Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 563/2015-T
Data da decisão: 2016-04-22  IRC  
Valor do pedido: € 29.729,23
Tema: IRC – Ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor; instrumentos financeiros
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

            I. RELATÓRIO

1. No dia 31 de agosto de 2015, a sociedade comercial A… –…, Lda., NIPC …, com sede na … (Edifício …, ..., (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), na sequência de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º …2014… – IRC 2011 (…/2014), visando a declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação de IRC do exercício de 2011.

A Requerente juntou 9 (nove) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas. 

É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

1.1. No essencial e em breve síntese, a Requerente alegou o seguinte (que mencionamos maioritariamente por transcrição):

- A A… é uma sociedade comercial, à qual era aplicável, no ano de 2011 para efeitos de tributação, o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades, previsto nos artigos 69.º e seguintes do CIRC, sendo que desse grupo, do qual fazia parte a Requerente – na qualidade de sociedade dominante do grupo –, era ainda constituído pelas sociedades B… e C…;

- As sociedades B… e C… procederam, em 24 de Maio de 2012, à submissão eletrónica da declaração periódica de rendimentos (modelo 22), referente ao período de tributação de 2011, tendo sido apurado um lucro tributável de € 1.431.996,48 e um prejuízo fiscal de € 88.603,60;

- A Requerente procedeu, igualmente, em 28 de Maio de 2012 e no âmbito das suas obrigações declarativas enquanto sociedade dominante do grupo, à submissão eletrónica da declaração de rendimentos do referido grupo fiscal, tendo sido apurado um lucro tributável total de € 4.669.173,00;

- A Requerente procedeu, em 4 de Julho de 2013, à substituição da declaração de rendimento de IRC do grupo fiscal A…, mantendo-se todavia inalterado o lucro tributável inicialmente apurado;

- A autoliquidação de IRC do exercício de 2011 padece de erros que impõem a sua revisão e que se reconduzem a erros no tratamento fiscal conferido às perdas decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, os quais, não obstante incidirem, primacialmente, na esfera individual das sociedades B… e C…, encontram-se refletidos na autoliquidação de IRC da Requerente;

- A 31 de Dezembro de 2009, a B… e a C…, eram detentoras de participações financeiras no D…, respetivamente, nas percentagens de 0,005% e 0,00003%, sendo que, até esse ano, as participações em causa encontravam-se relevadas contabilisticamente na B… e na C… pelo seu custo de aquisição, deduzido de uma provisão para investimentos financeiros, calculada pela diferença entre o custo de aquisição da participação e o valor da sua cotação de mercado no final do período de tributação, conforme decorre dos Relatórios e Contas de 2009 da B… e C…;

- Com a aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), a B… e a C… passaram a mensurar as participações financeiras detidas no D… ao justo valor através de resultados, em conformidade com a Norma Contabilística e de Relato Financeiro (“NCRF”) 27; neste sentido, os saldos relevados em balanço a 1 de Janeiro de 2009 foram reexpressos para SNC;

            - A conversão do POC para o SNC foi efetuada através de dois ajustamentos de conversão que, conjuntamente, tiveram um impacto nulo nos capitais próprios; no entanto, a ocorrência de cada um dos ajustamentos de transição tem que ser analisados autonomamente, conforme segue: reversão da provisão contabilística constituída ao abrigo do POC que originou numa variação patrimonial positiva em capital próprio; e, ajustamento negativo de justo valor, que originou uma variação patrimonial negativa em capital próprio;

- A 31 de Dezembro de 2011, a B… e a C…, eram detentoras de participações financeiras no D…, respetivamente, nas percentagens de 0,004% e de 0,00002%, sendo que, durante o exercício de 2011, tais participações sofreram uma variação negativa de cotação face ao seu valor em 31/12/2010, diminuição essa mensurada pelo método do justo valor;

- A Requerente considerou como fiscalmente dedutíveis apenas 50% do ajustamento de justo valor, ocorrido na transição do POC para o SNC assim como das perdas em 2011, tendo sido este o tratamento conferido pela Requerente apenas por considerar que tal era o entendimento da AT, conforme expresso na Ficha Doutrinária relativa ao processo …/2011, com despacho de 24/02/2011;

- Tendo em conta que os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem, no entendimento da Requerente, para a formação do lucro tributável na sua totalidade – situação que a Requerente não relevou aquando da apresentação da declaração modelo 22 de IRC –, foi apresentada, em 22/05/2014, reclamação graciosa com vista à revisão e correção da liquidação de IRC relativa ao período de 2011;

- A Requerente solicitou, no âmbito da reclamação graciosa apresentada, a correção da liquidação de IRC e a consequente redução do lucro tributável, nos seguintes termos: (i) Dedução no campo 705 do quadro 7 da declaração modelo 22 “Variações patrimoniais positivas (“Regime transitório previsto no art. 5.º, n.ºs 1, 5 e 6, do DL 159/2009, de 13/7), dos seguintes valores: B… – valor inicialmente declarado: € 57.246,84, valor corrigido: € 0,00; C… – valor inicialmente declarado: € 387,53, valor corrigido: € 0,00; (ii) Anulação no campo 738 do quadro 7 da declaração modelo 22 (“Mais-valia fiscal resultante de mudanças no modelo de valorização (art. 46.º, n.º 5, al. b))”), dos seguintes montantes: B… – valor inicialmente declarado: € 61.170,73, valor corrigido: € 122.341,46; C… – valor inicialmente declarado: € 120,82, valor corrigido: € 241,65;

- Que corresponde a uma redução do lucro tributável na esfera consolidada da A… num montante de € 118.916,91, perfazendo um total de € 4.550.256,09, de lucro tributável;

            - A AT não teve em consideração os argumentos aduzidos pela Requerente, tendo indeferido o pedido de reclamação graciosa oportunamente apresentado, indeferimento esse com o qual a Requerente não pode concordar, na medida em que o mesmo se encontra inquinado por vício de violação da Lei;

 - A questão em causa no presente processo, cuja solução se pretende alcançar, é a de saber qual o tratamento fiscal a dar às perdas decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros que tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital superior a 5% do respetivo capital social;

- Existem aqui duas interpretações contrárias: a primeira tese, que é defendida pela AT, considera que as perdas decorrentes do modelo de justo valor em instrumentos financeiros deve ser tratada em sede do art. 45.º, n.º 3, do CIRC, sendo assim apenas dedutível em 50%; a tese contrária, defendida pela Requerente, defende que estas perdas devem ser olhadas à luz do art. 18.º, n.º 9, alínea a) e art. 23.º n.º 1, alínea i), ambos do CIRC, não havendo lugar à aplicação do dito art. 45.º, n.º 3, devendo assim os ajustes por justo valor serem dedutíveis na sua totalidade;

- O n.º 3 do art. 45.º apenas se poderá aplicar às realidades que forem tidas como “perdas” ou “variações patrimoniais negativas”, sendo que por perdas devem ser entendidos os factos qualificáveis como tal à luz do CIRC e as variações patrimoniais negativas têm que ser entendidas como aquelas que não são refletidas nos resultados líquido do exercício, tal como definidas no art. 24.º;

- Se não se proceder a uma leitura num sentido estrito dos conceitos do art. 45.º, n.º 3, estaríamos a dar a esta alínea um enorme âmbito de abrangência, o que não pode ter sido a intenção do legislador;

- Não pode nunca estar no âmbito da norma em causa aquelas situações que se enquadrem como “gastos” à luz do CIRC uma vez que o legislador foi muito claro a enquadrar esta realidade no conceito de “gastos” e não de “perdas”, pelo que dúvidas não restam que a al. i) do art. 23.º não se refere às importâncias em causa como “perdas”, mas sim como “gastos” e que, portanto, a situação ora em análise se enquadra no art. 23.º e nunca poderá ser enquadrável no art. 45.º;

- “Gastos” e “perdas” são dois conceitos que não se equivalem, como se aduz, aliás, do facto de, com a Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que procedeu à Reforma do CIRC, o artigo 23.º ter passado a ter como epígrafe, novamente “gastos e perdas”;

