Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 23/2016-T
Data da decisão: 2016-06-30  IRC  
Valor do pedido: € 29.111,85
Tema: IRC – Tributações autónomas; dedutibilidade; caducidade do direito à liquidação; indemnização por prestação de garantia indevida
Versão em PDF

 

 

Decisão Arbitral

 

 

1.      RELATÓRIO

 

1.1.  A…, S.A. (Requerente), pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua …, n.º …, na …, apresentou em 21/01/2016, pedido de pronúncia arbitral, no qual peticiona a anulação do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) n.º 2014 … (entretanto corrigido na sequência da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico pelos actos de liquidação n.º 2015 … e 2015 … e do acto de liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, relativos ao exercício 2009 e, bem assim, a declaração de ilegalidade do referido despacho de deferimento parcial do recurso hierárquico, na parte em que nega provimento ao pedido.

 

1.2.  O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou, em 03/03/2016, como árbitro singular o signatário desta decisão.

 

1.3.  No dia 31/03/2016 ficou constituído o tribunal arbitral.

 

1.4.  Cumprindo-se o disposto no n.º 1 do artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) foi a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) notificada, em 31/03/2016, para, querendo, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.

 

1.5.  Em 29/04/2016 a AT apresentou a resposta, juntando a reclamação graciosa e o respectivo relatório de inspecção.

 

1.6.  Em 17/05/2016 realizou-se a reunião a que n.º 1 do artigo 18.º do RJAT se refere, tendo sido inquirida a testemunha previamente indicada pela Requerente. A AT prescindiu da inquirição da testemunha por si indicada e, bem assim, de contra-inquirir a testemunha indicada pela Requerente. O tribunal arbitral convidou, ainda, ambas as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas facultativas e agendou a data para prolação da decisão final.

 

1.7.  Em 02/06/2016 a Requerente apresentou alegações escritas facultativas.

 

1.8.  Em 17/06/2016 a AT apresentou alegações escritas facultativas.

 

2.      SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.

 

Não existem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado no prazo de 90 dias contados da notificação da decisão do recurso hierárquico (cfr. a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT), pelo que é tempestivo.

 

Verificam-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.

 

3.      POSIÇÕES DAS PARTES

 

São duas as posições em confronto, a da Requerente, vertida no pedido de pronúncia arbitral e a da AT na sua resposta e respectivas nas alegações subsequentes.

 

Como fundamento, alega a Requerente, em síntese, que os actos de liquidação padecem dos vícios de preterição de formalidades essenciais e, ainda, se baseiam numa incorrecta interpretação das normas do Código do IRC.

 

Neste sentido, aduz os seguintes argumentos:

 

a)      Caducidade do direito à liquidação

 

Sustenta a Requerente que de acordo com disposto no artigo 45.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT) “o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro”, contados, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário.

 

Entende a Requerente que no caso em apreço, os actos de liquidação originários de IRC e os respectivos juros compensatórios apenas foram praticados em 08/01/2014 e em 13/01/2014, respectivamente, tendo apenas sido notificada dos mesmos em 27/03/2014.

 

Nesta medida, o direito de a AT proceder à liquidação do IRC alegadamente em falta, teria caducado em 31/12/2013.

 

No entanto, tendo em consideração que os actos de liquidação foram precedidos de um procedimento de inspecção, o referido prazo de caducidade suspendeu-se entre 16/09/2013 (data da assinatura da respectiva ordem de serviço) e 06/12/2013 (data de assinatura da nota de diligência).

 

Segundo a Requerente, verifica-se, pois, que, o prazo de caducidade correu ininterruptamente entre 01/01/2010, termo inicial de contagem do prazo de caducidade para efeitos do disposto no artigo 45.º, n.º 1 e n.º 4, da LGT, até ao dia 16/09/2013, data em que tiveram início os actos inspectivos, com a assinatura da ordem de serviço.

 

Assim, na data em que teve início o procedimento inspectivo já havia decorrido o prazo de 3 anos, 8 meses e 16 dias desde o termo inicial de contagem do prazo de caducidade (01/01/2009), faltando, ainda, 3 meses e 15 dias para se completar o prazo de 4 anos.

 

Por outro lado, prossegue a Requerente, tendo o prazo de caducidade retomado a sua contagem em 06/12/2012, deverá concluir-se que o período que faltava para se completar o prazo de caducidade (3 meses e 14 dias) terminou em 21/03/2014, ou seja, antes da notificação dos actos de liquidação de IRC e de juros compensatórios referentes ao ano de 2009.

 

Deverá, assim, concluir-se que tendo decorrido o prazo de caducidade previsto no artigo 45.º, n.º 1 e n.º 4, da LGT, os actos de liquidação em causa são ilegais, devendo, consequentemente, ser anulados.

 

b)      Violação do princípio do inquisitório e persecução da verdade material

 

Segundo a Requerente, de acordo com o princípio do inquisitório, consagrado no artigo 58.º da LGT, a AT deve, no procedimento inspectivo, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material.

 

No mesmo sentido, dispõe o artigo 6.º do Regime Complementar do Procedimento da Inspecção Tributária (RCPIT), que o procedimento de inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a AT adoptar oficiosamente todas as diligências necessárias a alcançar a esse objectivo.

 

Resulta, pois, dos preceitos em causa que a AT está sujeita, na sua actuação, à prossecução do interesse público, devendo, para tanto, no âmbito da sua actividade inspectiva, procurar sempre alcançar a verdade material subjacente aos factos inspeccionados.

 

Sustenta a Requerente que a AT não logrou demonstrar (limitando-se antes a especular) que a Requerente tenha contabilizado quaisquer custos erradamente ou tenha incumprido com qualquer dever fiscal ou contabilístico dos quais tenha retirado qualquer vantagem patrimonial em prejuízo para os cofres do Estado.

 

De facto, tal como vem sendo reconhecido pela generalidade da doutrina, a não averiguação dos elementos necessários à descoberta da verdade material, com a consequente violação do princípio do inquisitório, inquina de ilegalidade o acto tributário emitido com base nas conclusões do procedimento inspectivo.

 

c)      Falta de fundamentação e ilegalidade da liquidação de juros compensatórios

 

Sustenta, ainda, a Requerente que não se encontram verificados os pressupostos de que a lei faz depender a liquidação de juros compensatórios.

 

Desde logo, designadamente, a culpa da Requerente, não é sequer invocada, e muito menos demonstrada pela AT.

 

Por outro lado, entende a Requerente que a liquidação de juros compensatórios em causa é ilegal, também por falta de fundamentação e violação do artigo 77.º da LGT e por preterição de formalidade legal essencial, devendo ser declarada ilegal e anulada em conformidade.

 

d)     Ilegalidade da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico

 

Entende a Requerente que ao manter vigente na ordem jurídica, ainda que parcialmente, os actos de liquidação contestados, a Senhora Directora de Serviços do IRC agiu em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, sendo que os vícios imputados aos actos de liquidação se transmitem à própria decisão que os mantém, o que desde já se invoca para todos os efeitos legais.

 

Por outro lado, a decisão do recurso hierárquico foi proferida sem que, em momento anterior, a Requerente tivesse tido a oportunidade de se pronunciar sobre os pressupostos da mesma, violando, o disposto no artigo 60.º da LGT.

