Decisão Arbitral
Tema: Imposto do Selo – Terreno para construção em compropriedade
Requerente: A...
Requerida: AT - Autoridade Tributária e Aduaneira
I - RELATÓRIO
1. Pedido
A..., contribuinte nº …, residente na Rua …, Rio de Janeiro, e com domicílio fiscal na Rua …, Aveiro, doravante designado por Requerente, apresentou, em 15-01-2016, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 2º e no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:
- A anulação do ato de liquidação de Imposto do Selo nº 2015 ..., praticado ao abrigo da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, incidente sobre o terreno para construção correspondente ao artigo ... da união de freguesias de ... e ..., do concelho de Aveiro, no montante de 6 570,01 euros.
- A declaração da ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa interposta daquele ato de liquidação;
- A consequente condenação da Requerida ao reembolso do montante pago referente a estas liquidações de imposto, acrescido de juros indemnizatórios devidos.
O Requerente alega, no essencial e com relevância para a decisão da causa, o seguinte:
- A verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) foi introduzida pelo legislador com vista à tributação de situações de propriedade de imóveis de elevado valor, por isso reveladores de uma capacidade contributiva acrescida;
- Da norma ressalta uma clara intenção do legislador de atingir situações que exteriorizam uma maior capacidade contributiva, isto em harmonia com o artigo 104º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, onde se determina que “a tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos”.
- A esta luz, ser proprietário de um prédio com valor igual ou superior a um milhão de euros ou ser comproprietário do mesmo prédio são situações a valorar de diferente modo, já que a capacidade contributiva inerente a cada uma das situações é muito distinta.
- A sujeição do comproprietário depende de a sua quota-parte ter um valor igual ou superior a um milhão de euros, por esse ser o limiar de relevância tributária previsto, o que não acontece no caso presente, em que a quota-parte do Requerente tem um valor patrimonial tributário de 657.001,15 euros;
2. Resposta da Requerida
Em resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira alega, com relevância impugnatória:
- O princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, "razoável, racional e objtivamente fundadas", sob pena de, assim não sucedendo, "estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objetivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes".
- O facto de o legislador estabelecer um valor (€1.000.000,00) como critério delimitativo da incidência do imposto, abaixo do qual não se preenche a previsão da norma tributária, constitui uma legítima escolha do legislador quanto à fixação do âmbito material dos “imóveis habitacionais de luxo” que se pretende tributar de modo mais gravoso, até porque qualquer outro valor de grandeza análoga assumiria, do mesmo modo, um carácter artificial que é conatural a qualquer fixação quantitativa de um nível ou limite;
- Não há que confundir esta dimensão de proporcionalidade do princípio da igualdade com a clássica separação entre tributação proporcional e tributação progressiva, nada impedindo a nível constitucional que a tributação patrimonial em causa assente numa taxa ad valorem proporcional (cf. o art.º 104.º, n.º 3 da CRP);
- Concluindo, se a afetação do imóvel e a respetiva função social são diferentes, pode – e deve - a situação ser tratada de forma diferente, como aliás, impõe o próprio princípio da igualdade.
- Desta forma, como o tratamento diferenciado encontra justificação material bastante, mostra-se respeitado o princípio da igualdade, quer per si, quer na sua dimensão da igualdade proporcional.
3. Tramitação subsequente
Por proposta e mediante a concordância de ambas as Partes, o Tribunal deliberou prescindir da realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT.
As Partes prescindiram da produção de alegações finais.
II – SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 29-03-2016, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
Não foram identificadas nulidades no processo.
Nada obsta, portanto, à apreciação do mérito da causa.
III – QUESTÕES A DECIDIR
A única questão a decidir é a da constitucionalidade da verba 28.1 da TGIS quando considerada aplicável a uma situação de compropriedade de terreno para construção, quando o valor da quota-parte do sujeito passivo no valor patrimonial tributário do prédio sujeito é inferior a um milhão de euros.
O Requerente, com efeito, não pugna por uma interpretação da verba 28.1 da TGIS de acordo com a qual não caberiam na sua previsão as situações de compropriedade em que à quota-parte do sujeito passivo corresponda um valor patrimonial tributário inferior a 1 000 000 de euros.
O Requerente pugna, sim, por que, numa interpretação da verba 28.1 conforme à Constituição, tais situações não podem ficar sujeitas à incidência do imposto.
IV – FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão:
1º: O Requerente era, ao tempo da propositura do pedido de pronúncia arbitral, comproprietário, com uma quota-parte de 50%, do prédio urbano com a classificação de terreno para construção correspondente ao artigo ... da união de freguesias de ... e ..., do concelho de Aveiro;
2º: O valor patrimonial tributário do prédio foi determinado em 2013 em 1.314.002,31 euros;
3º: O Requerente foi notificado da liquidação de Imposto do Selo nº 2015 ..., referente ao prédio anteriormente mencionado, relativa ao ano de 2014, ao abrigo da verba 28.1 da TGIS, no valor de 6.570,01 euros;
4º: O Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado em três prestações;
5º O Requerente interpôs reclamação graciosa da liquidação em 5-8-2015, tendo esta reclamação graciosa sido objeto de indeferimento total expresso em 21-10-2015.
Os factos considerados provados foram-no com base nos documentos juntos ao processo.
Não existem factos dados como não provados com relevância para a decisão da causa.
V – FUNDAMENTAÇÃO
1. Do fundamento positivo dos princípios da igualdade tributária e “capacidade contributiva” na constituição tributária portuguesa
O “princípio da tributação segundo a capacidade contributiva” não se encontra expressamente consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP).
Ele é contudo considerado tanto pela doutrina (ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Coimbra, 2015, p. 198; SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3ª ed., Coimbra, 2007, p. 211; CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 6ª ed. Coimbra, 2011, p. 149) como pela jurisprudência, desde há muito, como plenamente vigente na nossa ordem constitucional.
De forma praticamente unânime, a jurisprudência do Tribunal Constitucional converge na conceção de que o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva - abreviadamente denominado “princípio da capacidade contributiva” - deriva do princípio da igualdade tributária na medida em que é exigido por ele como parâmetro que permite aferir a comparabilidade ou incomparabilidade da situação dos sujeitos passivos (Vd. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 142/2004, de 10-03-2014; n.º 452/03 de 14-10-2003; nº 84/03 de 12-02-2003; nº 211/03, de 28-03-2013).
Em nossa opinião, e em harmonia com a generalidade da doutrina e a jurisprudência do Tribunal Constitucional, não deve haver qualquer dúvida de que o princípio da igualdade tributária exige a tributação de acordo com a capacidade contributiva, como adiante melhore se explicará, uma vez que a capacidade contributiva é o parâmetro de comparação (o tertium comparaionis) que permite dizer que duas pessoas se encontram em situação de igualdade ou de desigualdade para efeitos de tratamento igual ou diferenciado por parte do direito, quanto à distribuição dos encargos fiscais.
O princípio da igualdade tributária, porém, também não se encontra expresso na lei constitucional. E quanto a este aspeto, há que reconhecer que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem oscilado no que respeita ao fundamento positivo do princípio, situando-o, em certas ocasiões, no artigo 13º da CRP, outras vezes nos artigos 103º e 104º da mesma, e outras vezes ainda no conjunto destes preceitos.
A solução para esta questão, para nós, encontra-se no próprio artigo 13.º, nº 1 da CRP, que estabelece o princípio da igualdade, dizendo: “1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”
Se todos os cidadãos são iguais perante a lei, em geral, forçoso é concluir que todos os cidadãos são iguais perante a lei tributária. Assim, à falta de uma disposição especial, não pode haver dúvida de que o princípio da igualdade tributária deriva diretamente do princípio geral da igualdade dos cidadãos perante a lei, consagrado no artigo 13º da CRP (neste sentido, vd. os acórdãos do Tribunal Constitucional nº 57/1995, de 16-02-1995; n.º 437/2006, de 12-07-2006; nº 306/2010, de 14-07-2010; nº 590/2015, de 11-11-2015; nº 620/2015, de 03-12-2015;)
Na doutrina portuguesa, uma parte dos autores funda o princípio da igualdade fiscal ou tributária, exclusivamente, no artigo 13º da Constituição.
Assim, Pedro Soares Martinez (Direito Fiscal, 10ª ed., Coimbra, 1998, p. 105) afirma:
“Postula a generalidade do imposto a obrigação de todos contribuírem para os encargos públicos “conforme os seus haveres” (…) Trata-se de uma projeção no plano fiscal do princípio genérico da igualdade dos cidadãos perante a lei (Const. De 1933, art.5.º, §2º; Const. De 1976, art. 13º).
Nuno de Sá Gomes (Manual de Direito Fiscal, II, 9ª ed., Lisboa, 2000, pp. 208-209) afirma, a propósito do princípio da igualdade fiscal:
“O princípio da igualdade jurídica, enquanto princípio jurídico fundamental, afirma, por um lado, a igualdade formal de todos os cidadãos perante a lei (artigo 13º, nº 1, da Constituição), o que tem, como corolários, os princípios da generalidade e da impessoalidade das leis (…).”