- Com a reforma do Código do IRC operada pela Lei n.º 2/2014, o legislador esclareceu ainda mais qualquer dúvida que pudesse subsistir ao alterar a alínea i) do art. 23.º de “gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” para “perdas por reduções do justo valor em instrumentos financeiros”; cumpre lembrar que o art. 45.º, n.º 3, foi revogado pela Lei n.º 2/2014, ou seja, o legislador alterou a descrição da alínea i) do art. 23.º de “gastos” em instrumentos financeiros para “perdas” em instrumentos financeiros justamente ao mesmo tempo que revoga o art. 45.º, n.º 3, pelo que a alteração da alínea i) do art. 23.º deixa de ter qualquer efeito prático porque desta alteração não resulta que tais realidades apenas concorram para o lucro tributável em 50% (estando o art. 45.º, n.º 3, revogado, a alteração de “gasto” para “perda” neste caso deixa de implicar a dedução deste item em apenas 50%);

- O legislador teve, caso assim o tivesse desejado, vários anos para proceder à alteração da alínea i) do art. 23.º de “gastos” para “perdas” de forma a fazer com que estas realidades apenas concorressem para o lucro tributável em 50% mas optou por não fazer esta alteração durante a vigência do art. 45.º, n.º 3, resultando deste facto que o legislador nunca teve como intenção dispor que os gastos decorrentes de ajustamentos por justo valor em instrumentos financeiros apenas concorressem para o lucro tributável em 50%, sendo que a intenção legislativa sempre foi a de assegurar que estes ajustamentos concorrem para a formação do lucro tributável na sua totalidade;

- Atenta a fundamentação para a consagração da norma fixada no artigo 45.º, n.º 3, do CIRC (anterior artigo 42.º), na redação dada à data dos factos – nomeadamente, o combate à fraude e evasão fiscais –, impõe-se concluir que as razões que levaram à adoção da referida norma não encontram qualquer justificação no caso concreto;

- O conteúdo da norma consagrada no artigo 45.º, n.º 3, torna-se, na totalidade, vazio de qualquer efeito útil, quando, como é o caso, estejamos perante instrumentos financeiros que tenham um preço formado num mercado regulamentado e relativamente aos quais, o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respetivo capital social.  

A Requerente remata o seu articulado inicial peticionando o seguinte:

«Termos em que se requer a V. Exa. se digne dar provimento ao presente pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral sobre a liquidação de IRC relativa ao período de 2011 e, em consequência, declarar a ilegalidade do acto de indeferimento contestado, corrigindo-se, em consequência, a referida liquidação de IRC, reconhecendo-se que o lucro tributável apurado pelo grupo fiscal A… no período de tributação de 2011, ascende apenas a € 4.550.256,09, com as demais consequências legais.»

2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 18 de setembro de 2015.

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. Em 2 de novembro de 2015, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 17 de novembro de 2015.

6. No dia 5 de janeiro de 2016, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente e concluiu pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

Na mesma ocasião, a Requerida procedeu à junção aos autos do respetivo processo administrativo (doravante, abreviadamente designado PA).

6.1. No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua Resposta (que mencionamos maioritariamente por transcrição):

- Sem prejuízo de estar em causa a aplicação sistemática dos artigos 18.º, n.º 9, alínea a) e 45.º, n.º 3, ambos do CIRC, importa, antes de mais, atentar na ratio legis destas duas normas legais;

- Por força do mencionado artigo 18º, n.º 9, do CIRC, os ajustamentos que ocorram por aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável, sempre que respeitando a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, i) tenham um preço formado em mercado regulamentado e, ii) o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação de capital superior a 5% do respetivo capital social;

- Mantendo-se o princípio da realização, o qual determina que a relevância fiscal apenas ocorre no momento da alienação, quando não se verificam as mencionadas condições;

- Não obstante a opção de acolher o modelo do justo valor, ainda que em situações muito restritas face ao previsto nas normas contabilísticas, entendeu o legislador criar mecanismos transitórios que acautelassem o impacto que a alteração no sistema de mensuração provocaria nos capitais próprios das empresas;

- Quer o regime de imputação temporal associado à adoção do justo valor como critério de mensuração não surgiu, no contexto do IRC, com a criação do art.º 18.º, n.º 9, alínea a), pelo que, de modo algum, pode considerar-se esta norma como uma inovação;

- A qualificação do normativo do art. 18.º, n.º 9, aliena a) como uma norma excecional será descabida, pois, para aquele tipo de ativos com cotação em mercado regulamentado, o CIRC não contempla uma regra geral e uma regra especial de imputação temporal para os rendimentos e gastos;

- Assim, o art. 18.º, n.º 9, alínea a), fornece a única regra aplicável para as realidades aí previstas, por isso, quando muito poderia ser considerado como um regime particular de imputação temporal de rendimentos/ganhos e gastos/perdas que resulta da mensuração pelo critério do justo valor em determinadas situações precisas;

- Carece completamente de sentido a tentativa de defender que o art. 18.º, n.º 9, alínea a) e o art.º 45.º, n.º 3, do Código do IRC se excluem mutuamente, em razão de não se incluírem no âmbito do art. 45.º factos que sejam qualificáveis como gastos, e que ao n.º 3 do art. 45.º apenas se poderá aplicar às realidades que forem tidas como perdas ou variações patrimoniais negativas;

- As afirmações que suportam aquela asserção parecem esquecer que a dedução em metade da diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas e de outras perdas e variações patrimoniais negativas relativas a partes de capitais abrangidas pelo art.º 45.º, n.º 3, sempre se aplicou tanto aos casos em que aquelas menos-valias, bem como outras perdas e variações patrimoniais negativas, resultavam de operações realizadas em mercados regulamentados (bolsas de valores) como fora desses mercados;

- A desaplicação do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC às situações particulares previstas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC redundaria numa situação de injustiça, uma vez que conferiria um tratamento mais desfavorável às situações em que não se aplicasse tal norma, ainda que se tratasse de participações sociais mensuradas ao justo valor nos termos das respetivas normas contabilísticas, dado que a menos-valia verificada nessa alienação efetiva será relevada para efeitos de tributação em apenas metade, enquanto que a perda verificada nas participações sociais mensuradas ao justo valor, mas contempladas na previsão do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC, de acordo com a tese da Requerente, não sofreria qualquer limitação, sendo totalmente considerada para efeitos de apuramento da matéria coletável;

- O que, de resto, igualmente sucederá, designadamente, quando se verifique uma situação de reclassificação contabilística ou de alterações nos pressupostos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC (situações que, para efeitos fiscais, são assimiladas a transmissões onerosas), ou seja, independentemente do valor transaccionado continuar a ser o de mercado (fair value);

- Assim, se o legislador não estabeleceu qualquer diferença entre operações realizadas em mercados regulamentados ou em mercados não regulamentados, não se afigura possível construir uma interpretação do art.º 45.º, n.º 3 que exclua do respetivo âmbito, as menos-valias, bem como outras perdas e variações patrimoniais negativas apuradas em operações com instrumentos de capital próprio, realizadas em mercados regulamentados;

- É verdade que este normativo tem subjacente o propósito de atenuar os efeitos de práticas de erosão na base tributável, mas o legislador, ao ter-lhe dado uma redação abrangente e genérica, optou por não incluir, na sua previsão, qualquer ponderação de circunstâncias particulares das operações concretas que originam as menos-valias, bem como outras perdas e variações patrimoniais negativas;

- O relevo dado pela Requerente a questões de semântica em redor dos “custos”, “perdas”, “gastos”, resulta numa leitura descontextualizada, do normativo do art.º 45.º, n.º 3, que inevitavelmente conduz a uma interpretação redutora do âmbito da norma;

  - O conceito “perdas” ínsito no artigo 45º, nº3 do CIRC reveste uma formulação aberta, no âmbito da qual se enquadram todo o tipo de perdas relativas a partes de capital, incluindo as perdas potenciais, ou seja, o legislador, ao referir-se a “outras perdas relativas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital”, não as tipificou, deixando uma porta aberta para que aqui se subsumissem todas as perdas, incluindo os gastos/perdas resultantes da mensuração ao justo valor, assegurando assim que contabilística e fiscalmente os ajustamentos resultantes da aplicação do justo valor fossem considerados ganhos por aumentos de justo valor ou perdas por redução do justo valor;

