Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
1. Em 29 de junho de 2015, a sociedade A…, contribuinte n.º …, doravante identificada por Requerente, apresentou pedido de pronúncia arbitral com intervenção do tribunal arbitral coletivo, nos termos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
2. No referido pedido de pronúncia arbitral com intervenção do coletivo, a Requerente pretende que o Tribunal Arbitral declare:
a) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º …, no montante de € 248,10, referente ao período 1103T;
b) a ilegalidade do ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º …, no montante de € 35,29, referente ao período 1103T;
c) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º …, no montante de € 11.217,31, referente ao período 1106T;
d) a ilegalidade do ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º …, no montante de € 1.482,53, referente ao período 1106T;
e) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º …, no montante de € 33.344,07, referente ao período 1109T;
f) a ilegalidade do ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º …, no montante de € 4.070,72, referente ao período 1109T;
g) a ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 7.088,96, referente ao período 1112T;
h) a ilegalidade do ato de liquidação de Juros no montante de € 800,17, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
i) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 3.124,66, referente ao período 1203T;
j) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Juros Compensatórios, no montante de € 321,88, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
k) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 36.759,91, referente ao período 1206T;
l) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Juros Compensatórios, no montante de € 3.412,12, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
m) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 5.398,23, referente ao período 1209T;
n) a ilegalidade do ato de liquidação de Juros Compensatórios, no montante de € 447,23, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
o) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 5.363,60, referente ao período 1212T;
p) a ilegalidade do ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, no montante de € 390,29, que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
q) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 14.338,38, referente ao período 1306T;
r) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Juros Compensatórios n.º 2015…, no montante de € 757,32, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
s) a ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 35.533,22, referente ao período 1309T;
t) a ilegalidade do ato de liquidação de Juros Compensatórios, no montante de € 1.522,57, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 ….
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 11 de julho de 2015, pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e, subsequentemente, foi promovida a notificação da Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante identificada como Entidade Requerida).
4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 27 de agosto de 2015, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
6. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 11 de setembro de 2015.
7. Em 21 de outubro de 2015, a Entidade Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o processo administrativo.
8. Em 19 de novembro de 2015 teve lugar a reunião do artigo 18.º do RJAT.
9. Em 15 de dezembro de 2015 foi realizada a inquirição de testemunhas e as partes apresentaram as suas alegações orais.
10. A Requerente sustenta o seu pedido de anulação dos atos tributários de liquidação adicional de IVA e dos respetivos Juros Compensatórios contestados com base na inconstitucionalidade do Despacho Normativo n.º 118/85, de 31 de dezembro e, bem assim na circunstância de estarem em causa atividades isentas ao abrigo do artigo 9º do Código do IVA;
11. Sustenta a Requerente que o Despacho Normativo n.º 118/85, constitui uma mera norma regulamentar que, como tal deve circunscrever-se aos limites impostos pela lei que pretende interpretar e regulamentar, pelo que o número 4 do despacho é inconstitucional por estabelecer limites ao âmbito da aplicação da isenção consagradas no n.º 20 do artigo 9.º do Código do IVA, em violação do princípio da reserva de lei;
12. Mais sustenta a Requerente que as atividades que desenvolve estão isentas de IVA ao abrigo do no n.º 20 do artigo 9.º do Código do IVA dado estarem em causa transmissões de bens e prestações de serviços efetuadas por uma entidade cuja atividade habitual se encontra isenta ao abrigo do n.º 19 da mesma disposição.
13. A Requerente alega que as duas festividades que organiza, atenta a sua natureza, devem ser consideradas como um “todo uno e indivisível”. Configura, assim, as festividades “…” e “…” como “manifestações ocasionais”, nos termos do n.º 20 do artigo 9.º do Código do IVA.
14. A Requerente peticiona, ainda, e como consequência da anulação das referidas liquidações, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, a seu favor, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT), e o reembolso das quantias pagas.
