Decisão Arbitral
Requerente: A…
Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira
I - RELATÓRIO
1. A contribuinte A…, com o NIF … (doravante “Requerente”), apresentou, no dia 10 de Agosto de 2015, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
2. A Requerente vem pedir a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da decisão do recurso hierárquico n.º …2014…, interposto do indeferimento expresso da reclamação graciosa a que se refere o processo n.º …2014…, deduzida contra a liquidação de IRS (e juros compensatórios) n.º 2011…, de 24 de Outubro de 2011, relativa ao ano de 2008, no valor total de € 145.098,08. Arrola duas testemunhas.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 7 de Setembro de 2015.
4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 20 de Outubro de 2015.
5. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 4 de Novembro de 2015; foi-o regularmente e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, do RJAT (com a redacção introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro).
6. Posteriormente, por Despacho do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD de 4 de Dezembro de 2015, procedeu-se à substituição de um dos árbitros adjuntos.
7. Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 17.º do RJAT, foi a AT notificada, em 4 de Novembro de 2015, para apresentar resposta.
8. A AT apresentou a sua resposta em 10 de Dezembro de 2015, acompanhada do Processo Administrativo.
9. Nessa resposta a AT invoca duas excepções, uma dilatória e outra peremptória; e alega, em síntese, a total improcedência do pedido da Requerente, além de se pronunciar contra a necessidade de prova testemunhal no presente processo.
10. O Despacho Arbitral de 7 de Março de 2016 concedeu à Requerente a possibilidade de exercer o contraditório, dada a excepção invocada na resposta da AT.
11. Em Requerimento de 14 de Março de 2016 a Requerente veio insistir no interesse na produção de prova testemunhal em audiência de julgamento, indicando que as testemunhas por si arroladas deveriam pronunciar-se sobre os arts. 17.º a 21.º, 26.º e 27.º do requerimento inicial.
12. O Despacho Arbitral de 15 de Março de 2016 designou, nos termos do art. 18.º do RJAT, o dia 1 de Abril de 2016 para realização da audiência de julgamento, reconhecendo, contra a posição expressa pela AT, a necessidade de inquirição de testemunhas.
13. Em Requerimento de 16 de Março de 2016 a Requerida solicitou o aproveitamento da gravação da prova testemunhal produzida no âmbito de um outro processo que apresenta similitudes com a matéria tratada no presente processo, dado tratar-se das mesmas duas testemunhas arroladas pela Requerente no presente processo. Solicitando, em consequência, a desmarcação da diligência de inquirição de testemunhas.
14. O Despacho Arbitral de 16 de Março de 2016 concedeu à Requerente a possibilidade de exercer o contraditório, pronunciando-se sobre o requerimento apresentado pela AT.
15. Em Requerimento de 28 de Março de 2016 a Requerente informou não prescindir da inquirição das testemunhas por si arroladas, mas solicitou o adiamento da data da audiência de julgamento, por impossibilidade de comparência de uma das testemunhas.
16. O Despacho Arbitral de 28 de Março de 2016 indeferiu a pretensão da AT, determinado a manutenção da inquirição na data agendada, abrindo-se a possibilidade de fixação de outra data para inquirição da testemunha impossibilitada de comparecer.
17. No dia 1 de Abril de 2016 teve lugar a audiência de julgamento.
18. Os representantes da AT não compareceram; não obstante, foi decidido prosseguir, nos termos do art. 19.º do RJAT.
19. Nessa audiência procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, B… e C….
20. No final da audiência a Requerente e a Requerida foram notificadas para apresentarem alegações escritas em prazos sucessivos de 15 dias.
21. Nos termos do art. 21.º, 2 do RJAT, o Tribunal fixou a data de 31 de Maio de 2016 como limite para a prolação da Decisão Arbitral.