 

Deve, pois, também o despacho da Senhora Directora de Serviços do IRC ser anulado porquanto praticado com ofensa das normas e princípios jurídicos aplicáveis (cfr. o artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo).

 

e)      Ilegalidade de algumas das correcções constantes do relatório de inspecção, relativas a custos não aceites fiscalmente, provisões, tributações autónomas e amortizações.

 

Já a AT alega, em síntese, que:

 

a)      Quanto à alegada caducidade do direito à liquidação, a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação apenas cessa com o fim do procedimento inspectivo, concretizado na notificação do relatório final à Requerente.

 

b)      Quanto à alegada falta de fundamentação das liquidações, a jurisprudência do STA tem vindo a entender uniformemente que a fundamentação do acto é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto, ou seja, quando o destinatário possa conhecer as razões que levaram o autor do acto a decidir daquela maneira e não de outra.

 

c)      No que diz respeito à alegação de que foi preterida formalidade essencial por ter sido violado o disposto no artigo 60.º, n.º 1, da LGT, também não assiste razão à Requerente na medida em que a intervenção dos contribuintes nas decisões da AT que lhes digam respeito acolhe cobertura legal no princípio da participação ínsito no artigo 60.º da LGT, o qual, efectivamente, prevê no seu n.º 1, alínea b), o direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos recursos.

 

d)     Relevando para o presente caso o preceituado no n.º 3, que dispensa a audição antes da liquidação, nas situações em que o contribuinte tenha sido anteriormente ouvido em qualquer das fases, v.g. a do procedimento de inspecção, como foi o caso.

 

e)      No que diz respeito à mesma alegação, mas quanto à liquidação de juros compensatórios, resulta expressamente do tipificado no artigo 35.º da LGT, que haverá lugar ao pagamento de juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido, ou for por si recebido reembolso superior ao devido, os quais acrescerão ao montante de imposto devido.

 

f)       No que concerne à alegada violação dos princípios do inquisitório e da persecução da verdade material, considerando as correcções especificamente aqui analisadas e a base em que assentam, conclui-se que a AT invocou claramente os fundamentos de facto e de direito que lhe estão subjacentes.

 

g)      Quanto ao pedido de indemnização por prestação de garantia indevida, não foi a pretensão fundamentada uma vez que o pedido é feito de forma vaga e genérica, não elencando os factos nem o direito pelos quais entende ser-lhe devida esta indemnização.

 

h)      Conclui a AT não haver, ao longo de todo o procedimento, qualquer erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, susceptível de fundamentar o dever de indemnizar nos termos pretendidos pelo Requerente, não pode o mesmo ser atendido.

 

4.      MATÉRIA DE FACTO

 

4.1.  FACTOS QUE SE CONSIDERAM PROVADOS

 

Em face dos documentos carreados para o processo, dá-se como provado que:

 

4.1.1.      A Requerente tem por objecto a exploração e comercialização de serviços prestados na aréa dos transportes rodoviários de mercadorias especiais.

 

4.1.2.      A coberto da ordem de serviço n.º OI2013…, foi emitida pelo Serviço de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de …, foi efectuada uma acção de inspecção externa de âmbito parcial, a qual incidiu sobre o exercício de 2009.

 

4.1.3.      No âmbito do referido procedimento, forma efectuadas as seguintes correcções à matéria colectável, as quais estiveram na base da liquidação adicional de IRC n.º 2014 …, da qual resultou um montante total a pagar de € 91.873,31:

 

 

4.1.4.      Em 29/07/2012 a Requerente apresentou, junto da Direcção de Finanças de …, reclamação graciosa contra os referidos actos de liquidação de IRC e de juros compensatórios.

 

4.1.5.      Através do Ofício n.º …, de 12/11/2014, da Divisão de Justiça Administrativa, da Direcção de Finanças de …, a Requerente foi notificada para, no prazo de 15 dias, a contar da notificação, se pronunciar, em sede de direito de audição prévia, sobre o projecto de decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada contra os actos de liquidação acima identificados.

 

4.1.6.      Em 28/11/2014 a Requerente exerceu, junto da Direcção de Finanças de …, o respectivo direito de audição sobre o projecto de decisão, peticionando a anulação do mesmo e, bem assim, dos actos de liquidação de IRC e de juros compensatórios praticados pela AT com referência ao exercício de 2009.

 

4.1.7.      Em 22/12/2014 a Requerente apresentou um requerimento de aditamento ao direito de audição apresentado, juntando, para o efeito, elementos de prova adicionais no sentido de demonstrar a ilegalidade das correcções apuradas pela AT e, consequentemente, dos actos de liquidação de IRC e de juros compensatórios.

 

4.1.8.      Através do Ofício n.º …, de 29/12/2014, da Divisão de Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de …, a Requerente foi notificada do deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada contra o acto de liquidação de IRC n.º 2014 …, no montante de € 91.873,31 e, bem assim, contra o acto de liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, no montante de € 11.502,88, respeitantes ao exercício de 2009.

 

4.1.9.      No decurso da referida reclamação graciosa foi oferecida prova documental que permitiu concluir pela anulação da correcção efectuada com referência à mais-valia contabilística, no montante de € 4.217,51, na aceitação de uma provisão, no montante de € 3.810,00, e de despesas no montante de € 11.561,63.

 

4.1.10.  Na sequência da referida decisão, a Requerente apresentou ainda recurso hierárquico em 28/01/2015, o qual foi igualmente deferido de modo parcial, tendo sido aceite parte dos valores das provisões relativas a créditos em mora constituídas, no montante de € 194.792,57.

 

4.1.11.  Este último despacho foi notificado à Requerente em 23/10/2015 e deu origem à liquidação adicional de IRC n.º 2015 … e do acto de liquidação de juros compensatórios n.º 2015 …, os quais adaptam os actos originários às decisões proferidas em sede administrativa.

 

4.1.12.  Uma vez que a Requerente não procedeu, em tempo, ao pagamento das liquidações em apreço, foi instaurado o processo de execução fiscal n.º …, o qual se encontra suspenso tendo sido prestada garantia, sob a forma de hipoteca voluntária sobre dois imóveis de que é proprietária.

 

4.2.  FACTOS QUE NÃO SE CONSIDERAM PROVADOS

 

Não existem factos com relevo para a decisão que não tenham sido dados como provados.

 

5.      O DIREITO

 

5.1.  ORDEM DE CONHECIMENTO DOS VÍCIOS

 

De harmonia com o disposto no artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, não sendo imputados aos actos impugnados vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade, nem indicada uma relação de subsidiariedade, a ordem de apreciação dos vícios deve ser a, que segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz à tutela dos interesses ofendidos.

 

No caso em apreço, apreciaremos, em primeiro lugar, os vícios de natureza procedimental invocados pela Requerente (caducidade do direito à liquidação, falta de fundamentação e ilegalidade da liquidação de juros compensatórios, preterição de direito de audição antes da emissão do despacho de deferimento parcial, violação do princípio do inquisitório e persecução da verdade material, e, depois, a questão de fundo: a ilegalidade de algumas das correcções constantes do relatório de inspecção.

 

5.1.1.      CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO

 

De acordo com o disposto no artigo 45.º, n.º 1, da LGT, o “direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro”.

