Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
1.1. A… – …, S.A., com sede na Avenida …, n.º … – …, … – … …, com o capital social de € 1.550.000,00, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o número único de matrícula e de identificação fiscal … (doravante «Requerente»), na qualidade de sociedade gestora do fundo de investimento imobiliário «B… – …» registado junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, com o número de identificação fiscal … (doravante «Fundo B…»), apresentou um pedido de pronúncia arbitral e de constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto no artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 janeiro [Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT)], em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “Requerida”).
1.2. A Requerente pretende que o Tribunal Arbitral Singular declare a nulidade da liquidação de Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (IMT) identificada pelo documento com o n.º …, no montante de €874,90, e da liquidação de Impostos do Selo (IS), identificada pelo documento com o n.º …, no montante de €699,92, ambas referentes ao Prédio sito em Rua …, n.º …, …, …, Bloco …, …., inscrito na matriz predial urbana n.º …, fracção “…”, da União das Freguesias de ... (… e …), em ambos os casos com base na sua inconstitucionalidade, ou, subsidiariamente, caso assim não o entenda o Tribunal, serem anuladas as referidas liquidações, e condene a Requerida a reembolsar a Requerente pela totalidade do montante pago por força das liquidações objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, acrescido, nos termos do artigo 43.º (Pagamento indevido da prestação tributária) da Lei Geral Tributária, dos juros indemnizatórios que sejam devidos até à data desse reembolso.
1.3. Pretende ainda a Requerente que o Tribunal Arbitral afira se o artigo 236.º (Norma Transitória no âmbito do Regime Especial Aplicável aos FIIAH e SIIAH) previsto pela Lei n.º 83 – C/2013, de 31 de Dezembro - na medida em que determina a aplicação do actual Regime Tributário dos FIIAH «aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de Janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de Janeiro de 2014» - consubstancia um novo regime de caducidade das isenções previstas no n.º 7, alínea a) e n.º 8 do artigo 8.º (Regime Tributário) do Regime Tributário dos FIIAH, revelando uma violação flagrante e inequívoca do princípio da não retroactividade da lei fiscal, plasmado no artigo 103.º (Sistema fiscal), número 3, da Constituição da República Portuguesa.
1.4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite, pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e de imediato notificado à Requerida, em 17 de fevereiro de 2016.
1.4. Dado que a Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, foram os signatários designados como árbitros, pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e termos legalmente previstos.
1.5. Em 12 de abril de 2016, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos do disposto no artigo 11.º, nº 1, alíneas a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
1.6. Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 29 de abril de 2016.
1.7. No Requerimento Arbitral, por si oferecido, a Requerente invocou, em síntese:
a) O número 14 do artigo 8.º (Regime tributário) do Regime Tributário dos FIIAH concretizou de forma inequívoca, e pela primeira vez, o significado da expressão «prédios urbanos [são] destinados ao arrendamento para habitação permanente»;
b) Na referida disposição legal, consagrou-se que, para efeitos do Regime Tributário dos FIIAH, que «prédios urbanos [---] destinados ao arrendamento para habitação permanente» são os prédios urbanos [e fracções autónomas] «que sejam objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo».
c) A introdução desta definição de «prédios urbanos [---] destinados ao arrendamento para habitação permanente» foi acompanhada da concretização das circunstâncias em que os prédios que integrem o activo dos FIIAH deixam de beneficiar do regime de isenções previsto nos números 6 a 8 do Regime Tributário dos FIIAH (um regime de caducidade das isenções).
d) Assim, caso os prédios que integram o património dos FIIAH não tenham sido objecto de contrato de arrendamento no prazo de 3 (três) anos, contado a partir da data do seu ingresso naquele património, o sujeito passivo deverá solicitar à Autoridade Tributária, nos 30 (trinta) dias subsequentes ao termo do referido prazo a liquidação do imposto respectivo.
e) Também assim deverá o sujeito passivo proceder no caso de: (i) os prédios serem alienados pelo FIIAH ou (ii) o FIIAH ser liquidado, em ambos os casos, antes de decorrido o prazo de 3 (três) anos, contado a partir da data da entrada dos prédios relevantes no património do FIIAH.
f) Por fim, o artigo 236.º (Norma transitória no âmbito do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH) da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014), veio estender a aplicação do regime supra «aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014».
g) As alterações introduzidas pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014) ao Regime Tributário dos FIIAH suscitam legítimas perplexidades e interrogações às sociedades gestoras dos FIIAH que pretendem cumprir as suas obrigações perante a Autoridade Tributária.
h) Não esgotando as questões suscitadas, entende-se que as alterações ao Regime Tributário dos FIIAH assumem particular relevância no quadro dos impostos de obrigação única, in casu, o IMT e o IS quando tenham por objecto os prédios que integravam o património dos FIIAH à data de entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014), ou seja, os abrangidos pelo acima referido artigo 236.º (Norma transitória no âmbito do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH).
i) A Requerente solicitou à Autoridade Tributária a liquidação de IMT e de IS de actos tributários face às alterações introduzidas no Regime Tributário dos FIIAH.
j) Esses actos tributários referiam-se a prédios urbanos que integravam o património do Fundo B…, à data de entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014), ou seja, os abrangidos pelo acima referido artigo 236.º (Norma transitória no âmbito do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH).
