Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 51/2015-T
Data da decisão: 2015-09-18  IRS  
Valor do pedido: € 347.439,46
Tema: IRS – Competência do Tribunal Arbitral; Benefícios fiscais; discriminação entre residentes; indemnização por garantia indevida; Princípio da igualdade; Interpretação em conformidade com o Direito da União; ADT Portugal-Bélgica
Versão em PDF

 

 

 

Decisão Arbitral

 

Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro presidente), João Sérgio Ribeiro e Rui Ferreira Rodrigues, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 14/4/2015, acordam o seguinte:

 

I.                   Relatório

 

1. A…, NIF …, e B…, NIF …, apresentaram, em 30/1/2015, pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

2. A pretensão objecto do pedido de pronúncia arbitral consiste na apreciação da legalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2014…, resultante da demonstração de acerto de contas n.º 2014…, relativas a imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 2010, no valor de 312 415, 30 € e juros compensatórios de 35 024,16 €, a que corresponde o montante global de 347 439, 46€.

2.1.Os Requerentes pedem, na sequência da procedência do pedido:

A) A título principal: i) A anulação da mencionada liquidação; ii) A extinção do processo de execução fiscal; iii) O reconhecimento do direito dos Requerentes ao pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia, nos termos do disposto no artigo 53.º, da LGT; e, iv) A condenação da Autoridade Tributária no pagamento das custas de arbitragem.

B) A Título subsidiário: O reenvio prejudicial para o TJUE, quanto à questão relativa à incompatibilidade do artigo 21.º do EBF com o Direito Comunitário, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado.

3. Em 2/2/2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

3.1.Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do prazo.

3.2. Em 25/3/2015, as partes foram notificadas da designação dos árbitros não tendo arguido qualquer impedimento.

3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 14/4/2015.

3.4.Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

4. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral os Requerentes alegam, em síntese, o seguinte:

a) A liquidação adicional de IRS, ao sujeitar os rendimentos auferidos pelo Primeiro Requerente na Bélgica, no ano de 2010, decorrentes do resgate de um fundo de poupança reforma, às taxas progressivas previstas no artigo 68.º do CIRS, ascendendo em 2010 a taxa máxima aplicável a 45,88%, e de acordo com o regime consagrado nos artigos 11.º, n.º1, alínea b), 15.º, 53.º e 54.º do CIRS, é ilegal por desconforme com os princípios da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais e de prestação de serviços;

b) A desconformidade com as normas mencionadas resulta de a legislação portuguesa, na óptica da Autoridade Tributária, tratar de modo diferente os rendimentos resultantes de planos complementares de reforma consoante sejam ou não geridos por uma entidade residente em Portugal;

c) Aos rendimentos pagos por fundos de poupança de reforma constituídos e que operem de acordo com a legislação nacional aplica-se o regime previsto no artigo 21.º do EBF, sendo que de acordo com o disposto no n.º 3 desse preceito, as importâncias pagas, não através de prestações regulares, mas sim de reembolso (total ou parcial), verifica-se uma exclusão parcial de tributação de IRS, uma vez que: i) A matéria coletável é constituída por dois quintos do rendimento; ii) A tributação é autónoma, sendo efetuada à taxa de 20%;

No caso de rendimentos pagos por fundos de poupança reforma constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado-membro (no caso da Bélgica), a disposição legal acima referenciada não se aplica, estando os rendimentos sujeitos ao regime geral previsto no CIRS;

d) “(…)” “um contribuinte individual residente em Portugal, quando recebe rendimentos de pensões provenientes de prestações pagas no âmbito de regimes complementares de reforma está sujeito a regimes de tributação diferenciados consoante o plano de poupança reforma seja ou não constituído de acordo com a legislação portuguesa.”

e) “Com efeito, a legislação nacional prevê um regime de exclusão parcial de tributação e uma taxa especial de 20% aplicável aos rendimentos decorrentes de planos de poupança reforma constituídos em Portugal, ao mesmo tempo que tributa, sem qualquer exclusão do rendimento tributável (salvo na parte das contribuições imputáveis ao trabalhador) e às taxas gerais progressivas de IRS, os mesmos rendimentos quando decorrentes de planos de poupança constituídos noutro país da União Europeia.”