 

Determina, ainda, o artigo 46.º, n.º 1, da LGT, que o “prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da acção de inspecção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo do seu início, caso a duração da inspecção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação”.

 

Já o artigo 61.º, n.º 1, do RCPIT, estabelece que os “actos de inspecção consideram-se concluídos na data de notificação da nota de diligência emitida pelo funcionário incumbido do procedimento”.

 

Por outro lado, o artigo 62.º, n.º 1 e n.º 2, do RCPIT estabelece o seguinte:

 

“1 – Para conclusão do procedimento é elaborado um relatório final com vista à identificação e sistematização dos factos detectados e sua qualificação jurídico-tributária.

2 – O relatório referido no número anterior deve ser notificado ao contribuinte por carta registada nos 10 dias posteriores ao termo do prazo referido no n.º 4 do artigo 60.º, considerando-se concluído o procedimento na data da notificação.”.

 

Por último, o artigo 36.º, n.º 1 e n.º 2, do RCPIT, sob a epígrafe “Início e prazo do procedimento de inspecção”, dispõe o seguinte:

 

“1 – O procedimento de inspecção tributária pode iniciar-se até ao termo do prazo de caducidade do direito de liquidação dos tributos ou do procedimento sancionatório, sem prejuízo do direito de exame de documentos relativos a situações tributárias já abrangidas por aquele prazo, que os sujeitos passivos e demais obrigados tributários tenham a obrigação de conservar.

2 – O procedimento de inspecção é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início.”.

 

Ora, da leitura conjugada de todos estes normativos, não é possível concluir pela pretensão da Requerente.

 

Senão vejamos,

 

De facto, pese embora estas normas exprimam alguma imprecisão terminológica na utilização das expressões “acção de inspecção” e “procedimento de inspecção”, trata-se de expressões que designam conceitos com conteúdos distintos, mas sem que dessa distinção se possa extrair a consequência jurídica pretendida pela Requerente: a de que a suspensão do prazo de caducidade da liquidação cessa com a notificação ao inspeccionado da conclusão dos actos de inspecção e não com a elaboração do relatório final de inspecção.

 

Ora, procedendo o relatório final de inspecção à identificação e sistematização dos factos detectados e à sua qualificação jurídico-tributária, designadamente, descrevendo os factos fiscalmente relevantes que alterem os valores declarados ou a declarar sujeitos a tributação, a AT está impedida, antes da elaboração desse relatório final, de exercer o direito de liquidação por desconhecimento dos pressupostos fácticos em que a mesma se deve basear.

 

Segundo José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, em anotação ao artigo 46.º da LGT, “Durante este período, a administração tributária está impossibilitada de praticar actos de liquidação, já que se encontra numa fase de recolha de elementos de prova e de verificação da existência de pressupostos de facto e de direito susceptíveis de fundamentar, ou não, correcções fiscais, e a consequente liquidação.” [sublinhado nosso].[1]

 

Ainda segundo os autores, “(...) o procedimento de inspecção só se considera finalizado com a notificação do relatório final de inspecção, com vista à identificação e sistematização dos factos detectados e sua qualificação jurídico-tributária (n.º 2 do artigo 62.º do RCPIT), que é o culminar de um complexo intricado de diligências e actos que a lei obriga a Inspecção Tributária a desenvolver, após a conclusão do próprio procedimento de inspecção.” [sublinhado nosso].[2]

 

“Assim, a acção de inspecção só se considera concluída com a notificação do relatório final da acção de inspecção, devidamente sancionado com despacho da entidade competente.”.[3]

 

Veja-se, a este respeito, a jurisprudência a este respeito firmada no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 16/09/2009, Processo n.º 0473/09[4], no sentido de que, no que respeita à caducidade do direito à liquidação do imposto e à forma de contagem do prazo de suspensão daquele prazo de caducidade em consequência de acção inspectiva determinada e notificada ainda no decurso daquele primeiro prazo de caducidade, é clara a estatuição constante dos artigos 45.° e 46.° da LGT, e 60.° e 61.° do RCPIT.

 

Transcrevendo, parcialmente, a sua fundamentação, “(...) nada da letra nem do espírito daqueles normativos permite distinguir, com relevo para a contagem do prazo de suspensão do prazo de caducidade do direito de liquidar, actos internos de inspecção e actos externos de inspecção e muito menos permite se confira apenas a estes últimos a eficácia suspensiva.

Da interpretação conjugada dos referidos preceitos legais decorre apenas e só (...) que o prazo de caducidade do direito de liquidar impostos periódicos, que é de quatro anos e se conta a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário – artigo 45.° da LGT –, se suspende com a notificação ao contribuinte de início de acção inspectiva externa, cessando este efeito suspensivo, contando-se aquele prazo de caducidade desde o início, caso a inspecção ultrapasse seis meses contados a partir daquela notificação.

Nos demais casos, isto é, quando a acção inspectiva se conclua antes daqueles seis meses, o efeito suspensivo do prazo de caducidade mantém-se até à notificação ao contribuinte da conclusão do procedimento inspectivo, pela elaboração do relatório final, notificação que, assim, o legislador elegeu como termo do prazo de suspensão do prazo de caducidade do direito de liquidar o imposto respectivo, tudo conforme dispõe o artigo 60° nº 1 e 2 do RCPIT.”.

 

Atente-se, ainda, na jurisprudência constante dos Acórdãos do STA, de 07/12/2005 e 02/02/2006, Processos n.º 993/05 e n.º 769/05[5], respectivamente, nos termos da qual com o entendimento de que a norma constante do artigo 46.º, n.º 1, da LGT deve ser interpretada no sentido de que a suspensão do prazo de caducidade se mantém até à data da notificação do relatório final da inspecção (correspondente à conclusão do procedimento inspectivo), se esta se verificar antes do termo do prazo de seis meses, contado a partir da notificação ao contribuinte do início de acção de inspecção externa.

 

É, pois, de concluir, que não colhe a argumentação que a Requerente pretende retirar do artigo 46.°, n.º , da LGT, bem como dos artigos 36.°, 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do RCPIT.

 

No caso em apreço, o prazo de caducidade do direito à liquidação (4 anos) iniciou-se em 01/01/2010 (cfr. artigo 45.°, n.º 1 e n.º 4 da LGT), facto que a própria Requerente reconhece.

 

Caso nenhuma causa de suspensão tivesse ocorrido, esse prazo terminaria em 01/01/2014.

 

Não obstante, os actos de inspecção tiveram início no dia 16/09/2013, com a assinatura da ordem de serviço e credencial que identifica os funcionários nomeados para a realização do procedimento inspectivo, tendo sido concluídos em 06/12/2013, com a assinatura da nota de diligência.

 

No entanto, o projecto de relatório foi pessoalmente notificado ao Requerente, através do Ofício n.º … de 06/12/2013, não tendo sido exercido o direito de audição, pelo que as correcções à matéria colectável constantes do projecto de relatório foram mantidas no relatório final, notificado em 31/12/2013.

 

Por outro lado, a liquidação adicional de IRC e a respectiva liquidação de juros compensatórios foram notificadas à Requerente em 27/03/2014.

 

Ou seja, o prazo de caducidade esteve suspenso durante 108 dias (16/09/2013, data da notificação à Requerente do início da acção de inspecção externa e 02/01/2014, data da notificação do relatório final da inspecção, a qual é, ao contrário do sustentado pela Requerente, a data relevante para efeitos da cessação do efeito suspensivo).

