Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 155/2016-T
Data da decisão: 2016-08-24  IRS  
Valor do pedido: € 1.482.122,00
Tema: IRS - Obrigações acessórias; artigo 116º do CIRS; princípio do inquisitório.
Versão em PDF

Decisão Arbitral

 

Requerente: A…

Requerida:   AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

 

I-RELATÓRIO

 

1. A… (doravante designado por Requerente), contribuinte fiscal nº … com domicilio fiscal na Rua…, nº... ..., … em…, …-… Amora, apresentou em  15 de Março de 2016, pedido de constituição de tribunal arbitral ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 2º e artigo 10º, nºs 1 e 2, ambos do Decreto Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante referido por RJAT), e dos artigos 1º, e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT ou Requerida), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação adicional de IRS nº 2015…,  no valor total de 14.821,11 € referente ao ano de 2012.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 16 de Março de 2016 e, de imediato, notificado à Requerida nos termos legais.

 

3. Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º do RJAT, por decisão do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, devidamente notificado às partes, nos prazos previstos, foi designado como árbitro o subscritor, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo estipulado no artigo 4º do Código Deontológico do Centro de Arbitragem Tributária.

 

4. O Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 25 de Maio de 2016, em consonância com a prescrição da alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro.

 

5. Foi proferido despacho arbitral em 30 de Junho de 2016, devidamente notificado às partes, que fundamentou a dispensa da realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, a inquirição de testemunhas arroladas pelo Requerente e concedeu àquelas a faculdade de apresentarem alegações escritas.

 

6. Em seis de Junho de dois mil e dezasseis, o Requerente procedeu à apresentação de alegações escritas onde fundamentalmente reitera e defende a posição que havia já evidenciado no seu articulado inicial.

 

7. A fundamentar o seu pedido, o Requerente alegou, em brevíssima síntese, e com relevo para o que aqui importa, o seguinte;

 

(i) que cumpriu com as obrigações acessórias decorrentes da alínea b) do nº 1 do artigo 116º do CIRS, nomeadamente de registo das importâncias respeitantes a despesas efectuadas em nome e por conta do seu cliente,

 

(ii) manifestando a sua discordância com a posição da AT em sede de relatório inspectivo quanto à necessidade de apresentação/justificação dos comprovativos de tais despesas,

 

(iii) que a interpretação da AT relativamente à necessidade de documentação/comprovação de recebimento das despesas ocorridas em nome e por conta do seu cliente é errónea “por não ter correspondência na letra da lei como também pela ausência de racionalidade legislativa e coerência sistemática”, 

 

(iv) pugnando ter cumprido a obrigação acessória prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 116º do CIRE, reiterando a desnecessidade de documentação/justificação das importâncias recebidas a título de reembolso de despesas efectuadas em nome de terceiros.

 

(vi) que a exigência de documentação a que alude a parte final do normativo em causa se basta com os recibos “emitidos em forma legal onde expressamente se evidencie tratar-se de quantias recebidas para reembolso de despesas”,

 

(v) tecendo ainda no seu articulado considerações sobre o artigo 120º, nº 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, sobre o artigo 6º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, e artigo 75º nº1 da Lei Geral Tributária,

 

(vi) culminando ainda o seu pedido de constituição de tribunal arbitral com considerações acerca da aplicabilidade do artigo 100º, nº 1 do Código do Procedimento e do Processo Tributário.

 

8. A AT, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta, sustentando perspectiva contrária à apresentada pelo Requerente, e dela dissentindo, em consonância com a posição por si já assumida em sede de Relatório de Inspecção Tributária, e que se reconduz, igualmente em breve síntese, à interpretação a que procede, relativamente à parte final da alínea b) do nº 1 do artigo 116º do CIRS, no sentido da necessidade da documentação/apresentação dos documentos comprovativos das importâncias/reembolsos recebidos a título de adiantamento por conta e em nome do cliente, em ordem ao cumprimento do desiderato previsto na parte final do indicado normativo legal - “quando devidamente documentadas”-  sob pena de tais recebimentos virem a considerar-se honorários e consequentemente tributados em sede de IRS e de IVA.

 

 

9. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2º, nº 1, alínea c), 5º e 6º nº 1 do RJAT.

 

10. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigo 3º,6º e 15º do CPPT ex vi do artigo 29º, nº 1, alínea a) do RJAT.

