Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Ricardo Marques Candeias e Dr. José Coutinho Pires (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 06-04-2016, acordam no seguinte:
1. Relatório
A…, contribuinte n.º…, com morada na Rua…, n.º…, …º, …-… Lisboa, doravante designado por Requerente, veio, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de IRS n.º 2011…, relativa ao ano de 2010, e, bem assim, a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado contra o mesmo, com reembolso do imposto pago indevidamente em excesso pelo requerente, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios à taxa legal.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 05-02-2016.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 21-03-2016 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 06-04-2016.
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, suscitando a excepção de preterição de formalidade consignada no artigo 59.º do CPPT, e defendendo que deve ser declarado intempestivo o pedido de revisão oficiosa, ser declarado que inexiste erro imputável aos serviços, ser declarado que o pedido de revisão oficiosa e o pedido de pronúncia arbitral estão em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo Requerente pelo que configura abuso de direito.
Subsidiariamente, a Autoridade Tributária e Aduaneira entende que o pedido de pronúncia arbitral deve se julgado improcedente.
Por despacho de 06-05-2016 foi dispensada a realização de reunião e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas.
As Partes apresentaram alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita questões que podem constitui obstáculos à apreciação do mérito da causa, que importa apreciar prioritariamente.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:
a) Em 27-06-2011, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2011…, relativa ao Requerente e referente ao na de 2010 (documento n.º- 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
b) Em 26-06-2015, o Requerente apresentou pedido de revisão daquela liquidação (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
c) Até 22-01-2016, não foi proferida decisão sobre o referido pedido de revisão do acto tributário;
d) Na declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, o Requerente inscreveu no Quadro 8 do Anexo G as alienações onerosas de partes sociais e de outros valores mobiliários, nos seguintes termos:
e) O Requerente não apresentou anexo G1 à referida declaração modelo 3;
f) A Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou a liquidação de acordo com os elementos fornecidos pelo Requerente na declaração modelo 3;
g) Por escritura pública datada de 28-06-1983, o REQUERENTE constituiu, entre si e B…, C… e D…, a sociedade por quotas “E…, Lda” (Documentos n.ºs 3 e 4, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
h) À data, a referida sociedade tinha um capital social integralmente subscrito e realizado no valor de 300.000$ (trezentos mil escudos), o qual se encontrava dividido em uma quota no valor de 200.000$ (duzentos mil escudos), pertencente a B…, e duas quotas iguais no valor de 50.000$ (cinquenta mil escudos) cada uma, pertencentes ao REQUERENTE e a C… . A sócia B... viria a dividir a sua quota em três novas quotas, reservando para si uma quota de 50.000$ e cedendo uma quota de 100.000$ (cem mil escudos) a F… e uma quota de 50.000$ (cinquenta mil escudos) a G… (documentos n.ºs 3 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
i) Por escritura pública de 20 de Dezembro de 1988, foi aumentado o capital social da E…, Lda. de 300.000$ (trezentos mil escudos) para 40.000.000$ (quarenta milhões de escudos), mediante o reforço de 39.700.000$ (trinta e nove milhões e setecentos mil escudos), integralmente realizado em dinheiro e subscrito em partes iguais, ou seja, cada um com a importância de 19.850.000$ (dezanove milhões, oitocentos e cinquenta mil escudos), por A…. e por C…, os quais são admitidos como novos sócios (cf. Documentos n.ºs 5 e 6, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
