Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 47/2016-T
Data da decisão: 2016-06-22  Selo  
Valor do pedido: € 11.401,92
Tema: IS - Verba 28.1 TGIS; Terreno para construção
Versão em PDF

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

  1. RELATÓRIO

 

A…, S.A., com sede na Rua…, …-… –…, com o NIPC …(doravante designada por Requerente), vem, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto do Selo (Verba 28.1, da TGIS) do ano de 2012, titulada pelos documentos de cobrança n.ºs 2013…, 2013… e 2013…, relativa ao prédio urbano inscrito sob o artigo … da freguesia de…, concelho de ..., no montante total de € 11 401,92, o que faz com os seguintes fundamentos:

 

1.      Questão prévia: do ato de liquidação impugnado e dos documentos de cobrança:

a.       A requerente foi notificada dos documentos de cobrança relativamente ao Imposto do Selo da verba 28.1, da TGIS, do ano de 2012, sem que tenha sido notificada da liquidação que lhe esteve subjacente, efetuada nos termos do n.º 7 do artigo 23.º, do Código do Imposto do Selo, que remete para os artigos 113.º a 118.º, do CIMI;

b.      A liquidação, que se não pode confundir com os documentos de cobrança, sendo da iniciativa da AT, deve ser previamente notificada aos contribuintes, para efeitos do artigo 60.º, da LGT;

c.        Não tendo sido notificada da liquidação de I. S. de 2012, a Requerente apresentou reclamação graciosa, em 23/07/2013, apenas fazendo referência aos documentos de cobrança de que havia sido notificada (1.ª e 2.ª prestações);

d.      Do indeferimento da reclamação graciosa, a Requerente deduziu recurso hierárquico, em 4/10/2013, mencionando apenas as notas de cobrança das 1.ª e 2.ª prestações, por ainda não ter sido notificada para o pagamento da 3.ª prestação;

e.       Em 10/12/2013, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de imposto do selo de 2012, na sequência da nota de cobrança da 3.ª prestação;

f.       Esta última reclamação graciosa mereceu decisão de arquivamento, com o fundamento de que “(…) Ora verifica-se que, no caso, a Administração Tributária (AT) se pronunciou, há menos de 2 anos, sobre o pedido do mesmo autor, a ora requerente, com idêntico objecto e fundamento, pelo que não existe dever de decisão por parte da AT.”;

g.      O ato tributário cuja legalidade se contestou na reclamação graciosa e no recurso hierárquico foi o ato de liquidação e não as notas de cobrança, como assentiu a AT;

 

2.      Da falta de fundamentação de facto e de direito e da violação de lei na liquidação sub judice:

a.       A liquidação de Imposto do Selo da verba 28.1, da TGIS, com cobrança repartida em três prestações, incidiu sobre a propriedade do prédio urbano identificado, com o VPT de € 1 140 191,75;

b.       O referido prédio urbano é um terreno para construção, cuja avaliação foi efetuada no pressuposto de que a construção a implantar se destinaria a habitação;

c.       Porém, não foi requerida nem emitida qualquer licença ou autorização de construção ou edificação aprovada pela entidade competente, nem iniciada qualquer construção;

d.      Assim, entende a Requerente que não pode falar-se de qualquer afetação habitacional, encontrando-se o lote de terreno excluído da tributação a que se refere a verba 28.1, da TGIS;

e.       A AT labora em erro ao aplicar, ao caso concreto, um conceito de afetação meramente virtual e não efetivo, pois a expressão “afetação habitacional” pressupõe uma efetiva utilização do prédio para fins habitacionais e não a possibilidade ou potencialidade que o mesmo possa vir a ter;

f.       Posta em crise a afetação habitacional do prédio à data do facto tributário (31 de dezembro de 2012), a verba 28.1 da TGIS não era aplicável;

3.      Da dupla tributação:

a.       Entende a Requerente que a liquidação sub judice é ainda ilegal por tributar o mesmo facto ou situação jurídica já objeto de tributação em sede de IMI;

b.      Na medida em que, na qualidade de proprietária de imóveis de VPT superior a € 1 000 000,00, inscritos na matriz com afetação habitacional, a Requerente é sujeito passivo de dois impostos sobre o mesmo património;

c.       A liquidação de Imposto do Selo que impugna viola o princípio da proibição da dupla tributação;