 

11. O processo não enferma de nulidades, e não foram invocadas quaisquer excepções.

 

12. Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

II-FUNDAMENTAÇÃO

 

A- MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados:

 

i. O Requerente iniciou a sua actividade de “PERITO AVALIADOR” a que corresponde o código … da Tabela de Actividades do artigo 155º do CIRS, em 1998-01-01, tendo cessado a actividade em IVA e IRS, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 34º do CIVA e da alínea a) do nº 1 do artigo 114º do CIRS respectivamente, em 2012-09-21,

 

ii. O Requerente é um sujeito passivo singular, sujeito a imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, face ao disposto no artigo 1º nº 1 do CIRS, tributado pelo conjunto de rendimento das várias categorias de IRS, conforme dispõe o artigo 22º do CIRS,

 

iii. Enquadrado, pelos rendimentos da sua actividade profissional, na categoria B – Rendimentos Profissionais – artigo 3º, nº 1, b) do CIRS,

 

iv. O apuramento do rendimento do Requerente era feito nos termos do artigo 31º do CIRS – regime simplificado.

 

v. Com referência aos anos de 2011 e 2012 o Requerente procedeu à entrega das respectivas declarações de rendimentos (modelo 3), tendo declarado no anexo B, os seguinte valores:

 

“Outras prestações de serviços e outros rendimentos (inclui mais valias)”:

2011 – 14.278,38 €

2012 -   9.663,33 €,

 

vi. No ano de 2012 o Requerente optou pela tributação dos rendimentos auferidos na categoria B segundo as regras estabelecidas para a categoria A.

 

vii. O Requerente, com referência ao ano de 2012, emitiu recibos verdes electrónicos das recebidas do B… quer a título de prestação de serviços quer de importâncias recebidas a título de adiantamento para pagamento de despesas por conta e em nome do cliente,

 

viii. A AT detectou divergências entre o valor da prestação de serviços declarado no Anexo B (9.663.33 €) e o valor total dos recibos verdes electrónicos emitidos referente ao ano de 2012 donde resulta um montante de 47.250,85 relativamente a despesas por conta e em nome do cliente,

 

ix. O Requerente foi alvo de um procedimento inspectivo de natureza externa, ao abrigo das ordens de serviços nºs 0I2015… e 0I2011… de 2015-06-12, emitidas pelo Serviço de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de … que decorreu no período compreendido entre 2015-09-29 e 2015-11-23.

 

x. Do sistema informático da AT verifica-se que o valor dos recibos emitidos pelo Requerente, com respeito ao ano de 2012, ascendem a 56.914,18 €, sendo 9.663,33 € respeitantes a prestação de serviços e 47.250,85€ a “adiantamento para despesas por conta e em nome do cliente” (valor este com IVA),

 

xi. Em 28 de Outubro de 2015, o Requerente foi notificado para no prazo de oito dias apresentar os documentos comprovativos/justificativos das despesas pagas por conta e em nome do seu cliente B…, respeitante às facturas – recibos verdes emitidos nos anos de 2011 e 2012,

 

xii. O Requerente não apresentou os comprovativos alvo da notificação supra referida,

 

xiii. O requerente dirigiu ao B… comunicação datada de 30 de Setembro de 2015, solicitando a esta entidade os comprovativos/justificativos das despesas alegadamente ocorridas por sua conta e em seu nome, durante os anos de 2011 e 2012,

 

xiv. O Requerente através do ofício nº … da Direcção de Finanças de…, foi notificado em vinte de Novembro de dois mil e quinze, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 60º da Lei Geral Tributária e artigo 60º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributário, não tendo exercido o seu direito de audição.

 

xv. O Requerente foi notificado da correcção oficiosa da declaração de IRS e do acto de liquidação com referência ao ano de 2012,

 

xvi. Em 15 de Março de 2016, o Requerente apresentou junto do CAAD o presente pedido de constituição de tribunal arbitral.

 

 

A.2. Factos dados como não provados.

 

Com relevo para a decisão inexistem factos que devam considerar-se como não provados.

 

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto dada como provada e não provada.

 

Relativamente à matéria de facto o tribunal não tem que pronunciar-se sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão, de discriminar a matéria provada da não provada [(cfr. art. 123º, nº 2 do CPPT, e artigo 607º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT)].

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da (s) questão (ões) de direito. (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável, ex vi do artigo 29º, nº 1 do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autos e o PA anexo, consideram-se provados com relevo para a decisão os factos supra elencados.