E mais à frente (p. 214):
“Desde logo, o princípio de generalidade da tributação não se confunde com a ideia de generalidade formal, inerente a qualquer proposição normativa (abstração e impessoalidade dos destinatários da norma). Pelo contrário, o princípio tem conteúdo material no sentido de que só devem pagar impostos os que têm capacidade contributiva, mas que todas as pessoas que têm capacidade contributiva devem pagar impostos, sem atender a critérios extrafiscais, discriminatórios e arbitrários”.
Domingos Pereira de Sousa (Direito Fiscal e Processo Tributário, 1ª ed., Coimbra, 2013, pp. 91-92) diz ainda por sua vez:
“O princípio da igualdade tributária constitui hoje uma expressão específica do princípio da igualdade, o qual traduz não apenas uma igualdade formal perante a lei, dirigida à Administração e aos tribunais, mas também e acima de tudo, uma igualdade material na lei, (…)”.
A situação é igual noutros ordenamentos jurídicos.
Na Alemanha, JOACHIM LANG e KLAUS TIPKE (Steuerrecht, 20ª ed., Colónia, 2008, p. 83) afirmam:
“A justiça fiscal deriva principalmente do princípio geral da igualdade (artigo 3 I da Constituição Alemã). O que reflete a importância da igualdade enquanto ideia fundamental da justiça na Constituição. A norma do artigo 3 I GG postula a igualdade perante a lei e dirige-se também diretamente à aplicação do direito. Assim, o artigo 3 I da Constituição prescreve a igualdade na aplicação do direito fiscal por parte da administração tributária e por parte dos tribunais tributários. “
Em Itália, ENRICO POTITO, L’ordinamento tributário italiano, Milão, 1978, p. 18, diz:
“Imponendosi invece l’esigenza che l’entità del concorso finanziario richiesto al singolo sai rapportata alla capacità contributiva dallo stesso posseduta nel caso concreto, si afferma anzitutto il principio che il singolo non potrà mai essere sottoposto a tassazione in forza di pressuposti diversi da una manifestazione di richezza (...). In secuondo luogo si individua un steso campo di ulteriore specificazione del principio de eguaglianza contenuto nell’ art. 3 cost. che vieta qualsiasi discriminazione tra soggetti a parità di situazioni soggetive ed oggetive (...)”
Em Espanha, MARTÍN QUERALT, LOZANO SERRANO e POVEDA BLANCO, Derecho Tributario, 4ª ed. Pamplona, 1999, p. 56, afirmam:
“Dispõe o artigo 14 da Constituição que «os espanhóis são iguais perante a lei, sem que possa prevalecer qualquer discriminação em razão do nascimento, raça, sexo, religião, opinião ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social». O princípio da igualdade converteu-se em elemento essencial do nosso ordenamento constitucional, como claramente expressa o artigo 1 CE ao configurá-lo como um dos valores superiores do mesmo. No âmbito tributário é frequente considerar que o princípio da igualdade se traduz em forma de capacidade contributiva”.
Já outros autores, em Portugal, vêm considerando o princípio da igualdade tributária como fundado simultaneamente no artigo 13º e nos artigos 103º e 104º da CRP.
Entre estes parecem estar Casalta Nabais e Ana Paula Dourado.
ANA PAULA DOURADO (Direito Fiscal, 1ª ed., Coimbra, 2015, p. 197) afirma:
“O princípio da igualdade na sua vertente negativa proíbe as discriminações e os privilégios fiscais (art. 13º, nº 2 da CRP). (…).
Nos impostos, o princípio da igualdade é concretizado pelo princípio da capacidade contributiva. O princípio da capacidade contributiva é um princípio de justiça fiscal e contém a medida de comparabilidade entre o objeto de tributação, por um lado, e a medida de comparabilidade entre os sujeitos passivos, por outro lado. A nossa Constituição fiscal, ao escolher diversos critérios de tributação, concretiza o princípio da capacidade contributiva nos diversos tipos de impostos (art. 104º da CRP) (…).”
Por sua vez, Casalta Nabais, Direito Fiscal, 6ª ed., Coimbra, 2011, p. 149, diz-nos:
“(…) o princípio da capacidade contributiva enquanto tertium comparationis da igualdade no domínio dos impostos, não carece dum específico e direto preceito constitucional. O seu fundamento constitucional é, pois, o princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respetiva “constituição fiscal” e não qualquer outro.”
Finalmente, SÉRGIO VASQUES parece sustentar que o princípio da igualdade tributária se funda diretamente e exclusivamente nos artigos 103º e 104º da CRP. Com efeito, diz o Autor (Manual de Direito Fiscal, 1ª ed., Coimbra, 2011, p. 247):
“A igualdade constitui o mais importante princípio da nossa Constituição Fiscal e se disso não damos conta ao ler o artigo 13º, damos conta disso com certeza ao ler os artigos 103º e 104º, estabelecendo todo um programa de intervenção para o sistema fiscal e subordinando os impostos sobre o rendimento, património e consumo a preocupações de justiça social.”
Quanto à jurisprudência do Tribunal Constitucional, nela deparamos com as três conceções aqui descritas.
Encontramos a conceção de que o princípio da igualdade fiscal se funda exclusivamente no art. 13º, por exemplo, no acórdão nº 57/95, de 16-02-1995, onde se lê:
“O princípio da igualdade fiscal apresenta uma tríplice dimensão, surgindo as duas primeiras dimensões como uma emanação do princípio geral da igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição.
O Tribunal reitera a mesma posição doutrinal no acórdão n.º 348/97, de 29-04-1997, onde se lê:
“O dever de os cidadãos pagarem impostos constitui uma obrigação pública com assento constitucional. Como tal, está sujeito a algumas regras equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu pagamento os cidadãos em geral (artigo 12º, n.º 1), e devem estar sujeitos a ele em idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (artigo 13º, n.º 2), isto constituído o princípio da igualdade tributária.”
Noutros casos o Tribunal Constitucional adotou a conceção segundo a qual o princípio da igualdade tributária encontra o seu fundamento no conjunto dos artigos 13º, 103º e 104º. É o caso do acórdão nº 590/2015, de 11-11-2015, onde se lê:
“Passemos, então, a apreciar o parâmetro de constitucionalidade a que a recorrente dedicou a maior parte da sua argumentação, fundada nos princípios da igualdade tributária e capacidade contributiva (artigos 13.º, 103.º e 104.º da Constituição).”
Finalmente, noutras ocasiões o Tribunal fez-se eco da conceção de que o princípio da igualdade tributária assenta exclusivamente nos artigos 103º e 104º da CRP. É o caso do acórdão nº 84/03, de 12-02-2003, onde se lê:
“Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP (…)”.
A mesma conceção é a que se encontra noutras decisões, nomeadamente o acórdão TC nº 497/97, de 09-07-1997;
Divisamos, portanto, na jurisprudência do Tribunal Constitucional e na doutrina fiscalista portuguesa, três conceções quanto ao fundamento positivo do princípio constitucional da igualdade tributária. Expomos em seguida a nossa conceção que, adiantamos desde já, partilhamos com PEDRO SOARES MARTINEZ (Direito Fiscal, 10ª ed., Coimbra, 1998, p. 105).
2. O princípio da igualdade tributária e o princípio da diminuição das desigualdades através do sistema fiscal como princípios com conteúdos distintos, que não se excluem
O art. 104.º da CRP, ao estipular, no seu nº 1, que “o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, e no nº 3 que “a tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos”, estabelece um princípio de direito fiscal diferente do princípio da igualdade que se encontra no artigo 13º da Lei Fundamental. Estabelece o princípio fiscal da “diminuição das desigualdades de facto através do sistema fiscal.”
Sobre o artigo 107º da CRP na versão de 1982, antecessor do atual artigo 104º, diz SOARES MARTINEZ:
“O princípio igualitário que se nos depara no artigo 107º da Constituição vigente oferece caráter diverso. Em vez de reconhecer e respeitar a igualdade dos cidadãos perante a lei fiscal, visa remover desigualdades económicas de facto usando meios tributários”.
Como é fácil de concluir, esta “diminuição das desigualdades”, como princípio normativo, não se contém no princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, nem no seu sentido formal nem no seu sentido material.
A mais importante diferença entre os dois princípios reside em que o princípio da igualdade tributária basta-se com uma tributação proporcional (neste sentido, JOACHIM LANG, The Influence of tax principles on the taxation of income from capital, in ESSERS/RIJKERS, The Notion of Income from Capital, I, Amsterdão, 2005, p. 9), enquanto o princípio da diminuição das desigualdades através do sistema fiscal exige uma tributação progressiva, onde ela possa ter lugar, como se pode ver através do seguinte exemplo:
Se o cidadão A tiver um rendimento 10 vezes superior ao do cidadão B e se for aplicada a ambos a mesma taxa de imposto de 20%, cumpre-se plenamente o princípio da igualdade tributária, pois o cidadão A paga um imposto 10 vezes superior ao cidadão B. Mas, no fim da exação do imposto, o cidadão A continua a ter um rendimento disponível (depois de imposto) 10 vezes superior ao do cidadão B. Houve igualdade de tratamento, não houve diminuição da desigualdade de facto.
Já se for aplicada uma taxa progressiva, se ao cidadão A for aplicada uma taxa de 30% e ao cidadão B uma taxa de 20%, no final da tributação o rendimento disponível do cidadão A já não será 10 vezes superior ao do cidadão B. Reduziu-se a desigualdade de facto que existia à partida.