15. A Entidade Requerida entende que, a Requerente não pode beneficiar da isenção consagrada, por não exercer habitualmente nenhuma das atividades a que a norma se refere – “entidades cujas actividades habituais se encontrem isentas nos termos dos n.s 2, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14 e 19 deste artigo” e por não poder ter como atividade habitual e principal uma atividade coincidente com uma atividade ocasional;
16. Não obstante a Entidade Requerida entender que a apreciação dos vícios imputados pela Requerente ao Despacho Normativo n.º 118/85 fica prejudicada pelo acima exposto, acrescenta que este Despacho se limita a concretizar o conceito de manifestações ocasionais presente no n.º 20 do artigo 9.º do CIVA e, bem assim que a Requerente não fez qualquer comunicação à Administração Tributária nos termos desse mesmo despacho;
17. Ademais, considera a Entidade Requerida que, estando em causa matéria relativa a isenções de IVA impera um princípio geral de interpretação estrita, na medida em que as isenções constituem derrogações à regra geral de sujeição a imposto, que a interpretação deva ser feita em conformidade com os objetivos prosseguidos pelas referidas isenções e respeitando as exigências do princípio da neutralidade fiscal, o que não se verificou dado a isenção em causa não visar isentar as atividades principais dos sujeitos passivos.
II. SANEADOR
O Tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
Não se verificam nulidades pelo que se impõe conhecer do mérito do pedido.
III. OBJECTO DA PRONÚNCIA ARBITRAL
Vêm colocadas ao Tribunal as seguintes questões, nos termos atrás descritos:
i. enquadramento de um conjunto de serviços prestados e de transmissões de bens efetuadas pela Requerente na isenção prevista no número 20, do artigo 9.º do Código do IVA e, a consequente anulação dos atos de liquidação adicional do IVA e dos respetivos juros compensatórios contestados;
ii. o reembolso dos montantes pagos e o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.
IV. MATÉRIA DE FACTO
Factos provados
18. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) A Requerente tem por objeto “a organização e promoção de festas e outros eventos culturais recreativos, nomeadamente, a organização e realização das festas concelhias, tradicionalmente denominadas “…” e, adicionalmente tem, ainda, como função a realização das atividade recreativas, culturais e desportivas, designadas por “…” (cf. pág. 146 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo e artigos 28.º e 31.º do pedido arbitral);
ii) A Requerente foi constituída por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de …, em 16 de janeiro de 2001 (cf. pág. 146 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo);
iii) A Requerente organiza, anualmente, as festividades das “…”, que se realizam em setembro e a “…” que se realiza em junho (cf. depoimentos das testemunhas B…, C… e D…);
iv) As “…” são tradição antiga do concelho de … e consistem numa multiplicidade de eventos recreativos, culturais e desportivos, todos, não obstante a sua diversidade, integrados nas ditas festividades;
v) A “…” consiste numa multiplicidade de actividades recreativas, culturais e desportivas;
vi) Constituem receitas da Requerente designadamente (cf. págs. 146 e 147 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo):
a) a jóia e quotas dos associados, cujo montante será fixado em Assembleia Geral;
b) quaisquer donativos ou subsídios que lhe sejam atribuídos;
c) taxas cobradas pela prestação de serviços;
d) o produto de venda de publicações, prospetos e outros objetos e meios promocionais,
e) cobrança de bilhetes para entradas em espetáculos e/ou atividades promovidas pela associação;
f) doações ou deixas testamentárias e de móveis ou imóveis ou quaisquer outros bens.