 

B- DO DIREITO

 

Do carácter complexo da relação jurídico tributária emergem para o sujeito passivo para além do dever jurídico da prestação tributária, traduzido no dever de pagar o tributo, outras obrigações de carácter e natureza diferenciada que geral e convencionalmente se designam por “obrigações acessórias”.

O artigo 31º da Lei Geral Tributária enuncia genericamente sob o nº 2 que; “são obrigações acessórias do sujeito passivo as que viam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações.”

A definição das obrigações acessórias está sujeita ao princípio da legalidade tributária, como claramente decorre da alínea c) do nº 1 do artigo 8º da Lei Geral Tributária, determinando, para além do mais que a “a acessoriedade impõe igualmente que não possam ser exigidos do sujeito passivo deveres que não visem o apuramento da sua situação tributária ou o controlo da situação tributária de terceiros com quem mantenha relações económicas, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade. Os deveres acessórios dos contribuintes estão sujeitos ao princípio da legalidade material, nos termos do artigo 8º, número 2, alínea c) da presente lei, não podendo, assim, o Fisco exigir dos contribuintes obrigações não previstas em lei expressa.” [1]

Por seu turno, a generalidade dos códigos tributários, densifica em capítulos próprios tais “obrigações acessórias” ou obrigações acessórias e fiscalização”, de que são expressão, por exemplo, os artigos 117º a 132º insertos no Capitulo VIII do Código do Imposto Sobre as Pessoas Colectivas e os artigos 29º a 52º da Secção III do Capítulo V do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado.

No que respeita ao Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, os artigos 112º a 131º enumeram um conjunto de obrigações de carácter declarativo, contabilísticas, de escrituração e de documentação.

 

Determina o artigo 116º do CIRS para os titulares de rendimento da categoria “B”, quando não possuam contabilidade organizada, a obrigação de:

 

(i) escriturar os livros a que se referem as alíneas a) b) e c) do nº 1 do artigo 50º do Código do IVA, [2] no caso de não possuírem contabilidade organizada – alínea a) do nº 1 do artigo 116º do CIRS,

 

(ii) a evidenciar em separado no respectivo livro de registo as importâncias respeitantes a reembolsos de despesas efectuadas em nome e por conta do cliente, as quais quando devidamente documentadas, não influenciem a determinação do rendimento, quando não possuam contabilidade organizada – alínea b) do nº 1 do artigo 116º do CIRS.

 

No que concerne às obrigações acessórias de escrituração/lançamento, para além das regras previstas nas alíneas a) e b) do nº 4, a alínea c) do artigo 116º, quer ao tempo da ocorrência dos factos, quer actualmente [3], determina que “os lançamentos devem ser suportados por documentos”.

 

O Requerente em defesa da tese que sustenta o seu pedido de constituição de tribunal arbitral insurgindo-se quanto à interpretação produzida pela AT, desde logo em sede de Relatório da Inspecção Tributária, procede a uma interpretação da alínea b) do nº 1 do artigo 116º do CIRS que essencialmente se estriba na desnecessidade de documentação/apresentação de tais despesas para cumprimento do desiderato previsto na última parte do dispositivo em causa, e que tal exigência de documentação se basta com os recibos “emitidos em forma legal onde expressamente se evidencie tratar-se de quantias recebidas para reembolso de despesas”,

 

Com todo o devido respeito por contrária opinião, afigura-se que a exigência contida no normativo em causa (para além do seu obvio registo) é a documentação/justificação de tais despesas, e não apenas a emissão dos recibos às mesmas respeitantes de forma adequada com a indicação expressa e sinalização em local para tanto assinalado (quadrícula do recibo) que as mesmas foram efectuadas a título de “adiantamento para pagamento de despesas por conta e em nome do cliente”.

A obrigação de emissão decorre já da previsão da alínea a) do nº 1 do artigo 115º onde se estipula para os titulares de rendimentos da categoria B a da passagem/emissão de “recibo, em modelo oficial de todas as importâncias recebidas dos seus clientes, pelas prestações de serviços referidas na alínea b) do nº 1 do artigo 3º, ainda que a titulo de provisão, adiantamento ou reembolso de despesas […]”

 

 

*****

 

O Requerente convoca o artigo 75º, nº 1 da Lei Geral Tributária, com referência à declaração emitida pelo B… em cumprimento do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 119º do CIRS (documento nº 6 junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral) para concluir que tal declaração goza da presunção de veracidade face ao artigo 75º, nº 1 da LGT.