 

Nesta medida, tendo a liquidação sido notificada ao sujeito passivo em 27/03/2014, estava ainda em curso o dito prazo de caducidade (4 anos), por deverem ser descontados aqueles 108 dias durante os quais ocorreu a suspensão do mesmo.

 

Veja-se, neste sentido, o Acórdão do STA, de 20/10/2010, proferido no Processo n.º 0112/10 [6].

 

Consequentemente, por força do disposto no artigo 51.º, n.º 2, do RCPIT, tem de se considerar iniciado o procedimento externo de inspecção em 16/09/2013 e suspenso o prazo de caducidade a partir desta data, nos termos do artigo 46.º, n.º 1, da LGT, pois o procedimento inspectivo terminou em 02/01/2014, ou seja, dentro do prazo de seis meses legalmente previsto.

 

Ora, com a eliminação do período decorrido entre 16/09/2013 e 02/01/2014, para efeitos de

contagem do prazo de caducidade, é possível concluir que o prazo de quatro anos contado desde 01/01/2010 ainda não se tinha completado em 27/03/2014, data em que foi notificada a liquidação adicional.[7]

 

Veja-se, também, o Acórdão do STA, de 21/11/2012, proferido no Processo n.º 0594/12 e, mais recentemente, de 03/04/2013, proferido no Processo n.º 0103/12, confirmando a posição que a AT tem vindo a defender nesta matéria:

 

“I – O prazo de caducidade do direito à liquidação é, em regra, de quatro anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário.

Tal prazo suspende-se com a notificação ao contribuinte de início de acção inspectiva externa, mas esse efeito suspensivo cessa caso esta ultrapasse o período de seis meses contados a partir daquela notificação.

II – Se a acção inspectiva se concluir antes de decorridos aqueles seis meses, o efeito suspensivo do prazo de caducidade mantém-se até à notificação ao contribuinte da conclusão do procedimento inspectivo, pela elaboração do relatório final.”.

 

Por todo o exposto, resulta claro que o termo da suspensão do prazo de caducidade verifica--se com a notificação do relatório final do procedimento de inspecção (cfr. artigo 62.º, n.º 2, do RCPIT), conquanto a duração da inspecção externa não tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação ao inspeccionado da ordem de serviço ou despacho do início da acção de inspecção externa (cfr. artigo 46.º, n.º 1, da LGT).

 

Por isso, improcede o pedido de pronúncia arbitral quanto a este vício.

 

 

5.1.2.      FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO E ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE JUROS COMPENSATÓRIOS

 

A exigência de fundamentação dos actos administrativos lesivos consta do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), nos termos do qual “os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos”.

 

Especialmente para a fundamentação dos actos tributários, o artigo 77.º, n.º 1 e n.º 2, da LGT, estabelece que “a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária” e que “a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.

 

Ora, o STA tem vindo a entender uniformemente que a fundamentação do acto administrativo ou tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, mas que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear dos mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação.[8]

 

Embora seja de distinguir entre o acto de liquidação e o acto de notificação através do qual ele é comunicado ao destinatário, no caso em apreço não se provou que haja qualquer outro documento referente ao acto de liquidação que não seja o que está reproduzido nos autos junto com o pedido de pronúncia arbitral (Documento n.º 2), pelo que se tem de partir do pressuposto que ele é cópia do acto que foi praticado, que não terá outro conteúdo para além do que dele consta.

 

De acordo com o referido documento, constata-se que dele consta apenas, quanto aos juros compensatórios, a indicação da forma como foram calculados, designadamente, o valor base, o período a que respeita, a taxa aplicada e o valor correspondente.

 

Não se faz qualquer referência a qualquer acto inspectivo anterior, ou tão-pouco ao relatório de inspecção tributária ou a qualquer outro documento que possa ser considerado fundamentação do acto de liquidação.

 

É, assim, manifesto que o acto de liquidação não está fundamentado nos termos exigidos pelo artigo 77.º, n.º 1 e n.º 2, da LGT, pois, para além de não conter a “exposição das razões de facto e de direito” em que baseia, não contém sequer qualquer declaração de concordância com os fundamentos de qualquer outro acto, designadamente, o relatório de inspecção tributária referido nos autos.[9]

 

Para além disso, o próprio relatório de inspecção tributária é completamente omisso quanto às razões de facto e de direito pelas quais a AT entendeu serem devidos juros compensatórios e a simples indicação do período e taxa que foram utilizados no seu cálculo, ainda que esclareça alguns dos pressupostos de facto, nada revela sobre os fundamentos de direito.

 

Ora, a exigência de juros compensatórios não decorre necessariamente da constatação da existência de uma correcção a efectuar.

 

Na verdade, o artigo 35.º, n.º 1, da LGT estabelece que “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

 

De facto, a responsabilidade objectiva é excepcional, só ocorrendo nos casos especificados na lei (cfr. artigo 483.º, n.º 2, do Código Civil) e, por isso, deverá entender-se que, para efeitos de responsabilidade por juros compensatórios, só se está perante um “facto imputável ao sujeito passivo” quando puder formular-se um juízo de censura em relação à sua conduta.

 

Nesta linha, o STA tem vindo a entender, uniformemente, que a imputabilidade exigida para responsabilização pelo pagamento de juros compensatórios depende da existência de culpa, por parte do sujeito passivo.[10]

 

Perante a falta de indicação na liquidação e no relatório de inspecção tributária da razão por que se entendeu que são devidos juros compensatórios, fica-se sem saber se a AT entendeu que a responsabilidade por juros compensatórios é automática, decorrendo do próprio facto de terem sido efectuadas correcções, ou se concluiu que se pode formular um juízo de censura em relação à actuação da Requerente, susceptível de preencher o requisito da imputabilidade, situação em que a fundamentação deveria conter indicação dos factos subjacentes a esse juízo de censura.

 

Por outro lado, o argumento invocado pela AT, nos termos do qual, “(...) ao longo do processo administrativo, designadamente nos processos de reclamação graciosa e de recurso hierárquico apresentados pela ora Requerente, estão latentes e explícitas as razões que fundamentam a tomada de posição da AT (...)”, sem qualquer indicação que permita concluir que elas foram ponderadas pela entidade que procedeu à liquidação é uma fundamentação a posteriori, que é pacífico ser irrelevante para efeitos de aferir a legalidade dos actos tributários.

 

Em qualquer caso, verifica-se falta de fundamentação relativa à verificação de todos os requisitos previstos no artigo 35.º, n.º 1, da LGT, pelo que a liquidação de juros compensatórios enferma de vício de falta de fundamentação.

 

A Requerente imputa, ainda, ao acto impugnado outro vício procedimental, por não lhe ter sido proporcionada audição prévia, nos termos do artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da LGT.

 

Entende a AT que a Requerente não tem razão, invocando, em suma, a dispensa que decorre do artigo 60.º, n.º 3, da LGT, já que a Requerente “(...) foi notificada pessoalmente (...) para exercer o direito de audição quando notificada do projecto de relatório de inspecção não o tendo feito (...).”.

 

O artigo 60.º da LGT, sob a epígrafe “Princípio da Participação”, dispõe o seguinte:

 

“1 – A  participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

 

a) Direito de audição antes da liquidação;

 

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

 

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;

 

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;

 

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.

