Carla Castelo Trindade, Árbitra designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar este tribunal arbitral toma a seguinte:
Decisão Arbitral
I – RELATÓRIO
Em 29 de Fevereiro de 2016, a “A…, Lda.”, titular do número de identificação fiscal …, com sede na …, n.º …, …, …-… … (doravante Requerente), apresentou pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em matéria tributária, aprovado pelo Decreto-Lei 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).
Mediante o pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, a Requerente pretende a anulação dos actos de liquidação de Imposto do Selo, efectuados ao abrigo da verba 28.1 da TGIS, relativos ao ano de 2014, ao qual dizem respeito as terceiras prestações no valor global de € 7.615,82 (sete mil, seiscentos e quinze euros e oitenta e dois cêntimos), correspondentes às notas de cobrança n.ºs 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 ….
Com efeito, não se conformando com as liquidações de Imposto do Selo acima identificadas a Requerente solicitou a constituição deste tribunal arbitral, peticionando a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação de Imposto do Selo, com fundamento em, ao que se julga:
i. Vício de violação de lei por errónea interpretação e aplicação da Verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS);
ii. Inconstitucionalidade do disposto na verba n.º 28 da TGIS, por violação dos princípios da equidade, da legalidade, da capacidade contributiva, da justiça, da igualdade e proporcionalidade fiscal, nos termos do disposto nos artigos 103.º e 104.º da CRP, na interpretação que dele faz a Autoridade Tributária e Aduaneira.
Com a petição juntou 11 documentos.
Como a Requerente optou pela não designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitra do tribunal arbitral singular a Dra. Carla Castelo Trindade que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram notificadas dessa designação, não tendo sido apresentado qualquer pedido de recusa da designação como árbitro pela Dra. Carla Castelo Trindade.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 16 de Maio de 2016.
Em 9 de Junho de 2016, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”) apresentou resposta na qual, por um lado, se defendeu por excepção, alegando a inimpugnabilidade das prestações do acto tributário de liquidação de Imposto do Selo, ao abrigo do disposto no artigo 89.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) (a que corresponde o actual artigo 89.º, n.º 4, alínea i) do CPTA, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro) ex vi, artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, e, por outro, por impugnação, defendendo a improcedência total do pedido de pronúncia arbitral e propugnando pela manutenção das notas de cobrança das terceiras prestações do Imposto do Selo, por consubstanciarem a correcta interpretação da Verba 28 da Tabela Geral aditada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Dezembro.
Em rigor considera este Tribunal que onde na resposta da Requerida se lê “primeira e segundas prestações” se trata de um manifesto lapso porquanto o que se quis dizer foi “terceiras prestações”.
Atendendo a que, no caso, não se verificava nenhuma das finalidades que legalmente estão cometidas à reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e, tendo em conta a posição tomada pelas partes nos articulados, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º alínea c) e 19.º do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição de actos inúteis, dispensou-se a realização desta reunião tendo as partes sido notificadas para apresentar alegações.
Não foram apresentadas alegações.
II. SANEAMENTO
O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias e são legítimas.
A Requerida invocou, em sede de resposta, a excepção dilatória de inimpugnabilidade das prestações do acto tributário de liquidação de Imposto do Selo, em face do disposto nos artigos 23.º, n.º 7 do Código do Imposto do Selo e 113.º, n.º 1 e 120.º do Código do IMI, ao abrigo do disposto no artigo 89.º, n.º 4, alínea i) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.
A eventual procedência da excepção invocada obsta ao conhecimento do mérito da causa, razão pela qual cumpre, desde já, decidir sobre a mesma.
