Decisão Arbitral
RELATÓRIO
1. Em 14 de Março de 2016, a sociedade A… , Lda, NIPC n.º…, com sede na Rua…, …, ... …-… …, adiante designada por Requerente, com sede em Portugal, solicitou a constituição de tribunal arbitral e procedeu a um pedido de pronúncia arbitral, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT).
2. A Requerente é representada, no âmbito dos presentes autos, pelos seus mandatários, Dr. B… e Dr. C… e a Requerida é representada pelas juristas, Dr.ª D… e Dr.ª E… .
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Requerida em 24 de Março de 2016.
4. Mediante o pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, a Requerente pretende submeter à apreciação do Tribunal a legalidade do acto de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2015…, praticado com referência ao quarto trimestre de 2011, no montante de € 22.238,36 (vinte e dois mil, duzentos e trinta e oito euros e trinta e seis cêntimos), e a legalidade do acto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente contra aquele acto tributário, sendo igualmente requerida a condenação da Requerida no reembolso dos valores pagos a título de imposto e compensações, bem como o pagamento de juros indemnizatórios.
5. Verificada a regularidade formal do pedido apresentado, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT e não tendo a Requerente procedido à nomeação de árbitro, foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o signatário.
6. Tendo o signatário aceite a designação efectuada, foi o Tribunal Arbitral constituído no dia 25 de Maio de 2016, na sede do CAAD, sita na Avenida Duque de Loulé, n.º 72-A, em Lisboa, conforme acta da constituição do tribunal arbitral que foi lavrada e que se encontra junta aos presentes autos.
7. A Requerida, depois de notificada para o efeito, nos termos do disposto do artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) apresentou a sua resposta, no dia 22 de Junho de 2016, tendo junto, igualmente, nesse dia, o processo administrativo.
8. Não tendo sido invocadas quaisquer exceções, não existindo necessidade de produção de prova adicional, para além daquela que documentalmente já se encontra incorporada nos autos, não se vislumbrando necessidade de as partes corrigirem as respetivas peças processuais, reunindo o processo todos os elementos necessários à prolação da decisão, por razões de economia e celeridade processual, da proibição da prática de atos inúteis, face à posição (tácita) manifestada pelas partes, notificadas para o efeito, o Tribunal entendeu, através do despacho que proferiu a 14 de Setembro de 2016, dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, a inquirição de testemunhas, bem como a apresentação de alegações.
9. Nesse mesmo despacho, o Tribunal fixou o dia 25 de Novembro de 2016 como data para a prolação da decisão arbitral, tendo, ainda, advertido a Requerente de que deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD.
10. Sucede que, no dia 17 de Outubro de 2016, a Requerida apresentou requerimento no sentido da revogação dos actos de liquidação impugnados, propondo, assim, e em consequência, a extinção do presente processo, por inutilidade superveniente da lide.
11. No entanto, a Requerente, em resposta ao requerimento identificado em 10., no dia 26 de Outubro de 2016, apresentou um requerimento no sentido de, não obstante, aceitar a confissão da Requerida quanto ao pedido de anulação das liquidações impugnadas, defender o prosseguimento do presente processo no que toca ao conhecimento da questão do direito a juros indemnizatórios a favor da Requerente.
A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, da seguinte forma:
A Requerente sustenta o pedido de anulação do acto de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2015…, praticado com referência ao quarto trimestre de 2011, no montante de € 22.238,36 (vinte e dois mil, duzentos e trinta e oito euros e trinta e seis cêntimos), por se encontrar o mesmo ferido de ilegalidade, por erro sobre os pressupostos de direito, porquanto:
a) Sustenta a Requerente que «é uma sociedade que tem como objecto social o comércio, importação, exportação e representação de produtos para aplicação nas áreas médico-odontológicas, médico-ortopédicas, cirúrgico-odontológicas, protético-dentária e laboratorial, implantes, instrumentos e ferramentas de precisão, bem como formação nas referidas áreas. No âmbito do referido objecto social, a Requerente procede, entre o mais, à importação e comercialização de materiais e componentes destinados à implantologia dentária.»