22. A Requerente apresentou em 19 de Abril de 2016 as suas alegações escritas.
23. A Requerida apresentou em 4 de Maio de 2016 as suas contra-alegações escritas.
24. O processo não enferma de nulidades e, resolvidas que sejam as questões de excepção suscitadas na resposta da AT, não subsistem mais questões, prévias ou subsequentes, prejudiciais ou de excepção, que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final.
25. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração (e posteriormente substabelecimento), encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
26. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade, nos termos dos arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
II - Fundamentação: a matéria de facto
II. A. Factos que se consideram provados e com relevância para a decisão
1) A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRS n.º 2011…, de 24 de Outubro de 2011, relativa ao ano de 2008 (valor de € 132.508,01), da demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2011… (valor de € 12.590,07) e da demonstração da compensação e nota de cobrança, no valor total de € 145.098,08.
2) A liquidação n.º 2011… é o resultado de uma correcção subsequente a uma acção inspectiva efectuada à Requerente (com base na Ordem de Serviço n.º OI2011…), da qual resultou um Relatório de Inspecção datado de 10 de Outubro de 2011.
3) A Requerente deduziu pedido de revisão do acto tributário de liquidação, ao abrigo do disposto no art. 78.º da LGT.
4) Por Despacho de 14 de Outubro de 2013, esse pedido foi convolado em reclamação graciosa em processo com o n.º …2014…, a qual, por Despacho de 11 de Dezembro de 2014, acabou sendo indeferida.
5) Contra esse indeferimento foi interposto, em 26 de Dezembro de 2014, o competente recurso hierárquico, com o n.º …2014…, ao qual por sua vez, por Despacho de 10 de Maio de 2015, foi negado provimento.
6) Na inspecção efectuada à Requerente e respeitante ao ano de 2008 apurou-se que a Requerente vendera à D…, Lda., 50 prédios urbanos de que era comproprietária (sendo a outra comproprietária tia da Requerente), sem que tais vendas tivessem sido manifestadas na declaração de rendimentos desse ano.
7) Esses prédios estavam integrados num loteamento (de 57 lotes) sito no concelho de …, resultante de um contrato relativo a urbanização com a Câmara Municipal … e objecto de um Alvará de Loteamento em 2000.
8) Em 2003 o contrato foi alterado, no sentido de a Câmara Municipal passar a receber o produto da venda dos lotes, em vez de receber os próprios lotes como ficara inicialmente convencionado.
9) No âmbito da acção inspectiva apurou-se que os rendimentos resultantes da venda dos prédios, por se encontrarem inseridos numa operação de loteamento, constituíam uma actividade comercial e por isso reuniam os pressupostos de incidência na Categoria B do IRS, de acordo com o preceituado na alínea e) do n.º 1 do art. 4.º do CIRS e na Circular n.º 16 de 14 de Setembro de 1992.
10) Relativamente a 2008 a Requerente procedeu à alienação de 50% dos imóveis, o que originou rendimentos tributáveis em sede de categoria B, nos termos e para os efeitos no disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 4.º do CIRS.
11) O valor tributável dessas vendas foi determinado de acordo com o disposto no art. 31.º-A do CIRS, pelo que, sendo o valor patrimonial dos prédios alienados superior ao escriturado, para efeitos de determinação do rendimento tributável foi considerado o valor patrimonial, o qual ascende a € 3.329.520,00, correspondendo à Requerente, dada a compropriedade, 50% desse valor, no montante de € 1.664.760,00, enquadrado no regime simplificado de tributação sendo-lhe aplicável o coeficiente de tributação de 20% (€ 1.664.760,00x0,20% = 332.952,00).
12) No decurso da Inspecção Tributária a Requerente autorizou o acesso às suas contas bancárias como forma de comprovar o valor efectivo da alienação dos lotes.
II. B. Factos que se consideram não provados
Com base nos elementos documentais disponibilizados nos autos e consensualmente aceites pelas partes, e com base na prova testemunhal apresentada na audiência de julgamento, verifica-se que, com interesse para a decisão da causa, nada mais se provou.