k) A Requerente entende, pelas razões que a seguir explanadas, que as Liquidações enfermam de ilegalidade por violação do disposto no artigo 103.º (Sistema fiscal), número 3, da Constituição da República Portuguesa e devem, consequentemente, ser declaradas nulas.
l) O IMT é um imposto de obrigação única.
m) Também o IS, quando tributa a «aquisição onerosa ou por doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis, bem como a resolução, invalidade ou extinção, por mútuo consenso, dos respectivos contratos - sobre o valor» (Cf. Verba 1.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo), é um imposto de obrigação única.
n) Esta qualificação é aqui relevante na medida em que as isenções de IMT e de IS, constantes, respectivamente, dos números 7, alínea a), e 8 do artigo 8.º (Regime tributário) do Regime Tributário dos FIIAH, foram reconhecidas a requerimento do Fundo B…, nos termos do artigo 10.º (Reconhecimento das isenções) do Código do IMT, em momento anterior ao do ingresso dos prédios relevantes no património do Fundo B….
o) Ou seja, no momento em que os prédios – objecto das Liquidações – ingressaram no património do Fundo B…, ficaram definitivamente cristalizadas na ordem jurídico-tributária as isenções de IMT e IS previstas, respectivamente, nos números 7, alínea a), e 8 do artigo 8.º (Regime tributário) do Regime Tributário dos FIIAH.
p) Efectivamente, o facto objecto de tributação é, quer em sede de IMT quer em sede de IS, a aquisição da propriedade dos prédios relevantes pelo Fundo B…. E, as isenções de IMT e IS não eram, à data em que ingressaram no património do Fundo B…, condicionadas à verificação ulterior de quaisquer factos ou circunstâncias nem, tampouco, sujeitas a qualquer regime de caducidade.
q) Nada obsta a que o legislador opte pela modificação do Regime Tributário dos FIIAH mediante a imposição de determinadas condições de que cuja verificação (ou não verificação) depende a caducidade das mesmas – como ora nos parece suceder. É esse, de resto e inter alia, o regime previsto para a isenção pela aquisição de prédios para revenda (cf. artigos 7.º (Isenção pela aquisição de prédios para revenda) e 11.º (Caducidade das isenções), número 5, ambos do Código do IMT).
r) Não estando, contudo, legalmente previstos, no momento do reconhecimento da isenção, quaisquer factos ou circunstâncias de que dependia a caducidade da isenção reconhecida, é manifesto que a imposição superveniente desses factos ou circunstâncias a isenções cristalizadas na ordem jurídico-tributária da Requerente enferma de inconstitucionalidade, por violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal, consagrado no artigo 103.º (Sistema fiscal), número 3, da Constituição da República Portuguesa.
s) O artigo 236.º (Norma transitória no âmbito do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH) da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014), ao estender a aplicação do actual Regime Tributário dos FIIAH «aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014» - está a violar de forma directa e inequívoca o princípio da não retroactividade da lei fiscal constitucionalmente consagrado. Com efeito, a extensão aí consagrada configura um novo regime de caducidade das isenções previstas nos números 7, alínea a) e 8 do artigo 8.º (Regime Tributário) e não uma mera densificação de um critério anteriormente previsto.
t) A violação do princípio da retroactividade, ora invocada, tem em consideração o entendimento que vem sendo seguido pelo Tribunal Constitucional segundo o qual a proibição da retroactividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroactividade autêntica, abrangendo tão só os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga; do seu âmbito aplicativo ficam excluídas as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais produzemm um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (v.g. acórdãos n.º 128/2009, 85/2010 e 399/2010, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
u) No caso sub judice não há quaisquer dúvidas de que os factos tributários que a lei nova pretende regular já produziram todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga.
v) Segundo o número 1 do artigo 133.º do Código de Procedimento Administrativo em vigor à data das Liquações, «os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade» são nulos, sendo que o número 2 do mesmo preceito exemplifica algumas situações em que tal se tem por verificado, designadamente, com os «actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental» - alínea d) do número 2.
w) Concretizando: entende a doutrina prevalente e a douta jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que nem todos os actos que ferem princípios constitucionais são nulos, só o sendo aqueles que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental, isto é, que briguem com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e já não aqueles que briguem com o principio da legalidade tributária.
x) Em decorrência do que os actos violadores do princípio da legalidade tributária são anuláveis e não nulos (Vd. MARCELO REBELO DE SOUSA, «Inexistência Jurídica», in DJAP, volume V, página 242).
y) Ora, cabe aqui clarificar se a inconstitucionalidade ora arguida pela Requerente deve ter como consequência a anulabilidade ou a nulidade das Liquidações.
z) Para tanto, é relevante recordar que a norma plasmada no artigo 103.° (Sistema fiscal), n.º 3, da Constituição da República Portuguesa determina que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição (...)».
aa) Assume também relevância o facto de esta norma constitucional ter vindo a ser interpretada pela doutrina no sentido de consagrar um direito de resistência a actuações ilegais da Administração (Entre outros, VIEIRA DE ANDRADE, Direito Administrativo e Fiscal, in Lições ao 3.° ano do Curso de 1992-1993, II parte, página 18).