- As participações financeiras aqui em causa enquadram-se, pois, no artigo 18.º, nº 9, alínea a), do CIRC, concorrendo as alterações do seu justo valor para a formação do lucro tributável, como gastos, por força do disposto também do artigo 23.º, nº 1, alínea i), do CIRC, à semelhança do que sucede ao nível contabilístico;

- Contudo, de acordo com o preceituado na parte final do n.º 3 do artigo 45.º do CIRC, as perdas apuradas, relativas a partes de capital, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor;

- O legislador fez uma clara opção no que se refere às perdas verificadas nas partes de capital previstas na alínea a), do n.º 9, do artigo 18.º do CIRC, a qual consistiu na atribuição de relevância fiscal, independentemente da sua realização efetiva, consubstanciando tal opção, no que a este assunto diz respeito, um claro afastamento do princípio da realização;

- Quanto ao facto de a subsunção ao regime de dedução parcial previsto no art.º 45.º, n.º 3, dos gastos/perdas apurados nos termos e condições referidos no art.º 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC, não ser acompanhado de um tratamento simétrico para os rendimentos/ganhos, e da potencial injustiça que daí possa resultar, na verdade, inexiste um dispositivo legal que permita a consideração de apenas metade do seu valor no cálculo do lucro tributável;

- E se o legislador, nem antes nem depois de 2010, introduziu qualquer disposição a consagrar uma solução simétrica para os rendimentos/ganhos e gastos/perdas decorrentes da aplicação do justo valor, nos termos e condições a que se refere o art.º 18.º, n.º 9, alínea a), também não pode o intérprete, seja a AT ou o sujeito passivo, substituir-se-lhe nessa tarefa;

- Atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 159/2009, segundo o qual só entram para a formação do lucro tributável “os efeitos nos capitais próprios (…) que sejam considerados fiscalmente relevantes nos termos do Código do IRC e respectiva legislação complementar”, o valor dedutível dos ajustamentos negativos em cada um dos cinco anos corresponde a metade de 1/5 do valor total apurado, já que a sua previsão se subsume ao regime daquele normativo do Código do IRC (i.e. ao artigo 45.º, n.º 3);

- A disposição contida no art. 45.º, n.º 3, do CIRC define o regime aplicável com carácter genérico em matéria de dedução das diferenças negativas entre as mais-valias realizadas, bem como de outras perdas e variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital, dela estando afastados apenas os casos em que a lei estatuía um tratamento particular, maxime no art. 23.º, números 3, 4 e 5, do CIRC e no n.º 2 do art. 32.º do EBF;

- O disposto no art. 18.º, n.º 9, alínea a) visa unicamente estabelecer uma regra de imputação temporal dos rendimentos/ganhos e dos gastos/perdas decorrentes da aplicação do justo valor aos instrumentos de capital próprio que contribuem para a formação do lucro tributável, em concretização do princípio da especialização dos exercícios ou do acréscimo, não consagrando, por isso, o regime aplicável em matéria de dedutibilidade daqueles gastos/perdas;

- Por conseguinte, a dedução dos gastos/perdas decorrentes da aplicação do justo valor aos instrumentos de capital próprio, nos termos do art. 18.º, n.º 9, alínea a) rege-se pelo disposto no art. 23.º, n.º 1, alínea i) e no art. 45.º, n.º 3, do CIRC, ou seja, apenas são dedutíveis em metade do seu valor;

- O art. 45.º, n.º 3, embora tenha sido criado com o propósito genérico de limitar a erosão da base tributável, é de aplicação automática às realidades nele previstas e independentemente da ponderação das concretas condições das operações que originam as menos-valias, ou as outras perdas ou as variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital, não sendo feita qualquer distinção sobre o modo ou a local onde as operações foram realizadas e sejam os preços formados, ou não, em mercados regulamentados;

- Se o legislador entendeu não criar uma solução simétrica à aplicada aos gastos/perdas decorrentes da adoção do justo valor aos instrumentos de capital próprio, nos termos e condições referidos no art. 18.º, n.º 9, alínea a), para os rendimentos/ganhos, devem estes entrar para o cálculo do lucro tributável, conforme previsto no art. 20.º, n.º 1, alínea f), do CIRC, não podendo a AT, por força do princípio da legalidade, colmatar essa omissão;

- O ato tributário impugnado não afronta o princípio constitucionalmente consagrado, segundo o qual a tributação deve incidir sobre o rendimento real, porquanto tal princípio consagrado no n.º 2 do art. 104.º da CRP, é o regime regra, que admite exceções, quais sejam, entre muitas outras, as limitações à dedutibilidade dos encargos, para efeitos fiscais, preceituadas no artigo 45.º do CIRC;

- A interpretação da AT não se encontra infirmada nos autos e, antes das alterações introduzidas no Código do IRC pela Lei nº 2/2014, de 16 de janeiro, o n.º 3 do art. 45.º era aplicável aos ajustamentos decorrentes da mensuração ao justo valor dos instrumentos financeiros com os requisitos definidos na alínea a) do n.º 9 do art. 18.º, pelo que a Requerida deveria considerar, nos exercícios em causa nos autos, que a perda refletida em resultados na contabilidade apenas poderia ser deduzida para efeitos fiscais em metade do seu valor.

A Requerida remata assim o seu articulado:

«Neste termos, e nos demais que V. Exa. doutamente suprirá, deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários ora impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido, tudo com as devidas e legais consequências.»

7. Em 6 de janeiro de 2016, foi proferido despacho a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a conceder prazo para as Partes, de forma sucessiva, apresentarem, querendo, alegações escritas.

8. Ambas as Partes apresentaram alegações, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados.     

 

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            II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

O processo não enferma de nulidades.

            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.

            Não há exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.

 

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III. FUNDAMENTAÇÃO                     

III.1. DE FACTO

§1. FACTOS PROVADOS

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.

Nesta parametria, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

a) A Requerente é uma sociedade comercial, à qual era aplicável, no ano de 2011, para efeitos de tributação, o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades, previsto nos artigos 69.º e seguintes do Código do IRC.

b) O grupo fiscal do qual fazia parte a Requerente – na qualidade de sociedade dominante do grupo – era ainda constituído pelas sociedades “B… – …, S.A.”, NIPC … e “C… – …, S.A.”, NIPC ….

c) As sociedades “B…” e “C…” procederam, em 24 de maio de 2012, à submissão eletrónica das declarações periódicas de rendimentos (modelo 22), referentes ao período de tributação de 2011, tendo sido apurado um lucro tributável de € 1.431.996,48 e um prejuízo fiscal de € 88.603,60, respetivamente. [cf. documentos n.ºs 2 e 3 juntos com a P. I.]

d) Na declaração de rendimentos (modelo 22), referente ao exercício de 2011, da empresa “B…” foram inscritos os seguintes valores [cf. documento n.º 2 junto com a P. I.]:

- no campo 705 [Variações patrimoniais negativas (regime transitório previsto no art. 5.º, n.ºs 1, 5 e 6 do DL 159/2009, de 13/7)] do quadro 07: € 62.181,17;

- no campo 738 [Mais-valia fiscal resultante de mudanças no modelo de valorização (art. 46.º, n.º 5, al. b)] do quadro 07: € 57.246,84.

e) Na declaração de rendimentos (modelo 22), referente ao exercício de 2011, da empresa “C…” foram inscritos os seguintes valores [cf. documento n.º 3 junto com a P. I.]:

- no campo 705 [Variações patrimoniais negativas (regime transitório previsto no art. 5.º, n.ºs 1, 5 e 6 do DL 159/2009, de 13/7)] do quadro 07: € 120,82;

- no campo 738 [Mais-valia fiscal resultante de mudanças no modelo de valorização (art. 46.º, n.º 5, al. b)] do quadro 07: € 378,53.

f) A Requerente procedeu, em 28 de maio de 2012, enquanto sociedade dominante, à submissão eletrónica da declaração de rendimentos (modelo 22), referente ao exercício de 2011, do mencionado grupo fiscal, tendo sido apurado um lucro tributável total de € 4.669.173,00. [cf. documento n.º 4 junto com a P. I.]