III - Fundamentação: a matéria de Direito
III. A. Posição da Requerente
a) A Requerente começa por alegar que a qualificação da venda dos lotes não integra uma actividade comercial para efeitos de incidência na Categoria B do IRS, de acordo com o preceituado na alínea e) do n.º 1 do art. 4.º do CIRS e na Circular n.º 16 de 14 de Setembro de 1992. E isto fundamentalmente porque a Requerente, e também a sua comproprietária no loteamento, não tiveram interesse sequer no loteamento da propriedade, e menos ainda nalguma intermediação especulativa ou na obtenção de lucros com a referida alienação dos lotes.
b) Quanto ao loteamento, a Requerente alega que ele foi imposto pela Câmara Municipal … sob a ameaça de expropriação da propriedade, que era uma quinta de família.
c) Demonstrando-se que não houve qualquer intencionalidade na constituição do loteamento, e portanto nos actos subsequentes, estaria excluída, segundo a Requerente, a prática intencional dirigida à obtenção de ganhos, e logo o elemento económico que é pressuposto do enquadramento dos ganhos na Categoria B do IRS.
d) Os ganhos obtidos com a alienação dos lotes deveriam, pois, merecer o enquadramento na Categoria G do IRS, mais-valias, na medida em que advieram de modo fortuito.
e) A sua integração na Categoria B assentaria em factos tributários inexistentes determinando uma anulável quantificação errada dos rendimentos.
f) A manter-se mesmo assim tal qualificação, a Requerente sublinha que o rendimento declarado foi o que efectivamente foi obtido, já que, nos termos com o acordado com a Câmara Municipal …, 50% do valor da venda foi entregue a esta.
g) A norma do art. 31.º-A do CIRS, que manda considerar o VPT se superior ao valor constante do contrato, admite prova em contrário nos termos do procedimento previsto no art. 139.º do CIRC; mas a Requerente não desencadeou esse procedimento porque, dentro do prazo estabelecido para tanto, jamais lhe ocorreu que viesse a ser questionada a qualificação dos rendimentos e revista a tributação aplicável.
h) Sustenta a Requerente que, agora que a AT fixou noutros termos o rendimento tributável, deverá ser-lhe facultada a prova de que o preço efectivo foi o declarado no contrato, e não o VPT: o preço total de € 1.250.000,00.
i) Para esse efeito, não só a Requerente permitiu o acesso às suas contas bancárias no decurso da Inspecção Tributária, como forma de comprovar esse valor, ou melhor a sua participação nesse valor, no montante de € 312.500,00; como ainda assinala o facto de haver um recibo emitido pela própria Câmara Municipal … que, correspondendo a 50% do valor da venda dos lotes, faz igualmente prova dos montantes em causa.
j) A não ser assim, a Requerente estaria confrontada com uma tributação que representaria aproximadamente metade do valor que recebeu, uma oneração desproporcionada, injusta e desajustada à sua capacidade tributiva.
k) Mais ainda, a Requerente argumenta que a limitação imposta pelos arts. 31.º-A do CIRS e 64.º, 2 do CIRC visa evitar práticas abusivas, e em particular conluios entre vendedores e compradores com simulações de preços na área dos preços de transferência – mas que a Requerente jamais teve qualquer relacionamento com a empresa adquirente dos lotes, nem sequer tendo negociado com esta, na medida em que foi a Câmara Municipal … que assumiu o exclusivo protagonismo das negociações do lado vendedor.
l) Quanto à negação de provimento do recurso hierárquico, a Requerente alega que foi violado o dever de pronúncia obrigatória na medida em que não foram analisados todos os argumentos e pretensões apresentados, a exemplo do que já sucedera no indeferimento da reclamação graciosa.
m) De tudo resultaria claro o fundamento para a anulação da decisão impugnada, assente em errada determinação e quantificação de factos tributários, nos termos do art. 100.º do CPPT.