II.A. Excepção de inimpugnabilidade das prestações dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo
Como se referiu, a Requerida invocou, em sede de resposta, a excepção dilatória de inimpugnabilidade das prestações do acto tributário de liquidação de Imposto do Selo. Tudo porque, no entender da Administração Tributária, o objecto da impugnação judicial ou do processo arbitral tributário é o acto tributário de liquidação e a terceira prestação (assim como a primeira e a segunda), não é, em si mesma, um acto tributário, mas uma mera divisão da liquidação global, efectuada anualmente. Assumiu, para o efeito, a Requerida que “[o] objecto do presente pedido de pronúncia arbitral é a anulação dos documentos de cobrança para pagamento das 3ªs prestações, com prazo limite de pagamento Novembro de 2015, das liquidações da verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo, do ano de 2014, de 20/03/2015, sobre a soma do valor patrimonial tributário dos andares com afectação habitacional que compõem o prédio urbano acima identificado”.
Não lhe assiste, no entanto, razão. Isto pese embora as decisões que têm sido proferidas por alguns tribunais arbitrais, designadamente a decisão proferida no âmbito do processo n.º 557/2015-T.
Veja-se porquê:
O itinerário cognoscitivo deste tribunal parte de uma distinção entre qualificação jurídica do acto de liquidação de Imposto do Selo como acto tributário ainda que concretizado para efeitos de pagamento em dois ou três momentos diferentes no tempo e pagamento propriamente dito. A primeira questão dará lugar a que se venha a considerar admissível a impugnabilidade das prestações de actos tributários de liquidação de Imposto do Selo, e, consequentemente, a competência deste tribunal; a segunda dará lugar questões de litispendência, caso julgado ou excepções de intempestividade. Em rigor no caso em apreço dará lugar à declaração da litispendência e consequente absolvição da instância.
Senão vejamos:
Só há, como se verá, uma liquidação de Imposto do Selo. O imposto decorrente destas liquidações pode é ser pago em três vezes. Se o contribuinte quer discutir a legalidade do imposto, o acto que está a ser sindicado é o acto de liquidação que lhe deu lugar, o prazo de reacção é que se conta da data da primeira, da segunda ou da terceira prestação, como veremos.
Como se sabe, a liquidação constitui a operação através da qual se aplica a taxa de imposto à matéria tributável, apurando-se, assim, o valor devido pelo contribuinte. Neste seguimento o acto de liquidação é o acto administrativo através do qual aquela operação de cálculo do imposto devido é executada pela Administração Tributária.
CASALTA NABAIS distingue entre liquidação em sentido estrito e liquidação lato sensu, incluindo nesta, para além da operação de liquidação stricto sensu - aplicação da taxa à matéria colectável e consequente determinação da colecta –, outras operações destinadas a apurar o montante do imposto, incluindo o lançamento subjectivo – identificação do contribuinte ou sujeito passivo da relação jurídica fiscal –, o lançamento objectivo – determinação da matéria colectável de imposto, identificação da(s) taxa(s) a aplicar e eventuais deduções à colecta apurada O mesmo autor, referindo-se à liquidação em sentido estrito, inclui a liquidação no segundo momento da dinâmica dos impostos, esclarecendo que:
“[pela] liquidação, por seu turno, determina-se a colecta aplicando a taxa à matéria colectável, colecta que vem a coincidir com o imposto a pagar, a menos que haja lugar a deduções à colecta, caso em que a liquidação também abarca esta última operação” (Cf. Casalta Nabais (2015), “Manual de Direito Fiscal”, 297 e 62).
Para além disso:
“A liquidação constituiu [também] um acto administrativo exequível, executivo, semi-executório e que, atento o seu carácter, por um lado, estritamente vinculado e, por outro, largamente massificado, se presta sobremaneira a ter natureza informática, ou seja, a ser praticado com recurso a meios informáticos, como já acontece, pois o nosso sistema prevê, impondo mesmo, a entrega e consulta das declarações dos contribuintes e de terceiros por via informática, isto é, de declarações electrónicas” (Cf. Casalta Nabais (2015), 301-302).
No que diz respeito à liquidação do Imposto do Selo é de referir que o artigo 3.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, introduziu alterações a diversos artigos do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, de entre os quais o seu 44.º, cujo n.º 5 passou a dispor que:
“5- Havendo lugar a liquidação do imposto a que se refere verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é pago nos prazos, termos e condições definidos no artigo 120.º do CIMI.”