vii) São associados da Requerente a Câmara Municipal de … e a E… (cf. pág. 147 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo);
viii) A Requerente foi sujeita a uma ação de inspeção em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2014…, de 17 de junho de 2014, iniciada em 2 de setembro de 2014 e terminada em 13 de novembro de 2014 (cf. pág. 146 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo);
ix) A ação de inspeção foi de âmbito geral e incidiu sobre os anos de 2011, 2012 e 2013 (cf. pág. 146 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo);
x) A Requerente está enquadrada, em sede de IVA, no Regime Normal Trimestral (cf. pág. 151 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo);
xi) No âmbito do procedimento de inspeção o Serviço de Finanças de … informou por e-mail que “(…) que a A… NIPC ..., não fez qualquer comunicação nos termos do Despacho Normativo n.º 118/854, de 31 de Dezembro, períodos de 2008 a 2013” (cf. pág. 153 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo);
xii) As correções em sede de IVA resultaram da consideração por parte dos serviços de inspeção dos seguintes rendimentos que qualificaram como rendimentos sujeitos a IVA e dele não isentos (as rubricas em que a Requerente procedeu à liquidação de IVA surgem identificadas com a designação “com liquidação de IVA” - cf. págs. 161, 168 e 177 do Relatório de Inspeção junto com o processo administrativo):
Com referência ao ano de 2011
Com referência ao ano de 2012
Com referência ao ano de 2013
xiii) A ação inspetiva teve como resultado correções em sede de IVA e IRC aos anos 2011, 2012 e 2013, nos seguintes valores (cf. pág. 179 do Relatório de Inspeção junto com o processo administrativo):
Ano 2011
|
Descrição
|
IRC Matéria coletável
|
IVA
|
Período
|
Imposto
|
Correções técnicas
|
211.110,77 €
|
11.03T
11.06T
11.09T
11.12T
|
248,10€
11.217,31€
33.334,07€
7.088,96€
|
Total
|
211.110,77 €
|
51.898,44€
|
Ano 2012
|
Descrição
|
IRC Matéria coletável
|
IVA
|
Período
|
Imposto
|
Correções técnicas
|
224.542,93 €
|
12.03T
12.06T
12.09T
12.12T
|
3.124,66€
36.759,87€
5.398,23€
5.363,60€
|
Total
|
224.542,93 €
|
50.646,36€
|
Ano 2013
|
Descrição
|
IRC Matéria coletável
|
IVA
|
Período
|
Imposto
|
Correções técnicas
|
2.966,25 €
|
13.03T
13.06T
13.09T
13.12T
|
1.459,86€
12.878,02€
35.533,22€
-9.945,81€
|
Subtotal
|
2.966,25 €
|
39.925,29€
|
Matéria coletável declarada
|
5.848,18 €
|
|
Regularizações Voluntárias
|
150.855,22€
|
|
Subtotal
|
156.703,40€
|
|
Total da Matéria Coletável
|
159.669,65 €
|
|
xiv) Em concretização da correções determinadas no âmbito da ação de inspeção foram emitidos os seguintes atos de liquidação adicional de IVA e Juros Compensatórios:
a) ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º …, no montante de € 248,10, referente ao período de 1103T;
b) ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º …, no montante de € 35,29, referente ao período de 1103T;
c) ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º …, no montante de € 11.217,31, referente ao período de 1106T;
d) ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º …, no montante de € 1.482,53, referente ao período de 1106T;
e) ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º …, no montante de € 33.344,07, referente ao período de 1109T;
f) ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º …, no montante de € 4.070,72, referente ao período de 1109T;
g) ato de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 7.088,96, referente ao período de 1112T;
h) ato de liquidação de Juros no montante de € 800,17, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
i) ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 3.124,66, referente ao período de 1203T;
j) ato de liquidação adicional de Juros Compensatórios, no montante de € 321,88, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
k) ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 36.759,91, referente ao período de 1206T;
l) ato de liquidação adicional de Juros Compensatórios, no montante de € 3.412,12, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
m) ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 5.398,23, referente ao período de 1209T;
n) ato de liquidação de Juros Compensatórios, no montante de € 447,23, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
o) ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 5.363,60, referente ao período de 1212T;
p) do ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, no montante de € 390,29, que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
q) ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 14.338,38, referente ao período de 1306T;,
r) ato de liquidação adicional de Juros Compensatórios n.º 2015…, no montante de € 757,32, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 …;
s) ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º 2015 …, no montante de € 35.533,22, referente ao período de 1309T;
t) ato de liquidação de Juros Compensatórios, no montante de € 1.522,57, a que corresponde o Documento de Cobrança -2ª Via 2015 ….