b) Mais refere, a Requerente que «os bens comercializados [por si](…) destinam-se, assim à reposição de dentes, substituindo, no todo ou em parte, o órgão dentário (o dente), em virtude da sua perda, deterioração e irrecuperabilidade, constituindo bens de elevada utilidade social.»
c) Alega a Requerente que foi objecto de uma inspecção tributária de âmbito parcial, abrangendo o IVA do (…) quarto trimestre do ano de 2011, do qual resultaram correcções de natureza meramente aritmética resultante de imposição legal, no valor de € 22.238,41, com fundamento no facto de a Requerente «ter liquidado nas suas operações activas, IVA à taxa reduzida (de 6%) quando, no entender da AT, deveria ter liquidado à taxa normal de (23%).»
d) Com efeito, entende a Requerente que a comercialização de artigos de implantologia dentária – implantes osseointegráveis, ou seja, «dispositivos médico (utilizados em medicina dentária) que apresentam como característica principal a sua fixação directamente no osso do maxilar e/ou mandíbula – mediante a técnica da “osseointegração”, o qual «(…) exerce numa prótese a mesma função que a raiz num dente natural», têm pleno enquadramento, por um lado, na alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA e, por outro, na verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA, que prevê a tributação à taxa reduzida (…), na medida em que esta verba incide sobre os “aparelhos ortopédicos, cintas médico-cirúrgicas e meias medicinais, cadeiras de rodas e veículos semelhantes, acionados manualmente ou por motor, para deficientes, aparelhos, artefactos e demais material de prótese ou compensação destinados a substituir, no todo ou em parte, qualquer membro ou órgão do corpo humano ou a tratamento de fraturas e as lentes para correcção de vista, bem como calçado ortopédico, desde que prescrito por receita médica (…)».
e) Refere, a Requerente, que os implantes por si transaccionados «independetemente de serem vendidos separada ou conjuntamente com a coroa do dente artificial – que muitas vezes será motivado por questões de ordem técnica – visam a substituição de parte de um órgão e que, conjuntamente com o pilar (ou elemento de ligação), se tornam indispensáveis à existência da prótese em si».
f) Assim sendo, entende a Requerente que «à luz do elemento literal [da verba 2.6 da Lista I do CIVA], não se vê como negar a inclusão dos implantes dentários no âmbito de aplicação daquela disposição: atenta a sua função (única) e características, não há dúvidas que tantos os implantes dentários comercializados pela Requerente, como os respectivos pilares ou elementos de fixação da coroa, se subsumem no conceito legal de material de prótese, no sentido em que esta, em si, inexiste sem a existência daqueles»
g) Concluindo no sentido de que «ao corrigir o imposto liquidado pela Requerente na venda de implantes, aplicando-lhe a taxa normal de 23% ao invés da taxa reduzida de 6% aplicada, por considerar não ser aplicável a verba 2.6 da lista I anexa ao Código do IVA, incorre o acto tributário ora em crise em manifesta ilegalidade em virtude de erro sobre os pressupostos de facto e de direito de aplicação da referida norma, devendo por isso ser de imediato anulado.» pelo que, «tendo a AT, por sua iniciativa, procedido à compensação parcial dos valores liquidados adicionalmente a título de imposto -privando assim a Requerente dos montantes que lhe eram devidos pelo Estado – compete-lhe agora rectificar essa situação, impondo-se o pagamento dos valores compensados e, bem assim, dos montantes entretanto pagos nos processos executivos instaurados, acrescidos de juros indemnizatórios calculados sobre este montante, desde a data da compensação.»