E, por sua vez, o artigo 120.º do Código do IMI, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo artigo 215.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2013), tem a seguinte redacção:
“Artigo 120.º - Prazo de pagamento
1 - O imposto deve ser pago:
a) Em uma prestação, no mês de abril, quando o seu montante seja igual ou inferior a € 250;
b) Em duas prestações, nos meses de abril e novembro, quando o seu montante seja superior a € 250 e igual ou inferior a € 500;
c) Em três prestações, nos meses de abril, julho e novembro, quando o seu montante seja superior a € 500.
2 – (…).
3 – (…).
4 - No caso previsto nos n.ºs 1 e 3, o não pagamento de uma prestação ou de uma anuidade, no prazo estabelecido, implica o imediato vencimento das restantes.
5 - Se o atraso na liquidação for imputável ao sujeito passivo é este notificado para proceder ao pagamento do imposto respeitante a todos os anos em atraso.” (destacados nossos)
Destas normas decorre que o pagamento do Imposto do Selo deve ser feito em três prestações, nos meses de Abril, Julho e Novembro, quando o seu montante seja superior a € 500.
Aqui há que deixar claro um ponto.
Uma prestação não equivale a uma liquidação de imposto. Uma prestação é parte de uma liquidação de imposto que é dividida no tempo para efeitos de pagamento. Neste ponto, assiste razão à Requerida. Não pode é a Requerida retirar deste ponto a conclusão de que se assim é o acto não é sindicável.
De facto, momentos de liquidação e momentos de pagamento são claramente individualizados na lei.
Para efeitos de pagamento já referimos as regras constantes da lei. Vejamos agora as regras para efeitos de liquidação.
Nos termos do n.º 7 do artigo 23.º do Código do Imposto do Selo, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 3.ºda Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro:
“7 - Tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMI” (destacado nosso).
Vale a pena reforçar que a liquidação do Imposto do Selo é, nos termos do n.º 7 do artigo 23.º do respectivo Código, só uma. E é efectuada anualmente. Sendo que o seu pagamento pode, nos termos da lei – maxime do artigo 120.º do Código do IMI – ocorrer em três prestações cujo somatório perfazerá, à partida, o montante global da liquidação anual.
Ora, como um tribunal arbitral tributário já entendeu, no Processo n.º 726/2014-T, a expressão “o imposto é liquidado anualmente” indicia que é efectuada uma única liquidação anual, embora a mesma possa ser dividida, para efeitos de pagamento, em prestações, e não em tantas liquidações quantas as prestações em que o débito deva ser satisfeito – “a divisão de uma liquidação em prestações não passará, assim, de uma mera técnica de arrecadação de receitas” e, acrescentamos nós, de repartição do encargo do imposto pelo sujeito passivo.
Na verdade, relativamente à liquidação de Imposto do Selo, tem vindo a ser reiteradamente afirmado, em diversas decisões de tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD que (neste sentido, entre outras, as decisões proferidas nos processos n.ºs 205/2013-T, 408/2014-T, 726/2014-T, 736/2014-T, 90/2015-T e 137/2015-T):
“a liquidação de imposto é só uma e só ela constituirá um acto lesivo, susceptível de ser objecto de uma única impugnação, pelo que, quando a lei prevê o seu pagamento em varias prestações, escalonadas no tempo, a anulação do acto tributário terá consequências relativamente a todas elas, fazendo cessar a obrigação de pagar ou impondo a obrigação de restituição dos montantes de imposto já pagos pelo sujeito passivo, bem como o ressarcimento da situação através do pagamento de juros indemnizatórios, tudo a cargo da Autoridade Tributária.” (decisão arbitral proferida no processo n.º 90/2015-T).
E aqui concordamos com as decisões acima referidas.
Porém, não se confunda.
Dizer que a liquidação de Imposto do Selo é só uma, e que não há tantas liquidações quantas as prestações, negando assim a sindicabilidade autónoma e individual de cada uma das prestações, não significa que se negue de todo a sindicabilidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo que, para efeitos de pagamento, são divididos em duas ou três prestações.