Esta progressividade da tributação não se funda no princípio da igualdade, mas no princípio da justiça distributiva, cujas raízes se perdem no tempo, mas que se encontra com segurança em Tomás d’Aquino[1], pois se trata verdadeiramente de uma transferência de rendimento dos que mais têm para os que menos têm, reduzindo a desigualdade.
A doutrina espanhola distingue sem hesitação os princípios da igualdade, que funda diretamente no artigo 14 da Contituição Espanhola (MARTÍN QUERALT, LOZANO SERRANO e POVEDA BLANCO, Derecho Tributario, p. 56) e o princípio da progressividade. Sobre este último dizem os autores citados:
“O artigo 31 da Constituição exige que a contribuição dos cidadãos ao financiamento dos gastos públicos se realize através de um sistema tributário justo, inspirado nos princípios de igualdade e progressividade (…)”
Também quanto a este aspeto, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem oscilado. Em algumas ocasiões, o Tribunal considerou que o princípio da igualdade tributária exige uma tributação proporcional e não mais que proporcional, o que implica distinguir o princípio da igualdade do princípio da progressividade.
Por exemplo, lê-se no acórdão nº 348/97, já citado:
“O dever de os cidadãos pagarem impostos constitui uma obrigação pública com assento constitucional. Como tal, está sujeito a algumas regras equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu pagamento os cidadãos em geral (artigo 12º, n.º 1), e devem estar sujeitos a ele em idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (artigo 13º, n.º 2), isto constituindo o princípio da igualdade tributária.”
A mesma conceção encontra-se vertida na seguinte passagem do acórdão nº 695/2014, de 15-10-2014:
“Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva”.
Nos acórdãos nº 590/2015, de 11-11-2015, e nº 247/2016, de 04-05-2016, o Tribunal reafirma a mesma conceção, citando CASALTA NABAIS:
“E tal critério, como sublinha CASALTA NABAIS, encontra-se no princípio da capacidade contributiva: “Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)”.
No entanto, quando o Tribunal afirma que o princípio da igualdade tributária e o seu corolário do princípio da tributação segundo a capacidade contributiva têm como fundamento o artigo 104º da CRP (como faz no acórdão nº 84/03, já citado) entra em contradição com este entendimento de Casalta Nabais, que declara perfilhar nos acórdão anteriormente citados .
Em alguns casos, o Tribunal parece mesmo inclinar-se explicitamente pela ideia de que a igualdade tributária exige a progressividade dos impostos, como no acórdão nº 806/93, de 30 de novembro de 1993, onde se lê:
“É assim que, no artigo 107.º, n.º 1, da Constituição, e no tocante ao imposto sobre o rendimento pessoal, a nossa Lei Fundamental aponta para alguns critérios delimitadores de um sistema fiscal que se possa considerar justo, postulando o objetivo da diminuição das desigualdades em estreita articulação com o carácter único e progressivo do imposto, donde resulta um entendimento da igualdade não meramente formal mas antes eminentemente material, porque decorrente da progressividade em função da capacidade económica dos contribuintes e dos fins últimos redistributivos (a «repartição justa dos rendimentos e da riqueza» a que alude o n.º 1 do artigo 106.º da Constituição).”
Neste aresto, o Tribunal parece considerar que o princípio da igualdade fiscal na sua vertente material se contém no artigo 107º da CRP (na versão de 1982, hoje art. 104º) e se identifica com progressividade. Em nossa opinião, esta interpretação do direito constitucional, que, como já pensamos ter demonstrado, não pode considerar-se unânime na jurisprudência do Tribunal Constitucional, é incorreta.
Do exemplo dado acima resulta, segundo nos parece, que estamos perante princípios distintos, que não devem ser confundidos.[2] Para entender o alcance do princípio da igualdade tributária, devemos limitar-nos ao artigo 13º da CRP.[3] O contrário, ie confundir os princípios da igualdade e da “diminuição das desigualdades de facto através do sistema fiscal”, conduz à indeterminação do conteúdo e do alcance do princípio da igualdade tributária, levando ao seu debilitamento e a dificuldades insuperáveis na sua aplicação. É por isto que, em nossa opinião, a questão deve ser cuidadosamente tratada.
Que a confusão entre o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei fiscal, que se funda no artigo 13º da CRP e que postula a aplicação do princípio da tributação segundo a capacidade contributiva, e o “princípio da diminuição das desigualdades através do sistema fiscal” resulta num enfraquecimento do valor do princípio da igualdade tributária pode ver-se claramente na seguinte passagem do acórdão nº 711/2016, de 29-12-2006:
“Nos termos do n.º 1 do artigo 104º da Constituição, o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares "visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar". O Tribunal tem retirado desta norma a exigência da conformação do imposto como justo e orientado para o objectivo da diminuição das desigualdades, o que logo afasta a ideia de rigorosa igualdade formal, quer na selecção dos contribuintes, quer no montante do imposto devido. Com efeito, a progressividade do imposto em função da capacidade económica dos contribuintes e a ideia da repartição justa dos rendimentos e da riqueza, que se recolhe do artigo 103º n.º 1 da Constituição, convocam preferentemente um objetivo de igualdade material tanto no sacrifício que os cidadãos devem individualmente suportar, como quanto ao resultado da consequente redistribuição da riqueza.”
Ora, em nossa opinião, em primeiro lugar, a igualdade tributária que deriva do princípio da igualdade consagrado no art. 13º é tanto formal como material (o entendimento é corroborado em algumas ocasiões pelo próprio Tribunal Constitucional, como no acórdão TC nº 57/95, de 16-02-1995); e em segundo lugar, o preceito constitucional tem tudo o que é necessário para se chegar a “uma rigorosa igualdade tributária, tanto formal como material”. O rigor do princípio da igualdade tributária não é afetado, evidentemente, pelas situações em que o próprio texto constitucional admite exceções. São essas exceções a progressividade do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e da tributação do património, e os benefícios fiscais que, correspondendo a ruturas com o princípio da capacidade contributiva, têm necessariamente que estar justificados por fins extrafiscais de valor constitucional (NUNO SÁ GOMES, Teoria geral dos benefícios fiscais, Lisboa, 1991, págs. 62-63; acórdão TC nº 188/03, de 08-04-2003).
Quanto ao artigo 103º, nº 1, onde se determina que “O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”, refere-se sobretudo à aplicação das receitas do Estado, sendo portanto o princípio de direito financeiro.
3. Conteúdo do princípio da igualdade tributária – sua relação com o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva
Sobre o conteúdo do princípio da igualdade consagrado no art. 13º, o Tribunal Constitucional define-o do seguinte modo, no acórdão nº 523/95, de 28-09-1995:
Consistindo a igualdade em tratar por igual o que é essencialmente igual e diferentemente o que essencialmente for diferente, não proíbe se estabeleçam distinções a não ser que estas sejam arbitrárias ou sem fundamento material bastante. Ou seja, as distinções são só materialmente infundadas quando assentem em motivos que não oferecem caráter objetivo e razoável, ou, por outras palavras, quando a norma em causa não apresenta qualquer fundamento material razoável.
No plano específico do direito fiscal, o Tribunal Constitucional afirmou no seu acórdão nº 348/97, de 29-04-1997
“O dever de os cidadãos pagarem impostos constitui uma obrigação pública com assento constitucional. Como tal, está sujeito a algumas regras equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu pagamento os cidadãos em geral (artigo 12.º, n.º 1), e devem estar sujeitos a ele em idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (artigo 13.º, n.º 2), isto constituindo o princípio da igualdade tributária. Este princípio é relevante não apenas para o caso da imposição fiscal mas também para o caso das isenções e regalias fiscais, que não podem deixar de o respeitar sob pena de privilégio constitucionalmente ilícito.”
A igualde tributária tem inúmeras concretizações possíveis, conforme o aspeto da lei tributária que se esteja a considerar. Por exemplo, todos os cidadãos terão os mesmos direitos, os mesmos deveres e as mesmas sujeições, no que ao procedimento tributário diz respeito.
Um dos aspetos da igualdade tributária é o que diz respeito à incidência do imposto e à quantificação do encargo fiscal que recai sobre cada sujeito passivo. Se, na sua vertente de universalidade do dever de pagar impostos, o princípio da igualdade tributária determina que todos os cidadãos devem ser chamados a contribuir para o financiamento das despesas públicas através de impostos (acórdão TC nº 590/2015, de 11-11-2015; acórdão TC nº 695/2014, de 15-10-2014), na sua vertente de uniformidade, o princípio da igualdade tributária determina que o encargo fiscal imposto aos cidadãos deve ser estabelecido em condições de igualdade.
Ora, o critério que permite aferir a igualdade ou a desigualdade entre os cidadãos para efeitos de distribuição uniforme da carga tributária é a capacidade contributiva (acórdão TC nº 142/2004, de 10-03-2004). Em termos simples, a capacidade contributiva nada mais é do que a riqueza, manifestada através do rendimento, do património ou da despesa realizada (tal como resulta do artigo 4º, nº 1 da Lei Geral Tributária).
