Processo n.º 59/2012-T
Decisão arbitral
I. Relatório
1. … e …, com os NIFs … e …, respetivamente, casados, residentes na Rua …, no Estoril, apresentaram, em 29.03.2012, requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (‘RJAT’), com intervenção de árbitro singular designado nos termos do disposto n.° 1 do artigo 6.° do referido diploma.
2. Em súmula, e como adiante detalhadamente se regista, a situação que está na base do requerimento de constituição do tribunal arbitral é a seguinte: através da Demonstração de Liquidação de IRS com o número …, referente à Liquidação com o número … e à Demonstração de Acerto de Contas a ela anexa com o número …, foram os Requerentes notificados da liquidação adicional de IRS relativo ao ano 2007, no valor de EUR 32,513.77. Dessa liquidação, após o estorno de EUR 21.513,77, resultou imposto a pagar de EUR 11.128,26. Através da Demonstração de Liquidação de Juros com o número …, igualmente anexa à referida Demonstração de Liquidação de IRS, foram os Requerentes notificados da liquidação de juros compensatórios no valor de EUR 1.606,26, perfazendo, pois, um valor a pagar adicional de EUR 12.734,52. Na base desta liquidação adicional esteve a desconsideração integral “do valor declarado em despesas de saúde por não terem sido comprovados, de acordo com o disposto no art. 65.º do CIRS”.
Foi ainda o primeiro Requerente notificado, por carta registada com a data de 24.02.2012, do levantamento de processo de contra-ordenação (Processo …), por falta de apresentação de documentos comprovativos da declaração, punível pelo n.º 1 do artigo 117.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (‘RGIT’), vindo a coima a ser fixada em EUR 100 (mínimo da banda de variação em vigor à data da infração), a que acresceram as custas do processo, no valor de EUR 38,25.
3. No pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes articulam os factos que assim se sumariam:
3.1. Suportaram em 2007 despesas de saúde no valor de EUR 37.283,85 e refletiram-nas na declaração de rendimentos desse ano.
3.2. No dia 04.07.2011, foram notificados pela Diretora de Serviços do IRS para, no prazo de 15 dias, apresentarem no Serviço de Finanças de Cascais … os documentos comprovativos dessas despesas de saúde.
3.3. No dia 21.07.2011, um dos Requerentes deslocou-se ao Serviço de Finanças de Cascais … e apresentou os originais dos documentos, de que o referido Serviço de Finanças reteve cópia.
3.4. Por ofício de 26.09.2011, o Chefe de Finanças de Cascais … notificou o mesmo Requerente para exercer o direito de audiência prévia à sua decisão de corrigir para zero o valor de despesas de saúde declarado, por ter constatado que as mesmas "não foram comprovadas".
3.5. Na audiência prévia, os Requerentes apresentaram novamente os comprovativos das despesas de saúde suportadas em 2007, desta vez promovendo por sua iniciativa a junção ao processo de cópia integral dos originais exibidos em 21.07.2011.
3.6. Por oficio de 11.11.2011, o Chefe de Finanças de Cascais … confirmou como decisão final a de corrigir para zero o valor de despesas de saúde declarado, acrescentando que em audiência prévia "nada foi acrescentado que altere os pressupostos da correcção, não vão ser consideradas as despesas de saúde, conforme a informação da DSIRS, o documento apresentado não identifica a que se destina o tratamento".
3.7. Da correção resultou o imposto a pagar, no valor de EUR 11.128,26, acrescido de juros de EUR 1.606,26, no montante total de EUR 12.734,52.
3.8. O referido valor foi pago pelos Requerentes no dia 04.01.2012.
3.9. Por ofício de 24.02.2012, o Chefe de Finanças de Cascais … notificou um dos Requerentes –…– de que lhe fora instaurado processo de contra-ordenação, por violação do disposto nos artigos 128.° do Código do IRS e 117.° do Regime Geral das Infrações Tributárias (‘RGIT’). Segundo esse ofício, uma vez notificado para corrigir ou prestar esclarecimentos sobre a irregularidade detetada na declaração Modelo 3 de IRS de 2007, o referido Requerente ''não regularizou a situação detetada no prazo concedido pela notificação". 3.10. No dia 15.03.2012, o mesmo Requerente pagou a coima, no valor de EUR 100, acrescido de custas processuais no valor de EUR 38,25.
4. Em matéria “de Direito”, expõem os Requerentes, em súmula:
4.1. O motivo que levou a Autoridade Tributária e Aduaneira (‘AT’) a entender não estarem comprovadas as despesas de saúde declaradas só foi dado a conhecer na decisão final do procedimento. Só então revelou que as despesas não estavam comprovadas porque o documento apresentado não identificava o fim a que se destinou o tratamento.
4.2. É natural que a fatura emitida por estabelecimento ou profissional de saúde não consista numa descrição detalhada dos tratamentos que lhe estão subjacentes. É um documento elaborado com o propósito de ser conhecido e dado a conhecer a terceiros, o que impede que nele se possa fazer constar informação que está no cerne da relação médico-paciente - confidencial, íntima e privada - como seja a finalidade do tratamento médico ministrado.
4.3. Tivesse a AT solicitado essa explicação aos ora Requerentes até ao fim do procedimento, e facilmente veria esclarecida a sua dúvida sobre a finalidade do tratamento, a tempo de a refletir na sua decisão final.
4.4. Embora a AT não diga a qual dos 19 documentos apresentados se refere, os Requerentes pressupõem que o problema identificado estará nas faturas emitidas pela clínica de reabilitação … . Assim entendem uma vez que todas as restantes despesas se apresentam de apreensão fácil e intuitiva quanto ao fim a que se destinam, pelo que não é a elas que se pode referir a notificação do Chefe de Finanças de Cascais ….
4.5. As faturas emitidas pela clínica de reabilitação … acham-se redigidas em língua inglesa, o que poderá ter dificultado a sua compreensão pelos serviços da AT.
4.6. As faturas emitidas pela … dizem respeito a despesas suportadas com o internamento do Requerente … num Centro de Reabilitação para tratamento da dependência do álcool, como confirma a declaração do seu Psiquiatra.
4.7. Constitui entendimento da AT que "não oferece dúvidas a qualificação como despesas de saúde os gastos efectuados pelo sujeito passivo (...) com o tratamento de todos os tipos de dependência (física e psíquica), sejam quais forem as substâncias que a originaram (álcool e estupefacientes) " - cf. o ofício-circulado 24/90 de 18-06-1990. Como também constitui entendimento da AT que as despesas realizadas no estrangeiro são aceites nos mesmos termos e dentro dos limiteis em que o são quando efetuadas em território nacional - cf. a circular n.° 14/2001 da DSIRS.
4.8. A liquidação de IRS acha-se assim ferida de ilegalidade, por violação do disposto no artigo 82.° do Código do IRS.
4.9. A liquidação de IRS acha-se ainda ferida de vício de forma, por insuficiência da sua fundamentação nos termos que são exigidos pelo artigo 66.° do Código do IRS, uma vez que a fundamentação se circunscreveu à singela afirmação de que "o documento apresentado não identifica a que se destina o tratamento", sendo certo que foram apresentados 19 diferentes documentos no serviço de finanças!
4.10. A liquidação de IRS acha-se ferida de outro vício de forma, por preterição do direito de participação na formação da decisão que desencadeou o ato sindicado, uma vez que a notificação para audiência prévia foi omissa quanto a todos os aspetos relevantes para a decisão, mormente o problema da identificação da finalidade do tratamento, só levantado na decisão final do procedimento, em nítida violação do artigo 101° do CPA.
4.11. Existiu claro desinteresse do Serviço de Finanças de Cascais … em saber se as despesas declaradas foram ou não suportadas com a saúde dos ora Requerentes, desinteresse esse que resultou na correção de todas as despesas, sem nenhum critério (as despesas declaradas pela … como suportadas pelos autores, a despesa com a consulta de oftalmologia no hospital da …, a despesa com a vacina da febre-amarela no Instituto de Medicina Tropical, a despesa com a compra do Sporanox ou do Hirudoid) e em violação do artigo 82.° do Código do IRS e do dever de instrução e da descoberta da verdade material consagrado a artigos 58.°, 72.° e n.° 2 do artigo 74.°, todos da Lei Geral Tribuitária (‘LGT’), conjugados com o artigo 50.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (‘CPPT’) e n.° 1 do artigo 87.° do Código do Procedimneto Administrativo (‘CPA’).
4.12. Finalmente, tanto o ato de liquidação de juros como a coima estão feridos de nulidade por serem atos consequentes de ato de liquidação (artigo 133.°, n.° 1, alínea i) do CPA).
5. O pedido de pronúncia arbitral, tal como formulado pelos Requerentes, consiste, pois:
(i) Na anulação do ato de liquidação adicional de IRS, referente ao ano 2007, com todas as consequências de lei, designadamente:
(a) Condenação da Requerida à restituição do valor do imposto pago pelos Requerentes;
(b) Declaração de nulidade da liquidação de juros e do ato de fixação de coima, e em consequência, na condenação da Requerida à restituição aos Requerentes das respetivas importâncias;
(ii) Na condenação da Requerida a juros indemnizatórios, à taxa legal, vencidos desde a data do pagamento do indevido, a que acrescerão os que se vencerem até integral restituição;
(iii) Na condenação da Requerida a ressarcir os Requerentes das despesas resultantes da lide, nomeadamente os honorários dos mandatários judiciais, a liquidar em execução de sentença.
6. Notificada do pedido de constituição do tribunal arbitral, a AT promoveu a revogação parcial do ato de liquidação adicional, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, passando a considerar como fiscalmente aceites “as despesas de saúde efetuadas no continente” (sic).
A revogação foi notificada ao tribunal, rectius ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa, em 30.04.2012.
A AT manteve no restante o ato tributário subjacente ao pedido de pronúncia arbitral. Manteve, pois, a liquidação adicional de IRS na parte em que esta decorre da desconsideração de todas as despesas de saúde realizadas no estrangeiro.
Desta revogação parcial foram os Requerentes notificados em 03.05.2012. Nada tendo os Requerentes dito, ao que consta dos autos, prosseguiu, em consequência, o processo quanto à parte não revogada do ato de liquidação, por força do disposto no n.º 2 do artigo 13.º do RJAT.
7. A constituição do Tribunal Arbitral processou-se em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 6.º e no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, mediante decisão do Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, de 11.04.2012, pela qual foi designado o árbitro singular Luís M. S. Oliveira.
A reunião prevista no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT teve lugar no dia 19.06.2012, conforme consta da respetiva Ata, que é assim a data em que o Tribunal Arbitral se considera constituído, nos termos do n.º 8 do mesmo artigo. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
8. Na reunião de constituição do Tribunal, foi requerido pelo Representante da AT o seguinte: tendo em consideração que os documentos n.ºs 6 e 11, juntos pela Requerente, contêm páginas escritas em língua estrangeira, solicita-se ao Tribunal que determine, nos termos do art.º 140.º, n.º 1, do Código do Processo Civil (‘CPC’), a tradução daqueles documentos para a língua portuguesa, iniciando-se a contagem do prazo de resposta a partir da data da notificação da junção aos autos dos documentos traduzidos. O mandatário dos Requerentes declarou nada ter a opor ao requerido. Foi o requerimento do Representante da AT deferido na própria reunião pelo Tribunal, nos seus precisos termos, considerando-se notificada a Requerente apud acta para promover a junção aos autos da referida tradução, no prazo de 5 dias úteis e contando-se o prazo para a resposta da Requerida a partir da data da notificação da referida junção.
9. No dia 26.06.2012, os Requerentes vieram oferecer a tradução para língua portuguesa dos referidos documentos 6 e 11 juntos com o pedido de constituição do tribunal arbitral.