Ou seja, não há dúvida que temos apenas um acto de liquidação do Imposto do Selo que, por força do disposto no artigo 120.º do Código do IMI, subsidiariamente aplicável, deve ser pago em três prestações. Cada prestação constitui apenas o pagamento tripartido do mesmo acto de liquidação do imposto (do Selo) em causa.
Este foi também o entendimento de um tribunal arbitral tributário, no processo n.º 479/2015-T, no qual se entendeu que:
“Em suma, e da conjugação das disposições legais acima referidas, é possível concluir que o Imposto do Selo é liquidado anualmente, não sendo o pagamento em prestações mais do que uma técnica de arrecadação do imposto e não um seu pagamento parcial. [5]
Desta feita, a liquidação é só uma e só ela constitui acto lesivo, susceptível de ser impugnado. (…)
Ou seja, requer-se a declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo, a que correspondem as respectivas prestações de pagamento.
Por todo o exposto resulta que, ao contrário do que refere a AT, o objecto do pedido de pronúncia arbitral é o acto tributário de liquidação e não cada uma das prestações de imposto do selo individualmente consideradas”.(…)
Soçobra, por isso, a argumentação invocada pela AT relativamente à incompetência do tribunal arbitral, bem como à inimpugnabilidade dos actos, pelo que se julga improcedente a verificação das excepções em apreço”.
Olhe-se então ao caso em concreto:
Relativamente ao prédio, em propriedade total, sito na … n.º …, inscrito sob a matriz predial urbana sob o artigo … em 2015, foi emitido um acto de liquidação de Imposto do Selo sobre o valor patrimonial de cada um dos andares/divisões susceptíveis de utilização independente, totalizando um valor sujeito a imposto de € 2.284.750,00 (cf. Doc. 1 do pedido de constituição de tribunal arbitral).
Este acto de liquidação deu lugar à emissão de notas de cobrança, por cada andar/divisão susceptível de utilização independente, para pagamento em três prestações. Todas elas parte integrante do acto de liquidação.
Os actos de liquidação de Imposto do Selo em questão deram, portanto, lugar, a uma primeira prestação, cujo prazo para pagamento era 30 de Abril de 2015. Deram também lugar a uma segunda prestação, cujo prazo pagamento era 31 de Julho de 2015. Dando por fim lugar a uma terceira prestação, no valor de € 7.615,82 – à qual correspondem as notas de cobrança n.ºs 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 …; 2015 … – e cujo prazo para pagamento era 30 de Novembro de 2015.
Deste modo, trata-se de um só acto de liquidação de imposto, emitido sobre o VPT da parte do prédio afecta à habitação, embora pago em três prestações, sendo que cada nota de cobrança, parte integrante de uma dada prestação – insista-se do mesmo acto tributário – diz respeito a uma divisão/andar susceptível de utilização independente.
E é a legalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo que a Requerente contesta, ainda que tenha apresentado um pedido de constituição de tribunal arbitral para as primeiras duas prestações – processo 666/2015-T – e um outro pedido – o actual – para as terceiras prestações. Cada prestação faz parte/está incluída, dentro do valor total de imposto liquidado pela Requerida. A Requerente contesta aqui parte – a parte equivalente à terceira prestação – de um todo – os actos de liquidação de Imposto de Selo emitidos.
Uma vez mais, não há dúvida que a liquidação de Imposto do Selo é só uma e que se faz anualmente. Também não há dúvida que acto de liquidação não se pode confundir com pagamento. Também não temos grandes dúvidas que quando o pagamento é bi ou tripartido o acto de liquidação que lhes dá origem não se descaracteriza em nota de cobrança ou em aparência de acto tributário na medida em que cada pagamento/prestação é parte de um todo, o acto tributário subjacente.
O que não se pode confundir são questões de objecto do pedido – anulação do acto tributário subjacente a uma ou várias prestações relativas ao pagamento desse acto – com questões de qualificação jurídica dos actos. Ou dito doutro modo, não se pode confundir qualificação jurídica do acto de liquidação de Imposto do Selo como acto tributário ainda que concretizado para efeitos de pagamento em dois ou três momentos diferentes no tempo com pagamento propriamente dito.