Ora, a declaração em causa, traduz o “Montante Anual de Rendimentos Pagos e Sujeitos a IRS e Imposto Retido”, com referência ao ano de 2012, em nada contribuindo para a questão subjacente aos presentes autos, qual seja a justificação/documentação das despesas ocorridas pelo Requerente em “nome e por conta do cliente”.

Por outro lado, há que ter em consideração que se efectivamente a presunção de veracidade das declarações dos contribuintes, depende do facto da contabilidade ou escrita estarem “organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal”, a mesma já não se verifica quando “as declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo”, conforme dispõe o nº  2 do artigo 75º da Lei Geral Tributária.

Se a presunção referida no nº 1 do artigo 75º da Lei Geral Tributária não é absoluta cessando perante a verificação das circunstâncias previstas no seu nº 2, no caso dos presentes, afigura-se-nos que a declaração de rendimentos do Requerente não se encontra “organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal”, pela inexistência da documentação/justificação das despesas de acordo com a alínea b) do nº 1 do artigo 116º do CIRS.

 

 

******

 

Do princípio do inquisitório

Da alegada violação do princípio da verdade material.

 

-O princípio do inquisitório, da investigação ou da oficialidade impõe de conformidade à estatuição do artigo 58º da LGT que: “a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”.

Conferindo-se ainda do artigo 6º do RCIPT que “o procedimento da inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adoptar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo”

 

- A “justificação do princípio do inquisitório justifica-se pela obrigação de prossecução do interesse público imposto à actividade da administração tributária (arts. 266º, nº 1, da CRP e 55º da LGT) e é corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actividade (art.266º, nº 2, da CRP e 55º da LGT).

No domínio procedimental, esta obrigação impõe que a administração tributária não aguarde pela iniciativa do interessado que formulou o pedido que deu origem ao procedimento, devendo ela própria tomar a iniciativa de realizar as diligências que se afiguram como relevantes para correcta averiguação da realidade factual em que deve assentar a sua decisão.

Por outro lado, aquele dever de imparcialidade, reclama que a administração tributária procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja prova seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração.”

[…]” No entanto, a falta de realização pela administração tributária de diligências que lhe seja possível levar a cabo ou a falta de solicitação aos interessados de elementos probatórios necessários à instrução do procedimento, constitui vício deste susceptível de implicar a anulação da decisão nele tomada”.[4]

 

- Em sentido idêntico ao acabado da evidenciar e desta feita convocando-se Rui Duarte Morais, [5]  “a administração fiscal, ao criar a base factual da sua decisão, tem que investigar todos os factos de que tenha notícia (nomeadamente através do interessado), quando se mostrem suscetíveis de permitir um melhor esclarecimento da situação (mesmo tratando-se de factos que, a serem comprovados, resultarão favoráveis ao contribuinte) […] Tal obrigação de investigação por parte da administração impor-se-á de sobremaneira quando o sujeito passivo não tenha a possibilidade de, ele  mesmo, realizar tal produção de prova”.

 

- Continuando ainda o reconhecido autor (local e obra citados):

 

“Assim, a falta de realização pela administração tributária da diligência que lhe seja possível levar a cabo ou a falta de solicitação aos interessados de elementos probatórios necessários à instrução do procedimento constitui vício deste, suscetível de implicar a anulação da decisão nele tomada”.

 

Interpretação em igual sentido poderá recolher-se da anotação ao artigo 58º da LGT, a que procede Lima Guerreiro [6];

 “A não averiguação dos elementos necessários à descoberta da verdade material, com a consequente violação do princípio do inquisitório, é fundamento de ilegalidade do acto tributário ou em matéria tributária.”

 

*****

 

Revertendo ao caso dos autos, constata-se que na verdade, e como decorre do processo administrativo anexo e do documento nº 4, junto pelo Requerente com o seu pedido de constituição de tribunal arbitral, a AT notificou o Requerente, em vinte e oito de Outubro de dois mil e quinze, para apresentar “no prazo de oito (8) dias, a contar desta data, os documentos comprovativos/justificativos das despesas pagas por conta e em nome do cliente, das quais foram emitidos recibos verdes electrónicos (factura -recibo) dos anos de 2011 e 2012”.