10. No dia 11.07.2012, a AT veio requerer a junção aos autos de um fax do Serviço de Finanças de Cascais …, onde este serviço local comunica o seguinte:
“O sujeito passivo procedeu à entrega dos documentos relativos ás despesas de saúde declaradas na declaração de IRS do ano de 2007, em Julho de 2011. Este Serviço sentiu alguma dificuldade na análise dos documentos referentes ás despesas efectuadas no estrangeiro, uma vez que as mesmas não estavam traduzidas e pedimos colaboração á Direcção de Finanças de Lisboa para onde foram remetidas em 02.08.2011, oficio n° … . Esta Direcção reencaminhou o processo para a Direcção De Serviços de IRS. Em 09.11.2011, a Direcção de Serviços de IRS envia-nos a resposta por email, a qual não era conclusiva nem veio acompanhada de tradução dos documentos.
Uma vez que o Sujeito Passivo apresentou no Tribunal as referidas despesas devidamente traduzidas e que as mesmas cumprem os requisitos formais, vai este Serviço proceder à correcção oficiosa no sentido de considerar todas as despesas de saúde.”
11. Em conjunto com o referido fax, a Requerida AT veio ainda pronunciar-se nos termos que assim se sumariam:
11.1. Tendo em consideração que os documentos n.°s 6 e 11, juntos pelos Requerentes, continham páginas escritas em língua estrangeira, requereu a AT que o Tribunal determinasse, nos termos do art.° 140.° n.° 1 do CPC, a sua tradução para a língua portuguesa, iniciando-se a contagem do prazo de resposta a partir da data da notificação da junção aos autos dos documentos traduzidos.
11.2. Foi reconhecido pelos Requerentes, no artigo 18.° do seu pedido, que o facto de os documentos apresentados estarem redigidos em língua inglesa "poderá ter dificultado a sua compreensão pelos serviços da administração tributária", o que efetivamente aconteceu.
11.3. Foi comunicada ao Serviço de Finanças Cascais … a junção aos autos da tradução dos documentos, a qual se revelou essencial para o claro apuramento da situação tributária dos Requerentes, em sede de liquidação de IRS 2007.
11.4. Apresentados agora os comprovativos, devidamente traduzidos, foi efetivamente possível apurar que os mesmos cumprem os requisitos formais necessários para serem considerados prova bastante da realização das despesas de saúde, ainda que realizadas no estrangeiro.
11.5. Assim a AT não responde ao pedido, sendo que o Serviço de Finanças de Cascais … vai proceder à correção oficiosa da liquidação contestada, no sentido de considerar fiscalmente relevantes as despesas de saúde realizadas no estrangeiro.
11.6. Tendo apenas agora sido apresentada a tradução dos documentos referidos que permitiu a decisão favorável aos sujeitos passivos, não existiu qualquer erro que possa ser imputado aos serviços, designadamente para efeito do pagamento de juros indemnizatórios nem tão pouco indevida instauração do processo de contra ordenação fiscal.
11.7. Não existe responsabilidade da Requerida pelas custas, uma vez que nos termos do art.° 449.° n.° 1 do CPC aplicável ex vi do art.° 6.° alínea b) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, não deu causa à ação e não a contesta.
12. Notificados para se pronunciarem, querendo, os Requerentes vieram fazê-lo, aduzindo:
12.1. Veio a AT aos autos reconhecer a ilegalidade do ato de liquidação impugnado mas, por outro lado, defender-se por impugnação quanto aos pedidos de ressarcimento dos Impugnantes, imputando a estes o erro na liquidação.
12.2. Segundo a AT, teriam sido os Requerentes a dar azo ao ato de liquidação ilegal ao não apresentarem no serviço de finanças a tradução para língua portuguesa dos documentos de despesa emitidos em inglês, rectius, em "língua estrangeira".
12.3. Invoca, para tanto, "alguma dificuldade" encontrada pelos serviços na análise dos documentos referentes a despesas de saúde efetuadas no estrangeiro, por falta de tradução, e alega que aquela que foi apresentada pelos Impugnantes já nos presentes autos se revelou essencial para o claro apuramento da sua situação tributária (sic).
12.4. Junta, para tanto, um ofício do serviço de finanças de Cascais 1, o qual por sua vez se refere a outros três em que essa "dificuldade" terá sido abordada, os quais porém não foram ainda juntos aos autos: ofício n.° …, de 02.08.2011, do serviço de finanças de Cascais 1; resposta a esse ofício, de 09.11.2011, da direção de serviços do IRS; fax n.° …, de 09.07.2012, da direção de serviços de consultoria jurídica e de contencioso.
E concluem os Requerentes com o requerimento de que, para cabal esclarecimento das questões decidendas e efetivo exercício do contraditório, determine o Tribunal que a AT complete a sua resposta juntando esses documentos aos presentes autos.
13. Este requerimento foi objeto de despacho de deferimento pelo Tribunal, tendo, no dia 02.08.2012, sido juntos aos autos os referidos documentos.
14. No dia 22.08.2012, notificados daquela junção, os Requerentes vieram pronunciar-se sobre a resposta da AT, sumariada no ponto 11, aduzindo aos termos que se deixaram vertidos no sumário da sua pronúncia, feito no ponto 12, o seguinte:
14.1. Segundo a AT, teriam sido os Requerentes a dar azo ao ato de liquidação ilegal ao não apresentarem no serviço de finanças a tradução para língua portuguesa dos documentos de despesa emitidos em língua estrangeira.
14.2. Invoca, para tanto, "alguma dificuldade" encontrada pelos serviços locais na análise dos documentos referentes a despesas de saúde efetuadas no estrangeiro, por falta da sua tradução, e alega que aquela que foi apresentada pelos Requerentes já nos presentes autos se revelou essencial para o claro apuramento da sua situação tributária (sic).
14.3. Essa dificuldade resultante da falta de tradução é expressamente invocada pelo Chefe do Serviço de Finanças como causa do erro na liquidação, no ofício n.° …, de 09.07.2012, que este dirige aos serviços centrais já no âmbito dos presentes autos. Diz o Chefe do Serviço de Finanças que, uma vez que os documentos apresentados pelos ora Impugnantes não estavam traduzidos, pedira "colaboração" à Direção de Finanças de Lisboa através do ofício …, de 02.08.2011.
14.4. Porém, no ofício …, de 02.08.2011, o Serviço de Finanças não identificara qualquer dificuldade resultante da falta de tradução dos documentos.
14.5. Como também a resposta que lhe foi dada em 09.11.2011 pela Diretora de Serviços de IRS não identificou qualquer dificuldade resultante da falta de tradução dos documentos, mas concluiu que os encargos suportados com o tratamento de desintoxicação alcoólica se enquadram no conceito de despesas de saúde. O parecer da Diretora de Serviços de IRS não só não identificou qualquer dificuldade resultante da falta de tradução dos documentos, como até chamou a atenção do Chefe do Serviço de Finanças de Cascais … para a circunstância de o documento não identificar a que se destinava o tratamento.
14.6. Não podem, pois, restar dúvidas que a falta de tradução dos documentos apresentados não impediu nem dificultou sequer a análise que em tempo deles fizeram os serviços. Aliás, em nenhum momento do procedimento de liquidação expressaram os serviços qualquer dificuldade na análise dos documentos resultante da falta da sua tradução.
14.7. Afigura-se espúria a afirmação do Chefe do Serviço de Finanças de Cascais … de que a resposta que recebeu em 09.11.2011, da Diretora de Serviços de IRS, não era conclusiva nem veio acompanhada da tradução dos documentos. Não apenas foi a resposta da Diretora de Serviços de IRS conclusiva, como a tradução dos documentos não fora em momento algum solicitada nem sugerida por qualquer dos interlocutores administrativos, começando pelo próprio Serviço de Finanças. Caso o Chefe do Serviço de Finanças tivesse ficado com dúvidas sobre o conteúdo dos documentos resultantes da falta da sua tradução e não quisesse ou não pudesse promovê-la oficiosamente, nada o impediria de a solicitar aos próprios contribuintes. Não o fez, porém. Em nenhum momento do procedimento de liquidação foram os contribuintes instados a apresentar tradução dos documentos ou a esclarecer qualquer aspeto do seu conteúdo.
14.8. Mal recebeu a resposta da Diretora de Serviços de IRS ao pedido de análise dos documentos em causa, o Chefe do Serviço de Finanças proferiu o seu ato de correção da liquidação, de 11.11.2011, com o seguinte fundamento: "conforme informação da DSIRS, o documento apresentado não identifica a que se destina o tratamento". Nada faria, portanto, supor, que a administração tributária se debatesse com qualquer dificuldade interpretativa por falta de tradução de quaisquer documentos.
14.9. A insistente invocação da necessidade de tradução dos documentos contida na comunicação que o Chefe do Serviço de Finanças dirige aos serviços centrais em 09.07.2012, já no âmbito dos presentes autos, é inteiramente inédita em todo o procedimento administrativo.
14.10. Do confronto dos documentos juntos com o processo administrativo é notório que a questão da tradução é um mero expediente extemporâneo para tentar imputar aos Requerentes o erro na liquidação. Trata-se de expediente usado com manifesta má-fé. O Chefe do Serviço de Finanças começou por prejudicar o exercício do direito de audiência prévia dos ora Requerentes, não lhes dando oportunidade de suprir a alegada irregularidade da documentação apresentada; Prosseguiu corrigindo a liquidação de IRS de 2007 desconsiderando todas as despesas de saúde documentadas, realizadas em Portugal e no estrangeiro; Já no âmbito do procedimento arbitral, manteve o ato de correção alegando que "os documentos apresentados relativos às despesas de saúde efetuadas no estrangeiro relativos a uma cura de desintoxicação alcoólica não estão em conformidade" (ofício de 04.04.2012, do Chefe do Serviço de Finanças de Cascais …, citado no final do ofício n.° …, de 09.07.2012, ora junto aos autos); E apenas corrigiu o ato de liquidação quanto às "despesas de saúde efetuadas no continente" (sic) (ofício n.° …, de 27.04.2012, do Chefe do Serviço de Finanças, junto aos autos).
14.11. Em face do exposto, não pode deixar de se concluir que o erro do ato de liquidação ora impugnado e já reconhecido pela AT é inteiramente imputável aos serviços.
15. No uso do contraditório, a AT veio responder:
15.1. Nos autos deste processo, a AT pautou toda a sua atuação numa dinâmica de completa colaboração com os Requerentes, contribuindo ativamente para a descoberta da verdade material.
15.2. Todos os elementos relevantes para a decisão da matéria controvertida só foram trazidos aos presentes Autos Arbitrais a pedido da AT. Os requerentes limitaram-se sempre a "esperar" que a Administração os instasse a um comportamento, nomeadamente a apresentar a "tradução dos documentos ou a esclarecer qualquer aspeto do seu conteúdo". Há um comportamento reiteradamente omissivo, que perante uma atuação se limita a atacá-la para justificar a inércia própria. O contribuinte é visto pelos requerentes como um mero recetáculo de pedidos da administração, que se limita a agir em conformidade com os mesmos nada mais dizendo do que o estritamente necessário para o cumprimento formal das suas obrigações.
15.3. No entanto não é essa a postura que exige o princípio da colaboração entre a Administração Tributária e os Contribuintes, que "visa reforçar a eficácia da atividade tributária e o controlo político exercido pelos cidadãos sobre uma administração que se exige aberta". Os contribuintes, obrigados pelo dever de cooperação e sabendo, como dizem no art.° 18.° do seu pedido, das dificuldades de compreensão que poderia ter levantado a interpretação das faturas emitidas pela clínica de reabilitação …, nada fizeram. E se o fizeram nos presentes autos arbitrais, tiveram que para isso ser instados ao cumprimento disposto no art.° 140.° n.° 1 do CPC.
15.4. A AT tem como destinatários um número ilimitado de pessoas, singulares e coletivas, e tendo em conta a escassez de recursos não pode em cada caso concreto trata-los como "meros recetáculos de instruções", estando vinculada "à prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos', e exige-se que estes contribuam ativamente para a defesa dos seus direitos individuais e concretos.
15.5. Deveriam os Requerentes, no sentido de assegurarem a perfeita asserção dos termos utilizados nos documentos apresentados para justificar as suas despesas de saúde, ter procedido à sua tradução, para que os seus direitos em concreto pudessem ter sido tempestivamente assegurados.