xv) A Requerente promoveu o pagamento do imposto liquidado pelos atos cuja legalidade contesta em 2 de Abril de 2015 (cf. Documentos 1 a 8, 10, 11, 13, 14, 16, 17, 19, 20, 22, 23, 25 e 26 juntos com o pedido arbitral);
A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental produzida e nos depoimentos das testemunhas B…, C… e D…, que enquanto membros da comissão de festas testemunharam sobre a forma de organização da Requerente e a natureza e características dos eventos por esta organizados, denominados de “…” e “…”.
Factos não provados
Dos factos com interesse para a decisão da causa, constantes do pedido de pronúncia arbitral e da resposta, todos objetos de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.
V. DO DIREITO
19. A primeira questão em apreciação nos presentes autos prende-se com o enquadramento dos serviços e transmissões de bens efetuados pela Requerente e objeto de correção por parte dos Serviços de Inspeção, na isenção prevista no número 20, do artigo 9.º do Código do IVA.
Os Serviços de Inspeção Tributária consideraram sujeitos a imposto as seguintes operações: venda de mercadorias (barraquinha), prestações de serviços relacionadas com espetáculos, inscrição de atividades desportivas, cedência de espaço/aluguer terrado, expositores, parque de estacionamento, e, bem assim, patrocínios.
A realização das referidas operações não é questionada no presente processo, estando apenas em causa o seu enquadramento tributário.
Enquanto a Administração Tributária considera que as referidas prestações de serviços e transmissões de bens são operações sujeitas a imposto, nos termos gerais, a Requerente sustenta que estão em causa operações isentas de IVA, ao abrigo do número 20, do artigo 9.º do Código do IVA por serem transmissões de bens e prestações de serviços efetuadas por uma entidade cuja atividade habitual se encontra isenta ao abrigo do n.º 19 da mesma disposição.
De acordo com o número 20, do artigo 9.º do Código do IVA estão isentas deste imposto “As transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas por entidades cujas actividades habituais se encontram isentas nos termos dos n.ºs 2), 6), 7), 8), 9), 10), 12), 13), 14) e 19) deste artigo, aquando de manifestações ocasionais destinadas à angariação de fundos em seu proveito exclusivo, desde que esta isenção não provoque distorções de concorrência;”.
Esta disposição, que corresponde à alínea o) do artigo 132.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, isenta as “prestações de serviços e entregas de bens que se destinem à angariação de fundos, por ocasião de manifestações efectuadas para esse efeito, por parte de sujeitos passivos que exerçam actividades isentas nos termos das alíneas b) (estabelecimentos hospitalares), g) (estabelecimentos de assistência e segurança social), h) (estabelecimentos de protecção à infância e à juventude), i) (estabelecimentos de educação, ensino e formação profissional), l) (organismos sem finalidade lucrativa, com objectivos políticos, sindicais, religiosos, patrióticos etc), n) clubes ou associações desportivos), n) (organismos culturais)” (DE BASTO, José Guilherme Xavier - A Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (164), Lisboa, 1991, pág. 239).
Deste modo, estão isentas de IVA, as prestações de serviços e transmissões de bens:
i) efetuadas por entidades cujas atividades habituais se encontram isentas ao abrigo dos identificados números do artigo 9.º do Código do IVA;
ii) aquando de manifestações ocasionais destinadas à angariação de fundos em seu proveito exclusivo,
iii) desde que esta isenção não provoque distorções de concorrência.
Importa, portanto, começar por verificar se as atividade habituais desenvolvidas pela Requerente se encontram isentas ao abrigo dos identificados números do artigo 9.º do Código do IVA, mais concretamente ao abrigo do número 19, da mesma disposição, conforme invocado pela Requerente.