Assim, o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos contido no artigo 13.º da CRP, aplicado ao campo tributário, determinará que pessoas com uma capacidade contributiva (riqueza) idêntica suportem idêntica carga fiscal (igualdade horizontal), e que pessoas com diferente capacidade contributiva suportem cargas fiscais proporcionalmente diferentes (igualdade vertical). Para realizar o princípio da igualdade tributária (vertical), a diferença entre as cargas fiscais suportadas, como já vimos, apenas tem que ser proporcional à diferença de capacidade contributiva (acórdão TC nº 197/2013, de 09-04-2013).
A conceção de que o princípio da capacidade contributiva é a concretização do princípio da igualdade tributária é relativamente consensual na jurisprudência do Tribunal Constitucional (vd. os acórdãos TC nº 590/2015, de 11-11-2015, nº 84/2003 de 12-02-2003; e nº 695/2014, de 15-10-2014)
Assim, no acórdão TC nº 695/2014, de 15-10-2014, diz-se:
“[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de ‘uniformidade’ – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação”), o que quer dizer que “a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos”.
Tendo o Tribunal Constitucional afirmado este entendimento inúmeras vezes, fá-lo claramente no seu acórdão nº 57/95, de 16-02-1995, em que se lê:
“O princípio da igualdade fiscal apresenta uma tríplice dimensão, surgindo as duas primeiras dimensões como uma emanação do princípio geral da igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição. Em primeiro lugar, aquele princípio significa que todos os cidadãos são iguais perante a lei fiscal, de tal modo que todos os contribuintes que se encontrem na mesma situação definida pela lei fiscal devem estar sujeitos a um mesmo regime fiscal (…). É este um sentido meramente formal do princípio da igualdade fiscal, o qual se traduz numa genérica e imparcial aplicação da lei fiscal, de que resulta apenas uma igualdade ante a lei. Em segundo lugar, o princípio da igualdade fiscal tem também um sentido material ou substancial, cujo significado é o de que a lei deve garantir que todos os cidadãos com igual nível de rendimentos devem suportar idêntica carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos. (…). O princípio da igualdade fiscal em sentido material não apenas veda ao legislador a adoção de desigualdades de tratamento, no âmbito fiscal, que não sejam autorizadas pela Constituição ou que sejam materialmente infundadas, desprovidas de fundamento razoável ou arbitrárias, como impõe que a lei garanta que todos os cidadãos com igual capacidade contributiva estejam sujeitos à mesma carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos (…).”
No acórdão nº 348/97, de 29-04-1997, diz-se por seu turno:
Deste modo, a generalidade do dever de pagar impostos significa o seu carácter universal (não discriminatório), e a uniformidade (igualdade) significa que a repartição dos impostos pelos cidadãos há de obedecer a um critério idêntico para todos. E tal critério, (…) é o da capacidade contributiva (capacidade económica, capacidade para pagar, etc.), o que significa que os contribuintes com a mesma capacidade contributiva devem pagar o mesmo imposto (igualdade horizontal) e os contribuintes com diferente capacidade contributiva devem pagar diferentes (qualitativa e/ou quantitativamente) impostos (igualdade vertical)", sendo certo que o âmbito subjectivo deste princípio vale tanto para os indivíduos (pessoas físicas) como para as pessoas colectivas.
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional afirmou este mesmo entendimento no seu acórdão 590/2015, de 11-11-2015
´”O princípio constitucional da igualdade tributária, como expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade (artigo 13.º da Constituição), encontra concretização “na generalidade e na uniformidade dos impostos. Generalidade quer dizer que todos os cidadãos estão adstritos ao pagamento de impostos (…); por seu turno, uniformidade quer dizer que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos” (TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5.ª edição, pág. 261). E tal critério, como sublinha CASALTA NABAIS, encontra-se no princípio da capacidade contributiva: “Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos)”
4. O princípio da igualdade tributária não esgota o princípio da capacidade contributiva
Antes de prosseguir no labor de delimitação do sentido e alcance do princípio da igualdade tributária, julgamos oportuno intercalar aqui um breve parêntesis para uma precisão acerca do princípio da tributação segundo a capacidade contributiva.
Se é certo que o princípio da igualdade tributária requer o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva, pois a capacidade contributiva é o critério distintivo que permite aferir quem se encontra em situação de igualdade, quem se encontra em situação de desigualdade e qual a medida da desigualdade entre as diversas situações, o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva não se esgota nesta função de permitir o tratamento fiscal igualitário.
O princípio da capacidade contributiva significa também que o legislador apenas deve tributar situações que revelem capacidade contributiva, o que já não é um conceito relativo mas absoluto.
Leia-se a este propósito o que o Tribunal Constitucional disse no seu acórdão nº 217/2015, de 08-04-2015:
“O princípio da capacidade contributiva assume nos termos em que é aqui convocado valor paramétrico fundamentalmente como condição da tributação, de molde a impedir que a Contribuição Especial atinja uma riqueza ou rendimento que não existe, vedando a exação de uma capacidade de gastar que verdadeiramente não se verifica.”
Estamos aqui perante outro princípio com raízes profundas na cultura judaico-cristã (o princípio encontra-se também formulado em termos de direito tributário por São Tomás d’Aquino na sua obra Sancti Thomae Aquinatis Doctoris Angeiici super Epistolam Sancti Pauli Apostoli ad Romanos expositio, Cap. XIII) de que o Estado não pode tributar os seus cidadãos senão a partir de um limite de riqueza, aquém do qual não existe capacidade contributiva.
Se esta vertente do princípio da capacidade contributiva pode ou não ainda considerar-se incluída no princípio da igualdade tributária é questão que não abordaremos, por desnecessária no contexto, não deixando contudo de notar que o Tribunal Constitucional parece ter-se posicionado em relação à questão, em sentido negativo, no seu acórdão nº 601/04, de 12-10-2014:
“A desigualdade do caso residiria, se bem se compreende, na tributação por factos inexistentes – ou seja, no fundo, na violação de um outro princípio constitucional em matéria fiscal, que é o princípio da capacidade contributiva, como também vem alegado.”
5. Da aplicabilidade plena do princípio da igualdade tributária a todos os impostos
Por se fundar no próprio princípio geral da igualdade, o princípio da igualdade tributária e, logo, o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva são plenamente aplicáveis a todos os impostos sem exceção, não havendo impostos em relação aos quais o legislador está mais vinculado ao princípio da capacidade do que outros. Isto é reconhecido pelo legislador ordinário no artigo 4º da Lei Geral Tributária.
Nada na ordem constitucional permite afirmar que existe uma maior vinculação ao princípio da igualdade tributária nos impostos sobre o rendimento do que nos impostos sobre o património. Nenhum argumento nesse sentido pode ser retirado, concretamente, dos artigos 103º e 104º da CRP, que já vimos não estarem relacionados com o princípio da igualdade nem com o princípio da capacidade contributiva.
Aliás, se o artigo 104.º nº 1 se refere expressamente ao imposto sobre o rendimento pessoal determinando que este visa “a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, por seu turno o nº 3 do mesmo preceito dispõe que “A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos.” Portanto, também daqui não se retiraria, a sustentar-se outro entendimento sobre o fundamento do princípio da igualdade, que este é mais vinculativo no caso dos impostos sobre o rendimentos do que nos impostos sobre o património.
Se é certo que no âmbito dos impostos sobre o património, concretamente no imposto municipal sobre imóveis, não se têm em conta fatores pessoais determinantes da capacidade contributiva que são tidos em conta no imposto sobre o rendimento – como por exemplo o facto de o sujeito passivo ter uma deficiência ou ter despesas de saúde – também é certo que no âmbito do IMI foram recentemente introduzidos fatores pessoais determinantes da capacidade contributiva – como o número de dependentes do agregado familiar (Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro´) – e não é menos certo que no âmbito do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares existem áreas em que a consideração de fatores pessoais determinantes da capacidade contributiva estão ausentes, como a tributação autónoma ou a tributação a taxas liberatórias. Na verdade, a consideração em menor ou maior grau de fatores pessoais determinantes da capacidade contributiva está relacionada fundamentalmente com a sua praticabilidade em cada aspeto do imposto, e não com a natureza da manifestação de riqueza em causa.
A tributação da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, sendo uma tributação sobre o património, não constitui exceção aos princípios da igualdade tributária e da tributação segundo a capacidade contributiva. Não há portanto razão para, prima facie, assumir que o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva deve sofrer qualquer compressão neste imposto.
6. A aplicação do princípio da igualdade tributária à situação concreta dos autos
Até agora concluímos que vigora no direito constitucional tributário português o princípio da igualdade tributária, derivado do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP, entendimento que encontra apoio na jurisprudência do Tribunal Constitucional; Que o princípio da igualdade tributária se aplica a todos os aspetos das leis tributárias, entre os quais o da incidência do imposto; Que para se aplicar no plano da incidência do imposto, o princípio da igualdade tributária requer a aplicação do princípio da capacidade contributiva, que determina que sujeitos passivos com igual capacidade contributiva devem suportar o mesmo encargo fiscal, e pessoas com diferentes capacidades contributivas devem suportar encargos fiscais diferentes, devendo a diferença no encargo fiscal ser proporcional à diferença na capacidade contributiva (salvo que outra coisa resulte de outras normas constitucionais, como o artigo 104º, nº 1 ou nº 3 da CRP); E que não existe na Constituição qualquer elemento que permita concluir que o princípio da capacidade contributiva seja menos vinculativo no campo da tributação do património do que nos restantes impostos.