15.6. A AT nunca reconheceu a ilegalidade do ato de liquidação impugnado, pois a liquidação impugnada, com base nos elementos e fundamentos ao dispor da AT nesse momento, foi fundamentada e correta, não podendo ser exigida outra forma de atuação.
15.7. A AT, antes da constituição do Tribunal Arbitral, procedeu à correção da liquidação, considerando relevantes as despesas de saúde efetuadas em Portugal, podendo sempre fazê-lo, por sua iniciativa, " no prazo de quatro anos após a liquidação", nos termos do art.° 78.° n.° 1 da LGT.
15.8. Relativamente às despesas realizadas no estrangeiro, as mesmas não se encontravam em conformidade, desde logo com a Constituição da República Portuguesa, que no seu art.° 11.° n.° 3 estatui dizendo que "A língua oficial é o Português".
15.9. Foi a inércia e passividade dos Requerentes que fizeram com que os presentes autos corressem os seus trâmites, pois se tivessem sido diligentes, certamente o Chefe do Serviço de Finanças teria agido em conformidade, como o fez nos presentes autos, pois logo que lhe foram facultadas as traduções dos documentos procedeu às correções devidas, podendo aliás sempre fazê-lo, por sua iniciativa, "no prazo de quatro anos após a liquidação", nos termos do art.° 78.° n.° 1 da LGT. Não podem assim os Requerentes, em consonância, virem agora dizer que houve um "erro imputável aos serviços na liquidação ".
15.10. O Chefe do Serviço de Finanças fundamentou o ato de liquidação com base nos elementos de que dispunha na altura, e se os Requerentes tivessem sido diligentes, apresentando as traduções no momento em que inicialmente lhe foram solicitados esclarecimentos, os presentes autos não se justificariam.
15.11. A Administração Tributária está, nos termos do artigo 55.° da LGT e no seguimento do vertido no n.° 2 do artigo 266.° da CRP, vinculada ao princípio da legalidade tributária, agiu em conformidade, e de acordo com os elementos de que dispunha, o Chefe do Serviço de Finanças constatou que não tinham sido comprovadas despesas de saúde.
15.12. Da análise efetuada aos documentos apresentados, em sede de audiência prévia, nada foi acrescentado que justificasse a alteração dos pressupostos da correção, uma vez que não se apresentou neste procedimento qualquer prescrição do tratamento, documento determinante para aferir da dedutibilidade fiscal daquelas despesas, o qual só foi apresentado nestes autos arbitrais e ainda em língua inglesa, no dia seguinte à apresentação do pedido e de todos os restantes documentos. Pretendiam os Requerentes que o Chefe do Serviço de Finanças tivesse justificado despesas de saúde efetuadas no estrangeiro, cujas faturas se encontravam em língua inglesa, sem que houvesse qualquer documento, ainda que em língua inglesa, que prescrevesse o tratamento a que se destinavam. Por não o ter feito imputam-lhe um "suposto erro do serviço" que deste modo não existe.
15.13. Não é admissível nem razoável o procedimento adoptado pelos Requerentes pois, a ser assim, qualquer tratamento realizado no estrangeiro, prescrito, ou não, teria que ser aceite como despesa de saúde para efeitos de IRS, o que não é razoável, pois a Circular 26, de 30/12/1991 da Direção de Serviços do IRS distingue claramente quais as despesas realizadas no estrangeiro que podem ser consideradas para efeitos de abatimento no IRS das que não podem. Não tendo apresentado qualquer documento de prescrição do tratamento em sede de direito de audição, nunca poderia o Chefe do Serviço de Finanças ter agido de outra maneira. Os Requerentes apenas apresentaram faturas, redigidas em língua inglesa que, ainda que por hipótese não tivessem suscitado dúvidas de tradução, por si só nada dizem acerca do tratamento efetuado. Assim a correção da liquidação não padece de vício ou erro que possa ser atribuído ao serviço.
15.14. Se o Chefe do Serviço de Finanças procedeu em sede arbitral à correção oficiosa no sentido de considerar todas as despesas de saúde apresentadas, tal só se deveu ao facto de só nesse momento os Requerentes se terem revelado suficientemente diligentes, juntando aos autos todos os elementos necessários para a correta apreciação da questão, assim como a devida e necessária tradução dos mesmos, condição essencial para o seu percetível entendimento, condição básica para a concretização subjetiva do direito ao reconhecimento das despesas de saúde. Nestes termos, não pode ser assacado qualquer erro de liquidação imputável aos serviços.
16. Deixado registo da pretensão dos Requerentes e respetivos fundamentos, bem como da posição do representante da Requerida AT, importa fixar as questões que ao Tribunal cumpre solucionar.
Previamente, porém, não se deixa de tecer uma breve apreciação sobre a multiplicação de articulados de Requerentes e Requerida, uma vez que a tramitação regra do processo arbitral tributário é a definida nos artigos 10.º, 17.º e 18.º do RJAT, dos quais decorre que a estrutura típica do processo apenas contempla dois articulados: o requerimento de pronúncia arbitral, formulado com o pedido de constituição do tribunal arbitral (art. 10.º), e a resposta (art. 17.º). Esta estrutura simplificada concretiza um dos objetivos primaciais da criação dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, que é o de «imprimir uma maior celeridade na resolução de litígios que opõem a administração tributária ao sujeito passivo» (relatório preambular do Decreto-Lei n.º 10/2011).
No entanto, o Tribunal aceitou todos os articulados que lhe foram apresentados. E fê-lo por considerar que, embora, e tendo em vista atingir a objetivada celeridade processual, tenha sido “adoptado um processo sem formalidades especiais”, mas condensando prototipicamente o referente escrito das posições de Requerente e Requerida em apenas dois articulados, também consagrou o legislador, como um dos princípios do processo arbitral, o da “autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas” [alínea c) do artigo 16.º do RJAT].
Ora, este «princípio da autonomia dos árbitros na condução do processo» (repetido, ad abundantiam, no n.º 1 do artigo 19.º ibidem) apenas tem de coexistir, para o que aqui releva, com a imposição àqueles, como diretriz paramétrica, que, no exercício do seu poder-dever de definir a tramitação do processo, atendam «aos princípios da celeridade, simplificação e informalidade processuais» (n.º 2 do art. 29.º ibidem) e erijam como objetivo primacial o de assegurar uma tutela judicial efetiva (n.º 5 do artigo 20.º da Constituição, n.º 3 do artigo 124.º da Lei n.º n.º 3-B/2010, de 28 de Abril).
Esta autonomia legitima plenamente que o tribunal possa aceitar outros articulados, ou “requerimentos”, ou “pronúncias”, além dos tipicamente previstos. Pode mesmo dever fazê-lo, sobrepondo a busca da verdade substantiva a um qualquer pretenso formalismo processual que o próprio legislador é o primeiro a afastar, ao consagrar a “informalidade processual” (n.º 2 do artigo 29.º do RJAT), acautelando embora, sempre, o respeito absoluto pelos princípios do contraditório e da igualdade das partes [alíneas a) e b) do artigo 16.º], quando tais articulados carreiem para os autos as posições das partes sobre uma matéria decidenda em mutação, como sucedeu nos presentes autos, face ao requerimento de junção de traduções de documentos, à junção destas traduções e à revogação integral do ato de liquidação adicional.
17. Por despacho do Tribunal Arbitral, de 17.09.2012, foi prorrogado o prazo para a prolação da decisão arbitral, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, ou seja, pelo período de dois meses.
18. Na primeira reunião do Tribunal, a que se refere ao artigo 18.º do RJAT, realizada no dia 05.11.2012, o mandatário dos Requerentes declarou que estes tinham sido já reembolsados do imposto e dos juros compensatórios liquidados.
Requerentes e Requerida declararam prescindir de alegações orais.
II. Fixação do thema decidendum
19. Não foram suscitadas pela Requerida questões com natureza de exceção dilatória, nem existem exceções dilatórias de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente e que tenham como consequência a extinção da instância.
20. Considerando a revogação do ato de liquidação adicional de IRS, primeiro parcialmente, ainda antes da constituição do Tribunal Arbitral, depois no remanescente, em sequência à junção pelos Requerentes da tradução para língua portuguesa dos documentos que estavam nos autos em língua estrangeira, revogação essa que eliminou tal ato do procedimento tributário relativo ao IRS de 2007 dos Requerentes – ainda que não eliminasse todas as suas consequências na ordem jurídica – bem como o reembolso aos Requerentes, já ocorrido, do imposto e dos juros compensatórios liquidados, o julgamento de meritis tem por objeto, considerando os pedidos formulados pelos Requerentes, o conhecimento e decisão das questões subsistentes, a saber:
(i) Condenação da Requerida a juros indemnizatórios, à taxa legal, vencidos desde a data do pagamento do indevido, a que acrescerão os que se vencerem até integral restituição;
(ii) Declaração de nulidade do ato de fixação de coima, e em consequência, na condenação da Requerida à restituição aos Requerentes da respetiva importância;
(iii) Condenação da Requerida a ressarcir os Requerentes das despesas resultantes da lide, nomeadamente os honorários dos mandatários judiciais, a liquidar em execução de sentença.
21. Importa, porém, começar por verificar da competência do Tribunal para o conhecimento de todos estes pedidos formulados pelos Requerentes.
É meridianamente claro, da mera leitura do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, que o pedido de declaração de nulidade do ato de fixação de coima, e em consequência, de condenação da Requerida à restituição aos Requerentes da respetiva importância, extravasa o âmbito da jurisdição arbitral tributária, não sendo, por isso, aplicável ao caso o regime de cumulação de pedidos fixado no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT. Dizendo de outro modo, este último preceito só é aplicável às situações em que os pedidos cumulados passaram já o crivo da competência do tribunal arbitral.
O corpus jurídico aplicável para resolver uma situação de cumulação de pedidos não admissível por lei, em sede de jurisdição arbitral tributária, há de encontrar-se nos regimes cuja aplicação lhe é subsidiária, de acordo com a natureza dos casos omissos (n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).
Importa ainda ter em conta a estatuição paramétrica constante do n.º 2 do mesmo preceito. O parâmetro a retirar desta norma é o de que há um dever de o tribunal arbitral definir a tramitação mais adequada, atendendo aos princípios da celeridade, simplificação e informalidade processuais. Ora, a conduta do tribunal em face de situações de cumulação de pedidos não admissível inscreve-se claramente ainda, naquilo que supere o mero reconhecimento e declaração da sua não competência para algum ou alguns dos pedidos cumulados e fixe as respetivas consequências processuais, na definição da tramitação processual.
Nas normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários [alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] encontramos aquele que é o regime subsidiariamente aplicável, em função, não só da remissão formal feita pela lei, como ainda do comando paramétrico do n.º 2 do artigo 29.º do RJAT. Assim, nos termos do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, “Quando algum dos pedidos cumulados não pertença ao âmbito da jurisdição administrativa, há lugar à absolvição da instância relativamente a esse pedido.”
Como comentam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 3ª edição revista – 2010, pág. 56), “Em relação ao pedido para o qual a jurisdição administrativa se mostre materialmente incompetente, é declarada a absolvição da instância quanto a esse pedido, prosseguindo o processo quanto aos demais. A solução, sendo distinta da que está prevista para os restantes casos de cumulação ilegal – em que há lugar à absolvição da instância com a faculdade de apresentação de novas petições (…) – mostra-se justificada por razões de economia processual, porquanto, uma vez excluído o pedido cuja apreciação não pertence à jurisdição administrativa, o processo poderá prosseguir sem necessidade de qualquer reformulação da petição.”
Este regime, bem diverso do consagrado no Código de Processo Civil, é também mais garantístico da “tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes”, que é o princípio vetor da arbitragem em matéria tributária (n.º 3 do artigo 124.º da Lei n.º n.º 3-B/2010, de 28 de Abril).