4.        Da inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade:

a.       A tributação em sede de Imposto do Selo, ao incidir apenas sobre os imóveis destinados a fins habitacionais, viola o princípio da igualdade fiscal;

b.      O argumento da necessidade de tributação dos prédios de luxo é discriminatório, por apenas atingir os prédios de afetação habitacional, ainda que possam ser fonte de rendimentos tributados em sede de IRS ou IRC;

c.       A tributação em sede de Imposto do Selo (verba 28.1, da TGIS) viola os princípios da igualdade dos contribuintes e da não discriminação no tratamento fiscal de situações idênticas, o que determina a inconstitucionalidade e inaplicabilidade ao caso concreto, da Lei n.º 55-A/2012;

5.      Da tempestividade do pedido:

a.       A Requerente foi notificada do indeferimento do recurso hierárquico, em 8 de janeiro de 2016;

b.      Nos termos do n.º 1 do artigo 102.º, do CPPT, aplicável subsidiariamente ao RJAT, a Requerente dispõe de 90 dias após notificação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico para apresentar impugnação judicial ou pedido de pronúncia arbitral.

 

Termina a Requerente por formular o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação do Imposto do Selo da verba 28.1, da TGIS, referente ao ano de 2012 e ao imóvel identificado, juntando procuração e documentos e atribuindo ao pedido o valor económico de € 11 401,92.

 

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT remeteu aos autos o processo administrativo e apresentou resposta, na qual defende que a liquidação impugnada se deve manter, invocando, em síntese, os fundamentos que seguem:

 

  1. A liquidação impugnada pela Requerente resulta da aplicação direta da norma de incidência, sem qualquer apreciação subjetiva ou discricionária;
  2. A liquidação incidiu sobre um terreno para construção ao qual foi atribuída afetação habitacional no âmbito da respetiva avaliação, tal como consta da matriz, que está sujeito a Imposto do Selo;
  3. O facto de, na norma de incidência – verba 28.1 da TGIS – se ter positivado o prédio com afectação habitacional em detrimento do prédio habitacional, faz apelo ao coeficiente de afectação, cf. artigo 41 do CIMI, que se aplica, indistintamente, a todos os prédios urbanos”;
  4. A verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo, aditada pela Lei n.º 55-A/2012, determina que tenha passado a recair imposto do selo sobre a propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédio urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do CIMI, seja igual ou superior a € 1 000 000,00;
  5. Não existindo no Código do Imposto do Selo definição do que se entende por “prédio urbano”, “terreno para construção” e “afectação habitacional” é necessário recorrer subsidiariamente ao CIMI, de acordo com o previsto no artigo 67.º, n.º 2 do CIS, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29/10;
  6. O n.º 1 do artigo 6.º do CIMI identifica as espécies de prédios urbanos, integrando os “terrenos para construção” como sendo os «…terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações…»;
  7. Já a noção de ‘prédio urbano’ encontra assento na parte relativa à avaliação dos imóveis, uma vez que, a finalidade da avaliação do imóvel é incorporar-lhe valor, constituindo um factor de distinção determinante – coeficiente – para efeitos de avaliação”;
  8. O legislador optou por determinar a aplicação da metodologia de avaliação dos prédios em geral à avaliação dos ‘terrenos para construção’, como resulta da expressão ‘valor das edificações autorizadas’ a que se refere o artigo 45º, n.º 2 do CIMI e aplicando-lhe por conseguinte o coeficiente de afectação que vem previsto no artigo 41º do CIMI”;
  9. No caso concreto, estamos perante um lote de terreno para construção urbana, com as áreas de implantação do edifício e de construção perfeitamente definidas e identificadas na caderneta predial urbana, sendo patente a afectação habitacional do edifício;
  10. O legislador não refere “prédios destinados a habitação”, tendo optado pela noção “afectação habitacional”, expressão mais ampla, “cujo sentido se vai encontrar na necessidade de integrar outras realidades para além das identificadas no artigo 6º, n.º 1, alínea a) do CIMI”, uma vez que, antes da efetiva edificação do prédio, já é possível determinar a afetação do terreno;
  11. A verba 28 da TGIS é uma norma geral e abstrata, aplicável de forma indistinta a todos os casos em que se verifiquem os pressupostos de facto e de direito, tendo a sua criação decorrido da “necessidade de corrigir o défice orçamental, sem descurar a justiça do sistema fiscal e de «…promover o alargamento da base tributável, exigindo um esforço acrescido aos contribuintes com rendimentos mais elevados…»;
  12. Acresce que fundadas razões também com assento constitucional, justificaram a criação da norma contestada, designadamente o respeito pelos princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva”;
  13. “O próprio princípio constitucional da igualdade consignado no artigo 13º da CRP «obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedido a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante»;
  14. A tributação em sede de IS obedece ao critério de adequação, na exacta medida em que visa a tributação da riqueza consubstanciada na propriedade de imóveis de elevado valor, surgindo num contexto de crise económica que não pode de todo ser ignorado”;
  15. Assim, encontra-se legitimada a opção por este mecanismo de obtenção da receita, o qual apenas seria censurável, face ao princípio da proporcionalidade, se resultasse manifestamente indefensável”;
  16. “ (…) Pelo que, temos, necessariamente concluir que os actos tributários em causa não violaram qualquer princípio legal, devendo, assim ser mantidos”.