É que da questão de saber qual objecto do pedido decorrem possíveis questões de litispendência, ou no limite, questões de caso julgado. Isto, no caso de os contribuintes impugnarem, ou como no caso requererem pedidos de constituição de tribunais arbitrais para cada prestação na medida em que se está a analisar sempre o mesmo acto – o que, adianta-se, parece ter ocorrido no caso concreto.
Insiste-se, portanto, na ideia de que o objecto do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente é a apreciação da (i)legalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo, da verba 28 da TGIS, referente ao ano de 2014, emitidos sobre o valor patrimonial das partes do prédio com afectação habitacional. Deste modo, quando a Requerente solicita a constituição de tribunal arbitral após o termo do prazo de pagamento voluntário da terceira prestação, e ainda que esteja a trazer estas notas de cobrança ao conhecimento deste Tribunal Arbitral e não os actos de liquidação propriamente ditos, o que pretende é, de facto, a sindicância dos actos de liquidação que lhes estão subjacentes.
A conclusão que acima temos vindo a defender, até se alcançaria numa argumentação mais empírica e consequentemente menos jurídica.
Senão vejamos:
Se no caso dos impostos cujo pagamento não se efectua de uma só vez – como os casos eventualmente do IMI ou do Imposto do Selo – o contribuinte não é notificado do acto de liquidação mas tão só das duas ou das três prestações a que haja lugar, isto significaria que este não poderia reagir administrativa, judicial ou jurisdicionalmente a este acto (tributário, ou matéria tributária ou outro)? Uma conclusão como esta contrariaria, no mínimo, o princípio da tutela jurisdicional efectiva e do acesso ao direito, com assento constitucional quer no artigo 20.º, quer no artigo 268.º, n.º 4 da Constituição.
Recorde-se que o princípio da tutela jurisdicional efectiva impõe que para todo e qualquer conflito que mereça composição judicial seja possível encontrar um Tribunal competente e um meio processual que confira protecção adequada e suficiente aos interesses dignos de tutela jurídica.
Nas palavras de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, o direito à tutela jurisdicional efectiva está consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da CRP, sendo ele mesmo, “um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito” (Cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira (2010), “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 408)
Este princípio e direito fundamental está ainda vertido no artigo 9.º da LGT no qual se garante, no n.º 1, o acesso à justiça tributária para a tutela plena e efectiva de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos e, no n.º 2, o direito de acesso aos tribunais, prevendo-se a possibilidade de impugnação ou recurso dos actos em matéria tributária que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos.
Ora, no que em concreto respeita a questões de competência – aquelas que se prendem com a qualificação jurídica dos actos -, o artigo 2.º, n.º 1, a alínea a), do RJAT, determina a competência do tribunal arbitral para a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.
Recuperando o que se referiu supra, o objecto do presente processo arbitral corresponde, sem sombra de dúvida, aos actos de liquidação de Imposto do Selo subjacente às notas de cobrança impugnadas, independentemente de, por mera técnica de arrecadação de receitas, o seu pagamento (e, logicamente, a sua cobrança) se encontrar repartida em duas ou três prestações.
E em nome do princípio da tutela jurisdicional efectiva, estes actos de liquidação de Imposto do Selo – insista-se, embora sejam pagos em três prestações – serão (ou terão de ser), necessariamente, sindicáveis.
Deste modo, improcede a excepção dilatória de inimpugnabilidade das prestações de actos de liquidação.
II.B Excepção de litispendência
Como se referiu supra, ao assumir-se o objecto do pedido no caso de impostos pagos em duas ou mais prestações – como o do caso em apreço – como a anulação do acto tributário que lhes está subjacente, poderão estar em causa questões de litispendência ou caso julgado designadamente quando dois tribunais diferentes sejam chamados a decidir sobre os mesmos actos tributários embora relativamente a prestações diferentes.