bb) Considerando que o princípio da irrectroactividade fiscal reveste o carácter de um direito fundamental, dotado do regime jurídico protector deste direito (Entre outros, vd. JORGE BACELAR GOUVEIA, «A Irretroactividade da Norma Fiscal na Constituição Portuguesa», in, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 387, p. 82), o seu desrespeito origina a nulidade do acto, in casu, a nulidade das Liquidações.
cc) Perfilam-se ainda na doutrina vozes que defendem que o vício em questão é a inexistência jurídica.
dd) Ora, nos termos do disposto no artigo 102.º (Impugnação judicial. Prazo de apresentação), número 3, do CPPT, quando o fundamento da impugnação for a nulidade, a impugnação judicial pode ser deduzida a todo o tempo.
ee) A admissibilidade de impugnação do vício da nulidade sem dependência de prazo não afasta a competência do Tribunal Tributário Arbitral, designadamente, por interpretação literal do artigo 10.º (Pedido de constituição do tribunal arbitral) do RJAT (neste sentido, NUNO VILLA-LOBOS e MÓNICA BRITO VIEIRA in Guia da Arbitragem Tributária, 2013, Almedina, págs. 168 e 169). Efectivamente, o citado artigo 10.º (Pedido de constituição do tribunal arbitral) do RJAT não deve ser interpretado no sentido de ser exclusivamente aplicável às situações em que estejam em causa actos cuja impugnação está sujeita a prazo.
ff) Admitindo subsidiariamente, que o vício (ilegalidade) das Liquidações determina a sua anulabilidade (e não a nulidade), deverão as Liquidações ser anuladas em conformidade, nos termos dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do Código do Procedimento e Processo Tributário.
gg) Sendo as Liquidações assentes no artigo 236.º (Norma transitória no âmbito do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH) da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014), que enfermam de inconstitucionalidade por violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal, consagrado no artigo 103.º (Sistema fiscal), número 3, da Constituição da República Portuguesa, a Autoridade Tributária não deveria ter liquidado o IMT e o IS correspondente às Liquidações conforme solicitado pela ora Requerente.
hh) Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis e com o douto suprimento do Tribunal Arbitral, a Requerente pede que seja declarada a nulidade das Liquidações com base na sua inconstitucionalidade ou, subsidiariamente, caso assim não se entenda, que sejam anuladas as Liquidações, e que seja reembolsada a Requerente pela totalidade do montante pago por força das Liquidações objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, acrescido, nos termos do artigo 43.º (Pagamento indevido da prestação tributária) da Lei Geral Tributária, dos juros indemnizatórios que sejam devidos até à data desse reembolso.
1.8. A Requerida apresentou resposta, alegando, no sentido da improcedência do pedido de pronúncia arbitral, em síntesse, o seguinte:
a) Nos termos do n.º 2 do artigo 266.º da CRP, a Administração está obrigada a atuar em conformidade com o princípio da legalida, sendo tal princípio concretizado a nível infraconstitucional no n.º 1 do artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), que por sua vez determina que «Os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhe estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes foram conferidos».
b) A Administração está sujeita à lei e ao direito e os seus órgãos e agentes devem ser os primeiros a cumpri-la, não podendo, por isso, ser-lhe exigida pronúncia sobre as opções do legislador, pois que estas, após vertidas em lei, são a disciplina normativa dentro do qual a mesma exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público.
c) Ou seja, vinculada ao princípio da legalidade, a AT não pode, por força disso, desaplicar normas em função da interpretação que faça quanto à sua inconstitucionalidade, pelo que, e em suma, a AT não pode recusar a aplicação de uma norma ou deixar de cumprir a lei invocando ou questionando a sua constitucionalidade, pois está sujeita ao princípio da legalidade, conforme estatuído nos arts. 266.º n.º 2 da CRP, 3.º n.º 1 do CPA e 55.º da LGT.
d) A atuação da AT, não podia, pois, ser diferente.
e) O que, como se verá infra, tem repercussões, maxime quanto ao pedido de juros indemnizatórios.
f) Cumpre salientar que, quer o douto Tribunal venha a subsumir o vício invocado ao conceito de nulidade ou de anulabilidade, a verdade é que, seja como for, o pedido é manifestamente improcedente, conforme melhor se explicita infra.
g) O vício apontado, por alegada violação do artigo 103.º da CRP, não é gerador de nulidade.
h) Com efeito, a sanção que recai sobre um ato administrativo inválido é a sua anulabilidade (artigo 135.º do [antigo] CPA), só ocorrendo nulidade quando lhe faltar um dos seus elementos essenciais ou quando a lei expressamente o sancione com essa forma de invalidade (artigo 133º do [antigo] CPA).
i) Esta opção do legislador é perfeitamente compreensível se atentarmos que o regime da nulidade (que gera a absoluta incapacidade de produzir efeitos e a possibilidade da sua impugnação judicial a todo o tempo) tem de ser conciliado com os princípios da certeza e da estabilidade, fundamentais na atividade e nas relações administrativas, de molde a não pôr em causa a eficácia e segurança desta atividade da administração com os seus administrados.
j) Sucede que, mesmo a verificar-se a violação do normativo invocado pela Requerente, mormente, o artigo 103.º, n.º 3, da CRP, facto é que, como se disse, os atos impugnados são apenas passíveis de anulação e nunca da sua declaração de nulidade.