Sendo que em data anterior - trinta de Setembro de dois mil e quinze – o Requerente havia dirigido comunicação ao “B…”, solicitando “comprovativos e justificativos documentais que constam do vosso suporte contabilístico e de pagamento pela vossa tesouraria de valores em meu nome referentes a débito de despesas e encargos com o exercício profissional ao vosso banco “[(destaque e sublinhado no original) cfr. documento nº 5 junto com o pedido de constituição de tribunal arbitral e processo administrativo anexo)].

Ouvido o Requerente em declarações no âmbito do procedimento inspectivo, em cinco de Novembro de dois mil e quinze, declarou que: (cfr. processo administrativo –anexo 3)

“Apesar do esforço no sentido de conseguir obter os documentos/meios de prova referentes aos montantes recebidos como adiantamento das despesas pagas por conta e em nome do cliente, B…, até à presente data não foi possível obtê-los.

No entanto aguarda-se a obtenção dos mesmos, que na altura faremos chegar aos serviços da Autoridade Tributária.

E mais não declarou.”.

 

Isto posto ;

 

Atenta a circunstância factual evidenciada, a posição das partes, o acervo documental junto aos autos, e o processo administrativo anexo, a questão a dirimir é a de saber-se se a AT estaria obrigada em observância ao principio do inquisitório e da descoberta da verdade material, a solicitar ao B…, os comprovativos das despesas alegadamente ocorridas pelo Requerente em nome daquele, e consubstanciadas nas facturas – recibos electrónicos por este emitidos e documentados no processo administrativo anexo.

 

A nosso ver, perante a circunstância de o Requerente não ter logrado obter resposta à comunicação dirigida ao B… no sentido de esta entidade lhe fornecer a documentação justificativa das despesas aqui em causa, a que acresce o conhecimento da AT, quer de tal pedido quer da sua não satisfação pela entidade em questão imporia tal averiguação por parte desta.

 

Como infra melhor se verá, a omissão da AT no que concerne à notificação do B… para documentar as despesas/reembolsos controvertidos desrespeitou o princípio da verdade material, violando o princípio do inquisitório que devem estar subjacentes na actuação da administração tributária.

 

Neste particular, subscreve-se o decidido no âmbito do processo 90/2014-T de 26 de Setembro de 2014 sob a égide de CAAD [7], no segmento em que é afirmado:

 

“[…] a AT não realizou no procedimento todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, tendo violado o art.58º da Lei Geral Tributária, o que constitui fundamento de ilegalidade do ato tributário […]”

 

Adicionalmente:

 

A situação factual sub judice, não diverge significativamente, na sua essencialidade, da que foi alvo de decisão pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 21 de Outubro de 2009, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Lúcio Barbosa,[8] no âmbito do processo nº 0583/09, onde “numa situação em que o contribuinte não dispunha da documentação comprovativa da realização de determinados gastos mas apenas de cópia dos cheques que titularam o respectivo pagamento – entendeu que era obrigação da administração fiscal proceder a uma inspecção da escrita do beneficiário desses cheques, em ordem a apurar a prova e a causa desses pagamentos, pois que tal possibilidade estava de todo vedada à recorrente, sendo que a realização de tais diligência não constituiria um ónus excessivo para a administração”.

 

Retirando-se ainda no aresto em causa que:

 

“O princípio do inquisitório situa-se a montante do ónus de prova”

 

Em igual sentido o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Sul de 06/08/2013, proferido no âmbito do processo nº 06883/13, relatado pelo Exmo. Senhor Desembargador Joaquim Condesso:

 

“(…) 13. O princípio do inquisitório, está consagrado no âmbito do procedimento gracioso tributário, no art. 58º da L.G. Tributária, de acordo com o qual devendo a A. Tributária proceder às diligências que considere convenientes para a descoberta da verdade material. O princípio do inquisitório justifica-se pela obrigação de prossecução do interesse público imposta à actividade da Administração Tributária (artº 266, nº 1 da C.R.P. e artº 55º da L.G.T.) e é corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actividade (artº 266º, nº 2 da C.R.P. e artº 55º da L.G.T.). Este dever de imparcialidade, reclama que a Fazenda Pública procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesma que elas tenham em vista demonstrar factos cuja prova seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração. Concluindo, este princípio, obriga a administração tributária a realizar todas as diligências que se afigurem necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material. Quer isto dizer, que todas as diligências devem ser efectuadas ainda que não tenham sido requeridas, não dependendo por isso de um qualquer impulso processual do sujeito passivo”