 

2 – É dispensada a audição:

 

a) No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;

 

b) No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.

 

3 – Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado.

 

4 – O direito de audição deve ser exercido no prazo a fixar pela administração tributária em carta registada a enviar para esse efeito para o domicílio fiscal do contribuinte.

 

5 – Em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 1, para efeitos do exercício do direito de audição, deve a administração tributária comunicar ao sujeito passivo o projecto da decisão e sua fundamentação.

 

6 – O prazo do exercício oralmente ou por escrito do direito de audição é de 15 dias, podendo a administração tributária alargar este prazo até o máximo de 25 dias em função da complexidade da matéria.

 

7 – Os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão.”.

 

O direito de audição tem raiz constitucional, sendo postulado pelo artigo 267.º, n.º 5, da CRP, que estabelece que “processamento da actividade administrativa será objecto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito” [sublinhado nosso].

 

Mas, como decorre desta norma, a CRP não regula o regime do direito de audição, relegando para a “lei especial” a definição dos termos em que tal direito será exercido, termos estes em que poderão ser tidos em conta factores de vária ordem, inclusivamente, de natureza económica e de praticabilidade.

 

É neste contexto que o artigo 60.º, n.º 3, da LGT, invocado pela AT prevê situações em que é dispensada a audição prévia antes da liquidação.

 

No caso em apreço, não é controvertido que o artigo 60.º, n.º 1, alínea a) da LGT garante aos sujeitos passivos o direito de audição antes da liquidação, o que resulta do teor expresso desta norma, pelo que a questão a apreciar se reconduz a saber se se está perante uma situação em que audição antes da liquidação é dispensada pelo n.º 3 do mesmo artigo.

 

De facto, este n.º 3 dispensa o direito de audição antes da liquidação se o sujeito passivo tiver sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado.

 

No caso em apreço, a Requerente teve a possibilidade de exercer o direito de audição com base no projecto de relatório de inspecção tributária, que é uma situação enquadrável na alínea e) do n.º 1 do artigo 60.º da LGT, pelo que, em princípio, se está perante uma potencial situação de aplicação da dispensa do direito de audição antes da liquidação.

 

Por isso, a necessidade de assegurar o direito de audição antes da liquidação só pode resultar da excepção prevista na parte final do n.º 3, ou seja, de nela terem sido invocados factos sobre os quais o sujeito passivo ainda não teve previamente a possibilidade de se pronunciar.

 

Examinando a liquidação e o projecto de relatório de inspecção tributária, que serviu de base ao exercício do direito de audição, constata-se que não é efectuada qualquer referência a juros compensatórios.

 

Como esclarece a AT “(...) as correcções efectuadas pelos serviços de inspecção tributária são o resultado de uma conduta do sujeito passivo que teve como resultado a não entrega parcial da prestação tributária a apurar nos termos da lei, materializada numa (auto) liquidação inferior à devida por incumprimento das regras estabelecidas no CIRC (...)”, pelo que tem de se concluir que na liquidação de juros compensatórios a AT teve em consideração factos novos, inerentes à formulação de juízos sobre a existência do nexo de causalidade e de culpa.

Por isso, tem de se concluir que, quanto à liquidação de juros compensatórios, não se está perante uma situação de dispensa de audição antes da liquidação, pelo que a sua preterição constitui preterição de formalidade legal, como defende a Requerente.

 

Deve notar-se que, apesar de ser a consideração de novos factos ínsita na imposição dos juros compensatórios que justifica o afastamento da dispensa do direito de audição antes da liquidação, tratando-se de uma formalidade do procedimento de liquidação que deveria preceder o acto final, a sua preterição implica a invalidade do próprio acto final do procedimento de liquidação, não se colocando em relação a este vício a possibilidade de divisão do acto, para efeitos de anulatórios.

 

Isto é, não sendo caso de dispensa, o direito de audição tinha de ser assegurado antes do acto de liquidação, por força do artigo 60.º, n.º 1, alínea a) da LGT e, por isso, a prolação deste acto é globalmente ilegal.

 

Procede, assim o pedido de pronúncia arbitral quanto a este vício.

 

5.1.3.      PRETERIÇÃO DO DIREITO DE AUDIÇÃO ANTES DA EMISSÃO DO DESPACHO DE DEFERIMENTO PARCIAL

 

O despacho de deferimento parcial do recurso hierárquico, na medida em que manteve os actos de liquidação de IRC e de juros compensatórios, está afectado pelos mesmos vícios de que aqueles enfermam, pelo que também se justifica a sua anulação.

 

5.1.4.      VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO E PERSECUÇÃO DA VERDADE MATERIAL

 

Alega, ainda, a Requerente que na decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico, a AT sustenta não se verificar este concreto vício, tendo os serviços de inspecção pautado o seu comportamento pela colaboração e, bem assim, que foi a Requerente quem se equivocou em alguns dos lançamentos contabilísticos.

 

De facto, à luz do princípio do contraditório, consagrado no artigo 58.º da LGT, a AT deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material.

 

No mesmo sentido, dispõe o artigo 6.º do RCPIT, que o procedimento de inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a AT adoptar oficiosamente todas as diligências necessárias a alcançar este objectivo.

 

Decorre, assim, dos preceitos em apreço, que a AT está sujeita, na sua actuação, à prossecução do interesse público, devendo, para tanto, no âmbito da actividade inspectiva por si desempenhada, procurar sempre alcançar a verdade material subjacente aos factos.

 

Como apontam José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, em anotação ao artigo 58.º da LGT, “No procedimento tributário, a iniciativa da procura da verdade material pertence à própria administração tributária, mesmo nos casos em que os pedidos dos contribuintes fiquem aquém das diligências necessárias ao apuramento real dos factos e da aplicação do direito. Este princípio fundamenta-se na obrigação de a administração prosseguir o interesse público (n.º 1 do artigo 266.º da CRP e artigo 55.º da LGT), assim como no dever de imparcialidade da actuação administrativa (n.º 2 do artigo 266.º da CRP e artigo 55.º da LGT).”.[11]

 

No mesmo sentido ensinam Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa que “(...) o princípio do inquisitório justifica-se pela obrigação de prossecução do interesse público imposta à actividade da administração tributária, e é corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actividade (...). Por outro lado, aquele dever de imparcialidade, reclama que a administração tributária procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja prova seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração.”.[12]

 

Ora, tal como vem sendo reconhecido pela generalidade da doutrina, a não averiguação dos elementos necessários à descoberta da verdade material, com a consequente violação do princípio do inquisitório, inquina de ilegalidade o acto tributário emitido com base nas conclusões do procedimento inspectivo.

 

Sem prejuízo do exposto, são bem patentes – é certo que uma ou outra falha –, no procedimento administrativo que antecedeu, as diligências promovidas pela AT no sentido de apurar a conformidade legal dos valores inscritos na contabilidade e respectiva declaração de rendimentos Modelo 22 do IRC.

 

Por outro lado, à falta de indicação de exemplos concretos por parte da Requerente, não se vislumbra de modo violou a AT os princípios do inquisitório e da persecução da verdade material.

 

Improcede, assim o pedido de pronúncia arbitral quanto a este vício.