Com efeito, se perante a notificação para pagamento da primeira prestação, o sujeito passivo pede a constituição de tribunal arbitral contestando a legalidade do acto de liquidação do Imposto do Selo, voltando a pedir a constituição de outro tribunal arbitral contestando a legalidade do mesmo acto de liquidação quando é notificado da segunda ou das terceiras prestações, verificar-se-á uma excepção de litispendência ou de caso julgado, na medida em que no âmbito destes três pedidos de constituição de tribunal arbitral apresentados o pedido é sempre o mesmo: a anulação do acto de liquidação do Imposto do Selo, cujo pagamento é repartido em três prestações.
Assim, dizer que o contribuinte pode reagir contenciosamente contra qualquer uma das prestações na medida em que o acto tributário subjacente é o mesmo, não significa que possa reagir contra todas ao mesmo tempo e em diferentes processos. Tudo porque, em rigor, reagindo contra a primeira, sendo o objecto do pedido a (i)legalidade do acto de liquidação de Imposto do Selo, uma decisão relativamente a esta “englobará” as seguintes prestações. Não reagindo à primeira pode reagir contra a segunda e não reagindo à segunda pode reagir à terceira.
Porém, caso reaja contra todas - utilizando meios diferentes ou dando início a processos distintos – haverá litispendência ou caso julgado, tudo porque o objecto do pedido – acto tributário de liquidação de Imposto do Selo – é, insista-se, o mesmo.
No processo civil a litispendência, ou a excepção de litispendência, pressupõe a repetição de uma causa estando a anterior ainda em curso, nos termos do disposto no artigo 580.º, n.º 1, do CPC, aplicável ao processo arbitral ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. A excepção de litispendência tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior tal como prevê o artigo 580.º, n.º 2, do CPC. Por sua vez, o artigo 581.º enuncia os requisitos da litispendência (e do caso julgado), estabelecendo o que se entende por “repetição da causa”. Assim, este artigo exige que se verifique a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
Ou seja, que as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, que se pretenda obter o mesmo efeito jurídico e que a pretensão deduzida nas duas acções proceda do mesmo facto jurídico.
A litispendência tem assim limites subjectivos – a identidade das partes sob o ponto de vista da qualidade jurídica –, objectivos – a identidade do pedido e da causa de pedir, nos termos dispostos no artigo 581.º, n.ºs 3 e 4 citados –, e ainda limites temporais – uma vez que a ocorrência de litispendência terá de ser aferida por referência ao momento em que aquela é apreciada - o que significa que, ainda que havendo uma repetição da causa, se a parte activa vier a desistir de uma das acções antes da excepção de litispendência ser apreciada, a situação de litispendência deixa de subsistir.
No que diz respeito à aplicação da excepção da litispendência no processo arbitral há que referir o que se deverá entender por identidade de pedido e de causa de pedir, seguindo de perto o entendimento de CARLA CASTELO TRINDADE (Cf., “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”, p. 149-153).
Ora, no pedido de pronúncia arbitral o que está em causa é a impugnação de um acto tributário cujo pedido é o da declaração de ilegalidade. Assim, verificar-se-á a identidade de pedido se em dois pedidos de constituição de tribunal arbitral distintos, for requerida a declaração de ilegalidade do(s) mesmo(s) acto(s) tributário(s).
Por outro lado, este pedido será efectuado com fundamento em qualquer dos vícios previsto no artigo 99.º do CPPT, designadamente a errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários; a incompetência; a ausência ou vício da fundamentação legalmente exigida e a preterição de outras formalidades legais.
Ora, a causa de pedir será a mesma quando o fundamento invocado para a declaração de ilegalidade seja idêntico. Em ambos os processos se alega a errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários decorrentes dos mesmos factos ou com a mesma fundamentação de direito; ou, em ambos se alega incompetência; ou, em ambos se arguir a ausência ou vício da fundamentação legalmente exigida decorrentes dos mesmos factos ou com a mesma fundamentação de direito; ou, por último, em ambos se alega a mesma preterição de outras formalidades legais.