k) E assim porque, considerando que a previsão legal da alínea d), do nº 2 do artigo 133º do CPA é apenas extensível à violação de direitos, liberdades e garantias do Título II da Parte I da CRP, o caso dos autos não tem aqui enquadramento legal – neste sentido, cfr. acórdão do TCAN, de 03/02/2012, processo: 00473/09.6BEPNF.
l) Também o acórdão do STA, de 03/03/2004 (processo: 01938/03) assim o entendeu:
«Nestes termos, servindo-nos da doutrina atrás exposta e da indicação exemplificativa que se colhe no n.º 2 do citado art.º 133.º do CPA, podemos afirmar que a sanção da nulidade deve ser aplicada aos actos administrativos que, por carecerem dos seus elementos constitutivos, só formalmente têm essa aparência e a todos aqueles que sejam ofensivos dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas – vd. al. d), do n.º 2, do art.º 134.º do CPA e Acórdão de 26/9/01 (rec. 43.832)».
m) Sendo que, quando está em causa a violação de direitos fundamentais que não preenchem o “núcleo duro”, nem se pode enquadrar, nos denominados direitos análogos, a eventual violação dos mesmos não gera a nulidade, mas antes a mera anulabilidade – cfr. acórdão do TCAN, de 03/07/2013, processo: 01795/10.9BEBRG.
n) Caso dúvidas subsistissem, veja-se que, concretamente no que respeita à não retroatividade da lei fiscal, é já entendimento da jurisprudência, que a eventual violação de tal princípio, não implica o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP) - cfr. Acórdão do STA de 21-01-2015, proferido no processo n.º 0703/14.
o) Por fim, cumpre ainda explicitar que a citação doutrinária vertida no pedido arbitral, por referência ao regime subjacente no artigo 204.º, n.º 1, alínea a) do CPPT [com a epígrafe «fundamentos da oposição à execução fiscal»], está manifestamente descontextualizada, não resultando desta qualquer entendimento coincidente com a “tese de nulidade” ora defendida pelo Requerente, isto porque, atentando-se não apenas no curto excerto trazido aos autos pelo Requerente, mas na explicitação de Jorge Lopes de Sousa a esse propósito, verifica-se, desde logo, não ser possível a arguição do vício de inconstitucionalidade a todo o tempo, como pretende o Requerente.
p) Efetivamente, devidamente contextualizada a citação indicada pelo Requerente, que infra se reproduz, decorre que, mesmo relativamente à inconstitucionalidade, não é vício passível de ser invocado a todo tempo, pois o prazo máximo que se encontra legalmente fixado é o prazo para dedução da oposição à execução fiscal (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Código do Procedimento e do Processo Anotado e Comentado - vol. II, 6ª ed, Áreas Editora, páginas 158 e 159, anotação ao artigo 102.º do CPPT).
q) Mas mais, pois importa ainda atentar que, como refere o Ilustre Conselheiro em anotação ao artigo 124.º do CPPT, encontrando-se pagas as liquidações, como sucede na situação sub judice (cf. documento n.º 4 do pedido arbitral), não se afigura possível sequer a aplicação de qualquer extensão do prazo (isto é, a arguição da inconstitucionalidade no prazo para dedução de oposição à execução fiscal) [Cf. Código do Procedimento e do Processo Anotado e Comentado - vol . II, 6ª ed, Áreas Editora, páginas 332 e 333].
r) Em suma, face a todo o exposto, mormente atenta a jurisprudência citada, é de concluir que, mesmo a existir o vício imputado às liquidações em causa, nunca o mesmo é gerador de nulidade, mas tão somente, de anulabilidade.
s) O que, como se passa a explicitar, também não se verifica.
t) Conforme infra se demonstra, baseando-se as liquidações em apreço no facto de ter sido dado ao imóvel «um destino diferente daquele em que assentou o benefício» (cf. artigo 5.º supra), então, contrariamente ao que pretende a Requerente, não só não está em causa a retroatividade da norma legal por si melhor identificada no introito do pedido arbitral, como também não se verifica qualquer lesão das suas expetativas.
u) Primeiramente, há que ressalvar que, à data de criação do regime tributário aplicável aos FIIAH, com a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, as isenções em questão, quer em sede de IMT, quer em sede de Imposto do Selo, exigiam, respetivamente:
(i) que a aquisição dos imóveis tivesse como destino exclusivo o “arrendamento para habitação permanente” e,
(ii) que a transmissão tivesse por objeto “prédios destinados a habitação permanente que ocorra por força da conversão do direito de propriedade desses imóveis num direito de arrendamento sobre os mesmos, bem como com o exercício da opção de compra previsto no n.º 3 do artigo 5”.
v) Ou seja, os sujeitos passivos que pretendessem beneficiar das referidas isenções, sempre tiveram, desde o início do regime tributário aplicável aos FIIAH, que cumprir o pressuposto de que tais prédios fossem destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente.
w) Pelo que, falece razão ao Requerente quando afirma que as isenções em apreço não eram condicionadas por quaisquer factos ou circunstâncias, e, consequentemente, a argumentação que constrói partindo de tal errado pressuposto encontra-se igualmente ferida de erro.