Está em causa a aplicação da verba 28.1 da TGIS à situação de compropriedade de um terreno para construção.
De acordo com a verba 28.1 da TGIS, conjugada com o artigo 1º, nº 1 do Código do Imposto do Selo, está sujeita a tributação em Imposto do Selo, à taxa de 1% anual, a aplicar sobre o valor patrimonial tributário do prédio sujeito, a propriedade, o usufruto ou o direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário, constante da matriz, seja igual ou superior a 1 000 000 de euros. Na categoria de prédios urbanos sujeitos incluem-se expressamente os terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI.
Tal como o Imposto Municipal sobre Imóveis, a tributação da verba 28.1 da TGIS é um imposto sobre o património imobiliário. Tanto um como outro têm como pressupostos factos que constituem manifestação de capacidade contributiva – direitos reais sobre imóveis.
No âmbito do IMI não se atende, para efeitos de incidência, nem ao valor tributário dos imóveis nem ao valor global do património imobiliário do sujeito passivo. Não se atende ao valor dos imóveis porque, em geral, o valor do imóvel não é determinante da capacidade contributiva. A capacidade contributiva, no plano de um imposto como o IMI, teria que ser determinada pelo valor global do património imobiliário. Porém, uma vez que o IMI é um imposto proporcional, o valor global do património imobiliário torna-se irrelevante, realizando-se o princípio da igualdade pela aplicação da taxa a cada imóvel de acordo com o seu valor patrimonial tributário. Por outro lado, no cálculo do valor patrimonial tributário de cada imóvel, são tidos em conta inúmeros fatores que, ao mesmo tempo que procuram determinar o valor de mercado do imóvel, introduzem também no cálculo do valor patrimonial tributário indícios de capacidade contributiva. Portanto, no IMI, o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva é realizado, em primeiro lugar, pelo método de cálculo do valor patrimonial tributário de cada imóvel, no qual entram fatores indiciantes de maior ou menor capacidade contributiva, e em segundo lugar pela aplicação de uma taxa proporcional a todos os imóveis (ainda que, devemos notar, o imposto não realize totalmente o princípio da capacidade contributiva ao não contemplar a não sujeição de casas de habitação própria e permanente até determinado valor patrimonial tributário).
A verba 28.1 da TGIS, pelo contrário, aplica-se apenas a prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário iguale ou exceda 1 000 000 de euros. Não tributa os patrimónios imobiliários cujo valor global atinga ou exceda 1000 000 de euros, mas os prédios que atinjam ou excedam esse valor. Obviamente, um imposto com esta estrutura contende com o princípio da igualdade tributária, porque um sujeito passivo que seja proprietário de um património imobiliário de 1000 000 de euros composto por vários prédios não é chamado a contribuir para o financiamento das despesas públicas através deste imposto, ao contrário de um sujeito passivo que seja proprietário de um único prédio com esse valor.
Inicialmente, a verba 28.1 da TGIS aplicava-se apenas a prédios com afetação habitacional. Entendeu-se que não cabiam nesta definição os terrenos para construção. Os prédios com afetação habitacional eram portanto, apenas as “casas de habitação”, ou seja as unidades habitacionais.
A justificação para o tratamento diferenciado, através da sua sujeição a imposto, das unidades habitacionais (casas) de valor igual ou superior a 1 000 000 euros encontrava-se facilmente no facto de em Portugal uma unidade habitacional (não isenta ao abrigo do Estatuto dos Benefícios Fiscais) de valor igual ou superior a 1.000.000 de euros ser em si mesma denotadora de uma capacidade contributiva especialmente elevada. Desta forma, o princípio da capacidade contributiva encontrava-se salvaguardado. A propriedade de uma unidade habitacional de valor igual ou superior a 1 000 000 e euros – uma casa de luxo - constitui, só por si, manifestação de uma capacidade contributiva especialmente elevada e portanto ao fazer incidir uma tributação sobre esses imóveis ainda se respeita o princípio da capacidade contributiva. A definição do facto tributável assentava num elemento qualitativo (casa de habitação de luxo), que, sendo um índice qualitativo de capacidade contributiva, salvaguardava o princípio da capacidade contributiva.
Quando, com a alteração legislativa de 2013, se passaram a tributar através da verba 28.1 os terrenos para construção, a justificação para o tratamento diferenciado dado aos proprietários de terrenos de valor igual ou superior a 1.000.000 de euros desapareceu, no que a este tipo de prédios diz respeito. Não há dúvida de que não existe num terreno para construção com um VPT de 1.314.002,31 euros, nenhum índice de capacidade contributiva que não exista num conjunto de dois prédios cujo VPT total perfaça 1.314.002,31 euros.
Da mesma forma, nenhum índice de capacidade contributiva existe na compropriedade de uma quota-parte de metade de um terreno para construção com um VPT de 1.314.002,31 euros, que não exista na propriedade de um terreno para construção com o VPT de 657.001,15 euros. Se em relação às unidades habitacionais (casas de habitação) de valor igual ou superior a 1.000.000 de euros havia um elemento qualitativo que salvaguardava o princípio da capacidade contributiva, pois o legislador considerava que se tratava de “casas de luxo”, esse elemento qualitativo não existe no caso de um terreno para construção de valor igual ou superior a 1.000.000 de euros.
À primeira vista, portanto, ao sujeitar-se a tributação algumas das situações indicadas e não sujeitar a tributação as outras situações indicadas, quando entre elas existe identidade no que diz respeito à capacidade contributiva, não se pode dizer que esteja a ser respeitado o princípio da igualdade material no tratamento destas situações.
Na sua jurisprudência, porém, o Tribunal Constitucional tem identificado limitações ao princípio da igualdade tributária.
Vejamos a aplicação que o Tribunal Constitucional tem feito do princípio da igualdade tributária e do seu corolário da tributação segundo a capacidade contributiva.
7. A aplicação do princípio da igualdade tributária na prática
O Tribunal Constitucional tem afirmado que o princípio da igualdade tributária e o seu corolário da tributação segundo a capacidade contributiva têm de ser compatibilizados com outros princípios constitucionais. Por exemplo, no acórdão n.º 711/2006, de 29-12-2006:
«é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal».
Nenhum destes princípios constitucionais está em causa no caso que nos ocupa.
Desde logo, não se vê que problemas de praticabilidade ou cognoscibilidade do facto tributário impediriam o legislador de formular a norma de incidência da verba 28.1 da TGIS com uma diferente feição, mais conforme com o princípio da igualdade, não nos cabendo substituir-nos ao legislador nessa formulação.
É certo que o estado social exige um sistema fiscal eficiente capaz de gerar as receitas necessárias à sua manutenção financeira. Ora, no caso da norma aqui em apreço, o que está em causa é a não tributação de pessoas com a mesma capacidade contributiva daquelas que a norma de incidência atinge. O estado social exige um sistema fiscal capaz de gerar receitas suficientes para o financiamento dos serviços públicos, mas isso não autoriza o Estado a não adotar as soluções legislativas, no plano fiscal, que garantam a repartição igualitária dos encargos fiscais.
Existe uma ampla liberdade de conformação do legislador no que ao sistema fiscal diz respeito.
É o que diz o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 127/04, de 03-03-2004
“[…] atenta a sua função constitucionalmente definida, o legislador tributário goza, em princípio, de discricionariedade normativo-constitutiva quanto à eleição dos factos reveladores de capacidade contributiva que podem ser elevados à categoria de factos tributários, bem como à definição dos elementos que concorrem para se definir a matéria coletável”
Aliás, é este o principal argumento da Requerida no caso vertente, que diz na sua resposta:
“O facto de o legislador estabelecer um valor (€1.000.000,00) como critério delimitativo da incidência do imposto, abaixo do qual não se preenche a previsão da norma tributária, constitui uma legítima escolha do legislador quanto à fixação do âmbito material dos “imóveis habitacionais de luxo” que se pretende tributar de modo mais gravoso, até porque qualquer outro valor de grandeza análoga assumiria, do mesmo modo, um carácter artificial que é conatural a qualquer fixação quantitativa de um nível ou limite;”
Com efeito, o legislador não pode deixar de dispor de uma ampla margem de decisão na conformação dos factos tributários. Mas esta discricionariedade não pode ser absoluta, e está, precisamente, limitada pelos princípios constitucionais, entre os quais se encontra o da igualdade tributária.
Através da verba 28.1 da TGIS, na sua redação inicial, o legislador pretendeu tributar os “imóveis de luxo”, como refere a Requerida e muito bem. Sendo certo que não se tinha em conta, para efeitos de incidência do imposto, o valor global do património imobiliário do sujeito passivo, é também claro que o facto tributário assentava num elemento qualitativo que o legislador considerou apto a revelar capacidade contributiva especial. Esse elemento qualitativo residia precisamente em se estar perante “um imóvel habitacional de luxo”. Com efeito, os dados da experiência mostram que a capacidade contributiva não tem que ser sempre unicamente aferida por elementos quantitativos, mas que elementos qualitativos podem entrar na aferição da capacidade contributiva. Como já referimos, um “imóvel habitacional de luxo” contém um elemento qualitativo que é em si indicativo de uma capacidade contributiva especialmente elevada, tal como um iate ou outros bens normalmente associados a elevados níveis de riqueza.