20. Com efeito, alega a Requerente, na sua petição, que a sua atividade habitual se encontra isenta ao abrigo do n.º 19 do artigo 9.º do Código do IVA, disposição que isenta as atividades de certos organismos sem finalidade lucrativa no interesse coletivo dos seus membros.
Estão isentas de IVA, ao abrigo do referido número 19 “As prestações de serviços e as transmissões de bens com elas conexas efectuadas no interesse colectivo dos seus associados por organismos sem finalidade lucrativa, desde que esses organismos prossigam objectivos de natureza política, sindical, religiosa, humanitária, filantrópica, recreativa, desportiva, cultural, cívica ou de representação de interesses económicos e a única contraprestação seja uma quota fixada nos termos dos estatutos”.
Esta isenção, tem por sua vez assento na alínea l) do artigo 132.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de acordo com o qual estão isentas de IVA “as prestações de serviços, e bem assim as entregas de bens com elas estreitamente relacionadas, efectuadas aos respetivos membros no interesse colectivo por organismos sem fins lucrativos que prossigam objectivos de natureza política, sindical, religiosa, patriótica, filosófica, filantrópica ou cívica mediante quotização fixada nos estatutos, desde que tal isenção não seja susceptível de provocar distorções de concorrência”.
Para que a isenção opere é necessária a verificação de três pressupostos:
i) que as prestações de serviços ou transmissões de bens sejam efetuadas por um organismo sem finalidade lucrativa, na prossecução de um dos identificados fins;
ii) que as operações sejam realizadas no interesse coletivo dos associados desse organismo;
iii) que a única contraprestação seja uma quota fixada nos termos dos estatutos.
A definição de organismo sem finalidade lucrativa para efeitos de IVA é concretizada no artigo 10.º do Código do IVA. A análise efetuada no relatório de inspeção ao enquadramento em sede IVA da Requerente pressupõe que a Administração Tributária não põe em causa a qualificação da Requerente como organismo sem finalidade lucrativa para este efeito. Já quanto aos fins prosseguidos, que se concretizam na organização das festas concelhias resultou manifesto da prova produzida, em concreto dos depoimentos prestados, a natureza religiosa, desportiva, recreativa, cultural e cívica das referidas festas.
Quanto à condição dos serviços serem prestados no interesse coletivo dos associados, este conceito foi concretizado, como já avançado, na citada Diretiva como as operações efetuadas pelo organismo aos respetivos membros no interesse coletivo.
Esta condição “remete para categorias de prestações de serviços que assegurem a prossecução das finalidades dos organismos, ponderadas as circunstâncias que levaram à respetiva criação e os motivos que, em termos médios e objetivamente considerados, levou o conjunto dos destinatários dos serviços a associar-se ou a tornar-se membro de um dado organismo.” (LAIRES, Rui – Isenções do IVA nas Actividades Culturais, Educativas, Recreativas, Desportivas e de Assistência Médica ou Social, IDEFF, n.º 14, pág. 290).
A ora Requerente tem, apenas, dois associados, a Câmara Municipal de … e a E… (cf. pág. 147 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo).
Por sua vez tem por objeto “a organização e promoção de festas e outros eventos culturais recreativos, nomeadamente, a organização e realização das festas concelhias, tradicionalmente denominadas “…””, que se concretizam na organização, anual, das festividades das “…” e da “…” (cf. pág. 146 do Relatório de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo).
Não são identificadas nos autos quaisquer concretas prestações efetuadas pela Requerente aos seus associados que se possam enquadrar nesta disposição.
As prestações de serviços e transmissões de bens relacionadas com a realização das acima referidas festas consubstanciam operações que não são efetuadas aos associados, mas ao público em geral.
