto de audiência prévia é um concreto acto que integra um concreto procedimento tributário2.

Ora, não consta, antes dos autos resulta o contrário, que os procedimentos tributários que conduziram às alterações às liquidações de imposto relativas aos exercícios de 1996 a 2002, abrangessem o exercício de 2004.

Deste modo nunca se poderá pretender, como faz a entidade demandada na sua resposta, que a audiência prévia proporcionada relativamente àquelas alterações pudessem ter qualquer relevância num procedimento juridicamente distinto e autónomo.

Acresce que, como resulta do já atrás abordado, existiam factos próprios e específicos relativos ao exercício de 2004, susceptíveis de por si conformarem o conteúdo e sentido do acto tributário de liquidação adicional correspondente a tal exercício, que tinham naturalmente a sua sede própria de exposição no procedimento tributário respeitante a esse acto.

Refira-se ainda e por fim que é impertinente à questão em discussão a referência jurisprudencial efectuada no ponto 67 da resposta da entidade requerida, na medida em que o aresto aí invocado3 incide sobre a questão da aplicabilidade das normas relativas à audiência prévia no processo judicial tributário (processo de execução fiscal), o que não é, manifestamente, o caso dos autos.

*

Assim, e por tudo o que se vem de expor, entende-se que assistia, no caso, a obrigação de a Administração Tributária, previamente à emissão do acto ora impugnado, proceder à audiência do Requerido, nos termos do artigo 60.º/1/a) da Lei Geral Tributária, dever esse que, não tendo sido cumprido, integra a preterição de formalidade legal, geradora da anulabilidade de tal acto.

***

C. Da arguida desconformidade com o julgado no processo de impugnação da liquidação de IRC n.º , relativa ao exercício de 1997.


 

Refere também o requerente que o acto tributário impugnado é contrário ao julgado no processo de impugnação n.º …, devendo como tal, e nessa medida, ser anulado.

Também aqui assiste razão ao requerente.

Com efeito, dispõe o artigo 133.º/2/i) do Código do Procedimento Administrativo (aplicável por força do artigo 2.º/d) do Código de Procedimento e Processo Tributário) que “São, designadamente, actos nulos: (…) i) Os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente.”.

A nulidade, como se sabe, “é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal.” (artigo 134.º/2 do Código do Procedimento Administrativo).

Ora, conforme decorre dos pontos 3 e 4 da matéria de facto dada como provada, a liquidação objecto dos presentes autos é parcialmente consequente da liquidação anulada no processo de impugnação n.º…, pelo que, nessa medida, será parcialmente nula, o que haverá que declarar.

*

D. Da arguida consideração indevida de actos tributários impugnados administrativa e judicialmente como base das correcções.

Alega por fim o Requerente, em suma, que tendo impugnado judicial e administrativamente os diversos actos tributários pressupostos pela liquidação objecto dos presentes autos, estava a Administração Tributária impedida de retirar consequências jurídicas daqueles referidos actos impugnados.

Ressalvado uma vez mais o respeito devido, entende-se que não lhe assiste aqui razão.

Com efeito, conforme acima já se aludiu, é consabido que no nosso ordenamento jurídico os actos administrativo-tributários gozam de executoriedade (artigo 149.º do Código do Procedimento Administrativo e 2.º/d) do Código de Procedimento e Processo Tributário), pelo que produzem os seus efeitos jurídicos mesmo que ainda não definitivamente estabilizados no ordenamento jurídico.

E, evidentemente, que a retirada de todos os efeitos de um acto administrativo-tributário por parte da Administração Tributária, não integrará qualquer violação dos princípios da proporcionalidade, boa-fé, da prossecução do interesse público, do respeito pelos direitos e interesses legítimos dos particulares, da legalidade, ou qualquer outro, antes constituindo um dever da própria Administração Tributária, dentro do normal funcionamento do sistema jurídico tributário vigente.

Deste modo, não se alegando (e, consequentemente, não se demonstrando) qualquer facto subsequente susceptível de coarctar a produção de efeitos dos actos pressupostos pela liquidação objecto destes autos, com excepção daquele relativo ao exercício de 1996 e atrás já abordado, nenhuma censura haveria que fazer a tal respeito.

Deverá, por isso, improceder a alegação em causa.

***

DISPOSITIVO:

Em face do exposto, decidem os árbitros que integram o presente colectivo arbitral julgar verificado os alegados vícios de preterição de formalidades legais, por falta de fundamentação do acto impugnado e preterição do dever de audiência prévia no procedimento tributário que culminou naquele, anulando-o na sua totalidade, bem como declarar a nulidade parcial daquele mesmo acto impugnado, na medida em que teve em conta as alterações à liquidação de IRC do Requerente relativa ao exercício de 1996, anulada no âmbito do processo de impugnação n.º… .

Fixa-se o valor do processo em €246.400.33, e o valor da correspondente taxa de arbitragem em €4.284,00, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.

Custas a cargo da entidade requerida.

Notifique.

Lisboa, 27 de julho de 2012.

1 Cfr. Ac. do pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 17-12-1997, citado pela entidade demandada nos pontos 59 e 60 da sua resposta, que se mantém actual (ver. p. ex. o recente Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 12-04-2012, proferido no processo 0896/11, disponível em www.dgsi.pt).

2 Cfr. artigos 2.º/1 do Código do Procedimento Administrativo e 2.º/d) do Código de Procedimento e Processo Tributário.

3 Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 30-11-2011, proferido no processo 0983/11, disponível em www.dgsi.pt.