Nada impedia, pois, o legislador, no exercício da sua liberdade de conformação legislativa, de se basear nesse elemento qualitativo – unidade habitacional de luxo – para conformar o facto tributário. Fazendo-o, tinha de definir “prédio habitacional de luxo”. E ao fixar o valor de 1.000.000 de euros para definir uma unidade habitacional “de luxo” continuava a agir nos limites da sua liberdade de conformação legislativa.
Porém, ao estender a tributação a terrenos para construção, que não são passiveis de ser considerados “imóveis de luxo”, esse elemento qualitativo passou a estar ausente do facto tributário. Nada há que distinga, em termos qualitativos ou quantitativos, para efeitos de aferição da capacidade contributiva de dois dados sujeitos passivos, a propriedade de um terreno para construção com um VPT de 1.000.000 euros ou a propriedade de dois terrenos para construção cada um deles com um VPT de meio milhão de euros.
E da mesma forma, nada há que distinga, em termos de capacidade contributiva, a propriedade de um prédio, que não seja um imóvel “de luxo”, com um valor patrimonial tributário de 657.001,15e euros – a qual não é tributada – da propriedade de uma quota-parte de um prédio à qual corresponda um valor patrimonial tributário de 657.001,15 euros.
É assim evidente que, à luz do critério da capacidade contributiva – único critério no qual deve assentar a realização do princípio da igualdade tributária no caso dos impostos – a liquidação impugnada se traduz num tratamento desigual de situações iguais.
Na sua jurisprudência sobre o princípio da igualdade, e sobre o princípio da igualdade tributária em particular, o Tribunal Constitucional tem procurado delimitar as condições em que são admissíveis tratamentos desiguais.
No acórdão nº 806/93, de 30-11-1993, por exemplo, o Tribunal afirma:
Mas, se o princípio da igualdade não proíbe que haja diferenças do tratamento na lei, antes por vezes as imponha directa ou indirectamente, o que com segurança se pode dizer é que tal princípio proíbe, isso sim, as discriminações arbitrárias, irrazoáveis ou infundadas, sendo tidas como tais todas as que não encontrem um apoio suficiente na distinta materialidade das diferentes situações que se contemplam ou na compatibilização do aludido princípio de igualdade com outros princípios constitucionalmente acolhidos.
No acórdão nº 211/2003, de 28-04-2003, lê-se:
“A violação do princípio constitucional da igualdade subentende uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminatória, sendo certo que, a este propósito, a jurisprudência constitucional tem insistentemente sublinhado não proibir aquele princípio que se criem distinções, desde que estas não sejam arbitrárias ou desprovidas de fundamento material bastante.”
Noutro aresto, o acórdão nº 409/99, de 29-06-1999, diz-se:
“O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (…)”
O Tribunal considera portanto, em primeiro lugar, que o princípio da igualdade impõe que se dê tratamento igual ao que é essencialmente igual. Essencialmente igual significa, em nosso entender, igual no que é relevante, nas situações em causa, em face dos fins ou objetivos das leis em causa. Por outras palavras, o Tribunal considera não serem de admitir as diferenças de tratamento arbitrárias, irrazoáveis ou infundadas, sendo tidas como tais todas as que não encontrem um apoio suficiente na distinta materialidade das diferentes situações que se contemplam.
Parece-nos ser de entender, como já procurámos deixar demonstrado, que entre a situação de compropriedade de uma quota-parte de 50% de um terreno com um VPT de 1.314.002,31 e a situação de propriedade de um terreno para construção com um VPT de 657.001,15 euros, não existe “distinta materialidade”. Existe igualdade essencial. A verdade é que a segunda situação não é tributada, a primeira sim.
O Tribunal considera, por outro lado, que uma diferença de tratamento de situações que são essencialmente idênticas pode ser justificada desde que não sejam arbitrárias ou desprovidas de fundamento material bastante.” Ou seja, a diferença de tratamento entre situações que são essencialmente iguais pode ser justificada se existir um fundamento material bastante para essa diferenciação.
Especificamente a propósito da verba 28.1 da TGIS, o Tribunal Constitucional afirma no seu acórdão nº 247/2016, de 04-05-2016:
“Também não se encontra na norma de incidência em apreço medida fiscal arbitrária, porque desprovida de fundamento racional. Como se viu, a alteração legislativa teve como propósito alargar a tributação do património, fazendo-a recair de forma mais intensa sobre a propriedade que, pelo seu valor bastante superior ao do da generalidade dos prédios urbanos com afetação habitacional, revela maiores indicadores de riqueza e, como tal, é suscetível de fundar a imposição de contributo acrescido para o saneamento das contas públicas aos seus titulares, em realização do aludido “princípio da equidade social na austeridade”.
Tal como já dissemos anteriormente, sustentamos que esta argumentação só é válida para aqueles prédios que possam ser qualificados, em linguagem comum, como “casas de habitação”. O qualificativo “propriedade que, pelo seu valor bastante superior ao do da generalidade dos prédios urbanos com afetação habitacional” não é aplicável a terrenos para construção. De facto, se se pode dizer que um VPT de 1.000.000 euros é um valor excecionalmente elevado para uma “casa de habitação”, denotando, portanto, uma capacidade contributiva “particularmente elevada”, que uma pessoa proprietária de dois prédios com valor inferior não possui, já não é verdade que a propriedade de um terreno para construção com um VPT de 1.000.000 de euros denote uma capacidade contributiva superior à de uma pessoa que possui dois prédios cada um dos quais com o valor de meio milhão de euros.
Por conseguinte, não se vê existir entre as situações de propriedade e de compropriedade que são discriminadas pela verba 28.1 da TGIS, no que aos terrenos para construção diz respeito, “fundamento material bastante para a diferenciação de tributação a que a mesma conduz.
E por conseguinte, temos que concluir que essa discriminação é arbitrária, porque sem fundamento racional bastante, e portanto contrária e violadora do princípio da igualdade tributária contido no artigo 13º da CRP.
VI – DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Verificada a ilegalidade, por violação de norma constitucional, dos atos de liquidação impugnados, pelos fundamentos expostos, e tendo o Requerente pago integralmente o imposto liquidado, tem o Requerente direito, em conformidade com os artigos 24.º, n.º 1, al. b) do RJAT e 100.º da LGT, ao reembolso do imposto indevidamente pago.
Quanto ao direito a juros indemnizatórios, o artigo 43º da LGT estipula que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
O Supremo Tribunal Administrativo tem feito uma interpretação ampla desta previsão normativa, considerando existir erro imputável aos serviços na generalidade dos casos em que se decide a anulação do ato tributário por ilegalidade (vejam-se, neste sentido, os Acórdãos do STA de 22-05-2002, Proc. n.º 457/02; de 31.10.2001, Proc. n.º 26167; de 2.12.2009, Proc. n.º 0892/09).
As únicas exceções, até recentemente, concerniam os casos de invalidade por vício de incompetência ou de forma (vd. acórdão STA de 09-09-2009, proc. nº 0369/09; acórdão STA de 27-06-2007, proc. nº 080/07 ).
Quanto aos casos em que o pleito entre o sujeito passivo e a administração tributária se decide pela anulação do ato impugnado com base em violação de norma constitucional, o Supremo Tribunal considerou durante muito tempo que tal ilegalidade se reconduzia ainda a um conceito amplo de erro imputável aos serviços. É exemplo de aplicação desta doutrina o acórdão do STA de 09-10-2002, proc nº 0789/02, em que se sumariou: “I. São devidos juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando lhe tenha sido exigido um tributo liquidado por aplicação de uma norma que, na respetiva impugnação judicial, foi julgada inconstitucional. II - A obrigação de indemnizar não deixa de existir só porque a Administração não é livre de deixar de aplicar a lei, a pretexto da sua inconstitucionalidade.”
Recentemente, porém, o Supremo Tribunal Administrativo reviu a sua posição quanto a este assunto.
No acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11-05-2016, proc. nº 704/14, o Tribunal começa por evocar a sua própria doutrina quanto à impossibilidade de a administração tributária preterir a aplicação de uma norma com base num juízo de inconstitucionalidade, citando o seu acórdão de 26-02-2014 (proc. nº 481/13), parafraseando:
“Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal…”.
Para em seguida concluir:
Face a esta doutrina, não podemos deixar de concluir que a Administração Tributária não poderia ter decidido de modo diferente a reclamação graciosa que a recorrente lhe dirigiu, quer porque não lhe assiste o direito a recusar a aplicação de norma que no seu entender poderia ser inconstitucional, porque não lhe é permitido formular um juízo sobre essa constitucionalidade, quer porque já anteriormente a essa decisão havia sido proferido pelo Tribunal Constitucional acórdão em que se havia concluído pela conformidade constitucional do concreto preceito legal, sobre o qual, posteriormente, veio recair o julgamento de inconstitucionalidade. Quanto às consequências não se desconhecendo o teor de outros acórdão deste STA, com alguma longevidade, no sentido de que a liquidação feita com base em lei declarada inconstitucional, sendo ilegal, não pode deixar de ser anulada também é certo que a Administração Fiscal não pode efectuar um Juízo de prognose póstuma quanto à inconstitucionalidade, devendo o tribunal evitar interpretações extensivas e atentar também nos valores da certeza e segurança jurídicas e nos termos da responsabilização legal pelo pagamento de juros indemnizatórios que afastam qualquer responsabilidade objectiva da Fazenda Pública pelo que residualmente os interesses do contribuinte ficarão salvaguardados pela possibilidade de propositura de acção indemnizatória contra o Estado Português por erro imputável ao poder legislativo. Temos, assim, que concluir que no presente caso, e para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não pode ser assacado aos serviços do fisco qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu, na altura em que o fez.