 

Quanto à questão de fundo,

 

5.1.5.      ILEGALIDADE DOS ACTOS DE LIQUIDAÇÃO

 

I - Custos não dedutíveis para efeitos fiscais

 

a) Notas de débito

 

Entendeu a AT no relatório de inspecção não deverem ser aceites como custos para efeitos

fiscais a quantia de € 3.525,96 – correspondente ao somatório das Notas de Débito n.º 94 e

n.º 98 de 31/07/2009, relativas ao fornecedor “B… …”, pessoa colectiva n.º …, relativas ao contrato de serviço …-…-…/…/…/…, referência Maio/09 e Junho/09, relevado contabilisticamente no mês de Julho, na conta #62111 – Fornecimentos e Serviços – Subcontratos – taxa normal (cfr. lançamentos diário n.º … e …), senão vejamos:

 

Já a Requerente sustenta que a correcção em causa não se encontra fundamentada, na medida em que assenta em “meros juízos conclusivos que, como é unânime na jurisprudência e na doutrina, não são aptos a motivar actos de liquidação.”.

 

De acordo com o artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC (na redacção em vigor à data dos factos) consideram-se “custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora (…)”, exemplificando nas alíneas seguintes alguns exemplos com acolhimento legal nesse conceito.

 

Ou seja, exige-se, para a contabilização de determinado gasto como custo ou perda que este tenha de ser comprovado.

 

Por outro lado, atento o disposto no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, “presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.”.

 

No entanto, esta presunção é imediatamente afastada pelo n.º 2 do mesmo artigo, caso o sujeito passivo não tenha cumprido com as suas obrigações fiscais, nomeadamente, os deveres de esclarecimento da respectiva situação tributária.[13]

 

Com efeito, a Requerente não logrou comprovar a indispensabilidade destes gastos para a manutenção da fonte produtora, não obstante a norma assim o exigir, uma vez que para além da simples contabilização das notas de débito não apresentou, apesar de instada para o efeito, qualquer documento de suporte que as legitime.

 

Uma vez criada a dúvida, caberia à Requerente demonstrar, nomeadamente, através da exibição da documentação de suporte à contabilização efectuada, que o gasto fora correctamente inscrito, o que não sucedeu.

 

Veja-se, a este respeito, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN), de 12/01/2012, Processo n.º 00624/05.0BEPRT[14], onde se conclui:

 

“Cabe à Administração Tributária o dever de demonstrar os pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável), impendendo, por seu turno, sobre os administrados apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados esses pressupostos.

3 – As regras do ónus da prova coexistem com o princípio do inquisitório, de acordo com o qual se impõe à administração tributária que ordene oficiosamente as diligências probatórias indispensáveis ao apuramento da verdade material.

4 – Porém, o princípio do inquisitório não obriga a administração a investigar pretensões sem o mínimo de suporte probatório nos casos em que caiba ao contribuinte o ónus da prova.

5 – De acordo com o disposto no artigo 23º, nº 1 do CIRC, consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

6 – Na consideração e preenchimento deste conceito indeterminado – indispensabilidade – impõe-se que a análise de um concreto custo seja feita em função da actividade societária, ou seja, em função do seu objectivo no âmbito da actividade da empresa; os custos indispensáveis equivalerão aos gastos contraídos no interesse da empresa.” [sublinhado nosso].

 

Improcede, assim, o pedido de pronúncia arbitral quanto a este vício.

 

b) Ajustamentos em dívidas a receber

 

De acordo com as conclusões do relatório de inspecção a Requerente constituiu, no exercício de 2009, provisões que foram objecto de correcção nos valores adiante indicados:

 

 

O valor corrigido, no montante de € 251.506,46, resultou do facto de a Requerente ter constituído provisões relativas a créditos em mora em percentagens superiores às legalmente admissíveis para o efeito, nos termos do disposto no artigo 36.º, n.º 2 do Código do IRC (na redacção em vigor à data dos factos), relativamente a diversos clientes.

 

Ora, na sequência da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico, a AT anulou a correcção em apreço em € 194.792,57, a que acresce a anulação de € 3.810,00, efectuada na reclamação graciosa.

 

Assim, uma vez que a correcção inicial ascendeu a € 251.506,46, mantém-se a correcção no valor de € 52.903,89 (e não 52.943,89, conforme indicado pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral).

 

De acordo com o disposto no artigo 35.º, n.º 1, do Código do IRC, na redacção em vigor em 2009, “Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores:

a) As relacionadas com créditos resultantes da actividade normal que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade;

b) As relativas a recibos por cobrar reconhecidas pelas empresas de seguros;

c) As que consistam em desvalorizações excepcionais verificadas em activos fixos tangíveis, activos intangíveis, activos biológicos não consumíveis e propriedades de investimento.” [sublinhado nosso].

 

Ainda de acordo com o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código do IRC, na redacção em vigor em 2009, “Para efeitos da determinação das perdas por imparidade previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:

 

a) O devedor tenha pendente processo de insolvência e de recuperação de empresas ou processo de execução (...)” [sublinhado nosso].

 

Com relevo para a situação em apreço, são consideradas perdas por imparidade as relacionadas com créditos resultantes da actividade normal que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade.

 

Sendo certo que são considerados créditos de cobrança duvidosa aqueles que relativamente aos quais o devedor tenha pendente processo de insolvência.

 

No que respeita às dívidas das sociedades C…, Lda., D… – Unipessoal, Lda., E… – …, Lda. e F… – …, Lda., confrontando a documentação apresentada pela Requerente verificamos que a prova respeitante à declaração de insolvência destes devedores é suficiente.

 

De facto, apesar das declarações de insolvência datarem, como transitadas em julgado, de 2008, a Requerente não apresenta a constituição de qualquer provisão respeitante a estes devedores nesse ano, constituindo-se apenas em 2009, devendo assim, ser aceite no exercício em apreço, à semelhança do critério adoptado pela AT com referência às dívidas das sociedades G…, S.A. e H… – …, S.A..

 

Ora, inexistindo duplicação de custos, o montante em causa deverá ser aceite em 2009, sob pena de a Requerente não poder relevar um elemento negativo do resultado tributável a que tem direito.

 

Idêntico raciocínio deverá ser aplicável aos créditos respeitantes aos clientes I… – …, Lda., e J…, Lda., cuja insolvência apenas foi conhecida em 2010, porquanto não só não se verificou qualquer duplicação de custos, nem se promoveu o movimento correlativo no referido exercício.

 

Estando, como se demonstrou, pendente processo de insolvência à data da constituição das provisões em apreço, encontram-se reunidos todos os requisitos previstos no Código do IRC de que depende o reconhecimento da imparidade a 100% (cfr. artigos 35.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, ambos do Código do IRC).

 

Resulta, assim, evidente, o erro sobre os pressupostos em que a AT actuou, o qual motivou uma errada aplicação do direito e, consequentemente, a ilegalidade da correcção em causa.

 

Procede, assim o pedido de pronúncia arbitral quanto a este vício.