 

“14. O princípio da verdade material está consagrado no artº 6º do R.C.P.I.T. e impõe que a Administração Tributária, no âmbito do procedimento de inspecção procure recolher os elementos probatórios que possibilitem mais tarde fundamentar o acto tributário que venha a ser praticado. Trata-se de investigar e apurar o correcto cumprimento das obrigações fiscais pelos sujeitos passivos, e, com base nessa investigação, recolher elementos que permita, apurar a eventual existência de irregularidades. Concluindo, o princípio da verdade material fixa aquele que deve ser o objectivo do procedimento inspectivo – a descoberta da verdade material. Este princípio é uma concretização do examinado princípio do inquisitório (enunciado no artº 58º da L.G.T. como princípio geral do procedimento tributário) sendo postulado pela natureza pública e indisponível da relação jurídico – tributária, assim abrangendo, por isso, os seus elementos de facto.”

 

Com todo o respeito por contrária opinião, afigura-se-nos que para além de legalmente exigível face ao princípio da verdade material, teria sido prudente e aconselhável, desde logo e também, em observância ao principio da imparcialidade da AT (artigo 55º da LGT) que esta tivesse procedido à notificação junto do B… com vista à obtenção dos comprovativos/justificativos das despesas alegadamente ocorridas em nome e por conta de outrem que, de resto, estavam quantificadas, datadas e devidamente identificadas nos recibos emitidos pelo Requerente.

 

A não averiguação dos elementos necessários à descoberta da verdade material, consubstanciada in casu na omissão de notificação ao B… no sentido de este apresentar os comprovativos/ justificativos das despesas ocorridas pelo Requerente alegadamente em nome e por conta daquela instituição bancária, no âmbito do seu desempenho profissional, constitui fundamento de ilegalidade do acto tributário aqui posto em causa.

 

 Concluindo-se sem necessidade de quaisquer outras considerações;

 

“A violação do princípio da verdade material, na dimensão do princípio do inquisitório, traduzido na recusa por parte da Administração tributária de praticar diligências requeridas pela pessoa ou entidade inspeccionada ou abstenção de praticar diligências que tinha a obrigação de realizar e do qual resulte frustração do dever de apuramento da verdade material, constitui um vício procedimental susceptível de determinar a anulação do acto tributário final”. [9]

 

 

III-DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral Singular em:

 

a. julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência anular o acto tributário objecto dos presentes autos, consubstanciado na liquidação adicional de IRS nº 2015… no valor total de 14.821,22 €, respeitante ao ano de 2012,

 

b. condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

 

IV-VALOR DO PROCESSO

 

De conformidade com o estatuído no artigo 296º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 47/2013, de 26 de Junho, 97º- A) nº 1, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 14.821.22 €.  

 

 

V-CUSTAS

 

Nos termos do disposto nos artigo 12º, nº2, 22º, nº 4 do RJAT, e artigos 2º e 4º do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária, e Tabela I a este anexo, fixa-se o montante das custas em 918,00 €, a cargo da Requerida.

 

NOTIFIQUE-SE

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no artigo 131º do Código de Processo Civil aplicável por remissão do artigo 29º, nº 1, alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem, com versos em branco, e revisto pelo árbitro.

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 

 

 

Lisboa, vinte e quatro de Agosto de dois mil e dezasseis

 

 

O árbitro

 

 

 

(José Coutinho Pires)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, p. 164.

[2] A alínea a) do artigo em causa faz menção ao “livro de registo de compras de mercadorias e ou livro de registo de matérias primas e de consumo, a alínea b) reporta-se ao “livro de registo de venda de mercadorias e ou livro de produtos fabricados, e a alínea c) refere-se ao “livro de registo de serviços prestados”.

[3] Redacção da Lei 82-E/2014, de 31 de Dezembro.

[4] Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues, Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição, 2012, Lisboa, Encontro da Escrita, 2012, p. 488.

[5] Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 254-257.

[6] Lei Geral Tributária Anotada, Lisboa, Editora Rei dos Livros, p. 266.

[7] Consultável em www.caad.org.pt

[8] Apud Rui Duarte Morais, obra e local citados.

[9] Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, Anotado e Comentado, Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira, Coimbra Editora, Maio 2013, p.49.