g) A Requerente procedeu, em 4 de julho de 2013, à substituição da declaração de rendimentos de IRC do dito grupo fiscal, referente ao exercício de 2011, mantendo-se todavia inalterado o lucro tributável inicialmente apurado.

h) A 31 de dezembro de 2009, a “B…” e a “C…”, eram detentoras de participações financeiras no D…, nas seguintes percentagens:

SOCIEDADE

PARTICIPAÇÃO FINANCEIRA

B…

0,005 %

C…

0,00003 %

            i) Até 2009, as participações em causa encontravam-se relevadas contabilisticamente na “B…” e na “C…” pelo seu custo de aquisição, deduzido de uma provisão para investimentos financeiros, conforme previa o Plano Oficial de Contas (“POC”), calculada pela diferença entre o custo de aquisição da participação e o valor da sua cotação de mercado no final do período de tributação. [cf. documentos n.ºs 5 e 6 com a P. I.]

            j) Com a aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), a “B…” e a “C…” passaram a mensurar as preditas participações financeiras detidas no D… ao justo valor através de resultados, em conformidade com a Norma Contabilística e de Relato Financeiro (“NCRF”) 27, pelo que os saldos relevados em balanço, a 1 de Janeiro de 2009, foram reexpressos para SNC.

            k) A conversão do POC para o SNC foi efetuada através de dois ajustamentos de transição que, conjuntamente, tiveram um impacto nulo nos capitais próprios, a saber: (i) reversão da provisão contabilística constituída ao abrigo do POC que originou um movimento positivo em capital próprio; e (ii) ajustamento negativo de justo valor, que originou um movimento negativo em capital próprio. [cf. documentos n.ºs 5 e 6 com a P. I.]

            l) Os movimentos referidos na alínea anterior, resumem-se assim:

SOCIEDADE

Movimento positivo

Movimento negativo

B…

€ 611.707,28

- € 611.707,28

C…

€ 1.208,25

- € 1.208,25

            m) Para além do ajustamento negativo de justo valor ocorrido na transição do POC para o SNC, durante o exercício de 2011, as participações detidas pela “B…” e “C…” no D… sofreram uma variação negativa de cotação face ao seu valor em 31/12/2010, diminuição essa mensurada pelo método do justo valor. [cf. documentos n.ºs 8 e 9 juntos com a P. I.]

n) A 31 de dezembro de 2011, a “B…” e a “C…” eram detentoras de participações financeiras no D…, nas seguintes percentagens:

SOCIEDADE

PARTICIPAÇÃO FINANCEIRA

B…

0,004 %

C…

0,00002 %

o) A Requerente considerou como fiscalmente dedutíveis apenas 50% do ajustamento de justo valor, ocorrido na transição do POC para o SNC, assim como das referidas perdas em 2011, por considerar que tal era o entendimento da AT, conforme expresso na Ficha Doutrinária relativa ao Processo n.º …/2011, com despacho de 24/02/2011 do Diretor-Geral dos Impostos.

            p) Em 22 de maio de 2014, a Requerente apresentou reclamação graciosa – cujo requerimento inicial aqui se dá por inteiramente reproduzido – com vista à revisão e correção da autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2011, por entender que a mesma padecia de erro no tratamento fiscal conferido às perdas decorrentes da aplicação do modelo de justo valor (ajustamento de transição e perda em 2011), os quais, não obstante incidirem, primacialmente, nas esferas individuais da “B…” e “C…”, encontravam-se refletidos na autoliquidação de IRC da Requerente. [cf. documento n.º 7 com a P. I.]   

q) A Requerente solicitou, no âmbito da reclamação graciosa apresentada, a correção da autoliquidação de IRC e a consequente redução do lucro tributável, nos seguintes termos [cf. documento n.º 7 com a P. I.]:

(i) Dedução no campo 705 do quadro 7 da declaração modelo 22 “Variações patrimoniais positivas (“Regime transitório previsto no art. 5.º, n.ºs 1, 5 e 6, do DL 159/2009, de 13/7)”, dos seguintes valores:

SOCIEDADE

VALOR INICIALMENTE DECLARADO

VALOR CORRIGIDO

B…

€ 57.246,84

€ 0,00

C…

€ 378,53

€ 0,00

 

(ii) Anulação no campo 738 do quadro 7 da declaração modelo 22 “Mais-valia fiscal resultante de mudanças no modelo de valorização (art. 46.º, n.º 5, al. b))”, dos seguintes montantes:

SOCIEDADE

VALOR INICIALMENTE DECLARADO

VALOR CORRIGIDO

B…

€ 61.170,73

€ 122.341,46

C…

€ 120,82

€ 241,65

r) O que corresponde a uma redução do lucro tributável na esfera consolidada da Requerente num montante de € 118.916,91, perfazendo um lucro tributável total de € 4.550.256,09. [cf. documento n.º 7 com a P. I.]

s) A referida reclamação graciosa foi autuada sob o n.º …2014… no Serviço de Finanças do ... - …, tendo sobre a mesma recaído o seguinte projeto de decisão [cf. fls. 259 verso a 263 verso do PA]:

 

t) A Requerente foi notificada, através do ofício n.º …/…, datado de 01.04.2015, da Divisão da Justiça Administrativa e Contenciosa da Área da Justiça Tributária da Direção de Finanças do …, remetido por carta registada (RM…PT), daquele projeto de decisão e para, querendo, exercer o direito de audição. [cf. fls. 264 a 265 verso do PA]

u) A Requerente não exerceu o direito de audição, pelo que o aludido projeto de decisão foi convertido em decisão definitiva e, consequentemente, a reclamação graciosa foi indeferida, por despacho datado de 25 de maio de 2015, proferido pela Chefe de Divisão da Justiça Administrativa e Contenciosa da Área da Justiça Tributária da Direção de Finanças do …, por subdelegação do Diretor de Finanças do …, com a fundamentação supra referida na alínea s). [cf. fls. 266 e 266 verso do PA]

v) A Requerente foi notificada, através do ofício n.º …/…, datado de 27.05.2015, da Divisão da Justiça Administrativa e Contenciosa da Área da Justiça Tributária da Direção de Finanças do …, remetido por carta registada com aviso de receção (RF…PT), do despacho de indeferimento da reclamação graciosa. [cf. fls. 267 a 269 do PA]

w) Em 31 de agosto de 2015, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD]

 

*

§2. FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham provado.

 

*

§3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa, nos documentos juntos aos autos e no respetivo processo administrativo.

 

*

III.2. DE DIREITO

§1. DA QUESTÃO DECIDENDA

            A questão que é colocada ao Tribunal consubstancia-se em saber qual o tratamento fiscal a dar às perdas decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, que sejam instrumentos do capital próprio e que tenham um preço formado num mercado regulamentado, não detendo o sujeito passivo, direta ou indiretamente, uma participação no capital superior a 5% do respetivo capital social.

            Concretizando, aceite que está por Requerente e Requerida que as participações financeiras em apreço deverão ser contabilizadas de acordo com o critério do justo valor e que as mesmas foram reconhecidas através de resultados, importa então dilucidar se a perda contabilística resultante da aplicação do método do justo valor e a perda contabilística verificada no ano de 2011, decorrente da depreciação da cotação das ações do “BCP”, devidamente mensurada pelo método do justo valor e reconhecida em resultados, deverão ser atendidas na totalidade ou apenas em 50%. 

            A este propósito, as Partes preconizam duas posições diametralmente opostas, a saber:

a)      A Requerida entende que aquelas perdas devem ser tratadas nos termos previstos no art. 45.º, n.º 3, do Código do IRC e, portanto, apenas são dedutíveis em 50%;

b)      A Requerente considera que as mesmas perdas devem ser tratadas nos termos previstos nos arts. 18.º, n.º 9, al. a) e 23.º, n.º 1, al. i), ambos do Código do IRC, não havendo aqui lugar à aplicação do art. 45.º, n.º 3, do mesmo compêndio legal, pelo que os ajustes por justo valor são dedutíveis na sua totalidade.    