 

Termina a AT por requerer a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, bem como da produção de alegações, uma vez que se encontram “fixados os factos sobre os quais é requerida a decisão” e porque “O que está aqui em causa é tão somente a interpretação da verba 28 do TGIS, aditada pelo artigo 4º da Lei n.º 55-A/2012, de 29/10, em articulação com o artigo 6º, n.º 1, alíneas f) e i) do mesmo diploma legal”.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no CAAD em 29 de janeiro de 2016, tendo sido aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 12 de fevereiro de 2016.

 

A Requerente informou que não pretendia utilizar a faculdade de designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º, do RJAT, foi a signatária nomeada árbitro pelo Exm.º Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, encargo que aceitou no prazo legalmente previsto, sem oposição das Partes.

 

O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído em 14 de abril de 2016 e é materialmente competente para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

As Partes prescindiram da realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como da produção de alegações, quer orais, quer escritas.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

2.1. Factos que se consideram provados:

 

2.1.1. Em 31 de dezembro de 2012, a Requerente era proprietária do prédio urbano inscrito sob o artigo … da freguesia de…, concelho de ..., descrito na matriz como terreno para construção e que, àquela data, tinha o valor patrimonial tributário (VPT) de € 1 140 191,75;

2.1.2. Sobre o referido VPT constante da matriz, a AT efetuou, em 21 de março de 2013, a liquidação de Imposto do Selo da verba 28.1, da TGIS, com o n.º 2012…, da quantia de € 11 401,92, para pagamento em três prestações, nos meses de abril, julho e novembro de 2013, respetivamente;

2.1.3. Em 24 de julho de 2013, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de Imposto do Selo do ano de 2012 (1.ª e 2.ª prestações), com fundamentos idênticos aos do presente pedido de pronúncia arbitral e que deu origem à abertura do procedimento n.º …2013…;

2.1.4. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do Senhor Diretor de Finanças de…, conforme a notificação expedida à Requerente pelo ofício n.º…, de 11 de setembro de 2013, da Divisão de Justiça Tributária daquela Direção de Finanças;

2.1.5. Em 10 de dezembro de 2013, a Requerente apresentou reclamação graciosa para anulação da 3.ª prestação da liquidação de Imposto do Selo de 2012, que deu origem ao processo n.º …2014…;