 

II – Tributações Autónomas

 

a) Viaturas Ligeiras - Despesas de Conservação e Reparação

 

Segundo a AT, “Pela análise aos mapas de reintegrações e amortizações, constatamos que, não obstante o sujeito passivo possuir veículos ligeiros de passageiros, os mesmos não estão devidamente evidenciados nos referidos mapas, conforme disposto no nº 2, do art.º 22º do D.R.2/90. No entanto, pela matrícula constatámos que, as viaturas ligeiras foram sujeitas a amortizações do exercício, mas as mesmas, não foram consideradas para efeitos de tributação autónoma, conforme disposto no nº 3 do art.º 88º (ex 81º) do CIRC

 

(...)

 

Nos termos do nº 3, do art.º 88º (ex 81º) do CIRC, os montantes de custos sujeitos a tributação autónoma, apresentam-se abaixo identificados;”:

 

 

De acordo com o disposto no artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC, “São tributados autonomamente à taxa de 10 % os encargos efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja igual ou inferior ao montante fixado nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica.”.

 

Concretizando, no que respeita às despesas de conservação e reparação com viaturas ligeiras, a Requerente registou na conta #622322 o montante de € 18.437,16, não tendo, contudo, sujeitado o referido montante a tributação autónoma, motivo pelo qual a AT promoveu a correcção em apreço.

 

Antes de mais, importa referir que através da consulta do extracto da conta #622322 (Documento n.º 9) é possível concluir que o valor em causa engloba as verbas de € 11.561,63 e € 8.296,20, relativos a reparação de veículos.

 

Ora, o montante de € 11.561,63 foi já objecto de anulação por parte da AT, em sede de reclamação graciosa, pelo que se encontra em discussão o remanescente.

 

Conforme invocado pela Requerente, no procedimento administrativo que antecedeu, o montante de € 8.296,20 respeita a um dano provocado durante o transporte de bens propriedade de um cliente seu (K…, S.A.), o qual não se enquadra numa despesa susceptível de tributação autónoma.

 

Com efeito, de acordo com a factura n.º …, datada de 20/07/2009, trata-se, pois de um “sinistro de carga” ocorrido durante o transporte do bem que se encontrava sob a guarda da Requerente, erradamente contabilizado como despesa de conservação e reparação.

 

Sustenta, porém, a AT, que a referida factura “(...) não pode ter qualquer correspondência com os valores analisados em sede de inspecção.”.

 

Resulta, pois, evidente da análise do referido extracto de conta que a diferença de valores a que alude a AT resulta do facto de o saldo da conta se apresentar credor o que reduziu o valor a corrigir.

 

Procede, assim o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação da correcção em apreço.

 

b) Viaturas Ligeiras - Amortizações

 

Relativamente às amortizações de viaturas ligeiras, entende a Requerente que as amortizações em causa não respeitam a veículos enquadráveis na categoria de veículos ligeiros de passageiros, mas sim “carros-piloto” utilizados por imperativo legal no acompanhamento do transporte de mercadorias de grande porte.

 

De facto, não subsistem dúvidas quanto ao facto de a Requerente, no desenvolvimento da sua actividade se encontrar obrigada a utilizar veículos ligeiros com determinadas características para as funções de “carro-piloto” quando estejam em causa transportes de grandes dimensões.[15]

 

Atente-se, ainda, no depoimento do gestor de tráfego inquirido.

 

Com efeito, como a testemunha bem explicou a utilização destes veículos não só é imposta por lei, como é essencial que sejam veículos de passageiros, ou seja, com, pelo menos, cinco lugares.

 

Senão vejamos,

 

Desde logo, uma vez que os transportes de grandes dimensões não podem ficar parados na via pública é sempre necessário que cada viagem seja acompanhada por um condutor “suplente”.

 

A este acrescem os manobradores dos veículos – para as operações de descarga, entre outras – e o respectivo mecânico.

 

Nesta medida, e conforme explicado pela testemunha, a acompanhar cada transporte é necessária uma equipa auxiliar de pelo menos quatro pessoas, a que a que acresce o próprio condutor do “carro-piloto”, que se trata de profissional especialmente habilitado para esse efeito.

 

Resulta, pois, evidente que se trata de um veículo utilizado por imperativo legal, dotado de características próprias como sejam a menção a transportes de grandes dimensões e luzes “pirilampo” de cor amarela de forma a sinalizar a existência de uma situação perigosa na via pública[16], pelo que têm uma utilização exclusivamente profissional.

 

Tão pouco subsistem dúvidas quanto ao facto destes veículos serem imprescindíveis ao exercício da actividade económica da Requerente – transporte de mercadorias de grande dimensão – e, consequentemente, essenciais à manutenção da sua fonte produtora (cfr. artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC).

Já quanto à interpretação do artigo 88.º do Código do IRC propugnada pela Requerente, diga-se, antes de mais, que decorre da leitura conjugada dos artigos 266.º, nº 2, da CRP e 55.º da LGT, que impende sobre a AT um dever de obediência face à lei, com particular ênfase no que concerne à observância do princípio da legalidade, o qual norteia e legitima toda a sua actuação.[17] [18]

 

Neste contexto, atendendo ao dispondo no artigo 88.º, no n.º 3, do Código do IRC, são tributados autonomamente à taxa de 10% os encargos dedutíveis relacionados com viaturas ligeira de passageiros ou mistas, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos

subjectivamente e que exerçam a título principal uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, excluindo-se apenas de tributação no seu n.º 6, de forma taxativa, os

encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros afectos à exploração de serviço

público de transportes ou destinados a serem alugados no exercício da actividade normal do sujeito passivo.

 

Não cabe, assim, à AT decidir pela exclusão de tributação de outro tipo de veículos, senão aqueles que aí se acham legalmente previstos.

 

Improcede, assim o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação da correcção em apreço.

 

c) Portagens e Estacionamentos

 

Ainda de acordo com o relatório de inspecção, a AT defende que os custos suportados pela Requerente, com gasóleo e portagens registadas nas contas #... e #..., respectivamente, deverão ser sujeitos a tributação autónoma à taxa de 10%, for força do disposto no artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC.

 

Com efeito, a norma em causa apenas é aplicável às despesas com veículos ligeiros de passageiros ou mistos.

 

Ora, de acordo com a documentação carreada para o processo (extractos contabilísticos, facturas emitidas pela L…, certidões comprovativas de pagamento do Imposto Único de Circulação, entre outros) é possível identificar cada um dos veículos em causa e concluir que os mesmos têm um peso bruto superior a 2.500 kg[19], pelo que não são enquadráveis na categoria de veículos ligeiros de passageiros.

Procede, assim o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação da correcção em apreço.

 

5.2.  INDEMNIZAÇÃO POR GARANTIA INDEVIDA

 

A Requerente formula pedido de reconhecimento de direito a indemnização por prestação de garantia indevida.

 

Como resulta da matéria de facto fixada, a Requerente prestou uma hipoteca voluntária, para obter suspensão do processo de execução fiscal relativo à cobrança da dívida de IRC e de juros compensatórios liquidados.

 

De harmonia com o disposto no artigo 24.º, alínea b), do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.

 

Relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, o artigo 171.º do CPPT, estabelece que “a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda” e que “a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência”.