III. Na sua Resposta a Requerida, invocou, em síntese, o seguinte:
a) Entende a Requerida, no que toca ao alegado erro sobre os pressupostos de factos que «de acordo com a verba 2.6 da lista I anexa ao Código do IVA, estão sujeitos à taxa reduzida (…) apenas a venda de próteses, incluindo as próteses dentárias, que se destinem ao fim ali previsto, e não à venda de peças ou materiais de ligação ou de fixação daquelas próteses, cuja venda deve ser tributada à taxa normal do imposto.»
b) Com efeito, considera a Requerida, seguindo o entendimento veiculado pela Divisão de Concepção da Direcção de Serviços do IVA, que «os materiais de prótese apenas são tributados à taxa reduzida se se destinarem ao fim definido na verba, ou seja, à substituição de parte do corpo com deficiência ou enfermidade ou da sua função.», o que «implica, também, que os bens que consistam em peças, partes e acessórios daquelas próteses não sejam abrangidos pela verba 2.6, dado que, para além de não serem próteses, não são aptos a cumprir, considerados individualmente, a função de substituição de uma parte do corpo ou da sua função.».
c) Defende, assim, que «a verba 2.6 apenas abrange a transmissão do artigo que, em si, configure uma peça artificial que substitua o órgão do corpo humano ou parte dele, ou seja, autonomamente ou unitariamente.», pelo que «na prótese dentária por implante, aplica-se a taxa normal do imposto à transmissão das peças de ligação ou fixação, dado que as mesmas, não cumprem, em si, objectivamente, a função descrita na verba 2.6. da Lista I anexa ao CIVA.»
d) Para sustentar a sua posição, a Requerida recorre à jurisprudência comunitária, designadamente fazendo referência aos Acórdãos de 18 de Janeiro de 2001, processo Comissão contra Espanha, C – 83/99, e ao Acórdão de 17 de Janeiro de 2013, igualmente em processo da Comissão contra Espanha, C – 360/11, no que à aplicação das taxas reduzidas diz respeito, aludindo no sentido de que «o escopo da aplicação das taxas reduzidas do IVA é, em especial, diminuir o encargo suportado pelo consumidor final na aquisição de determinados bens essenciais. Tendo em conta que este tipo de bens é usado essencialmente por profissionais e entidades do sector da saúde, que beneficiam da isenção do imposto nas prestações de serviços que realizam, o encargo destas despesas dificilmente recai sobre o consumidor final.»
e) Nesta sequência, considera a Requerida que «a conclusão do Tribunal se situa, aliás, em linha com o disposto no n.º 4 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que proíbe a integração analógica para as lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República. Com efeito, em virtude do disposto no n.º 2 do artigo 103.º e na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, as isenções e demais benefícios ou incentivos fiscais, onde se incluem, sem dúvida, os casos de aplicação de taxas reduzidas em sede de IVA, constituem matérias abrangidas pela reserva de lei parlamentar, sendo-lhes, nessa medida, aplicável a proibição da analogia.», para reforçar a sua posição de que «compreendem-se na verba 2.6 da Lista I, anexa ao CIVA, sendo tributados à taxa reduzida, os “(…) aparelhos, artefactos, e demais material de prótese ou compensação destinados a substituir, no todo ou em parte, qualquer membro ou órgão do corpo humano”.
f) Recorrendo às regras da hermenêutica, alega, ainda, que «estabelece-se no artigo 11.º, n.º 1 da LGT que na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.», fazendo referência, igualmente ao disposto no artigo 9.º do Código Civil, para afirmar que “Interpretar uma lei é fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar os seus sentidos e alcance decisivos.», mais referindo que «atendendo ao elemento literal da interpretação da norma, que o legislador se refere a material de prótese e não a material para prótese (para aplicação numa prótese), o que indica excluir as peças de ligação ou fixação de próteses, como as transaccionadas pelo sujeito passivo.»