2.1.6. A reclamação graciosa n.º …2014… mereceu decisão de arquivamento, notificada à Requerente através do ofício n.º … da Direção de Finanças de…, datado de 16 de dezembro de 2014, com os fundamentos de que “o objeto da reclamação não será a nota de cobrança emitida, e referente a esta concreta prestação, mas a liquidação que lhe está subjacente, ou seja, a liquidação n.º 2012…, efetuada em 2013-03-21 (…)”; “(…) tendo por base os mesmos fundamentos, em 2013-07-23 a ora reclamante apresentou reclamação graciosa (…) que correu termos sob o n.º …2013…, e no âmbito do qual a supra referida liquidação, com o n.º 2012 … foi objeto de análise (…)” e “(…) Ora verifica-se que, no caso, a Administração Tributária (AT) se pronunciou, há menos de dois anos, sobre o pedido do mesmo autor, a ora reclamante, com idêntico objeto e fundamento, pelo que não existe dever de decisão por parte da AT.”;

2.1.7. Em 7 de outubro de 2013, na sequência da notificação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º …2013…, a Requerente apresentou recurso hierárquico, que viria a ser autuado no Serviço de Finanças de …em 15 de dezembro de 2015, sob o n.º …2013…;

2.1.8. O referido recurso hierárquico n.º …2013… foi objeto de indeferimento, por despacho da Senhora Diretora de Serviços do IMT, de 18 de dezembro de 2015, notificado à Requerente em 6 de janeiro de 2016, pelo ofício n.º…, da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de…;

2.1.9. A falta de pagamento da liquidação n.º 2012… deu origem à instauração dos processos de execução fiscal n.ºs …2013… e apensos, que se encontram suspensos, mediante prestação de garantia (hipoteca).

 

2.2. Fundamentação da matéria de facto provada:

A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada resultou da análise crítica da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e ao processo administrativo, apresentado conjuntamente com a resposta da Requerida.

 

2.3. Factos não provados

Não existem factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO – FUNDAMENTAÇÃO

3.1.Questão prévia – do objeto do pedido de pronúncia arbitral

 

Coloca a Requerente, como questão prévia, a identificação do ato objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, esclarecendo que o mesmo consiste no ato de liquidação de Imposto do Selo do ano de 2012 com o n.º 2012…, no valor de € 11 401,92 e não cada uma das notas de cobrança relativas às prestações em que a liquidação se subdividiu.

 

Efetivamente, tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba 28.1, da TGIS, estabelece o n.º 7 do artigo 23.º, do Código do Imposto do Selo, aditado pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, que o imposto é liquidado anualmente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras do CIMI.

 

Por seu turno, dispõe o n.º 5 do artigo 44.º, do Código do Imposto do Selo, aditado pela mesma Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, que “o imposto é pago nos prazos, termos e condições definidos no artigo 120.º do CIMI”, donde resulta a emissão de uma única liquidação anual e não de tantas liquidações quantas as prestações em que a liquidação se subdivide, para efeitos de pagamento. Deverá assim entender-se que o ato impugnável é o ato de liquidação e não cada uma daquelas prestações.

 

E foi exatamente esse o entendimento expresso pela AT, quer na decisão da reclamação graciosa n.º …2013…, em que a Requerente pediu a anulação das 1.ª e 2.ª prestações da liquidação do Imposto do Selo de 2012, quer na decisão de arquivamento da reclamação graciosa n.º …2014…, referente à terceira prestação, em que expressamente considerou não existir dever de pronúncia, dado que a AT se havia pronunciado há menos de dois anos “sobre o pedido do mesmo autor, a ora reclamante, com idêntico objeto e fundamento”.

 

Não tendo a AT colocado em dúvida, nem em sede administrativa, nem em sede arbitral, que o objeto das reclamações graciosas, do recurso hierárquico n.º …2013… e do presente pedido de pronúncia arbitral fosse o ato tributário de liquidação do Imposto do Selo do ano de 2012, deverá concluir-se ser esse o ato impugnado, não inexistindo, assim, qualquer óbice ao conhecimento do mérito da causa.

 

3.2.Ordem de apreciação dos vícios

 

A principal questão trazida aos autos pela Requerente é a de saber se, em 2012, os terrenos para construção, com valor patrimonial tributário de valor igual ou superior a € 1 000 000,00, se encontravam abrangidos pela norma de incidência da verba 28.1, da TGIS, na sua redação inicial, em que se estabelecia a incidência do Imposto do Selo sobre as seguintes situações:

«28 — Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 — sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 — Por prédio com afetação habitacional — 1 %;

28.2 — Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças — 7,5 %.»