n) Nas suas Alegações, a Requerente sustenta que é improcedente a excepção de incompetência material invocada pela Requerida na sua resposta – porque no seu entender não se trata agora de fazer prova do preço efectivo (em violação do art. 139.º, 7, do CIRC) mas somente de apreciar a ilegalidade de actos de liquidação, nos estritos termos do art. 2.º, 1, a) do RJAT – especificamente a liquidação adicional de IRS que foi já apreciada e confirmada pela AT em sede de recurso hierárquico do indeferimento da reclamação graciosa apresentada daquele acto tributário.
o) A Requerente acrescenta ainda, quanto a esse ponto, que o objecto controvertido é somente o da qualificação jurídico-tributária dos ganhos resultantes da venda, insistindo que esses ganhos foram declarados como mais-valias e que essa é a qualificação adequada no caso concreto, e que foi a AT que os requalificou como “rendimentos comerciais”, tornando só então necessária uma comprovação do preço efectivo – a qual seria desnecessária caso se mantivesse a qualificação defendida pela Requerente.
p) Assim, no seu entendimento, só haveria preclusão do direito de impugnar a liquidação com fundamento em ilegalidade das correcções efectuadas ao valor de transmissão se tivesse sido a própria Requerente a considerar inicialmente tais rendimentos como comerciais.
q) Quanto à substância do que é controvertido, a Requerente retoma em Alegações tudo o que sustentou no seu Requerimento inicial.
r) Acrescentando que, a prevalecer o entendimento perfilhado pela AT, o imposto deveria ter incindido sobre a “sociedade irregular” composta pela Requerente e sua Tia, nos termos dos arts. 15.º e 16.º, 3 da LGT, art. 3.º, 1 e 2 do CPPT e arts. 2.º, 1, b) e 2, e 3.º, 1, a) e 4 do CIRC, e não separadamente sobre cada uma delas – verificando-se uma nulidade, nos termos do art. 134.º, 2 do CPA, por inexistência do elemento subjectivo do lado passivo, um elemento essencial da relação jurídica tributária.
s) Além disso, nas Alegações a Requerente sustenta que, nos termos gerais do art. 74.º, 1 LGT, incumbe à AT o ónus da prova dos factos de que faz decorrer a sua requalificação dos rendimentos obtidos. E essa prova não está feita, nomeadamente que tenha sido exercida uma actividade comercial com o propósito deliberado de gerar um lucro com as operações tributadas – sustentando a Requerente que, bem pelo contrário, ficou provada, mormente pela liderança da Câmara Municipal e pela proeminência do interesse desta, a ausência daqueles pressupostos na conduta da Requerente.
t) Por outro lado, sublinha a Requerente que, nos termos de uma Contestação da AT apresentada numa impugnação judicial reativa a venda, em 2009, de outros lotes do mesmo loteamento (conforme documento junto às Alegações), a própria AT entende que os mesmos são enquadráveis na Categoria G, contradizendo o entendimento que quer fazer valer nos presentes autos, e que é o da submissão dessa venda à Categoria B do IRS.
u) A Requerente insiste que, mesmo que se entendesse deverem ser sujeitos à Categoria B os rendimentos, então não deveria ser vedado o caminho que conduz à tributação do rendimento real através da invocação da presunção consagrada no art. 31.º-A do CIRS, como se se tratasse de uma presunção inilidível, e antes deveria ser concedido à Requerente a possibilidade de socorrer-se do meio alternativo previsto no art. 64.º do CPPT para demonstrar que a venda dos lotes não se fez pelo seu VPT.
III.B. Posição da Requerida
a) Na sua resposta, a AT começa por invocar a excepção dilatória da incompetência material do tribunal arbitral.
1. A AT lembra que, no seu pedido de pronúncia arbitral, a Requerente manifestou a pretensão de demonstrar agora que o preço efectivo da alienação dos lotes foi o declarado no contrato.
2. Só que, nos termos do art. 139º do CIRC que a Requerente invoca, tal demonstração do preço efectivo só pode ocorrer junto do Director de Finanças competente, através do Requerimento.