 

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

 

Ora, o pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a “legalidade da dívida exequenda”, pelo que, como resulta do teor expresso do artigo 171.º, n.º 1, do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

 

Já sobre o regime do direito a indemnização por garantia indevida, apontam José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal, Maria João Menezes, em anotação ao artigo 53.º da LGT, “São três os elementos constitutivos do direito a indemnização por garantia indevida:

 

a.      Em primeiro lugar, ter sido prestada garantia bancária ou equivalente em execução fiscal;

 

b.      Em segundo lugar, ter o sujeito passivo suportado custos com a prestação ou a manutenção da garantia. O objectivo desta norma é exactamente a devolução ao contribuinte de todos os custos suportados com a prestação ou manutenção da garantia que se veio a mostrar indevida, pelo que é essencial à constituição do direito que esses custos tenham sido efectivamente suportados;

 

c.       Em terceiro lugar, ter-se apurado ser indevido o imposto que deu origem à dívida, por ter sido anulada total ou parcialmente a liquidação que lhe deu origem. Neste caso podem ainda ocorrer duas circunstâncias distintas:

 

                                           i.            Nos casos em que a anulação da liquidação resulta de erro da própria administração tributária, o direito a indemnização constitui-se desde a data da prestação da garantia indevida;

 

                                         ii.            Nos restantes casos, nomeadamente quando o erro é da responsabilidade do sujeito passivo, o direito a indemnização só se constitui depois de terem decorrido três anos sobre a constituição da garantia.”.[20]

 

No caso em apreço, é manifesto que os vícios que afectam os actos de liquidação de IRC e de juros compensatórios são imputáveis à AT, pois as correcções foram da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esses erros fossem praticados.

 

Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada.

 

Não havendo, contudo, elementos que permitam determinar o montante da indemnização, a condenação terá de ser efectuada com referência ao que vier a ser liquidado em execução da presente decisão (cfr. artigos 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 565.º do Código Civil).

 

6.      DECISÃO

 

Nestes termos e com a fundamentação acima descrita, o tribunal arbitral decide:  

 

a)      Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo no ordenamento jurídico as correcções que se julgam improcedentes;

b)      Anular parcialmente o acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) n.º 2014 … (entretanto corrigido na sequência da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico pelos actos de liquidação n.º 2015 … e 2015 … e o acto de liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, relativos ao exercício 2009;

c)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao reconhecimento do direito a indemnização por garantia indevida e condenar a AT a pagar a quantia que for determinada em execução da presente decisão; e

d)     Condenar a AT e a Requerente a pagar as custas do presente processo.

 

7.      VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 29.111,85 (vinte e nove mil, cento e onze euros e oitenta e cinco cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

8.      CUSTAS

 

Custas a suportar pela AT e pela Requerente, no montante de € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 22.º do RJAT, na proporção do decaimento que se fixa em 75% para a AT e 25% para a Requerente.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 30 de Junho de 2016

 

 

O árbitro,

 

(Hélder Filipe Faustino)

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.



[1] Cfr. “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, Almedina, 2015, pág. 420 e seguintes.

[2] Op. cit., pág. 421.

[3] Op. cit., pág. 421.

[4] Disponível em www.dgsi.pt.

[5] Disponíveis em www.dgsi.pt.

[6] Disponível em www.dgsi.pt.

[7] Segundo José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, em anotação ao artigo 46.º, n.º 4, da LGT, Nos impostos periódicos, em que normalmente o facto gerador é continuado, a contagem do prazo de caducidade inicia-se na data em que se considera produzido o facto gerador. (...) São exemplo destes casos o IRC, o IMI e o IRS, cujo facto gerador ocorre no dia 31 de Dezembro de cada ano. É nesse dia que se inicia a contagem do prazo de caducidade.”, Op. cit., pág. 407.

[8] Neste sentido, podem ver-se, entre muitos, os seguintes acórdãos do STA: de 04/11/1998, Processo n.º 40618; de 10/03/1999, Processo n.º 32796; de 06/06/1999, Processo n.º 42142; de 09/02/2000, Processo n.º 44018; de 28/03/2000, Processo n.º 29197; de 16/03/2001, do Pleno, Processo n.º 40618; de 14/11/2001, Processo n.º 39559; de 18/12/2002, Processo n.º 48366.

[9] Segundo José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, em anotação ao artigo 77.º da LGT, “A fundamentação consiste na enunciação dos factos e do direito relevantes para a decisão. Ora, sendo a decisão o resultado do procedimento, justifica-se plenamente a sua necessidade de fundamentação, para dar a perceber o raciocínio subjacente à decisão, deixando claro que os elementos obtidos no procedimento foram considerados na resolução.”, Op. cit., pág. 830.

[10] Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 20/03/1996, Processo n.º 20042, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13/03/1998, pág. 1067; de 02/10/1996, Processo n.º 20605, publicado em Apêndice ao Diário da República de 28/12/1998, pág. 2707;  de 18/02/1998, Processo n.º 22325, publicado em Apêndice ao Diário da República de 08/11/2001, pág. 553;  de 03/10/2001, Processo n.º 25034, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 492, pág. 1615, e publicado em Apêndice ao Diário da República de 13/10/2003, pág. 2080; de 29/01/2003, Processo n.º 1647/02, publicado em Apêndice ao Diário da República de 25/03/2004, pág. 164; de 12/03/2003, Processo n.º 26800, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 506, 219 e publicado em Apêndice ao Diário da República de 25/03/2004, pág. 545; de 19/11/2008, Processos n.º 325/08 e n.º 576/08; de 11/03/2009, Processo n.º 961/08.

[11] Op. cit., pág. 592.

[12] Cfr. “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, 2.ª edição, 2000, pág. 241.

[13] Conforme apontam José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, em anotação ao artigo 75.º da LGT, Nos casos de não colaboração do contribuinte no apuramento da verdade, cessa a presunção da veracidade da sua declaração e contabilidade. De igual modo, a presunção de verdade não acontece nos casos em que o contribuinte não cumpre os seus deveres de prestação de informações, exceptuando se for legíltima a sua recusa.”, Op. cit., pág. 821.

[14] Disponível em www.dgsi.pt.

[15] Cfr. o Regulamento de Autorizações Especiais de Trânsito, aprovado pela Portaria n.º 472/2007, de 22 de Junho, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 787/2009, de 28 de Julho, artigos 1.º, n.º 1, alínea d), 17.º e 18.º.

[16] No que respeita, em especial, às características do “carro-piloto”, cfr. artigo 18.º do Regulamento de Autorizações Especiais de Trânsito.

[17] Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado de Matos, sobre o princípio da legalidade, trata--se de um “(…) princípio concretizador do Estado de direito que exprime a subordinação jurídica da administração pública (…)”, “Direito Administrativo Geral - Tomo I - Introdução e Princípios Fundamentais”, Dom Quixote, 2004, pág. 153 e seguintes.

[18] Conforme refere Diogo Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, Volume II, pp. 42 e 43, “(...) a lei não é apenas um limite à actuação da Administração: é também o fundamento da acção administrativa. Quer isto dizer que, não há um poder livre de a administração fazer o que bem entender, salvo quando a lei lho proibir; pelo contrário, vigora a regra de que a administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permita que faça”.

[19] De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea d) do Código do IUC, o imposto “(...) incide sobre os veículos das categorias seguintes, matriculados ou registados em Portugal: (...) Automóveis de mercadorias e automóveis de utilização mista com peso bruto superior a 2500 kg, afectos ao transporte público de mercadorias, ao transporte por conta de outrem, ou ao aluguer sem condutor que possua essas finalidades (...)”.

[20] Op. cit., pág. 550.