 

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 124.º, do CPPT, de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, não existindo vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado,  deverá o tribunal apreciar os vícios arguidos que determinem a sua anulabilidade, dispondo o n.º 2, alínea b), do mesmo artigo, que, quanto a estes últimos, a ordem do seu conhecimento será a indicada pelo impugnante, sempre que seja estabelecida entre eles uma relação de subsidiariedade, sem prejuízo de serem prioritariamente conhecidos os vícios cuja procedência assegure a mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

Afigurando-se que, da procedência do vício de violação de lei, por erro na aplicação do direito, decorrente da errada interpretação da norma prevista na verba n.º 28.1, da TGIS, resultará a mais eficaz tutela dos interesses ofendidos, passaremos à sua apreciação.

 

3.3.Do conceito de prédio urbano com afetação habitacional

 

Na sua redação inicial, aplicável à situação em análise, a verba 28.1, da TGIS, dispunha que se encontravam sujeitas a imposto do selo a propriedade, o usufruto e o direito de superfície dos prédios urbanos “com afetação habitacional”, cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do CIMI, fosse igual ou superior a € 1 000 000,00, sem que o Código do Imposto do Selo contivesse qualquer definição do conceito de prédio com afetação habitacional.

 

Tal definição deverá, em princípio, ser encontrada nas normas do Código do IMI, para cuja aplicação subsidiária remete, em bloco, o n.º 2 do artigo 67.º, do Código do Imposto do Selo, aditado pela mesma Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, ao estatuir que “2 - Às matérias não reguladas no presente Código respeitantes à verba n.º 28 da Tabela Geral aplica-se, subsidiariamente, o disposto no CIMI.

 

Contudo, não obstante a remissão expressa para o Código do IMI, que o legislador quis consagrar no n.º 2 do artigo 67.º, do Código do Imposto do Selo, por referência às matérias respeitantes à Verba 28, da TGIS, também aquele nos não dá o conceito de “prédios com afetação habitacional”.

 

De facto, o artigo 6.º, do CIMI, inserido no Capítulo I, sob a epígrafe “Incidência”, não utiliza aquela expressão ao enumerar, no n.º 1, as espécies de prédios urbanos, que poderão classificar-se como: a) Habitacionais; b) Comerciais, industriais ou para serviços; c) Terrenos para construção; d) Outros, delimitando os n.ºs 2, 3 e 4, do mesmo artigo, o que deve entender-se por cada uma daquelas designações.

 

Assim, “Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins” (n.º 2) e terrenos para construção “os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, excetuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afetos a espaços, infraestruturas ou equipamentos públicos” (n.º 3).

 

Ora, tendo em consideração os elementos interpretativos a que alude o artigo 9.º, do Código Civil e, a fim de “reconstituir (…) o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, deverá concluir-se que a espécie de prédio urbano que melhor corresponde ao conceito de “prédio com afetação habitacional” é a de prédios habitacionais, enquanto edifícios ou construções licenciados para habitação ou que, na falta de licença, tenham como destino normal a habitação (fins habitacionais), tendo o legislador sido muito claro na distinção entre prédios habitacionais e terrenos para construção.

 

No entanto, defende a Requerida que “A noção de afetação do prédio urbano encontra assento na parte relativa à avaliação dos imóveis, porquanto a avaliação (finalidade) incorpora valor ao imóvel, constituindo um facto de distinção determinante (coeficiente) para efeitos de avaliação”, louvando-se no Acórdão do TCA Sul, proferido em 14/02/2012, no processo n.º 04950/11, que parcialmente transcreve.

 

Porém, o vocábulo “afetação” apenas surge nos artigos 38.º e seguintes do Código do IMI, inseridos sistematicamente no Capítulo VI – Do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos; Secção II – Das operações de avaliação.

 

Concretamente, o artigo 41.º daquele Código, sob a epígrafe “Coeficiente de afetação”, determina que este “depende do tipo de utilização dos prédios edificados”.