j) Em 29-05-1996, a sociedade E…, Lda. foi transformada em sociedade anónima, passando a designar-se “I… S.A.”, com o capital social de 40.000.000$ (quarenta milhões de escudos) e dividido em 40.000 acções de valor nominal de 1.000$ (mil escudos) cada uma (Documentos n.ºs 7 e 8, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
k) Na mesma data, foi promovido o aumento do capital social da I…, S.A. de 40.000.000$ (quarenta milhões de escudos) para 200.000.000$ (duzentos milhões de escudos), mediante o reforço de 160.000.000$ (cento e sessenta milhões de escudos), efectuado da seguinte forma:
– incorporação de reservas de reavaliação do activo imobilizado no montante de 70.470.000$ (setenta milhões, quatrocentos e setenta mil escudos), a subscrever por cada um dos accionistas atrás mencionados, na proporção do capital de que cada um é titular;
– novas entradas em espécie de bens móveis, no valor de 18.130.000$ (dezoito milhões, cento e trinta mil escudos), correspondendo a 18.130 novas acções ordinárias, do valor nominal de 1.000$ cada uma, subscrito e realizado, em partes iguais, pelo accionista A… e C…;
– nova entrada em dinheiro da sociedade J…, S.A., no montante de 150.000.000$ (cento e cinquenta milhões de escudos), para subscrição e realização de 71.400 acções ordinárias do valor nominal de 1.000$ cada (Documentos n.ºs 9 e 10, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
l) Em 27-07-2000, os accionistas A… e C… venderam, pelo respectivo valor nominal, a totalidade das acções que detinham sobre a sociedade I…, S.A. – 127.772 acções, na proporção de 50% para cada um, com o valor nominal de 1.000$ por acção (Documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
m) Com a redenominação do capital social e das acções para euros, o capital social da sociedade I…, S.A. passou para € 1.000.000 (um milhão de euros), representado por 200.000 (duzentas mil) acções, com o valor nominal de € 5 (cinco euros), cada uma e os valores das participações sociais na sociedade I…, S.A. passaram a ser os seguintes:
a) A…– 21.434 acções, com o valor nominal de € 107.170, correspondentes a 10,717% do capital social;
b) F…– 21.434 acções, com o valor nominal de € 107.170, correspondentes a 10,717% do capital social;
c) B…– 21.433 acções, com o valor nominal de € 107.165, correspondentes a 10,7165% do capital social;
d) C…– 21.433 acções, com o valor nominal de € 107.165, correspondentes a 10,7165% do capital social;
e) G…– 21.433 acções, com o valor nominal de € 107.165, correspondentes a 10,7165% do capital social;
f) K…- 21.433 acções, com o valor nominal de € 107.165, correspondentes a 10,7165% do capital social;
g) J…, S.A. – 71.400 acções, com o valor nominal de Eur.
357.000, correspondentes a 35,7% do capital social;
n) Por contrato de compra e venda celebrado em 13 de Maio de 2003, o acionista J…, S.A. vendeu à sociedade I…, S.A. as suas 71.400 acções, correspondentes a 35,7% do capital social (Documento n.º 12, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido):
o) A distribuição de participações sociais, na sociedade I…, S.A., passou, então, a ser a seguinte:
a) A…– 21.434 acções, com o valor nominal de € 107.170, correspondentes a 10,717% do capital social;
b) F…– 21.434 acções, com o valor nominal de € 107.170, correspondentes a 10,717% do capital social;
c) B…– 21.433 acções, com o valor nominal de € 107.165, correspondentes a 10,7165% do capital social;
d) C…– 21.433 acções, com o valor nominal de € 107.165, correspondentes a 10,7165% do capital social;
e) G…– 21.433 acções, com o valor nominal de € 107.165, correspondentes a 10,7165% do capital social;
f) K…- 21.433 acções, com o valor nominal
de € 107.165, correspondentes a 10,7165% do capital social;
g) I…, S.A. – 71.400 acções, com o valor nominal de € 357.000, correspondentes a 35,7% do capital social.
p) Posteriormente, a sociedade I…, S.A. deliberou:
i. Reduzir o capital social da sociedade em montante correspondente a € 357.000, através da extinção das 71.400 acções próprias por esta detidas;
ii. Anular o desconto de aquisição de acções próprias extintas através da afectação do montante de € 892.500 de reservas livres para essa compensação;
iii. Aumentar o capital social, no montante de € 357.000, por incorporação de reservas livres, através da emissão de 71.400 acções, atribuídas aos accionistas na proporção das respectivas participações sociais.