A mesma posição doutrinal é perfilhada nos acórdãos do mesmo tribunal de 1-06-2016, proc. nº 1352/14, e de 21-01-2015, poc. nº 843/14.
Considerando existir já um número de decisões que permite falar de uma corrente jurisprudencial e atendendo ao princípio da segurança jurídica e do seu correlato princípio da uniformidade na aplicação do direito, entendemos dever perfilhar esta mesma corrente doutrinária, negando pois, no caso concreto, o direito do Requerente a juros indemnizatórios.
VII - DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
1. Julgar inteiramente procedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação do Imposto do Selo impugnada, por aplicar norma violadora do princípio da igualdade tributária, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa;
2. Declarar a ilegalidade e anular, pelos mesmos fundamentos, o ato de indeferimento da reclamação graciosa interposta daquele ato de liquidação;
3. Em consequência, anular o ato de liquidação impugnado e condenar a Requerida AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do montante pago referente à liquidação anulada..
Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 6.570,01 euros.
Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 19 de setembro de 2016
O Árbitro
(Nina Aguiar)
[1] Summa Theologiae, Secunda secundae, 61,
[2] Em sentido oposto, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 695/2014, de 15-10-2014.
[3] O Tribunal Constitucional em alguns casos pronunciou-se, quanto a nós erradamente, no sentido de que o princípio da igualdade fiscal estaria consagrado no artigo 104º (ou no antecessor 106º) da CRP. É o caso do acórdão 497/97 de 9 de julho de 1997.
DECISÃO ARBITRAL - Substitui a decisão de 19 de setembro de 2016.
I - RELATÓRIO
1. REABERTURA DE PROCESSO
Por decisão datada de 19-09-2016, este Tribunal concedeu provimento ao pedido de anulação do ato de liquidação de Imposto do Selo nº 2015..., praticado ao abrigo da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, incidente sobre o terreno para construção correspondente ao artigo ... da união de freguesias de ... e ..., do concelho de Aveiro, no montante de 6 570,01 euros, nos seguintes termos:
“Pelos fundamentos expostos, decide-se:
1. Julgar inteiramente procedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação do Imposto do Selo impugnada, por aplicar norma violadora do princípio da igualdade tributária, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa;
2. Declarar a ilegalidade e anular, pelos mesmos fundamentos, o ato de indeferimento da reclamação graciosa interposta daquele ato de liquidação;
3. Em consequência, anular o ato de liquidação impugnado e condenar a Requerida AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do montante pago referente à liquidação anulada.”
A Requerida Autoridade Tributária interpôs desta decisão o competente recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 280.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa e arts. 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da Lei n.º 25/82, de 15 de Novembro, e 25.º, n.º 1, do RJAT, o qual foi admitido por este Tribunal por despacho de 21-12-2016.
No Acórdão n.º 105/2019, de 19-02-2019, proferido pela 3.ª Secção do Tribunal Constitucional, foi proferida a seguinte decisão:
“III. Decisão
Por todo o exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma da verba 28 e 28.1 da Tabela geral do Imposto do Selo, anexa ao Código do Imposto do Selo, na redação dada pelo art.º 194º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de dezembro, na medida em que impõe a tributação anual sobre a compropriedade de terrenos para construção, cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a um milhão de euros, ainda que a quota-parte do comproprietário corresponda a uma fração de valor inferior;
b) Conceder provimento ao recurso, determinado a reforma da decisão recorrida no que respeita à questão da constitucionalidade.
Na sequência desta decisão, é reaberto o presente processo arbitral para que, em conformidade com o determinado pelo Tribunal Constitucional, seja proferida nova decisão sobre o litígio, o que se faz nos seguintes termos:
1. Pedido
A..., contribuinte nº..., residente na Rua ..., ... ...-... ..., Rio de Janeiro, e com domicílio fiscal na Rua ..., ..., ..., ...-..., Aveiro, doravante designado por Requerente, apresentou, em 15-01-2016, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 2º e no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:
A anulação do ato de liquidação de Imposto do Selo nº 2015..., praticado ao abrigo da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, incidente sobre o terreno para construção correspondente ao artigo ... da união de freguesias de ... e ..., do concelho de Aveiro, no montante de 6 570,01 euros;
A declaração da ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa interposta daquele ato de liquidação;
A consequente condenação da Requerida ao reembolso do montante pago referente a estas liquidações de imposto, acrescido de juros indemnizatórios devidos.
O Requerente alega, no essencial e com relevância para a decisão da causa, o seguinte:
A verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) foi introduzida pelo legislador com vista à tributação de situações de propriedade de imóveis de elevado valor, por isso reveladores de uma capacidade contributiva acrescida;
Da norma ressalta uma clara intenção do legislador de atingir situações que exteriorizam uma maior capacidade contributiva, isto em harmonia com o artigo 104º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, onde se determina que “a tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos”.
A esta luz, ser proprietário de um prédio com valor igual ou superior a um milhão de euros ou ser comproprietário do mesmo prédio são situações a valorar de diferente modo, já que a capacidade contributiva inerente a cada uma das situações é muito distinta.
A sujeição do comproprietário depende de a sua quota-parte ter um valor igual ou superior a um milhão de euros, por esse ser o limiar de relevância tributária previsto, o que não acontece no caso presente, em que a quota-parte do Requerente tem um valor patrimonial tributário de 657.001,15 euros.
É face a esta clara intenção de identificar situações que no espírito do legislador exteriorizam uma maior capacidade contributiva, conduzindo a uma discriminação negativa das mesmas e tendo presente que a Constituição da República Portuguesa, no seu art. 104º, n.º 3, determina que “a tributação do património deve contribuir para a igualdade dos cidadãos”, que entendemos que não pode fazer-se a aplicação da verba 28.1 da TGIS indistintamente aos proprietários e aos comproprietários dos prédios ali identificados, sem respeitar, quanto a estes últimos, o limiar mínimo de incidência previsto na lei.
2. Resposta da Requerida
Em resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT-Autoridade Tributária e Aduaneira alega, com relevância impugnatória:
O princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, "razoável, racional e objetivamente fundadas", sob pena de, assim não sucedendo, "estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objetivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes".
O facto de o legislador estabelecer um valor (€1.000.000,00) como critério delimitativo da incidência do imposto, abaixo do qual não se preenche a previsão da norma tributária, constitui uma legítima escolha do legislador quanto à fixação do âmbito material dos “imóveis habitacionais de luxo” que se pretende tributar de modo mais gravoso, até porque qualquer outro valor de grandeza análoga assumiria, do mesmo modo, um carácter artificial que é conatural a qualquer fixação quantitativa de um nível ou limite;
Não há que confundir esta dimensão de proporcionalidade do princípio da igualdade com a clássica separação entre tributação proporcional e tributação progressiva, nada impedindo a nível constitucional que a tributação patrimonial em causa assente numa taxa ad valorem proporcional (cf. o art.º 104.º, n.º 3 da CRP);
Concluindo, se a afetação do imóvel e a respetiva função social são diferentes, pode – e deve - a situação ser tratada de forma diferente, como aliás, impõe o próprio princípio da igualdade.
Desta forma, como o tratamento diferenciado encontra justificação material bastante, mostra-se respeitado o princípio da igualdade, quer per si, quer na sua dimensão da igualdade proporcional.
3. Tramitação subsequente
Por proposta e mediante a concordância de ambas as Partes, o Tribunal deliberou prescindir da realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT.
As Partes prescindiram da produção de alegações finais.
II – SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 29-03-2016, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as respetivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
Não foram identificadas nulidades no processo.
Nada obsta, portanto, à apreciação do mérito da causa.
III – QUESTÕES A DECIDIR
A única questão a decidir é a da constitucionalidade da verba 28.1 da TGIS quando considerada aplicável a uma situação de compropriedade de terreno para construção, quando o valor da quota-parte do sujeito passivo no valor patrimonial tributário do prédio sujeito seja inferior a um milhão de euros.
O Requerente, com efeito, não pugna por uma interpretação da verba 28.1 da TGIS de acordo com a qual, segundo as regras da interpretação das normas legais, não caberiam na sua previsão as situações de compropriedade em que à quota-parte do sujeito passivo corresponda um valor patrimonial tributário inferior a 1 000 000 de euros.
O Requerente sustenta, sim, que, numa interpretação da verba 28.1 conforme à Constituição, tais situações não podem ficar sujeitas à incidência do imposto por respeito ao princípio da igualdade e da capacidade contributiva.
IV – FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão:
1º: O Requerente era, ao tempo da propositura do pedido de pronúncia arbitral, comproprietário, com uma quota-parte de 50%, do prédio urbano com a classificação de terreno para construção correspondente ao artigo ... da União de Freguesias de ... e ..., do concelho de Aveiro;
2º: O valor patrimonial tributário do prédio foi determinado em 2013 em 1.314.002,31 euros;
3º: O Requerente foi notificado da liquidação de Imposto do Selo nº 2015..., referente ao prédio anteriormente mencionado, relativa ao ano de 2014, ao abrigo da verba 28.1 da TGIS, no valor de 6.570,01 euros;
4º: O Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado em três prestações;
5º O Requerente interpôs reclamação graciosa da liquidação em 5-8-2015, tendo esta reclamação graciosa sido objeto de indeferimento total expresso em 21-10-2015;
Os factos considerados provados foram-no com base nos documentos juntos ao processo.