x) Afinal, a nova redação introduzida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em prol da segurança jurídica e do princípio da proteção da confiança, e na senda do espírito do legislador, aquando da criação do regime, veio apenas densificar o critério já exigido, estipulando “que os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo”.
y) É de concluir, assim, que, com as alterações introduzidas, não se alterou a ratio das isenções consagradas, sendo de sublinhar que não foi determinada a extinção imediata do benefício no caso de não se verificar celebrado o referido contrato de arrendamento, pois que se concedeu um prazo bastante alargado, de três anos, para o efeito. Tanto mais que tais alterações tiveram o cuidado de respeitar o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança.
z) Sendo certo que, de todo o modo, atenta a alienação dos prédios na pendência do ano de 2015, resulta inequívoco que o Requerente não poderia, de qualquer forma, beneficiar da isenção requerida.
aa) Todavia, segundo o Requerente, a inconstitucionalidade por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal adviria do segmento do artigo 236.º, n.º 2, da Lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, ao determinar a aplicação das alterações introduzidas “aos prédios urbanos que tenham sido adquiridos pelos FIIAH antes de 1 de Janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de Janeiro de 2014”.
bb) Na verdade - e ressalvando não se identificar qual a lesão jurídica que a norma referida causou ao Requerente, dado que, como se viu, a alienação pressupõe a afetação a um destino distinto do arrendamento -, face ao disposto no citado preceito normativo, relativamente aos prédios adquiridos antes de 1 de Janeiro de 2014, de modo a considerar-se realizada a afetação para habitação permanente, teriam que ser celebrados contratos de arrendamento para habitação permanente nos três anos subsequentes.
cc) Pelo que se infere, com facilidade, que as isenções em questão não deixaram simplesmente de vigorar: o que sucedeu, apenas, foi que foram estabelecidos critérios para concretizar um requisito legal previsto de forma indeterminada. Necessidade de intervenção legislativa que se compreende, dado que, conforme resulta do artigo 2.º, n.º 1, do EBF, os benefícios fiscais são as medidas de carácter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem.
dd) Por outro lado, e contrariamente ao que parecer crer o Requerente, é de ressalvar que a cessação de um benefício fiscal sempre poderá ter lugar, por exemplo, caso se constate, num caso concreto, mediante fiscalização, que não se verificam os respetivos pressupostos.
ee) Com efeito, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, do EBF:
“Todas as pessoas, singulares ou coletivas, de direito público ou de direito privado, a quem sejam concedidos benefícios fiscais, automáticos ou dependentes de reconhecimento, ficam sujeitas a fiscalização da Autoridade Tributária e Aduaneira, da Direção Regional dos Assuntos Fiscais e das demais entidades competentes, para controlo da verificação dos pressupostos dos benefícios fiscais respetivos e do cumprimento das obrigações impostas aos titulares do direito aos benefícios”.
ff) Sendo que, conforme discorre do artigo 14.º, n.º 1, do EBF, “a extinção dos benefícios fiscais tem por consequência a reposição automática da tributação-regra”.
gg) Ao que acresce, ainda, dispor o artigo 14.º, n.º 2, do EBF que:
“quando o benefício fiscal respeite a aquisição de bens destinados à direta realização dos fins dos adquirentes, fica sem efeito se aqueles forem alienados ou lhes for dado outro destino sem autorização do Ministro das Finanças, sem prejuízo das restantes sanções ou de regimes diferentes estabelecidos por lei”.
hh) Pelo que, tudo visto e sopesado, é manifesto que, desde o início do regime, os benefícios fiscais em apreço aplicáveis aos FIIAH sempre dependeram da afetação dos imóveis ao arrendamento para habitação permanente, requisito legal que a AT, no âmbito dos seus poderes de fiscalização, sempre poderia aferir, de forma a concluir pela permanência do benefício ou, antes, pela reposição do sistema de tributação-regra.
ii) Assim, estando em causa a concreta alienação dos imóveis, atente-se que, ocorrendo a caducidade da isenção, já nos termos do artigo 14.º, n.º 2, do EBF, o artigo 8.º, n.º 16 do regime vem apenas concretizar uma medida anti-abuso, isto é, concretizando que prédios que não fiquem em carteira com afetação exclusiva ao arrendamento habitacional, não foram adquiridos com tal finalidade. Limitando, ainda, tal caducidade a um prazo definido na lei ao invés do que sucedia anteriormente, por força da aplicação do EBF.
jj) Como bem se concluiu em diversas decisões arbitrais (proferidas nos processos n.ºs 398/2015-T, 688/2015-T, 689/2015-T, 709/2015-T, 710/2015-T, 729/2015-T e 735/2015-T), também nos presentes autos não está em causa a retroatividade ou não da lei, nem tão pouco existe lesão de expectativas do Requerente ou agravamento da sua posição fiscal, pois que o racional para atribuição de um benefício fiscal em sede de IMT/IS aos FIIAH foi estabelecido claramente desde o início: «As aquisições de prédios urbanos ou de frações autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento...».
kk) Segundo o entendimento sufragado pela doutrina e na jurisprudência, o artigo 103.º, n.º 3, da CRP apenas proíbe a retroatividade autêntica ou própria da lei fiscal abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando a lei é aprovada até ao final do ano a que corresponde o imposto (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 399/2010).