g) Continua, aludindo que, «(…) importa distinguir o conceito de implante do conceito de material de prótese. [Assim] Por «material de prótese» deve entender-se aquele que se destine ou seja apto à substituição de um membro ou órgão do corpo humano, de forma total ou parcial. As próteses dentárias visam substituir o aparelho dentário, total ou parcialmente. Essa substituição verifica-se não só fisicamente mas, também, na substituição das suas funções: mastigação, verbalização, função estética. Na prótese por implante, (…) o implante é o modo de fixação da prótese. A prótese, construída ou elaborada por um técnico especializado, por referência ao paciente a que se destina, consiste na peça designada por coroa (dente artificial em porcelana), a qual não é fornecida pelo sujeito passivo. Na realidade, o implante (a forma de fixação da prótese) não beneficia do mesmo tratamento fiscal da prótese, como sucede, aliás, com os componentes utilizados na elaboração das demais próteses. »
h) Acrescenta, igualmente que «(…) as próteses dentárias em geral, independentemente do método de aplicação, têm, no seu destino final, o mesmo tratamento fiscal, ou seja, a isenção prevista no artigo 9.º do CIVA. Não podemos esquecer que a prótese, em si, pode ser objecto de comercialização em estágios anteriores à colocação à disposição do paciente, caso em que é tributada à taxa reduzida.»
i) Mais, menciona que «a verba 2.6 aplica-se, pois, aos aparelhos e próteses em si, produto final, no caso em apreço, ao dente artificial (prótese). Significa que não se aplica aos bens transaccionados pelo sujeito passivo.», uma vez que estes «(…) não são material de prótese. Efectivamente, segundo o parecer da Ordem dos Médicos Dentistas, referido anteriormente, tais bens servem de suporte à prótese dentária.»
j) Continua referindo que «não obstante não terem outra aplicação que não seja em medicina dentária, são, tão-somente, peças acessórias ou instrumentais, que contribuem para o resultado final da reabilitação oral. Refira-se, novamente, que a própria Ordem dos Médicos Dentistas considera prótese, a coroa, uma vez que é esta que substitui o dente, na sua função mastigatória, de verbalização e estética.»
k) Faz referência ao «princípio da neutralidade decorre[nte] do Tratado de Roma e encontra-se vertido na Directiva IVA (2006/112/CE), sendo sistematicamente invocado pela Comissão para se opor às legislações nacionais tidas por incompatíveis com as regras comunitárias, bem como pelas administrações fiscais e pelos contribuintes dos diversos Estados membros, tendo sido, inúmeras vezes, aplicado pelo TJUE. », mais, referindo que «se estamos a falar da neutralidade sobre a tributação dos diferentes tipos de prótese temos de comparar a transmissão da prótese amovível com a da prótese fixa. E não com a da prótese fixa acrescida de peças de fixação e de ligação.», pelo que, entende que «Seria manifestamente discutível a eventual comparação entre os dois tipos de prótese, seja pelo respectivo valor económico, seja pela forma de suprir as necessidades para as quais estão vocacionadas, não sendo indiferente, do ponto de vista do consumidor, optar por uma ou por outra. Nesta perspectiva, o princípio da neutralidade pode ficar em crise se incidirem taxas diferentes sobre os materiais necessários à elaboração de cada um dos diferentes tipos de prótese.»
l) Concluindo no sentido de que «atentos todos os argumentos supra expostos, forçoso se torna concluir que não assiste à Requerente qualquer razão nas suas pretensões.», salientando, contudo, sem conceder, à cautela, que «não estão reunidos os pressupostos de que depende o direito da Requerente a juros indemnizatórios», pugnando, a final e em consequência, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
IV. Do despacho de revogação do acto tributário operado pelo Director Geral da Autoridade
1. A Requerida, no dia 17 de Outubro de 2016, apresentou o requerimento arguindo a inutilidade superveniente da lide, face à (recente) revogação dos actos de liquidação sindicados nos presentes autos.
2. Revogação essa, que operou, em conformidade com as recentes orientações administrativas, segundo as quais, de acordo com o Despacho de 14.10.2016 da Senhora Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira «recentemente [foi] elaborada (pela DSIVA) a Informação n.º…, favoravelmente despachada, pelo Senhor Subdirector-Geral da área de Gestão Tributária do IVA, no pretérito dia 09 do corrente mês. Tal informação ancora-se no entendimento sufragado pelo CEF, em Parecer datado de 14.07.2016, o qual, para o assunto de que aqui se trata, propõe, na conclusão 1) “a alteração da interpretação da verba 2.6 da Lista I, no sentido de considerar que a taxa reduzida de IVA de 6% é aplicável às próteses dentárias bem como aos respectivos componentes.”