Nestes termos e pelas razões indicadas, absolve-se a Requerida da instância, relativamente ao pedido de declaração de nulidade do ato de fixação de coima, e em consequência, da sua condenação à restituição ao Requerente, nela condenado, da respetiva importância. Não cabe a este Tribunal Arbitral, pelas referidas razões, pronunciar-se sobre se a nulidade do ato de fixação da coima decorre ope legis da nulidade do ato de liquidação, nos termos da alínea i) do n.º 2 do artigo 133.º do Código do Procedimento Administrativo, como sustentam os Requerentes. É matéria que, por natureza, não se compreende no thema decidendum de que, por lei, lhe cabe ocupar-se.
Prossegue o processo para decisão sobre os demais pedidos.
III. Fundamentação fáctica
22. Sem embargo de não caber ao Tribunal apreciar e decidir de meritis sobre os pedidos de anulação do ato de liquidação adicional de IRS, referente ao ano 2007, com as consequências de lei, de condenação da Requerida à restituição do valor do imposto pago pelos Requerentes, e de declaração de nulidade da liquidação de juros, e em consequência, na condenação da Requerida à restituição aos Requerentes da respetiva importância, atendendo à revogação total do ato tributário e ao reembolso do imposto pago e dos juros compensatórios, tem o Tribunal de conhecer dos pedidos remanescentes:
(i) De condenação da Requerida a juros indemnizatórios, à taxa legal, vencidos desde a data do pagamento do indevido, a que acrescerão os que se vencerem até integral restituição;
(ii) De condenação da Requerida a ressarcir os Requerentes das despesas resultantes da lide, nomeadamente os honorários dos mandatários judiciais, a liquidar em execução de sentença.
Para conhecer de qualquer destes pedidos, forçoso é que o Tribunal – por forma a determinar se houve erro imputável aos serviços de que tenha resultado o pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (para os efeitos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT), que, como se viu da revogação integral do ato, era, afinal, zero, bem como a determinar se foi a Requerida a dar causa ao processo (para os efeitos do n.º 1 do artigo 449.° do CPC, aplicável ex vi do art.° 6.° alínea b) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária) – sindique o próprio ato de liquidação adicional de IRS, circunscrevendo naturalmente os efeitos das conclusões a que chegue aos pedidos que permanecem sub judicio.
23. Cumpre, pois, fixar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, em face dos factos alegados e da sua contestação, e examinada a prova documental.
Excecionalmente, a matéria factual relevante não se limita à que é referente ao procedimento administrativo que conduziu à prática do ato tributário de liquidação adicional, mas antes se estende, quer à que precede a constituição do tribunal arbitral – pois que foi então, já após a entrada do pedido de pronúncia arbitral, revogado parcialmente aquele ato –, quer à que acompanha o próprio iter do presente processo, porquanto no decurso deste foi revogado o ato em causa, na parte remanescente.
Considera-se, pois, provado, por (a) não ser objeto de impugnação pela AT, ou (b) serem atos praticados após o pedido de pronúncia arbitral e trazidos aos autos, e com interesse para a decisão do pedido de condenação em juros indemnizatórios, que:
23.1. Os Requerentes suportaram em 2007 despesas de saúde no valor de EUR 37.283,85 e refletiram essas despesas na declaração de rendimentos desse ano.
23.2. No dia 04.07.2011, foram notificados pela Diretora de Serviços do IRS para, no prazo de 15 dias, apresentarem no Serviço de Finanças de Cascais … os documentos comprovativos das despesas de saúde.
23.3. No dia 21.07.2011, um dos Requerentes deslocou-se ao referido Serviço e apresentou os originais dos documentos comprovativos das despesas de saúde, de que o Serviço reteve cópia.
23.4. Por ofício de 26.09.2011, o Chefe de Finanças de Cascais … notificou o mesmo Requerente para exercer o direito de audiência prévia à decisão de corrigir para zero o valor de despesas de saúde declarado, com o fundamento de que as mesmas "não foram comprovadas".
23.5. Na audiência prévia, os Requerentes apresentaram novamente os comprovativos das despesas de saúde suportadas em 2007, desta vez promovendo por sua iniciativa a junção ao processo de cópia integral dos originais exibidos em 21.07.2011.
23.6. Por oficio de 11.11.2011, o Chefe de Finanças de Cascais … confirmou como decisão final a de corrigir para zero o valor de despesas de saúde declarado, aduzindo que na audiência prévia "nada foi acrescentado que altere os pressupostos da correcção, não vão ser consideradas as despesas de saúde, conforme a informação da DSIRS, o documento apresentado não identifica a que se destina o tratamento".
23.7. Da correção resultou o imposto a pagar pelos Requerentes, no valor de EUR 11.128,26, acrescido de juros de EUR 1.606,26, no montante total de EUR 12.734,52.
23.8. Notificada do pedido de constituição do tribunal arbitral, a AT decidiu proceder à “revogação parcial do acto, tendo sido consideradas as despesas de saúde efetuadas no continente, mantendo-se no restante o acto tributário subjacente ao pedido de pronúncia arbitral”.
23.9. A AT manteve no restante o ato tributário subjacente ao pedido de pronúncia arbitral. Manteve, pois, a liquidação adicional de IRS na parte em que esta decorre da desconsideração de todas as despesas de saúde realizadas no estrangeiro.
23.10. Na reunião de constituição do Tribunal Arbitral, foi requerido pelo Representante da AT ao Tribunal que determine, nos termos do art.º 140.º, n.º 1, do CPC, a tradução para a língua portuguesa dos documentos relativos às despesas de saúde realizadas no estrangeiro (documentos 6 e 11 juntos com o pedido de constituição do tribunal arbitral).
23.11. Os Requerentes vieram oferecer aos autos a tradução para língua portuguesa dos referidos documentos.
23.12. No dia 11.07.2012, a AT veio requerer a junção aos autos de um fax do Serviço de Finanças de Cascais …, onde este serviço local comunica o seguinte:
“O sujeito passivo procedeu à entrega dos documentos relativos ás despesas de saúde declaradas na declaração de IRS do ano de 2007, em Julho de 2011. Este Serviço sentiu alguma dificuldade na análise dos documentos referentes ás despesas efectuadas no estrangeiro, uma vez que as mesmas não estavam traduzidas e pedimos colaboração á Direcção de Finanças de Lisboa para onde foram remetidas em 02.08.2011, oficio n° … . Esta Direcção reencaminhou o processo para a Direcção De Serviços de IRS. Em 09.11.2011, a Direcção de Serviços de IRS envia-nos a resposta por email, a qual não era conclusiva nem veio acompanhada de tradução dos documentos.
Uma vez que o Sujeito Passivo apresentou no Tribunal as referidas despesas devidamente traduzidas e que as mesmas cumprem os requisitos formais, vai este Serviço proceder à correcção oficiosa no sentido de considerar todas as despesas de saúde.”
23.13. A dificuldade resultante da falta de tradução é invocada pelo Chefe do Serviço de Finanças de Cascais …, como causa do erro na liquidação, no ofício n.° …, de 09.07.2012, que este dirige aos serviços centrais, já no âmbito dos presentes autos. Diz o Chefe do Serviço de Finanças que, uma vez que os documentos apresentados pelos ora Impugnantes não estavam traduzidos, pedira colaboração à Direção de Finanças de Lisboa através do ofício …, de 02.08.2011.
23.14. No ofício …, de 02.08.2011, não vêm identificadas dificuldades resultante da falta de tradução dos documentos.
23.15. A resposta dada em 09.11.2011 pela Diretora de Serviços de IRS não identifica dificuldades resultantes da falta de tradução dos documentos, mas conclui que os encargos suportados com o tratamento de desintoxicação alcoólica se enquadram no conceito de despesas de saúde. Não só não identifica dificuldades resultantes da falta de tradução dos documentos, como chama a atenção do Chefe do Serviço de Finanças de Cascais … para a circunstância de estes não identificarem a que se destinou o tratamento.
23.16. Em nenhum momento do procedimento de liquidação comunicou a AT aos Requerentes qualquer dificuldade na análise dos documentos, resultante da falta da sua tradução.
23.17. A entrega de tradução dos documentos não foi em momento algum do procedimento administrativo solicitada nem sugerida aos Requerentes pela AT, designadamente pelo Cehfe do Serviço de Finanças de Cascais …. Em nenhum momento do procedimento de liquidação foram os contribuintes instados a apresentar tradução dos documentos ou a esclarecer qualquer aspeto do seu conteúdo.
23.18. Após a resposta da Diretora de Serviços de IRS ao pedido de análise dos documentos em causa, o Chefe do Serviço de Finanças de Cascais … proferiu o seu ato de correção da liquidação, de 11.11.2011, com o seguinte fundamento: "conforme informação da DSIRS, o documento apresentado não identifica a que se destina o tratamento". Não consta da fundamentação do ato a invocação de dificuldade interpretativa por falta de tradução de quaisquer documentos.
IV. Do Direito
IV.A. Do direito a juros indemnizatórios
24. A primeira questão jurídica substantiva decidenda é a seguinte: há lugar à condenação da AT em juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT?
25. Sobre esta matéria, os Requerentes defendem, em síntese:
O motivo que levou a AT a entender não estarem comprovadas as despesas de saúde declaradas só foi lhes dado a conhecer na decisão final do procedimento. Só então a AT revelou que as despesas de saúde não estavam comprovadas porque o documento apresentado não identificava o fim a que se destinou o tratamento.
É natural que a fatura emitida por estabelecimento ou profissional de saúde não consista numa descrição detalhada dos tratamentos que lhe estão subjacentes, por ser documento elaborado com o propósito de ser conhecido e dado a conhecer a terceiros, o que impede que nela se possa fazer constar informação que está no cerne da relação médico-paciente - confidencial, íntima e privada - como seja a finalidade do tratamento médico ministrado. Caso a AT tivesse solicitado a explicação até ao fim do procedimento, veria esclarecida a sua dúvida sobre a finalidade do tratamento, a tempo de a refletir na sua decisão final.
As faturas emitidas pela clínica de reabilitação … acham-se redigidas em língua inglesa, o que poderá ter dificultado a sua compreensão pelos serviços da administração tributária.
Constitui entendimento da AT que "não oferece dúvidas a qualificação como despesas de saúde os gastos efectuados pelo sujeito passivo (...) com o tratamento de todos os tipos de dependência (física e psíquica), sejam quais forem as substâncias que a originaram (álcool e estupefacientes)" - cf. o ofício-circulado 24/90 de 18-06-1990. Como também constitui entendimento da AT que as despesas realizadas no estrangeiro são aceites nos mesmos termos e dentro dos limiteis em que o são quando efetuadas em território nacional - cf. a circular n.° 14/2001 da DSIRS.
A liquidação de IRS acha-se ferida de ilegalidade, por violação do disposto no artigo 82.° do Código do IRS.
A liquidação de IRS acha-se ferida de vício de forma, por insuficiência da sua fundamentação nos termos que são exigidos pelo artigo 66.° do Código do IRS, uma vez que a fundamentação da liquidação se circunscreveu à singela afirmação de que "o documento apresentado não identifica a que se destina o tratamento", sendo certo que foram apresentados 19 diferentes documentos no serviço de finanças.
A liquidação de IRS acha-se ferida de vício de forma, por preterição do direito de participação na formação da decisão que desencadeou o ato sindicado, uma vez que a notificação para audiência prévia foi omissa quanto a todos os aspetos relevantes para a decisão, mormente o problema da identificação da finalidade do tratamento, só levantado na decisão final do procedimento, em nítida violação do artigo 101° do CPA.
Existiu claro desinteresse do Serviço de Finanças de Cascais … em saber se as despesas declaradas foram ou não suportadas com a saúde dos Requerentes, desinteresse esse que resultou na correção de todas as despesas, sem nenhum critério e em violação do artigo 82.° do Código do IRS e do dever de instrução e da descoberta da verdade material consagrado a artigos 58.°, 72.° e n.° 2 do artigo 74.°, todos da LGT, conjugados com o artigo 50.° do CPPT e n.° 1 do artigo 87.° do CPA.