ll) Com efeito, é verdade que o facto tributário em sede de IMT ou Imposto do Selo, para o que ora importa, verifica-se aquando da aquisição do imóvel.
mm) Todavia, tal não significa que, no caso dos autos, se possa concluir pela existência de uma circunstância de retroatividade pois que a lei nova não veio simplesmente determinar, e sem mais, que os imóveis anteriormente adquiridos fossem objeto de tributação em sede de IMT e Imposto do Selo.
nn) O que a lei nova veio fazer, antes, foi apenas densificar critérios já previstos na lei antiga, designadamente:
(i) o conceito de afetação a arrendamento para habitação permanente, estipulando um prazo mais do que suficiente para que os sujeitos passivos se pudessem adaptar, reunindo um meio de prova inequívoco (contrato de arrendamento),
(ii) bem como a explicitação das situações em que a alienação do imóvel destinado ao arrendamento não faz caducar a isenção nos termos então até aí previstos no EBF.
oo) Termos em que, contrariamente ao que defende o Requerente, não se verifica a introdução ex novum de um regime de caducidade do benefício, e, ainda menos se constata qualquer frustração das expectativas dos sujeitos passivos ou violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal.
pp) No que se refere ao pagamento de juros indemnizatórios, por tudo quanto supra se disse, entende-se não enfermar os atos de liquidação de vício que deva ditar a sua anulação ou declaração de nulidade. No entanto, e sem conceder, sempre se dirá que, embora a Requerente não concretize em que termos peticiona os respetivos juros, os mesmos não são devidos.
qq) Com efeito, recorde-se que a AT, na qualidade de órgão da Administração Pública, não tem competência para decidir da não aplicação de normas relativamente às quais sejam suscitadas dúvidas de constitucionalidade.
rr) Consequentemente, aos serviços da AT não pode ser imputado qualquer erro de facto ou de direito, dada a obediência à lei que enforma toda a sua atividade, o que, por sua vez determina, então, que não há suporte legal para o pedido de juros indemnizatórios.
ss) Assim, face ao exposto, não podendo ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido – uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu –, não pode senão concluir-se no sentido de que não são devidos juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT.
tt) Nestes termos, e nos mais de direito, sustenta a Requerida que deve o pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, com as devidas e legais consequências. Ou, caso assim não se entenda requer, por apelo ao disposto no artigo 280.º, n.º 3 da CRP e no artigo 72.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, que seja determinada a notificação ao Ministério Público da decisão arbitral.
1.10- Por despacho de 7 de junho de 2016, o Tribunal, não tendo sido invocadas exceções e não havendo lugar à produção de prova constituenda, dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ouvidas as Partes, e em aplicação dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais. Mais designou o dia 19 de julho de 2016 como prazo limite para prolação da decisão arbitral.
1.11-Em sede de alegações, a Requerente pugnou, no essencial, pela posição que sustentou na petição inicial, reforçada com a junção de um parecer jurídico, e a Requerida, tendo mantido também no essencial a posição sustentada na resposta, inovou ao invocar as exceções dilatórias de (i) incompetência material do tribunal arbitral para apreciar a «ilegalidade abstrata das liquidações» e de (ii) ilegitimidade passiva da Requerida, em ambos os casos por considerar que a Requerente pretende que o tribunal arbitral proceda à fiscalização abstrata da constitucionalidade da norma em causa.
1.12- Por Despacho de 04 de julho de 2017, o Tribunal, em respeito pelo princípio do contraditório, concedeu à Requerente um prazo para, querendo, se pronunciar sobre as exceções invocadas pela Requerida.
1.13. A Requerente pronunciou-se sobre as exceções invocadas pela Requerida, sustentando que as mesmas assentam numa incorreta interpretação do pedido de pronúncia arbitral, pelo que não podem proceder.
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II. SANEAMENTO
2.1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
2.2. A Requerida invocou, em sede de alegações escritas, as exceções dilatórias de (i) incompetência material do tribunal arbitral para apreciar a «ilegalidade abstrata das liquidações» e de (ii) ilegitimidade passiva da Requerida, em ambos os casos por considerar que a Requerente pretende que o tribunal arbitral proceda à fiscalização abstrata da constitucionalidade da norma em causa.
2.3 Sucede que, contrariamente ao entendeimento manifestado pela Requerida, no caso sub judice não está em casu a fiscalização sucessiva abstrata da constitucionalidade da norma em causa.
2.4. A pretensão da Requerente é atacar os atos de liquidação praticados pela Requerida, pedindo ao Tribunal, a título principal, a declaração da nulidade desses atos com fundamento na sua inconstitucionalidade ou, subsidiariamente, a anulação dos mesmos.
2.5 A alegada inconstitucionalidade da norma contida no artigo 236.º (Norma transitória no âmbito do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH) da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014), surge como uma questão incidental que cabe ao tribunal decidir, com base no disposto no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa, caso entenda que essa é uma questão cujo esclarecimento prévio é indispensável à decisão do mérito da causa.
2.6. A haver, no presente processo, fiscalização da constitucionalidade, será uma fiscalização sucessiva concreta, cabendo ao tribunal, no âmbito do poder-dever que lhe é conferido no artigo 204.º da Constituição da República, julgar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma em causa.