Este Parecer mereceu despacho da Senhora Directora-Geral, de 26 de Julho de 2016.
A mencionada Informação corrobora o sentido do Parecer e altera o entendimento, vigente até à data sobre a matéria, passando a considerar-se que os componentes das próteses dentárias – implante, pilar e coroa – beneficiam da aplicação da taxa reduzida de 6%, uma vez que se enquadram na previsão normativa da verba 2.6 da Lista I ao Código do IVA.»
3. Concluindo, em consequência propondo «a revogação do acto de liquidação que constitui o objecto do pedido de pronúncia arbitral – que pende no Tribunal Arbitral sob o n.º 152/2016 T CAAD – (…).»
I. Saneamento
O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e dos artigos 5º e 6º, todos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, encontram-se regularmente representadas e o processo não enferma de nulidades.
II. Matéria de Facto
Para a convicção do Tribunal Arbitral, relativamente aos factos provados, relevaram as posições expostas pelas partes, os documentos e o processo administrativo juntos aos autos.
a. Factos dados como provados
Com interesse para a apreciação da questão da inutilidade superveniente da lide, dão-se por provados os seguintes factos:
A. A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IVA n.º 2015…, praticado por referência ao quarto trimestre de 2011, do qual resulta um valor a pagar de € 22.238,36 (vinte e dois mil, duzentos e trinta e oito euros e trinta e seis cêntimos) (cfr. Doc. n.º 2 junto com a petição inicial e processo administrativo).
B. No dia 25 de Maio de 2015, a aqui Requerente inconformada com aquele acto de liquidação, apresentou Reclamação Graciosa contra o mesmo. (cfr. Doc. n.º 3 junto com a petição inicial e processo administrativo).
C. A reclamação graciosa referida em B. foi indeferida, através do Ofício n.º…, de 17 de Dezembro de 2015. (cfr. Doc. n.º 1 junto com a petição inicial e processo administrativo).
D. No dia 14 de Março de 2016, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
E. No dia 17 de Outubro de 2016, a Requerida procedeu à revogação do acto de liquidação impugnado nos presentes autos, por despacho da Direcção de Serviços de Consultoria Jurídica e Contencioso da AT. (cfr. Requerimento e despacho junto aos autos, pela Requerida, a 17.10.2016).
F. No dia 26 de Outubro de 2016, a Requerente, notificada da revogação do acto de liquidação impugnado, manifestou a sua intenção de prosseguimentos dos autos no que toca à apreciação do direito a juros indemnizatórios peticionados.
G. A Requerente procedeu ao pagamento do imposto sindicado, bem como das respectivas compensações, no montante de € 22.238,36 – (cfr. Doc. n.º 2 e 25 juntos com a petição inicial).
III. Factos dados como não provados
Não existem factos dados como não provados, porque todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados.
IV – Do direito
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Questão da inutilidade superveniente da lide – revogação do acto de liquidação
1. A Requerida, como já mencionado supra, vem propor a extinção dos presentes autos, por inutilidade superveniente da lide, face “à revogação dos actos de liquidação sindicados no processo em curso.”
2. A Requerente notificada da revogação do acto de liquidação sindicado nos presentes autos, manifestou a sua intenção de se prosseguir quanto à apreciação sobre o direito a juros indemnizatórios a favor da Requerente, por pagamento indevido da prestação tributária. Aludindo, a este respeito, que «a mera revogação das liquidações por parte da ATA Requerida não pode determinar por si só a inutilidade superveniente da lide, devendo os autos arbitrais, admitindo a confissão da Requerida quanto ao pedido de anulação das liquidações impugnadas, prosseguir para conhecimento da questão do erro imputável aos serviços no pagamento indevido das liquidações sobre o direito a juros indemnizatórios a favor da Requerente.»
Ora, vejamos,
3. A inutilidade superveniente da lide é, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º do RJAT, uma causa de extinção da instância, a qual ocorre quando, «por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio.» - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0875/14, de 30.07.2014, o qual sumariamente, explica que:
«I – A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art. 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio.»