q) A distribuição de participações sociais, na sociedade I…, S.A., passou, então, a ser a seguinte:
a) A…– 33.334 acções, com o valor nominal de € 166.670, correspondentes a 16,667% do capital social;
b) F…– 33.334 acções, com o valor nominal de € 166.670, correspondentes a 16,667% do capital social;
c) B…– 33.333 acções, com o valor nominal de € 166.665, correspondentes a 16,6665% do capital social;
d) C…– 33.333 acções, com o valor nominal de € 166.665, correspondentes a 16,6665% do capital social;
e) K…– 33.333 acções, com o valor nominal de € 166.665, correspondentes a 16,6665% do capital social;
f) G…– 33.333 acções, com o valor nominal de € 166.665, correspondentes a 16,6665% do capital social;
r) Em 24 de Maio de 2010, os accionistas da I…, S.A. alienaram a totalidade das acções que detinham sobre esta sociedade – 200.000 acções com o valor nominal de € 5,00 cada, representativas de 100% do respectivo capital social -, pelo preço global de € 14.000.000 (Documento n.º 13, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
s) A participação do REQUERENTE no capital social da I…, S.A. – 33.334 acções, com o valor nominal de € 166.670 - foi vendida por um preço correspondente a € 2.333.380,00 (dois milhões, trezentos e trinta e três mil, trezentos e oitenta euros) [€ 14.000.000 x 16,667%];
t) O preço pela compra das acções (€ 14.000.000) foi integralmente pago aos accionistas da I…, S.A.;
u) Das alienações referidas no anexo G da declaração modelo, apenas as referidas nos campos 809 e 810 do anexo G da declaração modelo 3 respeitam a acções detidas há mais de 12 meses, tendo a referida no campo 809 sido considerada em 50% do valor, por estar em causa a transmissão de participações sociais respeitantes a uma pequena empresa não cotada;
v) Das alienações referidas nos campos 802 e 804 do Quadro 8 do anexo G da declaração modelo 3 reportam-se a obrigações (documentos n.ºs 21 e 22 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
w) O saldo entre as mais e as menos-valias realizadas até ao dia 27-07-2010, respeitantes a acções detidas há mais de 12 meses e a obrigações, ascende a € 1.098.478,12 [€ 15.123,12 + € 1.083.355,00)];
x) Na liquidação que efectuou a Autoridade Tributária e Aduaneira aplicou à totalidade do saldo das mais-valias e menos-valias declaradas no Quadro 8 da declaração modelo 3, o regime instituído pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, aplicando a taxa de 20% à totalidade do saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias apuradas pelo Requerente no decurso do ano de 2010 (€ 1.103.324,71) tendo calculado o imposto de € 220.664,95;
y) A Requerente efectuou em 30-09-2011 o pagamento da quantia de € 220.663,73, referida na liquidação n.º 2011… (documento n.º 24 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
z) Em 22-01-2016, o Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral e não são controvertidos.
3. Matéria de direito
3.1. Objecto do processo
O Requerente, no pedido de revisão oficiosa, imputou à liquidação impugnada vícios de falta de fundamentação e de preterição do direito de audição, para além de defender que, à face da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, «as mais-valias decorrentes da alienação de acções detidas há mais de doze meses, até à data da entrada em vigor da Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho - 27 de Julho de 2010 -, beneficiam do regime de exclusão de tributação previsto no artigo 10.º, n.º 2, do Código do IRS».
A Requerente não fez qualquer referência no pedido de revisão oficiosa a qualquer ilegalidade substantiva da liquidação quanto a mais-valias resultantes de alienação de obrigações, pelo que tem de se entender que não foi invocado qualquer vício substantivo quanto a estas mais-valias, designadamente derivado da aplicação da Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho.
Por isso, além dos referidos vícios de faltar de fundamentação e preterição de formalidade legal, está em causa apenas a apreciação da legalidade da liquidação quanto às mais-valias obtidas com a alienação de acções antes de 26-07-2010.
O Requerente alienou antes de 27-07-2010, acções de sociedades anónimas que detinha há mais de doze meses.
Antes daquela data vigorava, no que aqui interessa, a redacção do CIRS resultante da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, e do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, nos seguintes termos:
Artigo 10.º
Mais-valias
1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
(...)
b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários e, bem assim, o valor atribuído aos associados em resultado da partilha que, nos termos do artigo 75.º do Código do IRC, seja considerado como mais-valia; (redacção da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro)
(...)
2 - Excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de:
a) Acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses; (Redacção do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro)
b) Obrigações e outros títulos de dívida. (Redacção do Decreto-Lei n.º 228/02, de 31-10)
A Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, revogou este n.º 2, tendo esta Lei entrado em vigor em 27-07-2010.