5.A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta e juntou processo instrutor, invocando, em síntese, o seguinte:

     a) “Ao abrigo de troca de informação prevista no artigo 26.º da Convenção entre Portugal e a Bélgica para Evitar a Dupla Tributação e Regular Algumas outras questões em matéria de Impostos sobre o rendimento, assinada em Bruxelas, em 16 de julho de 1969, adiante abreviadamente designada por CDT as autoridades belgas comunicaram à Direcção de Serviços de Relações Internacionais da Autoridade Tributária rendimentos de pensões auferidos pelo Requerente em 2010, conforme excerto do ofício … daquela Direcção de Serviços;

       b) “Os rendimentos de pensões são enquadráveis no artigo 18.º da Convenção para evitar a dupla tributação (CDT) celebrada entre Portugal e a Bélgica, sendo a competência exclusiva de Portugal”;

       c) “Face à legislação nacional, o enquadramento fiscal das pensões (rendimentos da categoria H), consta dos artigos 11.º, 53.º e 54.º do Código do IRS”;

       d) “O contribuinte tem direito a pedir o reembolso do imposto retido na fonte pelas autoridades fiscais da Bélgica”;

       e) “Quanto ao alegado tratamento discriminatório uma vez que se o Fundo de pensões fosse residente em território português apenas seria sujeito a tributação de 2/5 do rendimento à taxa de 20%, não assiste qualquer razão aos Requentes”;

       f) “(…)” “no caso em apreço, o regime de tributação aplicável aos rendimentos provenientes de fundos de pensões residentes em Portugal é diferente do aplicável aos rendimentos de fundos de pensões não residentes, porém, não basta que, em abstracto, o regime de tributação seja diferente no que se refere ao lugar de residência ou ao lugar onde o capital é investido (como é o caso), é necessário que este constitua, de facto, e concretamente, um verdadeiro entrave à livre circulação de capitais”;

       g) “(…)” “existe Convenção bilateral para evitar a dupla tributação celebrada entre o Estado Português e o Estado Belga nos termos da qual compete em exclusivo ao Estado da residência, neste caso Portugal, a tributação dos rendimentos controvertidos, como tal, e conforme consta dos autos, o requerente tem direito ao reembolso total do imposto suportado na Bélgica”;

        h) Também por este motivo, há uma neutralização do tratamento diferenciado conferido aos rendimentos provenientes de fundos de pensões de residentes e não residentes em Portugal;

         i) “(…)” “no caso em apreço, o tratamento discriminatório alegado pelos Requerentes assenta numa simples presunção e não passa do campo da abstracção”;

         j) “(…)” “não haverá violação da liberdade de circulação de capitais, se, no caso concreto, a medida nacional prosseguir objectivos legítimos (razões imperiosas de interesse geral ou “rule of reason”) compatíveis com o tratado, como a necessidade de assegurar a coerência do regime fiscal ou de evitar a diminuição das receitas fiscais”;

        l) “No caso em apreço, a tributação em causa prossegue um objectivo legítimo, de imperioso interesse geral;

        m) “Com efeito, a consagração de um regime de tributação aplicável aos rendimentos decorrentes dos planos de poupança, constituídos no âmbito de regimes complementares de reforma, que sujeita os mesmos a uma exclusão parcial de tributação e a uma taxa especial de 20% pretende incentivar os particulares ao investimento em planos de poupança reforma;

        n) “Nestes termos, também por esta segunda razão, o regime em causa não pode, com rigor, ser configurado como um tratamento discriminatório, nem, por consequência, uma violação suficientemente caracterizada dos artigos 18.º, 56.º e 63.º TFUE, na medida em que apenas é proibido o tratamento discriminatório quando este seja arbitrário e constitua um entrave à livre circulação de capitais (cfr. artigo 65.º, n.º 3 do TFUE); 

o) “Ainda que o regime fiscal em causa, constitua um tratamento diferenciado, consoante a residência do fundo se situe ou não em Portugal, a consagração de um tal regime fiscal não é arbitrária mas sim motivada por objectivos legítimos, razões imperiosas de interesse geral, como é o interesse público do Estado Português em garantir a sustentabilidade do regime de Segurança Social, através do incentivo a investimento em fundos de pensões privados complementares que reforcem coesão do sistema público de pensões nacional;