 

*

§2. DO ENQUADRAMENTO LEGAL

            A apreciação jurídico-tributária da situação sub judice tem, necessariamente, de iniciar pela delimitação do bloco normativo aplicável, para o que é necessário convocar as normas legais que se afiguram concretamente relevantes, as quais terão de ser consideradas na redação aplicável ratione temporis.

            Assim, do Código do IRC cumpre atender às seguintes normas:

«Artigo 17.º

Determinação do lucro tributável

            1. O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

(…)»

«Artigo 18.º

Periodização do lucro tributável

            1. Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

            (…)

            9. Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:  

            a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social;

            (…)»

«Artigo 20.º

Rendimentos

1. Consideram-se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:

(…)

f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

(…)»

«Artigo 21.º

Variações patrimoniais positivas

1. Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:

(…)

b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;

(…)»

«Artigo 23.º

Gastos

            1. Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:

            (…)

i) Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

            (…)

5. Não são, igualmente, aceites como gastos do período de tributação os suportados com a transmissão onerosa de partes de capital, qualquer que seja o título por que se opere, a entidades com as quais existam relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 58.º, ou a entidades residentes em território português sujeitas a um regime especial de tributação, bem como as menos-valias resultantes de mudanças no modelo de valorização relevantes para efeitos fiscais, nos termos do n.º 9 do artigo 18.º, que decorram, designadamente, de reclassificação contabilística ou de alterações nos pressupostos referidos na alínea a) do n.º 9 deste artigo.»

«Artigo 24.º

Variações patrimoniais negativas

            Nas mesmas condições referidas para os gastos, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:

            (…)

b) As menos-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade;

(…)»

«Artigo 45.º

Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais

(…)

3. A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.

(…)»

«Artigo 46.º

Conceito de mais-valias e de menos-valias

            1. Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afectação permanente a fins alheios à actividade exercida, respeitantes a:

            (…)

            b) Instrumentos financeiros, com excepção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.º.

            (…)

            5. São assimiladas a transmissões onerosas:

            (…)

c)      As mudanças no modelo de valorização relevantes para efeitos fiscais, nos termos do n.º 9 do artigo 18.º, que decorram, designadamente, de reclassificação contabilística ou de alterações nos pressupostos referidos na alínea a) do n.º 9 deste mesmo artigo.

(…)»

 

*

§3. DO CASO SUB JUDICE: SUBSUNÇÃO AO BLOCO NORMATIVO APLICÁVEL

Na perspetiva normativa, o epicentro do dissenso entre as Partes radica na parametrização interpretativa e aplicativa do disposto no n.º 3 do art. 45.º do Código do IRC.

A Requerida sustenta que o segmento dessa norma que estatui que «outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio (…) concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor», abrange situações como a dos autos, impondo assim que as perdas em apreço, apuradas através da aplicação do justo valor, concorram para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.     

A Requerida, em abono dessa sua posição, invoca as opiniões doutrinárias de André A. Vasconcelos[1], de A. C. Pires Caiado, Luís C. Viana e Luís P. Ramos[2], de Luísa Anacoreta Correia[3] e de Helena Martins[4], autores que, em suma, defendem que, atenta a formulação abrangente daquele preceito legal, estão abrangidas pelo mesmo as perdas resultantes de ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, nos casos previstos na alínea a) do n.º 9 do art. 18.º do Código do IRC.

A Requerida louva-se, ainda, na decisão proferida, em 24.09.2015, no processo n.º 25/2015-T, do CAAD[5], na qual se conclui o seguinte:

«- Poderá, de um ponto de vista de equidade ou de adequação de política fiscal prosseguida, questionar-se se o legislador não deveria logo a partir da redacção do CIRC vigente a partir de 2010 ter revogado os limites à dedutibilidade das perdas ou variações patrimoniais associadas a partes de capital, mas, independentemente da resposta a essa questão (que não se considera evidente até porque haveria que atender à situação de crise financeira e medidas orçamentais restritivas já então existentes), cabe a este tribunal julgar segundo o “direito constituído” ao tempo da situação em apreciação neste processo;

- Face ao disposto em diversas normas do CIRC em vigor nos exercícios de 2010 e 2011, o tribunal não considera convincentes os argumentos expendidos no sentido da não aplicação do nº 3 do artigo 45º do mesmo Código aos casos de perdas resultantes dos ajustamentos decorrentes de variações do justo valor de partes de capital;

- Nem parece que, no período em causa, tenham surgido dúvidas na doutrina sobre a continuação de aplicação do referido nº 3 do art. 45º do CIRC a todos os casos de perdas ou variações patrimoniais negativas, verificando-se precisamente opiniões no sentido dessa interpretação, ainda que manifestando dúvidas e/ou críticas sobre os objectivos da política prosseguida (…);

(…)

- Este tribunal não considera confirmada a existência de uma opção do legislador no sentido de conceder tratamento diverso aos casos de perdas em instrumentos de capital próprio com valor encontrado em mercado regulamentado, quer pelas incertezas que se mantém relativamente à forma como esse valor reflecte a realidade económica, quer pela incerteza quanto à repercussão de tal solução nas receitas fiscais;

- Suscita também dúvidas a argumentação baseada numa sobrevalorização da dicotomia dos termos “gastos” e “perdas”, atendendo à frequente imprecisão terminológica, de que é exemplo, precisamente, a oscilação na utilização dos referidos conceitos de perdas e gastos (…);

- Tendo em conta que, por força da conjugação da alínea a) do n.º 9 do art. 18º com o disposto na alínea f) do n.º 1 do art. 20.º e na alínea i) do n.º 1 do art. 23.º do CIRC, os ganhos e perdas decorrentes das  aplicação do critério do justo valor por resultados concorrem para o lucro tributável de cada exercício, a coexistência destes normativos com a redacção do n.º 3 do art. 45.º, leva a concluir que, ao introduzi-los no Código do IRC, se o legislador tivesse pretendido dar um tratamento diferente às perdas resultantes da aplicação do justo valor não poderia deixar de ter alterado a redacção da norma em conformidade, evidenciando a sua intenção, como aliás também não o fez ao tempo da criação de idênticos regimes para as empresas do sector bancário e do sector segurador (…);

- É que a inaplicabilidade do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC defendida pela Requerente redundaria num tratamento mais desfavorável concedido às situações em que, na valorimetria das participações sociais, se aplicasse o método do custo ou, em caso de opção pela IAS39 (cf. §55, b)) os ganhos ou perdas resultantes de alterações no justo valor sejam reconhecidos directamente no capital próprio, pois que as perdas verificadas na sua alienação apenas seriam deduzidas em metade, ao passo que as perdas registadas nas participações sociais mensuradas ao justo valor, só pelo facto de o seu reconhecimento contabilístico ter sido feito de forma parcelar, em função das variações verificadas em cada ano no justo valor, e não apenas num único exercício, não sofreriam qualquer limitação, sendo totalmente deduzidas para efeitos de apuramento no lucro tributável;

- Parece bem mais curial que o legislador tenha pretendido manter um tratamento uniforme das perdas ou variações patrimoniais associadas às partes de capital, independentemente do nível de participação que aquelas partes representassem no capital e do critério de mensuração adoptado, já que, como referido, permaneciam casos em que à perda de valor, apesar de verificada em instrumentos de capital próprio com preço formado em mercado regulamentado (como sejam as situações em que o sujeito passivo detém mais de 5% do capital ou em que detém menos de 5% mas opta pela contabilização dos ajustamentos resultantes das alterações no justo valor em contas de capital próprio), se continuava a aplicar a limitação em 50% de dedutibilidade das perdas.

- Ou seja, entende-se que o legislador terá dado prevalência ao princípio da neutralidade no tratamento fiscal das perdas ou variações patrimoniais associadas a partes de capital, independentemente do método de mensuração, salvaguardando, em simultâneo, a imprevisibilidade de eventuais efeitos negativos nas receitas fiscais, decorrente das flutuações das cotações do mercado.

Por estas razões, considera-se que a interpretação da AT não se encontra infirmada nos autos e que, antes das alterações introduzidas no Código do IRC pela Lei nº 2/2014, de 16 de Janeiro, o n.º 3 do art. 45.º era aplicável aos ajustamentos decorrentes da mensuração ao justo valor dos instrumentos financeiros com os requisitos definidos na alínea a) do n.º 9 do art. 18.º, pelo que a Requerida deveria considerar, nos exercícios em causa nos autos, que a perda reflectida em resultados na contabilidade apenas poderia ser deduzida para efeitos fiscais em metade do seu valor.»