Com base neste contexto legislativo, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu na liquidação impugnada que os ganhos resultantes das alienações de acções detidas há mais de 12 meses ocorridas no ano de 2010 estão sujeitos a tributação em IRS, mesmo que as alienações tenham ocorrido antes da publicação da referida Lei n.º 15/2010 e aplicou a taxa de 20% prevista no artigo 72.º, n.º 4, do CIRS na redacção da mesma Lei, à totalidade do saldo das mais-valias e menos-valias resultantes daquelas alienações.
O Supremo Tribunal Administrativo proferiu várias decisões em sentido contrário a este entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, inclusivamente através do Acórdão Uniformizador n.º 5/2015, de 16-09-2015, proferido no processo n.º 1292/14, publicado no Diário da República, I Série, de 26-10-2015, em que se decidiu que «as mais-valias decorrentes de actos de alienação de acções detidas há mais de 12 meses que tenham ocorrido antes da entrada em vigor da Lei nº 15/2010, de 26 de Julho, particularmente no período compreendido entre 1 de Janeiro e 26 de Julho de 2010, continuam a seguir o regime legal de não sujeição a tributação previsto no n.º 2, alínea a), do artigo 10º do Código do Imposto sobre Rendimento das Pessoas Singulares, e, como tal, não concorrem para a formação do saldo anual tributável de mais-valias a que se refere o artigo 43º do CIRS».
Em face da autoridade do Supremo Tribunal Administrativo e do facto de a jurisprudência ter sido adoptada por unanimidade num acórdão uniformizador, deverá acatar-se esta jurisprudência, o que, aliás, é obrigatório para a Autoridade Tributária e Aduaneira, em face do artigo 68.º-A, n.º 4, da LGT, em que se estabelece que «a administração tributária deve rever as orientações genéricas referidas no n.º 1 atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores».
Assim, apesar de haver boas razões para discordar da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a que se foi adequada relevância em várias decisões arbitrais, é de concluir da prolação de um acórdão uniformizador tirado proferido por unanimidade que, na perspectiva legislativa, o tempo da discussão da questão pelos tribunais já passou e há o dever de seguir a jurisprudência uniformizada, que pela Autoridade Tributária e Aduaneira, quer pelos Tribunais, assim concretizando «uma interpretação e aplicação uniformes do direito» (artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil), postulada pelo princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP).
Por isso, tem de se partir do pressuposto de que a referida liquidação enferma de erro sobre os pressupostos de direito ao aplicar o novo regime de tributação às mais-valias resultantes de alienações de acções detidas há mais de 12 meses ocorridas antes de 27-07-2010.
É à face deste pressuposto que há que apreciar as questões suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira como obstáculos a aplicação deste entendimento à situação dos autos.
3.1. Falta de cumprimento do artigo 59.º do CPPT
A Autoridade Tributária e Aduaneira entende que a ser viável a revisão oficiosa do acto tributário é necessária a apresentação de uma declaração de substituição nos termos do artigo 59.º do CPPT.
No entanto, como resulta do artigo 78.º da LGT, a revisão dos actos tributários não depende sequer da iniciativa dos contribuintes, podendo ser efectuada «por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços» (n.º 1 deste artigo).
Por outro lado, do n.º 7 do mesmo artigo conclui-se que, apesar da revisão se denominar como «oficiosa», o contribuinte pode desencadear a revisão pela Autoridade Tributária e Aduaneira, através de um pedido para a sua realização, o que é confirmado pelo n.º 1 do artigo 49.º da LGT ao fazer referência a0 «pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo».
Assim, não há suporte legal para fazer depender a revisão oficiosa pedida pelo requerimento da prévia apresentação a de declaração de substituição.
3.2. Questão da intempestividade do pedido de revisão oficiosa
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que o pedido de revisão oficiosa foi intempestivamente apresentado.
Nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, a revisão do acto tributário por iniciativa da administração tributária pode fazer-se no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.
É este o prazo aplicável e não o de três anos previsto no n.º 4 do mesmo artigo que se reporta à revisão da matéria tributável e não ilegalidades decorrentes do regime jurídico aplicável.