3. Da leitura do art.2º, 1, a) do RJAT resulta "a contrario" que o Tribunal Arbitral não é materialmente competente para decidir nessa matéria de prova do preço efectivo através do procedimento legalmente previsto, que é um procedimento administrativo da exclusiva competência do Director de Finanças.
4. Estaríamos assim perante uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no art. 576º, 1 e 2 do CPC, ex vi art. 2º, e) do CPPT e art. 29º, 1, a) e e) do RJAT.
b) De seguida, e ainda por excepção (peremptória), a AT passa a considerar a insusceptibilidade de apreciação da alegada violação do art. 139º, 7 do CIRC.
1. Começando por sublinhar o facto de se ter estabelecido nesse art. 139º, 7 do CIRC um mecanismo de elisão da presunção de uso do VPT do qual resulta necessariamente que a dedução de impugnação judicial seja posterior ao procedimento próprio de demonstração da coincidência, ou não, entre valor da transmissão e valor declarado, não podendo este procedimento, que segue os arts. 91º e 92º (e ainda 86º, 4) da LGT, ser posterior ao início daquela impugnação.
2. Por outro lado, lembra a AT que o art. 86º da LGT reclama um esgotamento de todos os meios graciosos disponíveis antes que se possa proceder a uma impugnação contenciosa autónoma, e que também aí é indispensável, portanto, que se tenha previamente lançado mão do procedimento previsto no art. 139º do CIRC, o que no caso não sucedeu.
3. Sendo assim, a consequência, segundo a Requerida, é que quaisquer outros vícios poderão ser atribuídos à liquidação, mas não se pode apreciar contenciosamente a questão do preço efectivo sem que isso constitua uma ilegalidade por violação ao art. 139º, 7 do CIRC.
c) Por impugnação, a AT contesta a relevância dos argumentos da Requerente relativos à inexistência de motivação económica, ou lucrativa, na venda dos lotes - e isto mormente porque sustenta estar demonstrado que a venda se integrou numa operação de loteamento, recaindo assim com toda a legitimidade na Categoria B do IRS por aplicação conjugada dos arts. 3º e 4º, 1, g) do CIRS e da Circular nº 16, de 14 de Setembro de 1992, da DSIRS.
d) Por outro lado, a AT sustenta que a Categoria G do IRS é meramente residual, aplicando-se por exclusão de rendimentos empresariais e profissionais, e exclusivamente a ganhos fortuitos que foram gerados à margem da actividade produtiva do seu titular, ou da assunção de riscos por este - não sendo, em suma, esperados ou presumidos, nem podendo ser promovidos por actuação directa do beneficiário.
e) Isso não se aplicaria no caso da Requerente, que longamente foi acordando com a Câmara Municipal … um conjunto de cedências e contrapartidas que culminaram no negócio da alienação dos lotes - negócio do qual resultou o rendimento esperado, além de um conjunto de benefícios e de valorizações patrimoniais que a Requerente foi negocialmente obtendo da parte da própria Câmara Municipal ….
f) As alegações de pressão ou ameaça por parte da Câmara Municipal … ficaram por provar e não se afigura que tenham interferido numa equilibrada repartição de ganhos e de riscos e de contrapartidas entre todos os envolvidos no negócio.
g) Além disso, enfatiza a AT que é óbvio o peso do prévio loteamento na configuração do negócio de venda e na modulação do respectivo preço, pelo que não faz sentido insistir-se na ideia de um ganho inesperado e ocasional - mesmo quando o loteamento que lhe serviu de base seja, esse sim, isolado ou ocasional.
h) Conclui a AT que o que esteve em causa foi uma verdadeira e genuína actividade empresarial, ainda que se tenha tratado de uma actividade empresarial não-habitual para o contribuinte. Houve, pois, um nítido elemento económico no negócio, a convocar a inserção dos rendimentos na Categoria B do IRS.