Por último, a Requerida invoca o acórdão n.º 85/2010, de 03.03.2010, do Tribunal Constitucional[6], que se pronunciou no sentido da constitucionalidade da referenciada norma legal. 

Com o devido respeito, entendemos que a posição preconizada pela Requerida não se afigura consentânea com aquela que consideramos ser a correta interpretação das normas legais supra citadas – nomeadamente, dos arts. 18.º, n.º 9, al. a) e 45.º, n.º 3, ambos do Código do IRC – e a sua consequente aplicação à situação sub judice.

Como flui do estatuído na alínea a) do n.º 9 do art. 18.º do Código do IRC, o justo valor, positivo e negativo, concorre para a formação do lucro tributável quando respeite a «instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social».

São, então, os seguintes os respetivos pressupostos legais:

a)      Tratar-se de instrumentos de capital próprio com um preço formado num mercado regulamentado;

b)      Tais instrumentos financeiros serem contabilisticamente reconhecidos pelo justo valor através de resultados; e

c)      O sujeito passivo não deter, direta ou indiretamente, uma participação superior a 5% do respetivo capital social.

Verificados que sejam esses pressupostos, o facto tributário deixa de estar associado à realização dos títulos, passando a estar centrado na oscilação da respetiva cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação. Ou seja, o que se tributa é a mera detenção do ativo e não já a sua venda.

Sendo que, por via daquela norma legal, tributa-se o justo valor em situações excecionais e de incontestada fiabilidade, pois apenas incide sobre instrumentos financeiros transacionados em mercado regulamentado e a respetiva cotação oficial funciona como uma valorimetria fiável de mensuração do justo valor.

Dito isto. A regra fiscal aplicável à valorização do justo valor tem de ser igual à da desvalorização do ativo, sob pena de, não sendo assim, se criar uma assimetria fiscal do justo valor, flagrantemente violadora dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva. Destarte, se o justo valor positivo é totalmente tributado (nunca se lhe aplica o regime das mais e menos-valias), então ao justo valor negativo tem de ser conferido um tratamento igual, assumindo-o como um custo total do exercício.

A argumentação justificativa da exclusão fiscal parcial dos custos realizados não pode, efetivamente, ser estendida à tributação do justo valor negativo do art. 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, porquanto, desde logo, o facto tributário dissocia-se da decisão de venda e, portanto, a vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no justo valor. Ademais, ao justo valor negativo nunca subjaz uma motivação de evasão fiscal, pela simples razão de que a tributação do justo valor se cinge aos ativos transacionados em mercado regulamentado, onde a cotação do ativo e, portanto, a sua valorização e desvalorização, está, totalmente, apartada da vontade fiscal do contribuinte[7]. Acresce ainda que, como já se referiu, se os proveitos do justo valor são totalmente tributados, os gastos também devem ser aceites na totalidade.  

Não existem, de facto, imperativas razões fiscais ou extrafiscais que justifiquem a disparidade na tributação das componentes positivas e negativas do justo valor. Um tratamento diferenciado, consubstanciado na não aceitação, total ou parcial, das perdas do justo valor, ao contrário da integral tributação do justo valor positivo, gera um regime fiscal mais injusto do que o modelo da realização, o qual é, por isso, inconstitucional, uma vez que tal disparidade não tem subjacentes quaisquer razões de base fiscal, económica ou jurídica, assentando apenas na necessidade de preservação da receita fiscal[8].

Nesta parametria, acolhemos aqui a posição sufragada no acórdão proferido, em 25.11.2013, no processo n.º 108/2013-T, do CAAD[9], por com ela concordarmos plenamente – visando, dessa forma, obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cf. art. 8.º, n.º 3, do Código Civil) –, pelo que passamos a reproduzir o essencial da respetiva fundamentação:

«A adopção da aplicação do justo valor como critério de valoração contabilístico com relevância fiscal, corresponde a uma alteração coperniciana no regime da tributação dos rendimentos ou gastos resultantes da aquisição de instrumentos financeiros.

Com efeito, previamente à adopção do justo valor, as variações patrimoniais relativas aos instrumentos financeiros eram irrelevantes do ponto de vista da formação do lucro tributável de cada período, por efeito da norma do artigo 21.º/1/b) do CIRC. Apenas no momento da realização da mais ou menos-valia é que assumia relevância fiscal a variação patrimonial verificada.

Este enquadramento fiscal tinha (como tem na parte em que se mantém) três características bem vincadas, a saber:

·         Era uma tributação única, ou seja, que ocorria uma só vez ao longo de todo o período de detenção dos instrumentos financeiros;

·         Estava dependente de uma actuação voluntária do sujeito passivo, na medida em que a transacção dos instrumentos geradores da variação patrimonial, condição da relevância tributária daquela, apenas se daria se e quando o sujeito passivo assim o quisesse;

·         A valorimetria da variação patrimonial era fixada em função da concreta transacção que desencadeava a sua relevância tributária.

A conjugação destas três características que se vêm de apontar, propiciavam, desde logo, um terreno fértil para manipulações contabilísticas e fiscais, já que o sujeito passivo podia optar por desencadear a relevância tributária no momento e termos em que tal lhe fosse fiscalmente mais proveitoso.

Por outro lado, e atenta a relevância da vontade do sujeito passivo no mecanismo de relevância tributária da variação patrimonial, o sistema estabelecido adequava-se à adopção de mecanismos de condicionamento daquela vontade, no sentido de a conformar a comportamentos economicamente mais desejáveis, que, no caso, passam pela preferência de realização de mais-valias, em detrimento da realização de menos-valias.

É neste quadro que se explica o surgimento da norma do anterior artigo 42.º/3 do CIRC, que precede o actual artigo 45.º/3 do mesmo.

Tal norma, quer na sua redacção primitiva, resultante da Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro, quer na que lhe foi dada pela Lei 60-A/2005 de 30 de Dezembro, explica-se objectiva e subjectivamente (ou seja, face à motivação expressa pelo legislador) por necessidades ligadas ao combate à fraude e evasão fiscais e ao alargamento da base tributável, dirigidas à almejada consolidação orçamental das contas públicas.

A aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, operada pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, na parte abrangida, um modelo radicalmente diferente, quer de valorização quer de relevância tributária das variações patrimoniais relativas à detenção daqueles instrumentos.

Com efeito, a intenção do legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, devidamente evidenciada, foi, assumida e expressamente, a de manter “a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.

Já relativamente a “instrumentos financeiros” que correspondam a menos “de 5 % do capital social”, “cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, (...) nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada”, a intenção legislativa foi a de aceitar “a aplicação do modelo do justo valor”, excluindo o princípio da realização.

Em consonância, o artigo 18.º/9 do CIRC aplicável, veio dispor que, por regra, “Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados.”. Trata-se aqui de um afloramento evidente e deliberado do assumido princípio da realização.

Contudo, a mesma norma, na sua alínea a), estabelece a excepção a este regime, nos seguinte termos: “excepto quando: a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social;”.

Ou seja, e igualmente conforme assumido pela entidade legislante, quando os “rendimentos ou gastos (...) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, “concorrem para a formação do lucro tributável” “desde que”:

a.      Sejam reconhecidos “através de resultados”;

b.      Se tratem “de instrumentos do capital próprio”;

c.       “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e

d.      “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social.”.

Cumpridas estas condições:

a.      consideram-se rendimentos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros (artigo 20.º/1/f) do CIRC); e

b.      consideram-se gastos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros (artigo 23.º/1/i) d).

Deste modo, onde antes tínhamos uma relevância tributária única (one-off), aquando da transacção daqueles instrumentos, agora passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor a estes passam a relevar directamente para a formação do lucro tributável (artigos 20.º/1/f) e 23.º/1/i) do CIRC) do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (artigo 18.º/9 do CIRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias (artigo 46.º/1/b) do CIRC).

Neste quadro, cessam, manifestamente, de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um acto de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objectivamente fixada.

Por outro lado, e pelas mesmas razões, carece igualmente de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais “desejáveis” e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.