Segundo a AT, teriam sido os Requerentes a dar azo ao ato de liquidação ilegal, ao não apresentarem no serviço de finanças a tradução para língua portuguesa dos documentos de despesa emitidos em língua estrangeira. Invoca, para tanto, "alguma dificuldade" encontrada na análise dos documentos referentes a despesas de saúde efetuadas no estrangeiro, por falta da sua tradução, e alega que aquela que foi apresentada pelos Requerentes já nos presentes autos se revelou essencial para o claro apuramento da sua situação tributária. A dificuldade resultante da falta de tradução é expressamente invocada pelo Chefe do Serviço de Finanças como causa do erro na liquidação. Diz o Chefe do Serviço de Finanças que, uma vez que os documentos apresentados não estavam traduzidos, pedira "colaboração" à Direção de Finanças de Lisboa através do ofício …, de 02.08.2011. Porém, no dito ofício, o Chefe do Serviço de Finanças não identificara qualquer dificuldade resultante da falta de tradução dos documentos.
Também a resposta que lhe foi dada em 09.11.2011 pela Diretora de Serviços de IRS não identificou qualquer dificuldade resultante da falta de tradução dos documentos, mas concluiu que os encargos suportados com o tratamento de desintoxicação alcoólica se enquadram no conceito de despesas de saúde. O parecer da Diretora de Serviços de IRS não só não identificou qualquer dificuldade resultante da falta de tradução dos documentos, como até chamou a atenção do Chefe do Serviço de Finanças para a circunstância de o documento não identificar a que se destinava o tratamento. A falta de tradução dos documentos apresentados não impediu nem dificultou sequer a análise que em tempo deles fizeram os serviços. Em nenhum momento do procedimento de liquidação expressaram os serviços qualquer dificuldade na análise dos documentos, resultante da falta da sua tradução.
A tradução dos documentos não fora em momento algum solicitada nem sugerida por qualquer dos interlocutores administrativos, começando pelo próprio Serviço de Finanças. Em nenhum momento do procedimento de liquidação foram os contribuintes instados a apresentar tradução dos documentos ou a esclarecer qualquer aspeto do seu conteúdo.
Mal recebeu a resposta da Diretora de Serviços de IRS ao pedido de análise dos documentos em causa, o Chefe do Serviço de Finanças proferiu ato de correção da liquidação, de 11.11.2011, com o seguinte fundamento: "conforme informação da DSIRS, o documento apresentado não identifica a que se destina o tratamento". Nada faria, portanto, supor, que a administração tributária se debatesse com dificuldade interpretativa por falta de tradução de quaisquer documentos.
A insistente invocação da necessidade de tradução dos documentos contida na comunicação que o Chefe do Serviço de Finanças dirige aos serviços centrais em 09.07.2012, já no âmbito dos presentes autos, é inédita em todo o procedimento administrativo, mero expediente extemporâneo para tentar imputar aos Requerentes o erro na liquidação, usado com manifesta má-fé. O Chefe do Serviço de Finanças começou por prejudicar o exercício do direito de audiência prévia, não dando oportunidade de suprir a alegada irregularidade da documentação; corrigiu a liquidação de IRS de 2007 desconsiderando todas as despesas de saúde documentadas, realizadas em Portugal e no estrangeiro; já no âmbito do procedimento arbitral, manteve o ato de correção alegando que "os documentos apresentados relativos às despesas de saúde efetuadas no estrangeiro relativos a uma cura de desintoxicação alcoólica não estão em conformidade"; apenas corrigiu o ato de liquidação quanto às "despesas de saúde efetuadas no continente".
O erro do ato de liquidação impugnado e já reconhecido pela AT é inteiramente imputável aos serviços.
26. A Requerida, também em síntese, propugna:
Foi reconhecido pelos Requerentes que o facto de os documentos apresentados estarem redigidos em língua inglesa "poderá ter dificultado a sua compreensão pelos serviços da administração tributária", o que efetivamente aconteceu.
A junção aos autos da tradução dos documentos revelou-se essencial para o claro apuramento da situação tributária dos Requerentes, em sede de liquidação de IRS 2007. Apresentados agora (no decurso do presente processo arbitral) os comprovativos devidamente traduzidos, foi efetivamente possível apurar que os mesmos cumprem os requisitos formais necessários para serem considerados prova bastante da realização das despesas de saúde, ainda que realizadas no estrangeiro.
A Autoridade Tributária não responde ao pedido, sendo que o Serviço de Finanças vai proceder à correção oficiosa da liquidação contestada, no sentido de considerar fiscalmente relevantes as despesas de saúde realizadas no estrangeiro.
Tendo apenas agora sido apresentada a tradução dos documentos referidos, que permitiu a decisão favorável aos sujeitos passivos, não existiu qualquer erro que possa ser imputado aos serviços, designadamente para efeito do pagamento de juros indemnizatórios, nem tão pouco indevida instauração do processo de contra ordenação fiscal.
Não existe responsabilidade da Requerida pelas custas, uma vez que nos termos do art.° 449.° n.° 1 do CPC aplicável ex vi do art.° 6.° alínea b) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária não deu causa à ação e não a contesta.
Nos autos deste processo, a Administração Tributária pautou toda a sua atuação numa dinâmica de completa colaboração com os Requerentes, contribuindo ativamente para a descoberta da verdade material.
Todos os elementos relevantes para a decisão da matéria controvertida só foram trazidos aos presentes Autos Arbitrais a pedido da Administração Tributária. Os Requerentes limitaram-se sempre a "esperar" que a Administração os instasse a um comportamento, nomeadamente a apresentar a "tradução dos documentos ou a esclarecer qualquer aspeto do seu conteúdo". Há um comportamento reiteradamente omissivo.
O contribuinte é visto pelos Requerentes como mero recetáculo de pedidos da AT, que se limita a agir em conformidade com os mesmos, nada mais dizendo do que o estritamente necessário para o cumprimento formal das suas obrigações. Não é essa a postura que exige o princípio da colaboração entre a AT e os Contribuintes. Os contribuintes, obrigados pelo dever de cooperação e sabendo das dificuldades de compreensão que poderia ter levantado a interpretação das faturas emitidas pela clínica de reabilitação …, nada fizeram. E se o fizeram nos presentes autos arbitrais, tiveram que para isso ser instados.
A AT tem como destinatários um número ilimitado de pessoas, singulares e coletivas, e tendo em conta a escassez de recursos não pode em cada caso concreto tratá-los como "meros recetáculos de instruções", estando vinculada "à prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”, e exige-se que estes contribuam ativamente para a defesa dos seus direitos individuais e concretos.
Deveriam os Requerentes, no sentido de assegurarem a perfeita asserção dos termos utilizados nos documentos apresentados para justificar as suas despesas de saúde, ter procedido à sua tradução, para que os seus direitos em concreto pudessem ter sido tempestivamente assegurados.
A AT nunca reconheceu a ilegalidade do ato de liquidação impugnado, pois a liquidação impugnada, com base nos elementos e fundamentos ao dispor da AT nesse momento, foi fundamentada e correta, não podendo ser exigida outra forma de atuação.
A AT, antes da constituição do Tribunal Arbitral, procedeu à correção da liquidação, considerando relevantes as despesas de saúde efetuadas em Portugal, podendo sempre fazê-lo, por sua iniciativa, "no prazo de quatro anos após a liquidação", nos termos do art.° 78.° n.° 1 da LGT.
Relativamente às despesas realizadas no estrangeiro, as mesmas não se encontravam em conformidade, desde logo com a Constituição da República Portuguesa, que no seu art.° 11.° n.° 3 estatui dizendo que "A língua oficial é o Português".
Foi a inércia e passividade dos Requerentes que fizeram com que os presentes autos corressem os seus trâmites, pois se tivessem sido diligentes certamente o Chefe do Serviço de Finanças teria agido em conformidade, como o fez nos presentes autos, pois logo que lhe foram facultadas as traduções dos documentos procedeu às correções devidas, podendo aliás sempre fazê-lo, por sua iniciativa, "no prazo de quatro anos após a liquidação", nos termos do art.° 78.° n.° 1 da LGT.
O Chefe do Serviço de Finanças fundamentou o ato de liquidação com base nos elementos de que dispunha na altura, e se os Requerentes tivessem sido diligentes, apresentando as traduções no momento em que inicialmente lhe foram solicitados esclarecimentos, os presentes autos não se justificariam.
A AT está, nos termos do artigo 55.° da LGT e no seguimento do vertido no n.° 2 do artigo 266.° da CRP, vinculada ao princípio da legalidade tributária, agiu em conformidade, e de acordo com os elementos de que dispunha; o Chefe do Serviço de Finanças constatou que não tinham sido comprovadas despesas de saúde; da análise efetuada aos documentos apresentados, em sede de audiência prévia, nada foi acrescentado que justificasse a alteração dos pressupostos da correção, uma vez que não se apresentou nesse procedimento qualquer prescrição do tratamento, documento determinante para aferir da dedutibilidade fiscal das despesas, o qual só foi apresentado nestes autos arbitrais e ainda em língua inglesa, no dia seguinte à apresentação do pedido e de todos os restantes documentos. Ou seja, pretendiam os Requerentes que o Chefe do Serviço de Finanças tivesse justificado despesas de saúde efetuadas no estrangeiro, cujas faturas se encontravam em língua inglesa, sem que houvesse qualquer documento, ainda que em língua inglesa, que prescrevesse o tratamento a que se destinavam. Por não o ter feito imputam-lhe um "suposto erro do serviço", que deste modo não existe.
Não é admissível nem razoável o procedimento adoptado pelos Requerentes, pois, a ser assim, qualquer tratamento realizado no estrangeiro, prescrito, ou não, teria que ser aceite como despesa de saúde para efeitos de IRS, o que não é razoável, pois a Circular 26, de 30/12/1991 da Direção de Serviços do IRS distingue claramente quais as despesas realizadas no estrangeiro que podem ser consideradas para efeitos de abatimento no IRS das que não podem. Não tendo apresentado qualquer documento de prescrição do tratamento em sede de direito de audição, nunca poderia o Chefe do Serviço de Finanças ter agido de outra maneira. Os Requerentes apenas apresentaram faturas, redigidas em língua inglesa que, ainda que por hipótese não tivessem suscitado dúvidas de tradução, por si só nada dizem acerca do tratamento efetuado. Assim a correção da liquidação não padece de vício ou erro que possa ser atribuído ao serviço.
Se o Chefe do Serviço de Finanças procedeu em sede arbitral à correção oficiosa no sentido de considerar todas as despesas de saúde apresentadas, tal só se deveu ao facto de só nesse momento os Requerentes se terem revelado suficientemente diligentes, juntando aos autos todos os elementos necessários para a correta apreciação da questão, assim como a devida e necessária tradução dos mesmos, condição essencial para o seu percetível entendimento, condição básica para a concretização subjetiva do direito ao reconhecimento das despesas de saúde. Nestes termos, não pode ser assacado qualquer erro de liquidação imputável aos serviços.
Cabe decidir.
27. Arguem os Requerentes ilegalidade da liquidação de IRS, por violação do disposto no artigo 82.° do Código do IRS. O preceito cuja violação vem invocada limita-se a estatuir a dedutibilidade à coleta de uma percentagem das despesas de saúde dos sujeitos passivos e do seu agregado familiar e a fixar os termos dessa dedutibilidade.
28. Arguem ainda os Requerentes outras ilegalidades do ato de liquidação adicional, estas de forma, por insuficiência de fundamentação nos termos exigidos pelo artigo 66.° do Código do IRS (a fundamentação da liquidação circunscreveu-se à singela afirmação de que "o documento apresentado não identifica a que se destina o tratamento", sendo certo que foram apresentados 19 diferentes documentos no serviço de finanças) e por preterição do direito de participação na formação da decisão que desencadeou o ato sindicado, uma vez que a notificação para audiência prévia foi omissa quanto a todos os aspetos relevantes para a decisão, mormente o problema da identificação da finalidade do tratamento, só levantado na decisão final do procedimento, em nítida violação do artigo 101° do CPA.
Porém, tem este Tribunal por boa, e nela se louva, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores no sentido de que “não são devidos juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do art.º 43.º da LGT, quando a impugnação do ato de liquidação procede com fundamento em vício de forma” (v.g. Acórdãos do STA, de 03.02.2010, no Proc. n.º 1091/09, e de 09.07.2011, no Processo 416/11).