i) Quanto á determinação do rendimento colectável, a Requerida lembra que o valor patrimonial do conjunto de imóveis era, em 2008, de €3.329.520,00, e que esse valor estava determinado antes da transmissão e não foi contestado (como podia sê-lo nos termos do art. 76º do CIMI), pelo que o valor global alegadamente conseguido, de €1.250.000,00, sendo inferior (e muito), desencadeia o regime previsto no art. 31º-A do CIRS, que manda considerar, para efeitos de determinação do rendimento tributável, o valor que serviu de base à liquidação do IMI (o VPT), quando seja este, dos dois, o valor mais elevado.
j) Competia à Requerente fazer prova atempada em contrário, nos termos do art. 139.º do CIRC, e não o fez, legitimando assim em definitivo o cálculo do rendimento colectável a partir do valor patrimonial dos imóveis (€ 1.664.760,00, ou seja 50% de € 3.329.520,00). Podia até a Requerente ter solicitado uma nova avaliação dos prédios urbanos objecto da transmissão (nos termos do art. 76.º do CIMI): mas, novamente, não o fez.
k) Em Contra-Alegações, a Requerida mantém que o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar o pedido de demonstração do preço efectivo, apresentado pela Requerente - seja porque passou a oportunidade de fazê-lo, seja porque tal pedido apenas poderá ser apreciado em sede de procedimento e pelo competente director de finanças.
l) A Requerida aproveita para assinalar e denunciar aquilo que designa como "subtil ampliação da causa de pedir" tentada nas Alegações da Requerente, ao introduzir o tema da "sociedade irregular" como se fosse tema já anteriormente abordado e admitido pela AT, seja neste processo, seja nos procedimentos que a ele conduziram - coisa que esta categoricamente nega, lembrando, ao invés, que se trata de factos e fundamentos que não foram anteriormente invocados, pelo que está o Tribunal impedido de apreciar essa questão, até porque isso consumaria uma inadmissível ampliação da causa de pedir.
m) Mas ainda sublinha a Requerida que, a admitir-se esse ponto, ela apenas evidenciaria a contradição subjacente aos argumentos da Requerente, já que a "sociedade irregular", a provar-se a sua existência (o que não foi feito) confirmaria a presença de uma actividade comercial.
n) Quanto à substância do que é controvertido, a Requerida retoma em Contra-alegações tudo o que sustentou na sua Resposta, enfatizando mormente que não pode considerar-se que existam puras mais-valias, na medida em que o acréscimo patrimonial objecto de liquidação resultou de actuação do beneficiário conducente a esse ganho, como ficou abundantemente provado pelo acordo estabelecido com a Câmara Municipal e pelo loteamento de terrenos daí resultante, dos quais resultaram valorizações transformadas em proveitos no momento da alienação - valorizações e proveitos que nada tiveram de fortuito ou inesperado.
o) Insiste por isso a AT no facto de a liquidação em apreço não poder deixar de assentar no valor que serviu de base à liquidação de IMT, na ausência de prova de que o valor de realização tenha sido inferior àquele.
III. C. Questões a decidir
São três as questões jurídicas que cumpre apreciar: A) A excepção dilatória da incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar a prova do preço efectivo da alienação dos lotes; B) A excepção peremptória de extemporaniedade da prova do preço efectivo para efeitos de elisão da presunção de que a alienação dos lotes foi realizada pelo seu VPT; C) A qualificação jurídico-tributária das receitas obtidas com a alienação dos lotes, para efeitos do seu enquadramento na Categoria B ou na Categoria G do IRS.
No seu Requerimento Inicial, a Requerente pede a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade das decisões que sucessivamente confirmaram a liquidação de IRS relativa ao ano de 2008 (aditando-lhe juros compensatórios).
E fá-lo essencialmente com dois fundamentos (a que acrescentou um outro em Alegações, sobre eventual errónea identificação do elemento subjectivo da relação tributária - mas que, por não constar do Requerimento inicial, não consideraremos):
1) Uma incorrecta qualificação jurídico-tributária das receitas obtidas com a alienação dos lotes, para efeitos do seu enquadramento na Categoria B ou na Categoria G do IRS.