        p) “De todo o regime fiscal aplicável aos Planos Poupança Reforma (PPR´S) em Portugal, não apenas no que se refere à matéria colectável sujeita a IRS e às taxas aplicáveis, mas também ao próprio regime de benefícios fiscais, resulta inequivocamente a opção do Estado (desde há várias legislaturas a esta parte) em incentivar a poupança em planos complementares de reforma”;

        q) “(…) a legislação em causa é justificada por razões que assentam na necessidade de preservar a sustentabilidade do sistema de segurança social e o reforço de mecanismos de poupança, tendo em vista o equilíbrio das finanças públicas.”

 

5.1. Para além destas alegações, relativas ao mérito da causa, a Requerida, na sua resposta, defendeu-se previamente por excepção, tendo invocado:

a) A incompetência absoluta do Tribunal Arbitral para ordenar a extinção do processo executivo, por se tratar de matéria não abrangida, nomeadamente pelos artigos 2.º, 4.º, n.º 1, do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, nem estar a AT vinculada à jurisdição arbitral no âmbito da matéria relacionada com o processo executivo;

b) A incompetência material absoluta do Tribunal Arbitral para reconhecer o direito dos Requerentes ao pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia, por quanto “a competência do Tribunal Arbitral se inscreve no âmbito do controlo da legalidade dos actos de liquidação não constando da lei a referida competência para o reconhecimento de direitos”.

Mesmo que assim se não entenda, segundo a Requerida falecem, no caso em apreço, os pressupostos previstos no artigo 53.º da LGT sobre o direito à indemnização por prestação de garantia indevida, em especial, por não se verificar a situação que a lei configura como sendo de “erro imputável aos serviços”.

A “lei não previu uma responsabilidade objectiva, mas antes uma responsabilidade ligada à culpa dos serviços”, imputável aos serviços, “a título de dolo ou negligência”, que “tem que ser alegada e provada, e não resulta automaticamente de qualquer ilegalidade”.

“No caso em apreço, não se verifica a existência de qualquer erro imputável aos serviços na emissão da liquidação impugnada, pois não se verifica qualquer ilegalidade por violação do Direito Comunitário. Por outro lado, mesmo que assim não se entendesse a Requerida encontra-se vinculada ao cumprimento da legislação nacional em estrita obediência ao princípio da legalidade, não lhe sendo possível recusar a aplicação do direito nacional quando face às normas em causa e aos acórdãos interpretativos do TJCE”.

5. 2. Os Requerentes, notificados para responder, por escrito, à matéria de excepção, vieram sustentar, em suma, a sua improcedência, porque o pedido de extinção da execução ou o de pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia configurarem pedidos subsequentes do pedido principal de anulação da liquidação do imposto. Assim sendo, são como tal, subsumíveis na mesma relação jurídica material controvertida, invocando neste sentido o Acórdão n.º 28/2013-T, de 16 de Outubro de 2013.

6. Os Requerentes vieram desistir da prestação de declarações de parte peticionado no Requerimento inicial e, não havendo matéria controvertida, por um lado, e, tendo já sido exercido o contraditório por escrito, em matéria de excepções, por outro, foi dispensada a realização da primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, por não se verificar qualquer das finalidades, que legalmente lhe estão cometidas, tendo-se designado o dia 12 de Outubro para a prolação da decisão arbitral.

7. Os Requerentes e a Requerida apresentaram alegações escritas sucessivas, mantendo, na essência, os argumentos vertidos nos articulados iniciais.

A administração Tributária e Aduaneira veio invocar, ainda quanto à matéria de facto, que os Requerentes: “Vêm (…) considerar que ficaram demonstrados certos e determinados factos sem que para tal tenha apresentado a prova documental exigida, muita da qual nem sequer se encontra traduzida em língua português” (Ponto 16 das alegações).