Como impressivamente refere Jorge Lopes de Sousa (anotação 5ª ao artigo 61.º do “Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado” a fls. 472.): “A utilização da expressão “erro” e não “vício” ou “ilegalidade” para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se teve em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito. Com efeito, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão “erro” tem um âmbito mais restrito do que a expressão “vício”.
(…) Por isso, é de concluir que o uso daquela expressão “erro”, tem um alcance restritivo do tipo de vícios que podem servir de base ao direito a juros indemnizatórios. Esta é, aliás, uma restrição que se compreende. Na verdade, a existência de vícios de forma ou incompetência significa que houve uma violação de direitos procedimentais dos administrados e por isso, justifica-se a anulação do acto por estar afectado de ilegalidade. Mas o reconhecimento judicial de um vício daqueles tipos não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela administração tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu.
Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito.
Por isso, justifica-se que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele.
Porém, nos casos em que o vício que leva à anulação do acto é relativo a uma norma que regula a actividade da Administração, aquela nada revela sobre a relação jurídica fiscal e sobre o carácter indevido da prestação, à face das normas fiscais substantivas.
Nestes casos, a anulação do acto não implica que tenha havido uma lesão da situação jurídica substantiva e, consequentemente, da anulação não se pode concluir que houve um prejuízo que mereça reparação.
Por isso se justifica que, nestas situações, não se comprovando a existência de um prejuízo, não se presuma o seu valor, fixando juros indemnizatórios, mas apenas se deva restituir aquilo que foi recebido, o que poderá constituir já um benefício para o contribuinte, perante a realidade da sua situação tributária.”
Não significa isto que o Tribunal considere juridicamente irrelevantes, no caso vertente, os vícios de forma. Longe disso. Eles podem ser também elementos integradores da violação de lei substantiva. “A violação pela administração tributária dos deveres procedimentais de colaboração e de actuação segundo as regras da boa fé, pode consistir em vício autónomo de violação de lei.” (Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues, Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Edição, encontro de escrita, 2012, p. 499).
Será assim, designadamente, se, v.g., através de uma conduta de opacidade, de não divulgação aos contribuintes, de forma clara e frontal, de quais são as razões ou as dúvidas que, a não serem sanadas ou esclarecidas pela forma (documental) prevista na lei, a vão levar a recusar a aceitação fiscal de certas despesas, a AT impedir ou dificultar, na prática, que aqueles demonstrem se têm, ou não, prova bastante dos valores de tais despesas e do seu legal cabimento.
Ora, se se devesse concluir que tal conduta existiu, reveladora portanto de que a AT não teve como escopo a busca da verdade material (violando, pois, não só o princípio da colaboração, como ainda o princípio do inquisitório), e se essa conduta tiver dado causa a que o ato tributário de liquidação adicional, fundado na alegação da falta de prova bastante por parte dos contribuintes, desrespeite a efetiva capacidade tributária destes, tal com a lei a manda medir, então tais vícios terão dado causa à violação de lei substantiva.
Vimos já que no caso sub judicio os Requerentes alegam preterição do seu direito de participação na formação da decisão que desencadeou o ato sindicado, uma vez que a notificação para audição prévia foi omissa quanto a todos os aspetos relevantes para a decisão, mormente o problema da identificação da finalidade do tratamento, só levantado na decisão final do procedimento, em nítida violação do artigo 101° do CPA, tal como apenas em sede já do presente processo veio a AT requerer a apresentação de tradução de documentos em língua estrangeira. O raciocínio acima tem pois, concreta pertinência.
No entanto, a existirem e a terem tal efeito de causar vício de violação de lei substantiva integrante do conceito de “erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” (n.º 1 do artigo 43.º da lGT), tais vícios de forma perdem autonomia, consomem-se naquele vício de violação da lei substantiva, não tendo, pois, que ser, qua tale, apreciados pelo Tribunal.
Esclarecidas as razões porque não cabe ao Tribunal apreciar autonomamente da existência dos alegados vícios de forma, pode prosseguir-se na consideração da questão da existência de erro imputável aos serviços, por violação de lei substantiva, in casu, do artigo 82.º do Código do IRS.
29. Para que o Tribunal faça um juízo sobre a alegada violação do disposto no artigo 82.° do Código do IRS, deve começar por considerar que a legalmente estatuída dedutibilidade (de uma percentagem) das despesas de saúde não existe no ordenamento jurídico em termos irrestritos, antes está necessariamente acompanhada, como seria natural, da previsão da existência de prova documental da sua realização e também do seu enquadramento na previsão normativa. É o que resulta da conjugação do citado preceito com o disposto no artigo 128.º do mesmo Código.
Tal prova, porém, só carece de ser produzida a instância da AT (“quando esta o exija”). Os sujeitos passivos de imposto não juntam (não podem fazê-lo) os elementos de prova à declaração de rendimentos, pelo que cabe sempre à AT exigir tal prova, quando a entenda necessária e segundo o critério que, no uso de um poder discricionário, use para formar tal entendimento.
O juízo quanto à alegada violação do disposto no artigo 82.° do Código do IRS depende, pois, de outro juízo, logicamente prévio, sobre o cumprimento pelos Requerentes do ónus de provar a realização de despesas de saúde dedutíveis à coleta. Apenas se o Tribunal puder, em apreciação da matéria dada por provada, concluir que os Requerentes demonstraram perante a AT, em termos suficientes (tendo em conta o que esta expressamente lhes solicitou) e no prazo que por esta lhes foi fixado, que realizaram as despesas de saúde cujo custo incluíram na declaração fiscal, deve concluir, consequentemente, pela violação do citado preceito, decorrente da ilegal denegação aos Requerentes do direito à dedutibilidade de tais despesas à coleta do IRS.
30. Dos elementos trazidos aos autos pode não decorrer uma resposta unificada a esta indagação, pois que houve primeiro a revogação parcial do ato de liquidação nos termos previstos no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, relativamente à desconsideração das despesas de saúde realizadas em Portugal, enquanto a revogação na parte remanescente, relativamente à desconsideração das realizadas no estrangeiro, foi feita após junção aos autos da tradução para português de alguns documentos de prova das despesas.
Haverá, pois, que apreciar cada uma destas situações em separado.
31. Preliminarmente, porém, e porque é questão comum às duas situações, importa decidir se a revogação (em duas etapas) do ato sub judicio preclude o direito dos Requerentes a ver apreciada pelo Tribunal a eventual ilegalidade do mesmo, para efeitos de condenar a Requerida em juros indemnizatórios. É o que se passa de imediato a fazer.
32. O Tribunal entende que, tendo, embora, havido revogação do ato “por iniciativa” da AT, o princípio da tutela jurisdicional efetiva – incluindo a tutela do direito à “plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios”, quando há decisão judicial favorável ao sujeito passivo (artigo 100.º da LGT) – impõe que os Requerentes não vejam denegado o direito à apreciação jurisdicional do seu direito a juros indemnizatórios por decorrência da mera revogação do ato tributário posterior à interposição do pedido de pronúncia arbitral. Seria uma denegação de justiça contrária ao Direito: se erro houve, imputável aos serviços, e se desse erro resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao devido, e se é deduzido pedido de pronúncia arbitral (também) sobre essa questão, a jurisdição do Tribunal não se esfuma em mera razão da revogação do ato.
Pode, pois, o Tribunal Arbitral, nestas condições, apreciar a questão e, sendo o caso, condenar a AT no pagamento dos juros indemnizatórios, sob pena, aliás, de, não o fazendo, cair em omissão de pronúncia.
A. Apreciação da alegada ilegalidade da liquidação adicional de IRS por desconsideração das despesas de saúde realizadas em Portugal
33. Quanto às despesas de saúde realizadas em Portugal, a AT, notificada do pedido de pronúncia arbitral, procedeu à correção do ato de liquidação, revogando-o na parte em que havia recusado a respetiva dedutibilidade.
34. Ora, não consta dos autos qualquer elemento que permita ao Tribunal formar a convicção de ter tal revogação parcial tido como fundamento legitimador o conhecimento pela AT de novos elementos de prova documental, designadamente através da respetiva junção pelos Requerentes ao pedido de pronúncia arbitral.
Bem pelo contrário, tem-se por matéria provada que, no dia 21.07.2011, um dos Requerentes se deslocou ao Serviço de Finanças de Cascais … e apresentou os originais dos documentos comprovativos das despesas de saúde, de que o referido Serviço de Finanças reteve cópia, bem como que, no âmbito da audição prévia, os Requerentes apresentaram novamente os comprovativos das despesas de saúde suportadas em 2007, desta vez promovendo por sua iniciativa a junção ao processo de cópia integral dos originais anteriormente exibidos.
Ora, se apenas esteve na génese da revogação parcial do ato de liquidação adicional a reanálise pela AT da prova documental já na sua posse, pois que nenhum outro elemento foi levado ao seu conhecimento, cria-se a firme convicção no Tribunal de que apenas por erro de direito, a si mesma imputável, a AT havia decidido recusar in totum a dedutibilidade das despesas de saúde dos Requerentes realizadas em Portugal.
35. É certo que argui a Requerida que a AT nunca reconheceu a ilegalidade do ato de liquidação impugnado, pois esta liquidação, com base nos elementos e fundamentos ao dispor da AT nesse momento, foi fundamentada e correta, não podendo ser exigida outra forma de atuação.
No entanto, é a própria Requerida que, ato contínuo, refere também que a AT, antes da constituição do Tribunal Arbitral, procedeu à correção da liquidação, considerando relevantes as despesas de saúde efetuadas em Portugal, podendo sempre fazê-lo, por sua iniciativa, "no prazo de quatro anos após a liquidação", nos termos do n.º 1 do artigo 78.° da LGT.
Ora, se a AT procedeu a essa correção não foi, assim o tem de concluir o Tribunal, porque pode sempre fazê-lo, por sua iniciativa, no prazo de quatro anos após a liquidação – o que corresponde a um paralogismo decorrente da confusão entre factos e razões para decidir e prazo para a decisão –, mas porque concluíu que os meios documentais tempestivamente facultados pelos Requerentes tornavam ilegal ex tunc o ato de liquidação adicional.
É que não pode ter havido outra razão e a invocação do prazo de quatro anos é espúria e não tem qualquer relevância neste contexto: a AT violou o Direito, violou o comando do artigo 82.º do Código do IRS, quando, tendo os Requerentes, em devido tempo, designadamente na audição prévia à decisão, dado cumprimento – bastante, como se veio a verificar pela atuação ex officio da AT – ao ónus probatório a que estão astritos por força do artigo 128.º do mesmo Código, rejeitou a dedutibilidade à coleta das despesas de saúde realizadas em Portugal.
36. Na verdade, mostram-se preenchidos todos os pressupostos do direito a juros indemnizatórios, calculados sobre o IRS liquidado adicionalmente aos Requerentes, na parte em que o ato de liquidação se funda na desconsideração das despesas de saúde realizadas em Portugal: existência de pagamento de uma dívida tributária; caráter indevido da totalidade ou parte do pagamento; determinação em sede de reclamação ou impugnação [mutatis mutandis, de pedido de pronúncia arbitral, como se mostra apodíctico da alínea b) do n.º 1 e n.º 5 do artigo 24.º do RJAT]; falta de causa do pagamento; existência de um erro; imputabilidade do pagamento indevido a erro dos serviços. [João Taborda da Gama, Erros, Serviços e Vícios na Atribuição de Juros Indemnizatórios – Comentário ao Acórdão do STA n.º 114/02, de 29-05 (REL.: Almeida Lopes), e ao Acórdão do STA n.º 772/04, de 17-11 (REL.: Baeta de Queiroz), Fiscalidade, 23, Julho-Setembro 2005, p.121.].
37. Ainda que a correção da liquidação tenha sido feita oficiosamente pela AT (na parte ora em análise), não é aplicável ao caso a alínea b) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, segundo a qual só há lugar a juros indemnizatórios, em caso de anulação do ato tributário por iniciativa da administração tributária, “a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito”.