2.7. Na eventualidade de este Tribunal julgar a norma inconstitucional, a consequência jurídica é a da sua desaplicação no caso concreto, e não a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a qual é da competência do Tribunal Constitucional, no âmbito dum processo de fiscalização sucessiva abstrata.
2.8. Atendendo a que a pretensão da Requerente é a de atacar os atos de liquidação praticados pela AT, é esta que deve assumir a posição de Requerida no presente processo.
2.9. Deste modo, o Tribunal julga-se competente para julgar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma no caso concreto, como condição prévia para a decisão do mérito da causa, dispondo a Requerida de legitimidade passiva no presente pedido de pronúncia arbitral.
2.10 Assim, improcedem totalmente as exceções dilatórias invocadas pela Requerida.
2.11 As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
2.12. O Tribunal é competente quanto à apreciação do pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente.
2.13. Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.
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III. MÉRITO
III. 1. MATÉRIA DE FACTO
§1. Factos provados
Julgam-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente é sociedade gestora do fundo de investimento imobiliário «B… – …» registado junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, com o número de identificação fiscal …;
b) A Requerente solicitou as liquidações de IMT e de Imposto do Selo relativas ao prédio sito na Rua …, n.º …, …, …, Bloco …, …., inscrito na matriz predial urbana n.º …, fracção “…”, da União das Freguesias de … (… e …), no concelho de Beja, liquidações essas tituladas pelos documentos a seguir indicados e nos montantes respetivos:
c) As liquidações foram feitas com o fundamento material o da alienação do imóvel descrito supra, e na consequente alteração do destino do imóvel – diferente daquele em que assentou o benefício;
d) As liquidações foram pagas pela Requerente em 20 de novembro de 2015 (conforme cópias das respecivas guias juntas pela Requerente como Doc. 2);
e) Os actos tributários identificados supra referiam-se a prédio urbano que integrava o património do Fundo B…, à data de entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014).
§2 . Factos não provados
Não ficou provado no presente processo que a Requerente tenha afetado o imóvel a que se referem as liquidações constestadas ao arrendamento para habitação permanente.
§3. Motivação quanto à matéria de facto
No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes em sede de facto e no teor dos documentos juntos aos autos, não contestados pelas Partes.
III.2. MATÉRIA DE DIREITO
A questão principal a decidir no caso sub judice é a que se prende com saber se os atos de liquidação contestados são legais ou ilegais, à luz do regime jurídico-tributário dos FIIAH.
A título incidental, e caso se revele necessário para decidir a questão principal, suscita-se a questão que se prende com saber se o artigo 236.º (Norma Transitória no âmbito do Regime Especial Aplicável aos FIIAH e SIIAH) previsto pela Lei n.º 83–C/2013, de 31 de Dezembro – na medida em que determina a aplicação do actual Regime Tributário dos FIIAH «aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de Janeiro de 2014» - viola o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, plasmado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
III.2.1. A evolução do regime jurídico-tributário dos FIIAH
A Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2009), aprovou o regime especial aplicável aos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (FIIAH) e às sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2009).
No seu artigo 8.º estabeleceu-se o regime tributário aplicável aos FIIAH.
No que se refere ao Imposto Municipal Sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), o Regime Tributário dos FIIAH definiu o seguinte no número 7 do citado artigo 8.º:
«7 — Ficam isentos do IMT:
a) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento referidos no n.º 1;
b) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados a habitação própria e permanente, em resultado do exercício da opção de compra a que se refere o n.º 3 do artigo 5.º pelos arrendatários dos imóveis que integram o património dos fundos de investimento referidos no n.º 1.»
Por sua vez, nos termos do artigo 8.º, n.º 8, «Ficam isentos de imposto do selo todos os atos praticados, desde que conexos com a transmissão dos prédios urbanos destinados a habitação permanente que ocorra por força da conversão do direito de propriedade desses imóveis num direito de arrendamento sobre os mesmos, bem como com o exercício da opção de compra previsto no n.º 3 do artigo 5.º».
A Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014) aditou ao artigo 8.º do Regime Tributário dos FIIAH os números 14 a 16, com a seguinte redação:
«14 - Para efeitos do disposto nos n.ºs 6 a 8, considera-se que os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo, devendo o sujeito passivo comunicar e fazer prova junto da AT do respetivo arrendamento efetivo, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo.
15 - Quando os prédios não tenham sido objeto de contrato de arrendamento no prazo de três anos previsto no número anterior, as isenções previstas nos n.ºs 6 a 8 ficam sem efeito, devendo nesse caso o sujeito passivo solicitar à AT, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo, a liquidação do respetivo imposto.
16 - Caso os prédios sejam alienados, com exceção dos casos previstos no artigo 5.º, ou caso o FIIAH seja objeto de liquidação, antes de decorrido o prazo previsto no n.º 14, deve o sujeito passivo solicitar igualmente à AT, antes da alienação do prédio ou da liquidação do FIIAH, a liquidação do imposto devido nos termos do número anterior.»
A Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014) veio ainda a consagrar no seu artigo 236.º a seguinte norma transitória:
«1 - O disposto nos n.ºs 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, é aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH a partir de 1 de janeiro de 2014.
2 - Sem prejuízo do previsto no número anterior, o disposto nos n.ºs 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, é igualmente aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014.»