Não obstante todas as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, o anterior artigo 42.º/3 do CIRC, renumerado para artigo 45.º/3, manteve a respectiva vigência, com a sua redacção inalterada.

Daí que se questione, como ocorre nos autos, se tal norma se aplicará, ou não, às depreciações relativas a instrumentos financeiros, que concorram para a formação do lucro tributável, nos termos do artigo 18.º/9/a) do CIRC.

Prima facie, a resposta a tal questão seria afirmativa, como defende a AT, atenta a abrangência de previsão em questão, apontada já pelo Autor citado por aquela na sua resposta.

Uma leitura atenta e coordenada dos normativos relevantes para a análise da causa, e que já se foram indicando, permitirá, todavia, concluir de outra forma.

Senão vejamos.

O artigo 45.º/3 do CIRC, já transcrito, refere que:

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

A análise do texto normativo revela com clareza que o legislador elegeu, para nele incluir, três tipos de situações que se deverão ter, em função da presunção de boa técnica legislativa, por distintas, a saber:

a.      “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital”;

b.      “outras perdas (...) relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”;

c.       “outras (...) variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”.

Vejamos, então, se a situação dos autos se reconduz a alguma das elencadas situações.

A situação aludida sob a alínea a) supra, será manifestamente inaplicável, não só porque não houve qualquer realização operada mediante transmissão onerosa, como porque o artigo 46.º/1/b) exclui as situações descritas no artigo 18.º/9/a) do conceito de mais valias realizadas. Deste modo, qualquer dificuldade que no caso exista, apenas se poderá reconduzir a alguma das situações elencadas nas alíneas b) e c) supra.

A aparente abrangência indiscriminada das previsões em causa, poderá, contudo, ser razoavelmente mitigada se se atentar que “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas”, serão conceitos, não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto.

Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do mesmo Código, atentando na evolução terminológica operada pelo artigo 159/2009, de 13 de Dezembro.

Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do CIRC referiam, respectivamente, que:

·         “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”;

·         “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: (...)”.

Verifica-se, deste modo, que aquando da consagração da redacção actual do artigo 45.º/3 do CIRC, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

a.      Custos;

b.      Perdas;

c.       Variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício.

A previsão do artigo 42.º/3 (predecessor do actual 45.º/3), dever-se-á considerar, assim, por reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º. Deste modo, e por razões óbvias, da previsão daquela norma dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos “a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”, incluindo-se ali, unicamente, as perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), relativas àquelas partes.

E que assim é, ou seja, que a expressão “outras perdas ou variações patrimoniais negativas” utilizada no actual artigo 45.º/3 do CIRC não tem um sentido indiscriminadamente abrangente, mas antes um sentido preciso, definido nos artigo 23.º e 24.º, decorre desde logo do facto de o legislador ter empregue a mesma distinção.

Para além disso, a inclusão no âmbito da norma em causa, não só das perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), mas também dos custos (tal como definidos no artigo 23.º), levaria a que, por exemplo, o custo de aquisição de partes de capital apenas concorresse em metade do respectivo valor para o apuramento do lucro tributável, o que seria, obviamente, inconcebível num legislador minimamente razoável.

A alteração normativa implementada pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, não terá alterado nada de relevante na matéria em causa. Com efeito, não obstante o corpo do artigo 23.º ter passado a referir-se unicamente a gastos, o certo é que o CIRC continua a utilizar a expressão “perdas”, incluindo no próprio artigo 23.º (cfr. n.º 1, alínea h)). Tal ocorre em coerência, aliás, com o SNC, que nos termos do ponto 2.1.3.e) do anexo ao Decreto-Lei 158/2009 de 12 de Julho, mantém a distinção entre “gastos” e “perdas”.

Deste modo, conclui-se que o artigo 45.º/3 do CIRC aplicável, se reportará a:

a.      diferenças negativas entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital;

b.      outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio; e

c.       outras variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio;

sendo que por “perdas” se deve entender os factos qualificáveis como tal à luz do CIRC, e por “variações patrimoniais negativas” se deverá entender variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, tal como definidas no artigo 24.º.

Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do CIRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

A própria AT parece reconhecer isto mesmo, já que no “Manual de Preenchimento do Quadro 07, Modelo 22”, a propósito do campo 737, refere que “Neste campo são inscritas, em 50%, as importâncias relativas a outras perdas (que não sejam menos-valias, dado que estas obedecem ao “mecanismo” das mais-valias e menos-valias) relativas a partes de capital ou outras componentes de capital próprio. São, por exemplo, acrescidas neste campo 737 as importâncias correspondentes a 50% das perdas por reduções de justo valor, quando estas se enquadrem no âmbito do artigo 23.º, n.º 1, alínea i), por força do disposto no art.º 18.º, n.º 9, alínea a)”. Sucede que o artigo 23.º/1/i) do CIRC não se refere às importâncias em causa como “perdas”, mas como “gastos”, pelo que será incorrecta a sua inscrição no campo em causa.

De resto, e se dúvidas houvesse, caso o legislador, aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei 159/2009 de 13 de Dezembro, pretendesse abranger as situações elencadas no artigo 18.º/9/a) do CIRC, no âmbito do artigo 45.º/3 do mesmo, teria:

·         incluído os “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, não no artigo 23.º, mas no artigo 24.º do CIRC5; ou

·         referido tais situações como “perdas resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” e não como “gastos”.

No quadro que se acaba de expor, deve-se então considerar que o Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho veio introduzir, no que respeita à parte abrangida pela aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, um regime especial de relevância para o cômputo do lucro tributável, justificado quer pela sua objectividade própria quer pela confessada intenção de aproximação da contabilidade à fiscalidade.

Esta circunstância não é, face à redacção actual do CIRC, susceptível de gerar qualquer tipo de dúvidas, como se verifica, designadamente, pela redacção dos artigos 20.º/1/f) e h), 23.º/1/i) e l), e, em especial 46.º/1/b), face aos quais se evidencia de uma forma clara a intenção do legislador afastar os ajustamentos decorrentes da aplicação do critério do justo valor em instrumentos financeiros, nos termos reconhecidos pelo CIRC, do regime das mais e menos-valias.

Já o regime resultante da conjugação dos artigos 45.º/3 e 46.º do CIRS, apenas faz sentido na perspectiva da atendibilidade das variações patrimoniais em causa sob o prisma do referido princípio da realização.

É que, estando em causa, face a tal princípio, a aferição da variação patrimonial em função de uma transacção, haverá sempre um factor voluntário em relação àquela.

Ou seja, no regime para o qual foi pensada e instituída a norma do artigo 45.º/3, a realização de menos-valias, e demais situações elencadas estava dependente de uma actuação voluntária correspondente à realização das mesmas. Ora, neste quadro, será compreensível que o legislador institua mecanismos de desincentivo a uma actuação susceptível de ser considerada como desvaliosa, no caso a realização de menos-valias ou outras variações patrimoniais negativas. Ao dispor que tais situações apenas relevarão em 50% do montante contabilizado, o legislador fiscal está, objectivamente, a condicionar as actuações abrangidas pela previsão legal, impondo um incentivo negativo às mesmas.

Por outro lado, e estando em causa instrumentos financeiros de valor não objectivamente quantificável, a desconsideração em 50% das variações patrimoniais negativas verificadas, teria também uma função de “compensar” a natural tendência dos operadores económicos para, ao nível fiscal, inflacionarem os prejuízos.

Contudo, aqueles aspectos não se verificarão já nas situações abrangidas pelo artigo 18.º/9/a). Aqui, estando-se perante ajustes decorrentes da contabilização do justo valor, determinado por critérios objectivos (com “um preço formado num mercado regulamentado”), não há qualquer dúvida ou intervenção da vontade do sujeito passivo na verificação do ajustamento patrimonial negativo ou positivo. Ou seja, estes ocorrerão ou não, independentemente da actuação e da vontade do sujeito passivo.

Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico quer de um ponto de vista jurídico.