 

Poderá assim concluir-se, seguramente, que, de acordo com o artigo 41.º, do Código do IMI, o “Coeficiente de afetação” se refere sempre a edificações ou construções, pois que “depende do tipo de utilização dos prédios edificados”; donde parece resultar também segura a conclusão de que a palavra “afetação” tem o significado de “utilização”.

 

Como se avançou já, os artigos 38.º e seguintes, do Código do IMI, encontram-se sistematicamente inseridos no Capítulo relativo à determinação do valor patrimonial tributário.

 

Constituindo o valor patrimonial tributário a matéria coletável sobre a qual irá incidir a taxa do imposto, dificilmente se poderá aceitar que das regras relativas à avaliação dos prédios urbanos se possa extrair qualquer regra de incidência, enquanto fase que, na teoria e técnica dos impostos, precede, logicamente, a da determinação da matéria coletável.

 

E, ainda que tal “coeficiente de afetação” possa ser utilizado na avaliação dos terrenos para construção, por poder reportar-se a edificações futuras, autorizadas ou licenciadas para determinado tipo de utilização, como foi admitido pelo supracitado Acórdão do TCA Sul (em sentido contrário, veja-se o Acórdão do STA, de 18/11/2009, processo 0765/09), tal não determinará, por certo, que os terrenos para construção possam passar a ser havidos como “prédios com afetação habitacional”, dada a classificação taxativa dos prédios urbanos, estabelecida pelo já citado artigo 6.º, do Código do IMI, enquanto norma de incidência objetiva, a qual traça uma distinção clara entre prédios habitacionais e terrenos para construção.

 

Aliás, de acordo com a jurisprudência reiterada do STA (desde o Acórdão de 9 de abril de 2014, no processo n.º 1870/13, até ao mais recente Acórdão de 28 de outubro de 2015, no processo n.º 01148/15, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/ que, com a devida vénia, se transcrevem), “Estranho seria, aliás, que a determinação do âmbito da norma de incidência objetiva da verba n.º 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo se encontrasse, ao fim e ao cabo, nas normas de determinação do valor patrimonial tributário do Código do IMI, e que a imprecisão terminológica do legislador na redação daquela regra fosse, afinal, elucidada e finalmente esclarecida por via de uma remissão, indireta e equívoca, para o coeficiente de afetação estabelecido pelo legislador em relação a prédios edificados (artigo 41.º do Código do IMI)”.

 

Por outo lado, tal como tem sido referenciado pela jurisprudência, quer do STA, quer do CAAD, “Aquando da apresentação e discussão, no Parlamento, da proposta de lei n.º 96/XII (2.ª), o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais referiu expressamente: “O Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros.”

 

De acordo com o que vem sendo exposto, se a letra da lei – da Verba 28.1 da TGIS – (elemento gramatical) não precisa suficientemente o conceito de “prédio com afetação habitacional”, já o elemento lógico (“o elemento sistemático e a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”) permite concluir, antecipando a decisão, como tem vindo a ser concluído pelo Supremo Tribunal Administrativo nos supracitados Acórdãos que, “(…) resultando do artigo 6.º do Código do IMI uma clara distinção entre prédios urbanos “habitacionais” e “terrenos para construção”, não podem estes ser considerados como “prédios com afetação habitacional” para efeitos do disposto na verba n.º 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, na sua redação originária, que lhe foi conferida pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro”, o que justifica a anulação da liquidação impugnada, por erro nos pressupostos em que assentou a sua emissão.

 

3.4.Questões de conhecimento prejudicado

 

Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT), sendo que as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

 

Em face da solução dada à questão relativa ao conceito de “prédio com afetação habitacional”, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas pela Requerente, nomeadamente as da eventual dupla tributação e da invocada inconstitucionalidade da norma de incidência contida na Verba 28.1, da TGIS, por a mesma não ser passível da interpretação que, no caso, foi feita pela AT.

 

  1. DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º, do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral, declarar a ilegalidade da liquidação de Imposto do Selo impugnada, por erro nos pressupostos de direito, determinando a sua anulação, com todas as consequências legais.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 11 401,92 (onze mil, quatrocentos e um euros e noventa e dois cêntimos).

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 918,00 (novecentos e dezoito euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 22 de junho de 2016.

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.