De referir, contudo, que não só a Requerida não identifica os factos a que se reporta, como, no momento próprio, não impugnou os documentos em causa como ainda, a tradução de documentos em língua estrangeira não é condição para estes serem considerados pelo tribunal, como resulta do artigo 134.º, nº 1, do CPC. Representa, essa tradução, uma mera possibilidade, a verificar-se se se entender, no caso, que os documentos em causa carecem de tradução, ou seja, que esta é necessária. Ora, não só o tribunal não entendeu que tal tradução se impusesse, como a Requerida a não solicitou, podendo tê-lo feito. 

 

II.                Saneamento

 

8. 1. Em sede de contestação, invocou, a Requerida, as excepções dilatórias de:

 

- incompetência material absoluta do Tribunal para ordenar a extinção do processo executivo e

- incompetência material absoluta do Tribunal para reconhecer o direito dos Requerentes ao pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia,

 

que ora cumpre apreciar e decidir.

 

8.1.a) Excepção de incompetência material absoluta do Tribunal para ordenar a extinção do processo executivo

 

Pedem os Requerentes que o Tribunal ordene a extinção do processo de execução fiscal instaurado para cobrança do imposto objecto do pedido de pronúncia arbitral.

Opondo-se, alega a Requerida que, atento o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, que restringe a competência dos tribunais arbitrais à “apreciação da declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta,” em conjugação com o disposto no artigo 4.º do RJAT e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22/3, que regula o tipo e o valor máximo dos litígios a que a Administração Tributária se encontra vinculada à jurisdição dos tribunais arbitrais, a apreciação da matéria relativa ao processo executivo não se encontra abrangida no âmbito da competência material do Tribunal Arbitral.

Apura-se assistir razão à Requerida.

Não obstante os efeitos que uma eventual decisão do Tribunal quanto à ilegalidade da liquidação possa vir a ter sobre o processo executivo, da leitura das normas mencionadas resulta que a matéria relacionada com o processo executivo se encontra excluída da competência do Tribunal.

Na verdade, uma coisa são as repercussões sobre o processo executivo resultantes de eventual procedência do pedido dos Requerentes e consequente anulação da liquidação, outra bem diferente é a competência do Tribunal Arbitral para ordenar a extinção do processo executivo instaurado, como pretendem os Requerentes.

Termos em que se julga procedente a invocada excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral.

 

8.1.b) Excepção de incompetência material absoluta do Tribunal para reconhecer o direito dos Requerentes ao pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia.

 

Na perspectiva da Requerida, de acordo com as disposições acima mencionadas, também não está legalmente prevista a competência do Tribunal Arbitral para o reconhecimento de direitos, nomeadamente do direito ao pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia.

Vejamos.

Apesar de não existir norma expressa nesse sentido, constitui jurisprudência dominante, no seguimento da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que, não obstante o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação, tal como acontece, aliás, no âmbito do CPPT (artigos 99.º e 124.º), pode nele ser proferida condenação da Administração Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida [neste sentido, cfr., entre outros, os Acórdãos Arbitrais proferidos nos processos n.ºs: 18/ 2011-T e 28/2013-T (este ainda não transitado em julgado) e 39/2013].

Em conformidade com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.

Por sua vez, na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, estatui-se como directriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução de conflitos em matéria tributária, que o “processo arbitral deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

Perante o exposto, como ficou consignado no Acórdão n.º 28/2013-T, de 16 de Outubro de 2013, “[e]mbora o art. 2.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos actos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências”.

De igual modo, apesar de não existir também norma expressa no CPPT a prever o direito a uma indemnização por garantia indevida, a verdade é que, como é salientado no Acórdão que vimos seguindo, “tem-se vindo pacificamente a entender nos tribunais tributários, desde a entrada em vigor dos códigos da reforma fiscal de 1958-1965, que pode ser cumulado em processo de impugnação judicial pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do acto, por nesses códigos se referir que o direito a juros indemnizatórios surge quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, a administração seja convencida de que houve erro de facto imputável aos serviços. Este regime foi, posteriormente, generalizado no Código de Processo Tributário, que estabeleceu no n.º 1 do seu art. 24.º que «haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido». Posteriormente, também a LGT veio estabelecer, no seu artigo 43.º, n.º 1, que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido»”.