A liquidação foi efectuada em 27-06-2011 e o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 26-06-2015, antes do decurso do prazo de quatro anos.
Por outro lado, a apresentação do pedido revisão oficiosa provocou a interrupção do prazo para realizar a revisão, como resulta do preceituado no artigo 78.º, n.º 7, da LGT.
Por isso, a existir erro imputável aos serviços tem de se concluir que o pedido de revisão oficiosa foi tempestivamente apresentado.
3.3. Questão da inexistência de erro imputável aos serviços
O erro que afecte um acto de liquidação é imputável aos serviços quando não for imputável ao contribuinte.
O erro será imputável ao contribuinte, nomeadamente, quando este omitir informações ou fornecer informações erradas sobre os factos em que assenta a tributação ou não der satisfaça a qualquer exigência de natureza declarativa pelos meios adequados.
No caso em apreço, o Requerente declarou alienações de acções ocorridas antes de Julho de 2010 nos campos 809 e 810, do Quadro 8, relativo à «ALIENAÇÃO ONEROSA DE PARTES SOCIAIS E OUTROS VALORES MOBILIÁRIOS - Artigo 10.º, n.º 1, alínea b) do CIRS», pelo que fez a declaração em termos exactos.
Por outro lado, o facto invocado, como potencialmente condutor a uma conclusão de erro imputável ao contribuinte pela Autoridade Tributária e Aduaneira, de não terem sido indicadas essas alienações em anexo G1 à declaração modelo 3, relativo a «Mais-valias não tributadas», não pode levar ter esse efeito.
Na verdade, como bem refere o Requerente, a Portaria n.º 1303/2010, de 22 de Dezembro, que aprovou os modelos de anexos à declaração modelo 3 a utilizar relativamente ao ano de 2010, indica expressamente que apenas devem ser indicadas no anexo G1 a alienação onerosa, em 2009 ou anos anteriores, de acções detidas por mais de 12 meses, nos seguintes termos:
«Este anexo destina-se a declarar a alienação onerosa de imóveis não sujeita a tributação, nos termos do n.º 4 do art. 4.º e do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, bem como a alienação de imóveis a fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (FIAH) e a sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (SIIAH) abrangidos pelo regime especial aprovado pelo art. 102.º e seguintes da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e ainda a alienação onerosa, efectuada nos anos de 2009 e anteriores, de acções detidas por mais de 12 meses».
Assim, tem de se concluir que, ao incluir as referências às alienações em causa no Quadro 8 do anexo G, o contribuinte não omitiu qualquer dever de declaração decorrente das regras aplicáveis à declaração modelo 3, pelo que não ocorreu erro que lhe seja imputável.
Por isso, o erro consubstanciado na aplicação de um regime que é considerado ilegal, à face da referida jurisprudência uniformizada, é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira que dispunha dos elementos relevantes para aplicar o regime nela adoptado.
3.4. Questão do abuso de direito
A Autoridade Tributária e Aduaneira imputa ao Requerente «venire contra factum proprium», por ter sido ele quem declarou as alienações em causa no Quadro 8 da declaração modelo 3 e vir, depois, impugnar a liquidação efectuada com base na sua declaração.
Porém, como resulta do que já se disse, era precisamente esse o quadro adequado para esse efeito, à face da Portaria n.º 1303/2010, pelo que o contribuinte não induziu em erro a Autoridade Tributária e Aduaneira, sendo este que, dispondo dos elementos necessários deveria, à face da referida jurisprudência uniformizada, ter efectuado a liquidação de forma diferente.
Por isso, não sendo imputável ao Requerente o erro de que enferma a liquidação, tem de se concluir que não pode considerar-se que não se está perante uma conduta do Requerente consubstancie «venire contra factum proprium».
3.5. Questão da falta de fundamentação da liquidação e da violação do direito de audição
Como resulta do teor expresso do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, a revisão oficiosa apenas é viável em casos de erro imputável aos serviços, o que afasta a relevância de vícios procedimentais e formais dos actos de liquidação, que não se enquadram no conceito de «erro», que abrange apenas o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito.
Por isso, não podem justificar a revisão da liquidação os vícios procedimental e formal imputados pelo Requerente.