2) Uma incorrecta quantificação das receitas obtidas com a alienação dos lotes, para efeitos de afastamento da presunção estabelecida pelo art. 31.º-A do CIRS através do procedimento previsto no art. 139.º do CIRC.
Quanto ao primeiro fundamento, ficou provado que a alienação dos lotes foi precedida de operações de loteamento no âmbito de um arranjo contratual que claramente visava a valorização dos bens a alienar, pelo que a receita resultante da alienação jamais poderia, sem grave entorse do conceito, ser considerada uma "mais-valia", no sentido fortuito, ocasional e residual que a Lei lhe atribui nos arts. 9.º e 10.º do CIRS, em consonância aliás com a sua génese doutrinária, ventrada na ideia de "windfall profits".
O enquadramento da alienação dos lotes na Categoria G do IRS reclamaria, pois, a prévia demonstração do seu não-enquadramento noutra qualquer categoria de rendimentos. Ora sucede que a precedência da valorização dos terrenos através do seu loteamento e urbanização, como aliás o próprio envolvimento - ou até liderança - da Câmara Municipal … nesse processo e na subsequente alienação dos lotes, demonstram que se tratou de uma actividade urbanística e de exploração de loteamentos, perfeitamente subsumível ao art. 4.º, 1, g) do CIRS, logo enquadrável na Categoria B de rendimentos.
A reforçar essa conclusão está não apenas p facto de o art. 3.º, 1, a), 2, h) e 3 do CIRS afastar qualquer requisito de "habitualidade" na definição das actividades geradoras dos rendimentos enquadráveis na Categoria B, e bem pelo contrário abarcar nela até actos isolados que "não resultem de uma prática previsível ou reiterada"; como está ainda o facto de a Requerente ter retirado evidente benefício da valorização que o loteamento e a urbanização determinaram nos terrenos que alienou.
Quanto ao primeiro fundamento, há pois que absolver a AT do pedido de anulação com base em errónea qualificação das receitas obtidas com a alienação dos lotes, para efeitos do seu enquadramento em categorias de rendimentos do IRS.
Sendo assim, não sendo anulada a liquidação de imposto impugnada, fica prejudicada a apreciação da excepção dilatória da incompetência material do Tribunal Arbitral - mas sempre se observará que, se não ficasse prejudicada, essa excepção teria que considerar-se procedente, já que o apuramento da correcta quantificação, com eventual afastamento da presunção estabelecida, depende de um procedimento previsto no art. 139.º, 3 do CIRC, sem o qual qualquer impugnação com esse fundamento não pode ser apreciada (art. 139.º, 7 do CIRC) - constituindo portanto uma condição de impugnabilidade que o Tribunal Arbitral não tem competência para dispensar ou para substituir (como resulta "a contrario" do próprio art. 2.º, 1, a) do RJAT).
Fica igualmente prejudicada, e pela mesma razão de não ter sido anulada a liquidação de imposto impugnada, a apreciação da excepção peremptória de extemporaniedade da prova do preço efectivo para efeitos de elisão da presunção de que a alienação dos lotes foi realizada pelo seu VPT.
Fica também prejudicada, por fim, a apreciação da liquidação de juros compensatórios, vista a dependência destes relativamente à própria liquidação do imposto impugnada, e que não é anulada.
IV. Decisão
Em face de tudo quanto antecede, decide-se julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral:
a) Absolvendo a Requerida do pedido de anulação da liquidação de IRS assente em errónea qualificação dos rendimentos tributáveis.
b) Absolvendo a Requerida do pedido de anulação da liquidação de juros compensatórios.
V. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 145.098,08, nos termos do disposto no art. 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI. Custas
Custas a cargo da Requerente, dado que o presente pedido foi julgado improcedente, no montante de € 3.060,00, nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.
Lisboa, 23 de Maio de 2016
Os Árbitros
José Baeta Queiroz
(Presidente)
Fernando Araújo
Arlindo José Francisco