Ora, como resulta do exposto, para que se possa dar como verificado o segundo dos pressupostos de aplicação desta isenção têm que estar em causa prestações efetuadas aos respetivos membros, pressuposto este que não se pode ter por verificado quando estejam em causa prestações cujos destinatários não são os membros do organismo (neste caso, os associados da Requerente), mas antes os participantes e os visitantes das feiras.
Sem prejuízo do exposto, também, não se poderia ter por verificado no caso vertente o terceiro dos pressupostos do qual resulta como condição que a única contraprestação seja uma quota fixada nos termos dos estatutos. Importa referir que não se estabelece com esta condição que “o organismo em causa, em relação a toda a sua actividade, apenas poderia obter contraprestações sob a forma de quotas, mas, sim, que apenas são isentas as prestações de serviços cuja única contraprestação seja a quota” (LAIRES, Rui – Isenções do IVA nas Actividades Culturais, Educativas, Recreativas, Desportivas e de Assistência Médica ou Social, IDEFF, n.º 14, pág. 290).
Este entendimento, parece ser igualmente sufragado pela Administração Tributária que conforme Despacho P …, de 19 de outubro de 2015 conclui que para se beneficiar da isenção em apreciação “é condição essencial que o sujeito passivo seja um organismo sem finalidade lucrativa, de acordo com definição prevista no artigo 10.º do CIVA, e que pela prossecução de tais atividades, a única contraprestação seja uma quota fixada nos termos dos respetivos Estatutos. Deste modo, qualquer atividade que extravase a quota, não se encontra contemplada na isenção”(in Inforfisco).
Em suma, em nenhum momento se identificam nos autos quaisquer serviços prestados pela Requerente, no interesse coletivo dos seus associados, cobertos unicamente por quotas que garantam o acesso a esses mesmos serviços.
Só esta identificação permitiria concluir pela prática habitual por parte da Requerente de atividades que se encontram isentas ao abrigo do número 19, do artigo 9.º do Código do IVA.
As operações praticadas pela Requerente no âmbito das festividades das “…” e da “…”- que constituem o seu objeto - não são consequentemente ocasionais, não têm como destinatários os seus associados, e não têm como única contraprestação, as quotas desses mesmos associados.
Deste modo, não se mostra que a Requerente realize operações abrangidas pela isenção prevista no número 19, do artigo 9.º do Código do IVA, que é por sua vez condição para a aplicação da isenção prevista no número 20 do mesmo dispositivo legal.
21. Acresce que, não se verificam no caso vertente os pressupostos de aplicação da isenção consagrada no número 20 do artigo 9.º do Código do IVA, dado que as festas em causa não configuram manifestações ocasionais mas, antes, o objeto principal da atividade da Requerente.
Nesta isenção contempla-se “a realização de eventos, com carácter excepcional, que tenham como finalidade a obtenção de recursos financeiros próprios pelas entidades em questão, eventos esses susceptíveis de revestir diversos tipos de iniciativas, entre estas a organização de festas, espectáculos, confraternizações, exposições e outras manifestações de carácter cultural, recreativo ou desportivo, as quais incluem, por vezes, a venda ou o serviço de géneros alimentares, a realização de quermesses ou de sorteios” (cf. LAIRES, Rui – Isenções do IVA nas Actividades Culturais, Educativas, Recreativas, Desportivas e de Assistência Médica ou Social, IDEFF, n.º 14, pág. 293).
A realização das festas concelhias – “…” e a “…” – não consubstanciam eventos excecionais de obtenção de fundos, mas antes, e conforme resulta dos factos dados como provados, o fim último da atividade da Requerente.
Contra o exposto, não procede o argumento invocado pela Requerente que as duas festividades que organiza, atenta a sua natureza, devem ser consideradas como um “todo uno e indivisível”, o que no seu entender lhe permite configurar as festividades “…” e “…” como “manifestações ocasionais”, nos termos e para os efeitos do número 20 do artigo 9.º do Código do IVA.
O conceito de manifestações ocasionais pressupõe que tenham um caráter esporádico e eventual, que sejam eventos extraordinários, não se podendo confundir com a própria atividade do sujeito passivo.