Não pode negar-se que uma revogação do ato nos termos previstos no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT (e no n.º 1 do artigo 112.º do CPPT) constitui uma revogação por iniciativa da AT, pois é precisamente para permitir essa reapreciação e o concomitante funcionamento da justiça em fase administrativa, na antecâmara do processo arbitral (ou judicial), que essa faculdade está plasmada na lei.
No entanto, como refere António Lima Guerreiro, “o referido preceito apenas se aplica à anulação da liquidação efectuada em processo gracioso tributário” (Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, 2001, pág. 208).
38. Pelo que antecede, entende o Tribunal ser de condenar a Requerida AT, ao abrigo do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, ao pagamento de juros indemnizatórios, na parte correspondente ao IRS liquidado e pago por força da desconsideração, sem fundamento legal, e portanto, em violação do disposto no artigo 82.º do IRS, das despesas de saúde realizadas em Portugal, juros esses contados desde o dia do pagamento do IRS indevido e até à data da efetivação do reembolso.
B. Apreciação da alegada ilegalidade da liquidação adicional de IRS por desconsideração das despesas de saúde realizadas no estranegiro
39. Quanto às despesas de saúde realizadas no estrangeiro, a AT procedeu, já após a constituição do Tribunal Arbitral, à segunda correção do ato de liquidação, revogando-o na parte remanescente,
40. O circunstancialismo factual da decisão de revogação integral do ato de liquidação adicional, compreendendo, pois, a liquidação de IRS por não aceitação da dedutibilidade fiscal das daquelas despesas, é diverso do acima traçado para as realizadas em Portugal.
Em substância, o que está em causa, nesta matéria, é a apreciação e a formação da convicção do Tribunal quanto à imputabilidade do erro de que resultou o pagamento pelos Requerentes de IRS em montante superior ao legalmente devido – que tal erro existiu decorre linearmente da revogação do ato de liquidação, em função das concretas razões que a fundaram –, ou à AT ou aos Requerentes, ou até, em alguma medida, a ambos.
Por sua vez, o juízo sobre a imputabilidade do erro deve alicerçar-se na formação de uma convicção sobre a medida, em termos conjugados e mutuamente condicionantes, em que:
(a) os Requerentes satisfizeram o seu ónus de comprovação dos elementos quantitativos que fizeram constar da declaração de IRS que apresentaram (n.º 1 do artigo 128.º do Código do IRS) e cumpriram os seus deveres legais de colaboração com a AT (n.ºs 1 e 4 do artigo 59.º da LGT e n.º 2 do artigo 48.º do CPPT) e de ter uma conduta de boa fé no relacionamento com esta (n.º 1 do artigo 6.º-A do CPA);
(b) a AT deu cumprimento aos deveres para ela decorrentes da sua subordinação aos princípios da legalidade e da boa fé (n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, artigo 55.º da LGT e artigos 3.º e 6.º-A do CPA), aos deveres para ela decorrentes do princípio do inquisitório (artigo 58.º da LGT) e aos seus deveres de colaboração com os Requerentes [em particular, os estatuídos no n.º 1 e nas alíneas c) e d) do n.º 3 do artigo 59.º da LGT – particularização e densificação dos consagrados na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do CPA –, bem como no n.º 1 do artigo 48.º do CPPT].
41. Importa, para tanto, fazer um melhor recorte teórico das questões de direito que estão em equação.
Aproveitando a muito útil recensão feita no Acórdão do STA de 06/07/2011 (Proc. 0589/11):
“4.1. Como apontam Diogo Leite de Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa (Lei Geral Tributária, Comentada e Anotada, 3ª ed., anotação 1 ao art. 55º, pp. 235/236) «Toda a actividade da administração tributária deve subordinar-se ao interesse público que, relativamente ao sistema fiscal, consiste, em primeira linha, na obtenção de receitas para satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades (art. 103°, n° 1, da CRP). E por força do preceituado no art. 266° da CRP, esta actividade tem de ser levada a cabo em subordinação à Constituição e à lei e deve respeitar os direitos e interesses legítimos dos cidadãos (princípio da legalidade) e os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé», sendo que apesar de o art. 55º da LGT omitir a referência a este princípio da boa fé «a sua aplicação é imposta por aquela norma constitucional e a própria LGT supõe a sua observância no âmbito do princípio da colaboração entre a administração tributária e os contribuintes (art. 59°) e concretiza a sua aplicação ao estabelecer o regime das informações vinculativas (art. 68°).» (…) Segundo estes mesmos autores a inclusão deste princípio na LGT estava prevista na lei de autorização legislativa em que o Governo se baseou para a aprovar (n° 10 do art. 2° da Lei n° 41/98, de 4/8).
A este princípio da boa-fé se refere, ainda, o art. 6º-A do CPA, cujo n° 2 «esclarece factores a atender na apreciação do cumprimento das regras da boa-fé, prescrevendo que devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa e o objectivo a alcançar com a actuação empreendida. Esta exigência tem um conteúdo de carácter ético, impondo aos intervenientes no procedimento tributário que actuem com lealdade e sinceridade recíprocas no decurso do procedimento tributário, abstendo-se de actuações que possam enganar o outro interveniente, ou ocultando-lhe elementos que possam ter proveito para a defesa das suas posições.» (ob. cit., pag. 278).
Daí que o nº 1 do art. 48º do CPPT, concretizando os deveres de colaboração da AT com os contribuintes, estabeleça que aquela «… esclarecerá os contribuintes e outros obrigados tributários sobre a necessidade de apresentação de declarações, reclamações e petições e a prática de quaisquer outros actos necessários ao exercício dos seus direitos, incluindo a correcção dos erros ou omissões manifestas que se observem.» e que o nº 2 do mesmo artigo estabeleça que «O contribuinte cooperará de boa-fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso.», sendo que a violação, por parte da AT, dos deveres procedimentais de colaboração e de actuação segundo as regras da boa fé, pode consistir em vício autónomo de violação de lei (cfr. Jorge de Sousa, CPPT Anotado e Comentado, 5ª ed., Vol. I, anotação 7 ao art. 48º, p. 413).
Com efeito, na densificação do referido princípio da actividade administrativa relevam sobretudo dois subprincípios concretizadores da boa-fé: o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança.
Ora, a respeito destes subprincípios Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 1ª ed. pp. 214/216), referem o seguinte:
«O princípio da boa-fé está consagrado no art. 266°, 2 CRP e no art. 6°-A CPA, que alargou o seu âmbito subjectivo de aplicação, de modo a vincular não apenas a administração mas também os particulares que com ela se relacionem. Tendo em conta a origem da sua positivação, não admira que a densificação deste princípio no CPA tenha sido muito influenciada pela construção dogmática empreendida no direito civil por A. Menezes Cordeiro (Da boa fé no direito civil), que identifica dois subprincípios concretizadores da boa fé: o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança. (…)
O princípio da primazia da materialidade subjacente exprime a ideia de que o direito procura a obtenção de resultados efectivos, não se satisfazendo com comportamentos que, embora formalmente correspondam a tais objectivos, falhem em atingi-los substancialmente. Este princípio proíbe, por exemplo, o exercício de posições jurídicas de modo desequilibrado ou o aproveitamento de uma ilegalidade cometida, pelo próprio prevaricador, de modo a prejudicar outrem. É a isto que o art. 6º-A, 2, b) CPA se quer referir quando afirma que se deve ponderar «o objectivo visado com a actuação empreendida».
Já o princípio da tutela da confiança «visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.
É a isto que o art. 6°-A, 2, a) CPA se refere quando afirma que se deve ponderar «a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa».
Também se entendeu, no Acórdão do STA de 02/02/2006 (Proc. 01011/05) o seguinte:
“(…) se a Administração actuou, neste pormenor, em conformidade com a lei, a mesma lei a obriga a, mesmo perante a quebra dos deveres de declaração, documentação e colaboração do contribuinte, continuar a agir segundo a legalidade.
Não é o facto de o contribuinte faltar aos seus deveres que, por si só, desonera a Administração de cumprir os seus. E a actuação segundo a legalidade implica, como regra de conduta, a orientação do procedimento de modo a atingir a verdade material, em ordem a permitir a tributação segundo o rendimento real.”
Veja-se ainda Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, cit., pp. 106 – 107:
“O objectivo fundamental de toda a actuação procedimental tributária deverá ser sempre a descoberta da verdade material (…). A verdade material em matéria tributária implica o conhecimento e aceitação total do princípio da igualdade (justiça) na tributação, na sua dimensão estruturante de respeito pela efectiva capacidade contributiva dos sujeitos, pois apenas o conhecimento desta permite atingir aquela. (…) Por conseguinte, quer a Administração, quer os contribuintes estão obrigados a cooperar no sentido referido. (…) Por aqui se vê que este princípio da verdade material tem como importante corolário o sub-princípio da cooperação, nos termos do qual “os órgãos da Administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração recíprocos” (artigo 59.º/1 e /2 da LGT), presumindo-se sempre a boa-fé das suas actuações.”
António Lima Guerreiro refere que “O procedimento tributário desenvolve-se em estrita e constante cooperação entre o contribuinte e a administração tributária, visando, nos termos do artigo anterior, o apuramento da verdade material”. (Lei Geral Tributária Anotada, Editora Reis dos Livros, Lisboa, p. 268.)
Mais impressivamente ainda, escrevem Jónatas Machado e Paulo Nogueira da Costa (Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 379):
“A administração tributária deve aplicar a lei oficiosamente devendo considerar-se que viola o princípio da boa-fé e da colaboração a omissão da administração em detrimento de um contribuinte ignorante, distraído ou incompetente.”
Os mesmos autores citam ainda a declaração de voto do Conselheiro Paulo da Mota Pinto, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 84/03:
“De acordo com o princípio da colaboração, a Administração tributária não deve poder retirar vantagens das omissões ou erros manifestos dos contribuintes. Este último aspecto deve ser salientado, na medida em que ele preclude, por exemplo, que da ignorância, incompetência ou inépcia do contribuinte se possa presumir, sem mais, uma conduta fraudulenta.”
42. Ora, o que se deu por provado, com relevância, e se verteu no ponto 23 acima, permite ao Tribunal formar a convicção de que houve, da parte da AT, atropelo grave dos seus deveres para com os Requerentes, derivados dos princípios da legalidade, da boa fé, do inquisitório e da colaboração com os contribuintes – como tais deveres são recortados pela doutrina e pela jurisprudência dominantes – pela simples, mas crucial, circunstância de o Chefe do Serviço de Finanças de Cascais … haver omitido, ao longo do procedimento de formação do ato tributário de liquidação adicional de IRS, ao longo dos contactos mantidos com os Requerentes, a informação clara das razões de dúvida que tinha sobre as despesas de saúde realizadas por aqueles (rectius, por um daqueles) no estrangeiro, ao não lhes exigir prova dos motivos da realização das despesas, nem lhes exigir tradução para língua portuguesa dos documentos entregues no original em língua inglesa – e ao praticar, assim, por erro de direito que a ela, AT, se tem de ter por imputável, o ato de liquidação adicional violador do disposto no artigo 82.º do Código do IRS.
43. É certo que o Ilustre Mandatário da AT neste processo argui que, “Nos autos deste processo, a AT pautou toda a sua atuação numa dinâmica de completa colaboração com os Requerentes, contribuindo ativamente para a descoberta da verdade material.”
Certamente que o fez, designadamente ao requerer ao Tribunal que mandasse juntar aos autos a tradução dos documentos para língua portuguesa, e ao revogar, uma vez junta esta, o ato de liquidação na parte remanescente à primeira revogação parcial.
Não é, porém, a conduta – e os vícios desta – da AT durante o presente processo que está em apreciação. A ilegalidade que se discute é a do ato de liquidação e a conduta cuja conformação com a lei se tem de apreciar é a da AT durante o procedimento que conduz e está na génese e carreia as razões para o ato que concretamente foi praticado.