É que, recorde-se, esta situação de penalização contingente (aleatória, até) injustificada, só se daria por força da excepcionação ao regime do princípio da realização das situações abrangidas pelo artigo 18.º/9/a) do CIRC aplicável. Ou seja, se relativamente a essas situações se aplicasse o regime geral do corpo do artigo 18.º/9, segundo o qual as mesmas não concorreriam “para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, a apontada incoerência não se verificaria, já que o facto que desencadearia a concorrência para a formação do lucro tributável apenas se daria por vontade do sujeito passivo, pelo que caberia a este optar por realizar a variação patrimonial negativa, com a consequente penalização fiscal, ou diferir esta para um momento em que fosse menos volumosa ou, até positiva, diminuindo ou eliminando a penalização decorrente da operação para si e para o Erário. É a excepção da alínea a), ao retirar as situações aí previstas do âmbito do princípio da realização, que justifica o novo regime de relevância para o lucro tributável, instituído.

Evidência de tudo o que vem de se dizer, apresenta-se no quadro elaborado de seguida, o qual demonstra a irrazoabilidade da aplicação da norma do artigo 45.º/3 às situações abrangidas pelo artigo 18.º/9/a):

Ano

Valor Inv. Financeiro

Variação Patrimonial

Aplicação do artigo 45.º/3 do CIRC

0

Valor de aquisição (V.A.)

0

0

1

V.A.+ 40

+ 40

+40

2

V.A.+ 20

-20

-10

3

V.A

-20

-10

4

V.A.-40

-40

-20

5

V.A.

+40

+40

6

V.A. -20

-20

-10

A não aplicação da norma do artigo 45.º/3 do CIRC aos gastos, e concretamente aos “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, com a consideração plena das repercussões patrimoniais verificadas, sejam positivas ou negativas, leva a uma coerência da tributação qualquer que seja a altura em que se verifique a alienação do instrumento financeiro. Ou seja, em qualquer altura que se escolha para proceder à alienação do instrumento financeiro, as alterações patrimoniais positivas e negativas compensam-se, de modo que, a final, o sujeito passivo apenas tenha acrescentado ou diminuído ao seu lucro tributável a diferença entre o valor de aquisição e o valor de venda.

Já se se aplicasse a norma do artigo 45.º/3 do CIRC, como pretende a ATA, a partir do momento em que se verifique uma alteração patrimonial negativa, haverá uma discrepância entre a relevância fiscal das variações patrimoniais negativas e positivas, sem qualquer justificação, como se disse, uma vez que aquelas variações ocorrem de forma objectiva e independente da actuação ou vontade do sujeito passivo. Assim, se ao fim do segundo ano o sujeito passivo do exemplo supra procedesse à realização do instrumento financeiro em causa, não obstante ter realizado uma mais-valia de apenas 20 (que seria tributada como tal ao abrigo do princípio da realização), teria, afinal, pago imposto sobre 30 (40-10). Do mesmo modo, se procedesse àquela realização ao fim do terceiro ano, teria pago imposto sobre 20, não obstante não ter tido qualquer acréscimo patrimonial com a operação. E se procedesse à mesma realização ao fim do sexto ano, teria pago imposto como se tivesse tido um acréscimo patrimonial de 30 (80-50), não obstante ter tido uma variação patrimonial efectiva de -20, que, ao abrigo do princípio da realização consagrado no CIRC, seria atendível, ainda que em apenas 50% do respectivo valor (-10)!

Parece claro que tais resultados, meramente aleatórios e sem qualquer justificação substancial que os sustente, não poderão ter sido queridos por um legislador razoável.

É certo que a solução alternativa, que exclui a aplicação do artigo 45.º/3, leva a que, no caso de se verificar, a final, uma menos-valia, esta acabe por ter sido considerada a 100%, e não a 50%, como ocorreria ao abrigo do princípio da realização. Seria o caso de, no exemplo do quadro supra, a realização ocorrer nos anos 4 ou 6. Contudo, esta discriminação positiva (ou melhor, não discriminação negativa) pela opção pelo critério do justo valor, poderá justificar-se, desde logo, porquanto no regime do artigo 18.º/9/a), deixa de fazer sentido qualquer desincentivo à realização de menos-valias, uma vez que as mesmas relevarão fiscalmente independentemente da sua efectiva realização. Não se deverá desconsiderar igualmente que, por um lado, a contabilização pelo justo valor é considerada mais conforme à aproximação entre a contabilidade e a fiscalidade, finalidade confessadamente prosseguida pelo legislador do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, e, por outro, a circunstância de estarmos perante realidades objectivamente avaliadas, sem que haja margem significativas para manipulações fiscalmente convenientes. Ou seja, como se havia adiantado já, não se verificam as razões de combate à fraude e evasão fiscal, nem as razões de consolidação orçamental, que demonstradamente estiveram na génese da norma do artigo 45.º/3 do CIRC.

Deste modo, e em suma, em obediência às imposições hermenêuticas do artigo 9.º do Código Civil, segundo as quais “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1), e “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” (n.º 3), entende-se ser de interpretar o artigo 45.º/3 do CIRC, no sentido de na sua previsão não se incluírem os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º.»

Nestes termos, não estando a situação sub judice sob a alçada normativa do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, o pedido de pronúncia arbitral merece inteiro provimento, pois o controvertido ato de autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2011, padece de erro sobre os pressupostos de direito, por errada interpretação e aplicação do disposto naquela norma legal, o que constitui vício de violação de lei.

Atenta a fundamentação em que está estribado (cf. facto provado s)), o ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente e que teve por objeto o referenciado ato de autoliquidação de IRC, resulta fulminado pelo mesmo vício de violação de lei.

 

***

IV. DECISÃO

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a)      Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2011, impugnado nestes autos, devendo o lucro tributável do grupo fiscal “A…”, no exercício de 2011, ser reduzido em € 118.916,91 e, por consequência:

·         No campo 705 do quadro 07 das declarações de rendimentos (Modelo 22) das empresas “B…” e “C…” devem ser inscritos os valores de € 122.341,46 e de € 241,65, respetivamente;

·         Os valores inscritos no campo 738 do quadro 07 das declarações de rendimentos (Modelo 22) das empresas “B…” e “C…” são anulados na totalidade;

·         No campo 778 do quadro 07 da declaração de rendimentos (Modelo 22) da empresa “B…” deve passar a constar o valor de € 1.343.578,92;

·         No campo 777 do quadro 07 da declaração de rendimentos (Modelo 22) da empresa “C…” deve passar a constar o valor de € 89.102,95;

·         No campo 380 do quadro 09 da declaração de rendimentos (Modelo 22) do grupo fiscal “A…”, apresentada pela Requerente, deve passar a constar o montante de € 4.550.256,09.

b)       Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º …2014… – IRC 2011 (…/2014), com a sua consequente anulação;

c)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo.

 

***

VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 29.729,23.

 

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CUSTAS

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

*

 

Lisboa, 22 de abril de 2016.

 

O Árbitro,

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

 



[1] “O justo valor e o Código do IRC”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 3, Número 4, Inverno, p. 202.

[2] As obrigações das sociedades comerciais em sede IRC.

[3] “SGPS: tributação da alienação de partes de capital”, Revisores e Auditores, n.º 53 (Abril/Junho) de 2011, disponível em http://www.oroc.pt/revista/detalhe_artigo.php?id=320.

[4] Lições de Fiscalidade, Volume I, João Ricardo Catarino e Vasco Branco Guimarães (coord.), 2.ª edição, 2013, p. 272.

[5] Disponível em https://www.caad.org.pt/tributario/decisoes.

[6] Disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.

[7] Como refere André A. Vasconcelos (ob. cit., pp. 201 e 203), a propósito da alínea a) do n.º 9 do art. 18.º do Código do IRC, «estando reunidas estas duas condições cumulativas, não será expectável uma “manipulação” dos valores de mercado e, consequentemente, do lucro tributável», pelo que este é «um caso em que a “manipulação” de resultados fiscais se encontra afastada».

[8] A recusa de aceitação fiscal de uma perda efetiva, tendo apenas por objetivo a manutenção da receita fiscal – e na ausência de qualquer outra razão justificativa – constitui uma ofensa ao princípio da capacidade contributiva (neste sentido, ver José Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, 4.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2015, pp. 502 e 503).

[9] Disponível em https://www.caad.org.pt/tributario/decisoes.