Improcede, assim, o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de declaração de ilegalidade e anulação com fundamento nestes vícios.
3.6. Questão da ilegalidade da liquidação e do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa
Assente que se deve acatar a referida jurisprudência do Acórdão Uniformizador n.º 5/2015, tem de se entender que «as mais-valias decorrentes de actos de alienação de acções detidas há mais de 12 meses que tenham ocorrido antes da entrada em vigor da Lei nº 15/2010, de 26 de Julho, particularmente no período compreendido entre 1 de Janeiro e 26 de Julho de 2010, continuam a seguir o regime legal de não sujeição a tributação previsto no n.º 2, alínea a), do artigo 10º do Código do Imposto sobre Rendimento das Pessoas Singulares, e, como tal, não concorrem para a formação do saldo anual tributável de mais-valias a que se refere o artigo 43º do CIRS».
No caso em apreço, as alienações referidas nos campos 809 e 810 do Quadro 8 da declaração modelo 3 ocorreram no período compreendido entre 1 de Janeiro e 26 de Julho de 2010 e reportam-se acções detidas há mais de 12 meses, pelo que se tem de se concluir pela ilegalidade da sua relevância para efeitos de liquidação de IRS, pois ela era afastada
Por isso, a liquidação impugnada enferma de erro sobre os pressupostos de direito, por violação da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS.
Consequentemente, o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa enferma do mesmo vício.
Este vício justifica a declaração de ilegalidade da liquidação, na parte correspondente à tributação das mais-valias obtidas com a alienação de acções indicadas nos campos 809 e 810 da declaração modelo 3, bem como a respectiva anulação, nessa parte (artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo de 2015, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
4. Juros indemnizatórios
O Requerente pede reembolso da quantia paga e juros indemnizatórios.
Como consequência da anulação parcial da liquidação há lugar a reembolso da quantia indevidamente paga.
O n.º 1 do artigo 43.º da LGT reconhece o direito como quando se determinar em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços.
O pedido de revisão do acto tributário é equiparável a reclamação graciosa quando é apresentado dentro do prazo da reclamação administrativa, que se refere no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido n processo n.º 402/06.
Como também se refere no mesmo acórdão, «nos casos de revisão oficiosa da liquidação (quando não é feita a pedido do contribuinte, no prazo da reclamação administrativa, situação que é equiparável à de reclamação graciosa) (...) apenas há direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º, n.º 3, da LGT».
Este regime justifica-se pela falta de diligência do contribuinte em apresentar reclamação graciosa ou pedido de revisão no prazo desta, como se prevê no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Nestes casos, o contribuinte não tem direito a juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido, mas apenas a partir da data em que se completou um ano depois de ter apresentado o pedido de revisão do acto tributário, nos termos da referida alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT.
No caso em apreço, a norma à face da qual tem de ser aferida a existência de direito a juros indemnizatórios é a alínea c) deste n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que estabelece que eles são devidos «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».
Como decorre da matéria de facto fixada, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 26-06-2015, pelo que apenas a partir de 27-06-2016, data mais de um ano posterior a formulação do pedido, há direito a juros indemnizatórios.
Os juros indemnizatórios são devidos à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
O montante a reembolsar e os juros indemnizatórios deverão ser calculados em execução do presente acórdão.
5. Decisão
Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:
– julgar improcedentes as questões suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira como obstáculo à apreciação do mérito da causa;
– julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar ilegal a liquidação de IRS n.º 2011…, na parte em que teve subjacente as mais-valias obtidas com alienações de acções ocorridas antes de 27-07-2010 indicadas nos campos 809 e 810 do Quadro 8 do anexo G da declaração modelo 3 apresentada pelo Requerente relativamente ao ano de 2010;
– anular a liquidação n.º 2011 … nessa parte declarada ilegal;
– julgar procedentes os pedidos de reembolso da quantia paga indevidamente e de pagamento de juros indemnizatórios, a partir de 27-06-2016, à taxa legal supletiva, sobre o valor a reembolsar e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuar estes pagamentos.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 220.663,73.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 29-06-2016
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(Ricardo Marques Candeias)
(José Coutinho Pires)