Não existem factos dados como não provados com relevância para a decisão da causa.
V – FUNDAMENTAÇÃO
No acórdão acima citado que determinou a reforma da decisão arbitral anteriormente proferida neste processo, o Tribunal Constitucional fundamenta a sua decisão nos seguintes termos:
“(...) [I]ndependentemente da posição doutrinal que se subscreva quanto à natureza jurídica da compropriedade, a situação do titular de uma quota-parte também não pode ser equiparada à do proprietário exclusivo de um imóvel de valor equivalente à sua quota e inferior a um milhão de euros. Na verdade (...) a mera possibilidade que, em princípio, é reconhecida a cada consorte de usar a coisa comum na sua totalidade é suficiente para discernir uma expressão mais intensa da capacidade contributiva visada pelo legislador – a qual, como se referiu supra, assume neste imposto, tal como no IMI, uma especial configuração – do que aquela que ressaltaria da titularidade exclusiva de um direito de propriedade sobre um prédio urbano de valor inferior a um milhão de euros.
Neste caso, enquanto o consorte não exercer o direito potestativo que lhe assiste (salvo convenção em contrário) de exigir a divisão da coisa comum (nos termos do n.º 1 do art.º 1412º do CC), a sua posição não é rigorosamente idêntica à do proprietário exclusivo de um terreno para construção, ou de uma fração independente desse terreno, cujo valor seja inferior a um milhão de euros. Tal como se esclareceu no Acórdão n.º 378/3018:
‘(...) o que releva para efeitos de aplicação da norma da verba 28.1 é a situação jurídico-patrimonial existente à data do vencimento da obrigação do pagamento do imposto, sendo, pois, por referência ao facto tributário concreto existente nessa data que se deverá avaliar a existência, ou não, de um fundamento racional ou razoável para justificar as consequências jurídico-tributárias que dele imediatamente emergem.
As transformações juridicamente relevantes que o objeto da propriedade vier a sofrer no decurso do tempo, a partir desse momento (...) configuram hipóteses de configuração e conteúdo incerto, mesmo considerando a existência de um licenciamento nesses termos, que pode vir a ser alterado ou nem sequer utilizado. Não podem, por isso, relevar decisivamente na avaliação da constitucionalidade de normas, ou segmentos delas, que, em virtude da sua ocorrência, deixarão de ser aplicáveis.
O único dado certo que, no enquadramento legal aplicável, pode e deve ser ajuizado, no plano constitucional, é a titularidade, no momento do vencimento da obrigação tributária em causa, de direitos reais de gozo sobre um terreno para construção de valor patrimonial tributário igual ou superior a €1.000.000,00, cuja edificação, autorizada ou prevista, se destina a habitação.’
A utilidade económica adicional que os imóveis de especial valor patrimonial tributário podem, em princípio, proporcionar a cada consorte não deixa, pois, de ser equiparável às vantagens de que podem beneficiar os usufrutuários ou superficiários – sendo, todavia, certo que, ao contrário dos titulares exclusivos dos direitos de usufruto ou superfície sobre os prédios, os comproprietários só terão que suportar o encargo do imposto na proporção da respetiva quota.
Afigura-se, por essa razão, indício apto a justificar, à luz do princípio da capacidade contributiva, a exigência do imposto previsto nas verbas n.º 28 e 28.1 da TGIS aos comproprietários, ainda que estes sejam titulares de quotas avaliadas em valor inferior a um milhão de euros, evitando-se, assim, além do mais, que a compropriedade receba um tratamento distinto – ou até injustificadamente distinto – daquele que é reservado a outros tipos de comunhão ou contitularidade de direitos reais, ou que, por razões de (im)praticabilidade, se dê azo a interpretações geradoras de relativa injustiça.
12. A situação jurídica de compropriedade – importa observá-lo por último – encontra tratamento específico em dois artigos do CIMI.
Trata-se, em primeiro lugar, do artigo 82.º, no qual, sob a epígrafe ‘inscrição de prédio em regime de compropriedade’, se prescreve o seguinte:
‘1. A compropriedade deve inscrever-se em nome de todos os comproprietários, com indicação da parte que caiba a cada um e das correspondentes frações de valor patrimonial tributário, sem prejuízo do disposto no artigo 92.º quanto à propriedade horizontal.
2. Quando não seja conhecida a parte que caiba a cada um dos comproprietários, o prédio é inscrito em nome de todos eles, por ordem alfabética.’
Para além disso, o CIMI atribui certos efeitos à compropriedade para efeitos da isenção prevista no respetivo artigo 11.º-A.
Assim:
Artigo 11.º-A
Prédios de reduzido valor patrimonial de sujeitos passivos de baixos rendimentos
1 - Ficam isentos de imposto municipal sobre imóveis os prédios rústicos e o prédio ou parte de prédio urbano destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, e que seja efetivamente afeto a tal fim, desde que o rendimento bruto total do agregado familiar não seja superior a 2,3 vezes o valor anual do IAS e o valor patrimonial tributário global da totalidade dos prédios rústicos e urbanos pertencentes ao agregado familiar não exceda 10 vezes o valor anual do IAS.
2 –
7 - Em caso de compropriedade, o valor patrimonial tributário global a que alude o n.º 1 é o que, proporcionalmente, corresponder à quota do sujeito passivo e dos restantes membros do seu agregado familiar.
Conforme resulta do art.º 82.º do CIMI, em conjugação com o respetivo artigo 113.º, no caso de contitularidade de bens tributáveis, apenas é exigida a cada contitular a parte correspondente à sua fração, tal como se encontrar inscrita na matriz em 31 de dezembro do ano a que o mesmo respeita.
Embora se estabeleça a possibilidade de tributar autonomamente os comproprietários (por constarem da matriz as frações que a cada um correspondem), a situação de compropriedade não tem qualquer efeito nem sobre o ‘valor patrimonial tributário’ do prédio – a taxa incidirá sobre o valor do prédio unitariamente considerado – nem sobre a coleta: do encargo do imposto participam todos os comproprietários, nos termos gerais, na proporção da respetiva quota (cf. o artigo 1405.º, n.º 1, e 1411.º do CC).
A única circunstância em que o CIMI impõe que seja ponderado o valor das quotas detidas na compropriedade, em lugar do ‘valor patrimonial tributário’ dos prédios, é quando em causa está a determinação do valor global do património imobiliário dos sujeitos passivos para efeitos da isenção prevista no nº 7 do artigo 11.º-A do CIMI.
Todavia, do que se trata aqui é da avaliação de todo o património imobiliário, não apenas dos ‘sujeitos passivos de baixos rendimentos’, como também ‘dos restantes membros do seu agregado familiar’, sendo a isenção concedida quando – e somente quando – o valor desse património seja inferior a dez vezes o valor anual do indexante dos apoios sociais (IAS) e o rendimento bruto total do agregado familiar não seja superior a 2,3 vezes o valor anual daquele indexante. Do que não parece possível extrair a conclusão de que, à luz do CIMI, sempre que os sujeitos passivos sejam comproprietários, o valor patrimonial tributário relevante é o valor atribuível a cada fração do prédio – como se a compropriedade, para este efeito, equivalesse a uma pluralidade de direitos de propriedade exclusivos sobre quotas reais do prédio.
Também por aqui se afasta, assim, a possibilidade de considerar que a dimensão normativa aqui sindicada ‘se mostr[a] desprovida de fundamento racional [ou] exced[e] a margem de conformação do legislador democrático no domínio fiscal, de acordo com o escopo, estrutura e natureza da norma em causa, que visa a tributação, para além de prédios com afetação habitacional de valor elevado, da propriedade de terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a €1.000.000,00’ (Acórdão n.º 605/2018).
Reafirmando a posição assumida por este Tribunal no Acórdão n.º 378/2018, cumpre, em suma, concluir que não merece censura, em face do princípio da igualdade tributária, consagrado no n.º 3 do artigo 104.º da Constituição, a norma extraída da verba n.º 28.1 da TGIS, que permite que o imposto aí previsto seja exigido ao comproprietário de um terreno para construção, cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a um milhão de euros, ainda que a quota-parte de que é titular não atinja esse valor.
O recurso deverá, pois, ser julgado procedente.”
São estes os fundamentos em que deve assentar a decisão do litígio em causa.
VII - DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
1. Julgar inteiramente improcedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação do Imposto do Selo impugnada;
2. Julgar inteiramente improcedente o pedido de declaração da ilegalidade, pelos mesmos fundamentos, do ato de indeferimento da reclamação graciosa interposta daquele ato de liquidação;
3. Em consequência, absolver a Requerida AT – Autoridade Tributária e Aduaneira do pedido de reembolso do montante pago referente à liquidação anulada.
Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 6.570,01 euros.
Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo do Requerente.
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às Partes.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 22 de agosto de 2019
O Árbitro
(Nina Teresa Sousa Santos Aguiar)