4. Aduz, em complemento a esta questão, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 07433/14, de 10.04.2014, que:
«1. Entre as causas de extinção da instância do processo declarativo, as quais são aplicáveis à execução supletivamente, conforme dispõe o artº.551, nº.1, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, vamos encontrar a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (cfr.artº.277, al.e), do C.P.Civil).
2. Esta causa de extinção da instância contém dois requisitos que necessitam estar verificados para a sua aplicação. São eles, a inutilidade da lide, e que essa inutilidade decorra de facto posterior ao início da instância, para poder dizer-se que é superveniente, a qual dá lugar à mesma extinção da instância sem apreciação do mérito da causa.
3. Também neste sentido segue a doutrina e a jurisprudência, ao referirem que a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide se dá quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo ou, por outro lado, porque encontra satisfação fora do esquema da proveniência pretendida. Num e noutro caso, a causa deixa de interessar - além por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outros meios.
4. Só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica. A utilidade da lide correlaciona-se, assim, com a possibilidade da obtenção de efeitos úteis da mesma pelo que a sua extinção só deve ser declarada quando se conclua que o seu prosseguimento não poderá trazer quaisquer consequências vantajosas para o autor/recorrente.»
5. Ora, no caso sub judice, temos como acto sindicado - o acto de liquidação de IVA respeitante a 2011/12T, - o qual, na pendência do presente processo, foi revogado pelo Director Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que, e assim sendo, é entendimento da Requerida que se deverá extinguir a instância com base na inutilidade superveniente da lide.
Vejamos se lhe assiste razão,
6. A revogação de um acto supõe a desconformidade entre o padrão de actuação estabelecido anteriormente pelo autor do acto e o padrão que emerge das alterações de facto ou de direitos supervenientes. Constitui um acto secundário (acto sobre acto) que provoca a desintegração do acto administrativo anterior, determinando o seu desaparecimento da ordem jurídica e extinguindo os seus efeitos.
7. A revogação do acto pode ser total ou parcial, sendo que, no primeiro caso, há a eliminação completa e total do acto tributário anterior, e no segundo caso, há a eliminação apenas parcial do acto.
8. Conforme alude, e bem, Clotilde Celorico Palma na decisão do CAAD proferida no processo n.º 360/2014 T:
«(…) embora a revogação tenha efeitos desintegrativos ou destruidores, no todo ou em parte, o acto anterior, mesmo em caso de revogação total o requerente pode ter interesse na declaração de ilegalidade do acto revogado como suporte para eventual pedido indemnizatório pelos danos que lhe foram causados até à produção de efeitos do acto revogatório.
(…)
Mesmo no caso em que a revogação do acto tributário é resultado de um acto administrativo em matéria tributária posterior, como a eficácia deste em relação ao sujeito passivo depende de lhe ser notificado o acto revogatório, o requerente, se desconhecer a prática do acto por não lhe ter sido levado ao conhecimento, pode submete-lo a Tribunal Arbitral com vista à declaração da sua ilegalidade. Neste caso, ainda que o Tribunal venha a reconhecer que o acto não pode ser anulado, por entretanto ter desaparecido da ordem jurídica, não pode deixar de reconhecer que a actividade do Tribunal é inteiramente imputável à AT.
O mesmo se passa, de resto, se a revogação ocorre depois do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 13.º do RJAT.»
9. Com efeito, tendo em consideração que, nos presentes autos, a Requerida não se pronunciou, no acto de revogação da liquidação sindicada, sobre o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e que, notificada do requerimento da AT em que (simplesmente) comunicou essa revogação, a Requerente veio peticionar que fosse apreciado pedido de pagamento de juros indemnizatórios, pois só assim ficariam “acauteladas as pretensões formuladas pela requerente nos presentes autos”, impõe-se, o prosseguimento dos presentes autos, nomeadamente para apreciação do eventual direito a juros indemnizatórios, bem como o direito ao reembolso do imposto pago e respectivas compensações, o que se fará de seguida.