O conceito de manifestações ocasionais não pode compreender as atividades que a Requerente desenvolve todos os anos e para as quais foi constituída, a saber garantir a realização e promoção das festas concelhias, mesmo que cada festa só se realize uma vez por ano.
Em suma, o conceito de manifestações ocasionais não pode ser interpretado no sentido de compreender a atividade principal (e única) da Requerente.
Conclui-se, assim que as festividades “…” e a “…” não constituem “manifestações ocasionais” nos termos e para os efeitos do número 20 do artigo 9.º do Código, pois constituem o objeto da Requerente
Não se nos impõe apreciar a alegada inconstitucionalidade do Despacho Normativo nº 118/85, de 31 de dezembro.
No âmbito da constitucionalidade, não cabe a este tribunal a fiscalização abstrata, reservada com está pela Constituição da República Portuguesa (artigo 281º) ao Tribunal Constitucional.
O que o tribunal não pode fazer é aplicar normas desconformes com a Constituição da República Portuguesa (artigo 204º). Nem, naturalmente, pode deixar de censurar a atuação da Administração Tributária quando esta se funda em normas inconstitucionais, ou aplica normas interpretando-as de modo a pô-las em colisão com a Constituição da República Portuguesa.
O que não é o caso, pois a Administração Tributária não fundamentou os atos impugnados no apontado Despacho Normativo, não o aplicou, limitou-se a fazer-lhe referência da qual depois não retirou consequências.
Nem, diga-se de passagem, poderia retirá-las, já porque não estavam em causa transmissões de bens e/ou prestações de serviço das previstas no número 20 do artigo 9º do CIVA, já porque nunca a Requerente, por não estar isenta nos termos do número 19 do mesmo artigo, poderia beneficiar da previsão do número 20.
Em suma, a Administração Tributária, embora referindo o Despacho Normativo e a ausência de comunicação da Requerente, o que fez foi liquidar o imposto em falta por ele respeitar a operações sujeitas e não isentas, já que a Requerente não goza da isenção do número 19, do artigo 9º e, consequentemente, também não da isenção do número 20 do mesmo artigo, sendo certo que se provou que as operações realizadas não cabem na previsão do dito número 20.
Em face do exposto, julgam-se improcedentes os pedidos de anulação dos atos de liquidação de IVA e de Juros Compensatórios contestados.
22. A última questão que cumpre apreciar prende-se com o direito ao reembolso das quantias pagas, acrescida de juros indemnizatórios.
Não tendo sido reconhecida a ilegalidade das liquidações de imposto e juros contestadas, não se demonstrou o pagamento indevido da prestação tributária nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária, pelo que não há lugar ao peticionado reembolso, nem ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais.
Em face do exposto conclui-se pela improcedência total do pedido de pronúncia arbitral.
VI. DECISÃO
Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:
i) julgar improcedentes os pedidos de anulação dos atos de liquidação de IVA e de Juros Compensatórios contestados,
ii) julgar improcedente o pedido de reembolso dos montantes pagos pela Requerente e
iii) julgar improcedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios.
Fixa-se o valor do processo em € 165.656,56 (cento e sessenta e cinco mil, seiscentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e seis cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do Código do Procedimento e Processo Tributário, aplicável por força do disposto nas alíneas a) e b), do número 1, do artigo 29.º do RJAT, e do número 2, do artigo 3.º, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas, no montante de € 3 672.00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, a cargo da Requerente dado que o presente pedido foi julgado improcedente, e em cumprimento do disposto no número 2, do artigo 12.º, e número 4, do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do disposto no número 4, do artigo 4.º, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 11 de fevereiro de 2016
[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco e revisto pelos signatários].
Os Árbitros
(José Baeta Queiroz)
(árbitro-presidente)
(Susana Maria Afonso Claro)
(árbitra-vogal)
(Ana Moutinho Nascimento)
(árbitra-vogal)