44. Nem colhe a invocação de que todos os elementos relevantes para a decisão da matéria controvertida só foram trazidos aos presentes autos a pedido da AT e de que os Requerentes se limitaram sempre a "esperar" que a Administração os instasse a um comportamento, nomeadamente a apresentar a "tradução dos documentos ou a esclarecer qualquer aspeto do seu conteúdo".
Sendo inequivocamente verdade que os contribuintes estão vinculados à obrigação de “apresentar, no prazo que lhes for fixado, os documentos comprovativos dos rendimentos auferidos, das deduções e abatimentos e de outros factos ou situações mencionadas na respetiva declaração” (artigo 128.º do Código do IRS), e que tal obrigação é tão relevante para a ordem jurídica que a sua violação é sancionada nos termos do n.º 1 do artigo 117.º do RGIT, não tendo, portanto, apenas a natureza de ónus para verem aceites as despesas lançadas na declaração, decorre dos autos que os Requerentes deram tempestivo cumprimento a essa obrigação.
Entregaram alguns documentos em língua inglesa e vieram aos autos admitir, no art.° 18.° do seu pedido, que poderiam daí ter decorrido dificuldades de interpretação das faturas emitidas pela clínica de reabilitação …, não tendo, durante o procedimento, designadamente quando foram notificados a apresentar os documentos e depois durante a audição prévia, entregue traduções para língua portuguesa. Porém, fica o Tribunal com a convicção de que, tendo a AT omitido sempre as ditas dificuldades na leitura e interpretação da língua inglesa (afinal, não uma qualquer língua descolhecida da generalidade da população portuguesa, nem, a fortiori, de quadros da AT), criou nos Requerentes a confiança de que não havia essa dificuldade, pelo que, em violação do princípio da confiança (decorrente do princípio da boa fé e da presunção desta – n.º 2 do artigo 59.º da LGT).
45. Nem pode colher, nos termos em que vem formulada, a invocação pela AT de que tem como destinatários um número ilimitado de pessoas, singulares e coletivas, e de que, tendo em conta a escassez de recursos, não pode em cada caso concreto tratá-los como "meros recetáculos de instruções".
Certamente que não pode e que também os contribuintes têm deveres de colaboração e de razoável diligência.
Porém, o que aqui está em causa não é apenas a aferição da razoabilidade da medida em que a AT deu cumprimento aos seus deveres de colaboração, mas também compreender se, nos contactos com os Requerentes, foi a AT transparente a informá-los das dúvidas que tinha, ou das dificuldades de interpretação de documentos em língua inglesa, ou até de que não considerava legalmente aceitáveis tais documentos sem serem acompanhados de tradução. Tudo isto poderia a AT ter feito, sem sobrecarga alguma do seu trabalho e sem pôr em causa a afetação de recursos ente os vários procedimentos que, certamente, tinha em curso. Ao não o fazer, violou claramente o princípio da boa fé.
Afinal, a AT tem a função de administradora da justiça fiscal, para cuja boa prossecução, norteada pelo princípio do inquisitório, há de ter sempre presente, na condução do procedimento administrativo tributário, como mínimo ético e comportamental, a transparência perante os contribuintes, quando exige ou convida, como é seu poder-dever, estes a comprovarem com suficiência os valores que inserem nas declarações. Não está em causa a defesa teórica de qualquer ‘permissividade’ ou falta de rigor da AT – que seria ilegal, por violadora de princípios como o da legalidade e, potencialmente, o da igualdade – mas apenas o dever de esta adotar condutas que permitam aos contribuintes conhecer as concretas dúvidas que a AT possa ter sobre a sua situação tributária, sob pena de assim não agindo, lhes tolher o direito de a esclarecer, lhes impedir o bom cumprimento do correlativo dever de colaboração, inviabilizando, afinal, a descoberta da verdade tributária material.
46. Argui também a AT que as despesas realizadas no estrangeiro (rectius, os documentos apresentados para a sua comprovação) não se encontravam em conformidade, desde logo, com a Constituição da República Portuguesa, que no seu art.° 11.° n.° 3 estatui dizendo que "A língua oficial é o Português".
Não pode o Tribunal acompanhar esta linha de arguição. Do citado preceito constitucional decorre que a AT (ou qualquer outra estrutura da Administração Pública, ou os tribunais, etc.) não estão legalmente obrigados a aceitar documentos redigidos em língua estrangeira, se desacompnhados de tradução para português. Porém, não decorre que os não possam aceitar. Correlativamente, também não decorre que os contribuintes estejam ex lege impedidos de apresentar redigidos em língua estrangeira desacompanhados de tradução.
O próprio n.º 1 do artigo 140.º do CPC apenas vem dispor que, quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira “que careçam de tradução”, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte. Em sentido similar dispõe o n.º 1 do artigo 166.º do Código de Processo Penal.
Como se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa, de 10.5.2007 (Proc. 1612/2007-6); “O art. 140º, nº 1 do CPC introduziu uma simplificação no regime legal da tradução de documentos escritos em língua estrangeira juntos ao processo, cabendo ao juiz, por sua iniciativa ou a pedido de alguma das partes, determinar a sua tradução se necessária, deixando de condicionar-se à necessária apresentação de tradução a incorporação nos autos de qualquer documento escrito redigido em língua estrangeira – facultando ao juiz dispensá-la quando entenda que o documento redigido em idioma estrangeiro não carece de tradução.”
Assim, tem a AT plena legitimidade para recusar documentos em língua estrangeira, por não estarem na língua oficial do país. Não decorre, porém, dessa legitimidade inequívoca que deva fazê-lo automaticamente, by default.
Mesmo na lei tributária existem situações em que expressamente se admitem documentos noutras línguas (vejam-se o n.º 3 do artigo 17.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, e o n.º 3 do artigo 6.º da Portaria n.º 620-A/2008, de 16 de Julho), sujeito, apenas, a que a AT peça a sua tradução.
Não se tratam de exceções, mas antes do afloramento, numa área do direito em que a questão é potencialmente mais pertinente, de princípios que se devem ter por imanentes à ética relacional da AT para com os administrados, ou contribuintes, como sejam o da administração aberta, o da colaboração, o da boa fé e o da proporcionalidade: se o conteúdo de um documento redigido em língua estrangeira é plenamente apreensível pela AT, sem dificuldade de interpretação, que finalidade serve a recusa da sua aceitação, que proporcionalidade tem a essa recusa, que boa fé lhe subjaz, que grau de colaboração demonstra?
Certamente que o juízo seria diverso se os Requerentes tivessem por hipótese, entregue documentos redigidos, por exemplo, em língua russa, ou japonesa, ou árabe. Nenhuma dúvida haveria, nesse caso, de que fazê-lo, quando instados ao abrigo do artigo 128.º do Código do IRS, sem apresentar em simultâneo a respetiva tradução para português, mostraria um grau inaceitável de incumprimento da obrigação de demonstrar o legal cabimento tributário das despesas de saúde.
47. Mesmo perante um documento em língua inglesa, para a qual é razoável presumir (salva, talvez, se houver grande extensão ou complexidade técnica) a familiaridade da AT, se o respetivo conteúdo não for plenamente apreensível pela AT, então deve esta tempestivamente notificar ou informar disso mesmo os contribuintes.
Ora, o Tribunal formou a convicção, com base nos elementos que estão nos autos, e que atrás se deixaram referidos, de que o Chefe do Serviço de Finanças de Cascais … apenas “constatou que não tinham sido comprovadas despesas de saúde”, como a Requerida afirma nos autos, porque omitiu informar os Requerentes de que deveriam juntar tradução de documentos em língua inglesa. Sibi imputat. Essa inaceitável omissão, contrária ao ordenamento jurídico, esteve na génese de um ato de liquidação viciado por erro, que levou ao pagamento de um montante de IRS que não era, comprovadamente, devido.
48. Nem consta dos autos que, em sede de audição prévia, tenha o Chefe de Finanças de Cascais … solicitado aos Requerentes documento que prescrevesse o tratamento a que se destinavam as despesas médicas realizadas no estrangeiro.
Ainda que decorra a sua decisão de praticar o ato de liquidação adicional de – em observância da Circular 26, de 30/12/1991 da Direcção de Serviços do IRS, que o vincula – ter de distinguir despesas realizadas no estrangeiro que podem ser consideradas para efeitos de abatimento no IRS de outras que o não podem, e de, portanto, perante a falta de apresentação pelos Requerentes de documento de prescrição do tratamento, em sede de direito de audição, não poder o Chefe do Serviço de Finanças de Cascais … ter agido de outra maneira, todo o procedimento está inquinado, como se demonstrou ad abundantiam pela sua conduta não transparente, ao não especificar aos Requerentes as razões porque iria negar a aceitação das despesas, desse modo esvaziando a própria razão de ser da audição prévia.
49. Nestes termos, forma o Tribunal a convicção de que houve erro de liquidação imputável aos serviços, com o consequente direito a juros indemnizatórios.
Pelo que antecede, entende o Tribunal ser de condenar a Requerida AT, ao abrigo do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, ao pagamento de juros indemnizatórios, na parte correspondente ao IRS liquidado e pago por força da desconsideração, sem fundamento legal, e portanto, em violação do disposto no artigo 82.º do IRS, das despesas de saúde realizadas no estrangeiro, juros esses contados desde o dia do pagamento do IRS indevido e até à data da efetivação do reembolso.
IV.B. Do direito dos Requerentes ao ressarcimento das despesas resultantes da lide, nomeadamente honorários dos mandatários judiciais, a liquidar em execução de sentença
50. Os Requerentes peticionam o ressarcimento das despesas resultantes da lide, nomeadamente honorários dos mandatários judiciais, a liquidar em execução de sentença.
Sobre este pedido, afirma a Requerida que não existe a sua responsabilidade pelas custas, uma vez que nos termos do art.° 449.° n.° 1 do CPC, aplicável ex vi do art.° 6.° alínea b) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, não deu causa à ação e não a contesta.
Na sua resposta, a Requerida afirma, de facto, que a Autoridade Tributária não responde ao pedido, sendo que o Serviço de Finanças de Cascais … vai proceder à correção oficiosa da liquidação contestada, no sentido de considerar fiscalmente relevantes as despesas de saúde realizadas no estrangeiro.
No entanto, como refere Jorge Lopes de Sousa (Código de Procedimento e de Processo Tributário, áreas editora, 6.ª edição, 2011, Volume II, pág. 310), “quando um acto é anulado ou declarada a sua nulidade ou inexistência, será de entender que foi a administração tributária que deu causa ao processo ao praticar um acto em desconformidade com a lei”.
Ora, é por demais evidente, por tudo quanto se recolhe acima, que, tendo os Requerentes decidido fazer valer o seu direito à declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRS relativo ao ano 2007 e tendo o Tribunal formado a convicção de que foi a conduta da Requerida no procedimento tributário geradora da alegada ilegalidade, em termos de lhe ser imputável o erro para efeitos do direito a juros indemnizatórios, declarando aquela ilegalidade na apreciação que fez do pedido de condenação aos referidos juros, daí decorre, com meridiana clareza, o cabimento do juízo de que foi a Requerida AT que deu causa à presente ação.
Nem é verdade que a Requerida não conteste. Apenas não contesta formalmente, por inutilidade superveniente parcial, o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação. Na verdade, impugna os factos articulados pelos Requerentes, mesmo em relação a esse pedido (veja-se a síntese feita, nomeadamente, nos pontos 15.8 a 15.13 acima). Além de que contesta todos os demais pedidos.
V. Decisão
Termos em que se decide:
(a) Julgar procedente o pedido dos Requerentes de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios, contados entre a data do pagamento do IRS indevido e a data do reembolso;
(b) Julgar procedente o pedido dos Requerentes de condenação da Requerida ao ressarcimento das despesas por aqueles suportadas, resultantes da lide, incluindo honorários dos mandatários judiciais, a liquidar em execução de sentença.
Fixa-se o valor do processo em EUR 12.734,52, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em EUR 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar integralmente pela Requerida, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e do n.º 4 do artigo 4.º do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 22 de novembro de 2012.
Luís M. S. Oliveira
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 138.º, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, redigido segundo a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto, e revisto pelo Árbitro.