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Direito a juros indemnizatórios
1. Não obstante a revogação do acto de liquidação sindicado nos presentes autos, a verdade é que a Requerente manifesta o seu interesse no prosseguimento dos autos, por forma a que o presente Tribunal aprecie o direito a juros indemnizatórios peticionados, com fundamento em erro imputável aos serviços.
2. Dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT e o artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que são devidos juros indemnizatórios quando se determine em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
3. Assim, quando o património do contribuinte tenha sido atingido em resultado de um erro da Administração Fiscal, e tal erro tenha sido declarado, o que ocorre, implicitamente, sempre que seja proferida uma decisão de anulação do ato de liquidação, nasce o direito a juros indemnizatórios.
4. A pedra de toque desta norma é o erro dos serviços, cujo reconhecimento tem como efeito automático o direito a juros indemnizatórios, devidos desde a data em que o tributo foi pago em excesso até à data em que deva ser emitida a nota de crédito a favor do sujeito passivo (neste sentido, ver, nomeadamente, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 02 de Novembro de 2005, Proc. n.º 562/05).
5. Mais, considera-se erro imputável à administração, quando o erro não for imputável ao contribuinte e assentar em errados pressupostos de facto que não sejam da responsabilidade do contribuinte.
6. Ora, resultando dos actos tributários impugnados a obrigação de pagamento de imposto superior ao que seria devido, são devidos juros indemnizatórios nos termos legalmente previstos, presumindo o legislador, nestes casos, em que se verifica a anulação da liquidação, que ocorreu na esfera do contribuinte um prejuízo em virtude de ter sido privado da quantia patrimonial que teve que entregar ao Estado em virtude de uma liquidação ilegal. Em consequência, tem o contribuinte direito a essa indemnização, independentemente de qualquer alegação ou prova do prejuízo sofrido.
7. No caso presente, tendo em consideração a revogação do acto de liquidação do imposto em causa, passando a AT, a considerar, ao contrário do que defendia anteriormente e cujo entendimento deu origem ao presente processo arbitral, que os componentes das próteses dentárias – implante, pilar e coroa – beneficiam da aplicação da taxa reduzida de 6%, uma vez que se enquadram na previsão normativa da verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA.», é inquestionável que haverá lugar a reembolso do imposto por força do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, e do artigo 100.º da LGT passando, necessariamente por aí o restabelecimento da “situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.
8. Do mesmo modo, entende-se que será isento de dúvidas que a ilegalidade do acto é imputável à Autoridade Tributária, que autonomamente o praticou de forma ilegal, o que não pode deixar de estar interligado com a sua posterior revogação.
9. Assim sendo, estando-se perante um vício de violação de lei substantiva, que se consubstancia em erro nos pressupostos de direito, imputável à Autoridade Tributária, tem a Requerente direito a juros indemnizatórios, de acordo com os artigos 43.º, n.º 1 da LGT, e 61.º do CPPT, contados desde o pagamento do imposto até ao integral reembolso do referido montante.
V. Decisão
De harmonia com o exposto, decide-se condenar a Requerida no reembolso do montante pago pela Requerente, a título de imposto aqui sindicado, acrescido das respectivas compensações, bem como no pagamento dos juros indemnizatórios contados desde o pagamento do imposto até ao integral reembolso do referido montante.
VI. Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em € 22.238,36 (vinte e dois mil, duzentos e trinta e oito euros e trinta e seis cêntimos) nos termos art.º 97-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 29 do RJAT e do n.º 2 do art.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII. Custas
Nos termos previstos no n.º 3 do artigo 536.º do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do artigo 29.º do RJAT, “a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas”.
Ora, tendo em consideração que a Requerida procedeu à revogação do acto de liquidação de IVA após a constituição do Tribunal Arbitral, o prosseguimento do processo, só à Requerida pode ser imputável.
Pelo que, as custas devem, por isso, ser totalmente imputáveis à Requerida, face ao princípio vigente na ordem jurídica portuguesa de que suporta as custas do processo a parte que lhe tenha dado causa (artigo 447.º-D, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Assim, nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 3 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de Novembro de 2016
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O Árbitro
(Jorge Carita)