Assim, havendo identidade de sujeitos e identidade de pedido, a verificação de litispendência em processos arbitrais tributários depende da invocação dos mesmos fundamentos de declaração da ilegalidade do acto que se pretende impugnar.
A excepção de litispendência, pese embora não tenha sido alegada pela Requerida, é excepção de conhecimento oficioso, ao abrigo do artigo 578.º do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Posto isto, cumpre apreciar se se verifica no caso concreto esta excepção.
Ora o presente tribunal tem conhecimento de que a Requerente apresentou previamente ao pedido que ora se analisa, um pedido de constituição de tribunal arbitral referente à primeira e segunda prestação do Imposto do Selo liquidado sobre o ano 2014, e que corre termos num tribunal arbitral tributário do CAAD, sob o número de processo 666/2015-T.
Deste modo, e na sequência do que se entendeu supra a respeito do objecto do presente processo, a Requerente apresentou dois pedidos de constituição de tribunal arbitral, todos com o mesmo objecto: os actos de liquidação de Imposto do Selo que liquidou a Verba n.º 28.1 incidentes sobre o mesmo prédio referente ao ano 2014, ainda que relativamente a prestações diferentes.
O processo n.º 666/2015-T, no qual se impugnou o acto de liquidação por via da primeira e segunda prestações, aguarda o proferimento de decisão pelo tribunal arbitral.
Ora, a regra de litispendência aplicável ao processo tributário, quer judicial quer arbitral, é a que consta no CPC e que acima referimos. Importa por isso aferir se se verifica a tripla identidade exigida pelo artigo 581.º do CPC, subsidiariamente aplicável.
Ora, não há dúvida alguma que se verifica a identidade dos sujeitos, na medida em que a Requerente é nos dois processos a “A…, Lda” e a Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira. No que diz respeito à identidade do pedido, este também é idêntico nos dois processos – a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos acto de liquidação do Imposto do Selo referentes ao ano de 2014.
Relativamente à identidade da causa de pedir, esta depende da invocação dos mesmos fundamentos de declaração de ilegalidade do acto que se pretende impugnar. Esta identidade verifica-se na medida em que, em ambos os processos, o fundamento de ilegalidade é, precisamente, vício de violação de lei por errónea interpretação e aplicação da Verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) e a inconstitucionalidade do disposto na verba n.º 28 da TGIS, por violação dos princípios da equidade, da legalidade, da capacidade contributiva, da justiça, e da igualdade e proporcionalidade fiscal, nos termos do disposto nos artigos 103.º e 104.º da CRP, na interpretação que dele faz a Autoridade Tributária e Aduaneira.
Deste modo, tratando-se dos mesmos sujeitos, de um mesmo pedido e de uma causa de pedir idêntica, em processos arbitrais pendentes em simultâneo, verifica-se a ocorrência de uma excepção de litispendência a qual, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.º 2 do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, obsta ao conhecimento do mérito da causa por este tribunal
Ao abrigo do disposto no artigo 582.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, a litispendência deve ser deduzida na acção proposta em segundo lugar, considerando-se como tal a acção para a qual o réu foi citado posteriormente.
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 577.º, alínea i), 576.º, 580.º, 581.º 576.º, n.º 2 e 278.º, n.º 1, alínea e) do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, absolve-se a Requerida da presente instância arbitral.
V. DECISÃO
Termos em que se decide neste tribunal arbitral:
a) Julgar improcedente a excepção de inumpugnabilidade autónoma das prestações;
b) Absolver a Requerida da presente instância arbitral, verificando-se uma excepção dilatória de litispendência, na medida em que está pendente no CAAD o processo n.º 666/2015-T, cujas partes, pedido e causa de pedir são idênticas ao presente processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 7.615,82, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII. CUSTAS
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e do artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que, por facto que lhe é imputável foi declarada a litispendência com a consequente absolvição da presente instância.
Notifique-se.
Lisboa
21 de Junho de 2016
A Árbitro
(Carla Castelo Trindade)
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.