III.2.2. A aplicação do direito ao caso concreto
Desde a versão originária do regime jurídico-tributário dos FIIAH que as isenções previstas nos n.ºs 7 e 8 do artigo 8.º respetivo se encontram condicionadas ao cumprimento do requisito específico de os imóveis que delas beneficiem serem destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente.
Sendo os benefícios fiscais medidas de caráter excecional, a sua legitimidade radica na tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem (artigo 2.º, n.º 1, do EBF).
O interesse público que legitima as isenções previstas nos n.ºs 7 e 8 do artigo 8.º do regime jurídico-tributário dos FIIAH é o da promoção da oferta de imóveis para arrendamento destinados a hanitação permanente.
Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 14.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), «[q]uando o benefício fiscal respeite a aquisição de bens destinados à directa realização dos fins dos adquirentes, fica sem efeito se aqueles forem alienados ou lhes for dado outro destino sem autorização do Ministro das Finanças, sem prejuízo das restantes sanções ou de regimes diferentes estabelecidos por lei».
Ora o artigo 14.º do EBF é aplicável não só aos benefícios fiscais constantes do EBF mas também a outros benefícios fiscais (art. 1.º do EBF), como era o caso dos benefícios previstos em sede de regime jurídico-tributário dos FIIAH, até à data da entrada em vigor das alterações introduzidas ao regime jurídico-tributário dos FIIAH pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.
Ou seja, decorria do EBF que os benefícios fiscais concedidos ao abrigo do regime jurídico-tributário dos FIIAH extinguir-se-iam se cessassem as condições que estiveram na base da sua atribuição. Com efeito, a verificação das condições ou requisitos legalmente definidos para a concessão de um benefício fiscal são essenciais para assegurar a legitimidade dos mesmos à luz dos princípios constitucionais que informam o sistema fiscal, designadamente o princípio da igualdade tributária.
As alterações introduzidas pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, não alteraram a ratio das isenções consagradas, nem determinaram a extinção imediata do benefício no caso de não se verificar celebrado o contrato de arrendamento, tendo sido concedido um prazo de três anos para o efeito.
O legislador limitou-se a introduzir maior precisão e certeza no regime jurídico-tributário dos FIIAH, em concretização do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos e em respeito pelo princípio da proporcionalidade.
Conforme resulta das notas de liquidação anexadas ao processo, as liquidações basearam-se no facto de ter sido dado ao imóvel em causa destino diferente daquele em que assentou o benefício (conforme cópia das notas de cobrança anexadas aos autos pela Requerente).
Não está, pois, em causa, a aplicação do requisito associado à afetação a um destino específico (arrendamento para habitação permanente) no prazo de três anos, introduzido pelo artigo 236.° do regime transitório já referido, mas sim da alienação de um imóvel afeto a um FIIAH gerido pela Requerente.
Relativamente ao fundamento material das liquidações, constante das notas de cobrança, a Requerente afirma que «em nenhuma parte de tais requerimentos, quer apresentados por escrito quer oralmente, menciona o Requerente ter solicitado a liquidação do imposto por pretender dar ao imóvel em causa «destino diferente daquele em que assentou o benefício, caducando a isenção», como erradamente foi de forma discricionária indicado pela Autoridade Tributária no documento de liquidação no caso em preço». Todavia, não faz prova desta afirmação.
Em sede de alegações, a Requerente limitou-se a juntar um requerimento exemplificativo, apresentado num caso semelhante, o qual não se refere ao imóvel sub judice.
A Requerente também não faz prova da verificação do requisito previto no regime jurídico-tributário do FIIAH, referente ao destino do imóvel - arrendamento para habitação permanente.
Bem se vê que o que está em causa no processo sub judice não é incumprimento do prazo de três anos a que se referem os números 14 a 16 do artigo 8.º do regime jurídico do FIIAH, na redação introduzida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, nem a sua eventual aplicação retroativa por força do disposto no artigo 236.º desta lei.
As liquidações contestadas tiveram como fundamento a cessação da condição que esteve na base da atribuição do benefício fiscal - destinar o imóvel a arrendamento para habitação permanente.
Nestes termos, entende o Tribunal que as liquidações de IMT e de Imposto do Selo objeto do pedido de pronúncia arbitral não enfermam de qualquer ilegalidade, pelo que improcede o pedido de pronúncia arbitral.
Fica assim prejudicada a análise da questão suscitada pela Requerente quanto à alegada inconstitucionalidade da norma transitória contida no artigo 236.° da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, em virtude de a mesma não ser relevante para a decisão do mérito da causa.
Improcedendo o pedido de declaração da nulidade das liquidações impugnadas ou da sua anulação, ficam igualmente prejudicados o pedido de condenação da Requerida a reembolsar a Requerente pela totalidade do montante pago por força das liquidações objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, acrescido de juros indemnizatórios.
IV. DECISÃO
Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral de declaração da nulidade ou de anulação das liquidações contestadas;
b) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira daquele pedido;
c) Julgar improcedente o pedido de reembolso acrescido de juros indemnizatórios, absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira do respetivo pedido.
V. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1.574,82.
VI. CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 306,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de julho de 2016
O Árbitro
(Paulo Nogueira da Costa)