No sentido da solução que se advoga vai também o artigo 171.º do CPPT, o qual, relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, dispõe que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda».

Afigura-se, assim, que não apenas o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida como até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, “o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação”. “O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.” (cfr. o citado Acórdão  Arbitral n.º 28/2013-T).

 

Termos em que se julga improcedente a invocada excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral.

 

8.1.c) Em conformidade com o exposto declara-se, o tribunal, regularmente constituído e materialmente competente para conhecer da presente acção, em sede declarativa.

8.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

8.3. O processo não enferma de nulidades.

8.4. Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

III.             Mérito

 

III.1. Matéria de facto

 

9. Factos provados

 

9.1.Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, prévias, e de mérito, dão–se como assentes e provados os seguintes factos:

a)      “O Primeiro Requerente exerceu durante vários anos a sua atividade profissional no Grupo C…, em concreto junto da empresa petrolífera D…, atual E…” (artigo 2.º do pedido arbitral);

b)      Durante os anos em que esteve ao serviço da referida empresa, o Primeiro Requerente descontou mensalmente, em conjunto com a própria empresa, para um plano de complemento de reforma “F…” (cfr. cópia do regulamento que regulava o plano de complemento de reforma datado de 1985, cópia do novo regulamento aprovado em abril de 1999 pela C… e cópia do Regulamento aprovado pela E…s.a. datado de 1 de janeiro de 2007” (documentos n.º 1, n.º 2 e n.º 3, juntos com o pedido arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

c)      “O plano era gerido pela sociedade E… S.A., sociedade com sede em Bruxelas, Bélgica (e anteriormente pela D…, S.A., sociedade igualmente residente na Bélgica) - artigo 4.º do pedido arbitral;

d)     O Plano de Poupança Reforma resultava de contribuições efetuadas pelo empregador e pelo trabalhador (cfr. a título exemplificativo, cópia de 7 recibos de vencimento do Primeiro Requerente, nos quais consta a contribuição mensal para a “F…” (documento n.º 4, junto com o pedido arbitral, cujo teor de dá como reproduzido);

e)      “O objetivo do plano era criar para todos os trabalhadores da empresa um complemento de poupança reforma, o qual resultava de contribuições na empresa e do próprio trabalhador” (artigo 6.º do pedido arbitral);

f)       O Primeiro “Requerente contribuiu para o fundo de poupança reforma desde setembro de 1973 até setembro de 2002” (artigo 8.º do pedido arbitral);

g)      Em Fevereiro de 2010, o “Requerente optou pelo resgate pelo valor total do fundo e recebeu a quantia total de EUR 836.619,77 (valor bruto)” – cfr. cópia dos documentos que discriminam as quantias recebidas no momento da liquidação do plano por parte do Requerente [documento n.º 6 (junto com o pedido arbitral, cujo teor se dá como reproduzido), e o processo instrutor];

h)      “ (…)” “sobre as quantias auferidas a título de rendimentos de pensões, o Primeiro Requerente suportou imposto por retenção na fonte no valor total de EUR 91.567,68” [cfr. cópias das fichas comprovativas (documento n.º 7, junto com o pedido arbitral, cujo teor se dá como reproduzido), e declaração emitida pelo Inspetor responsável dos Serviços da Administração Fiscal Belga, que confirma os montantes de imposto suportados neste país (documento n.º 8, junto com o pedido arbitral, cujo teor se dá como reproduzido) e o processo instrutor];

i)        O montante total recebido pode ser discriminado da seguinte forma:

N.º Contrato

N.º Fiche de Pensions

Valor resgate (EUR)

Imposto retido na fonte na Bélgica (EUR)

Valor líquido recebido (EUR)

…/…/FAG

20.756,11

2.094,29

18.661,81

…/…/FAG

8.099,71

817,26

8.290,54

…/…/FAG

598.958,68

60.434,93

538.523,75

…/…/FAG

208.805,27

28.221,20

222.424,19

 

TOTAIS

836.619,77

91.567,68

787.900,29

 

j)        “No ano de 2010, os Requerentes estavam inscritos como residentes fiscais em Portugal” (artigo 18.º do pedido arbitral);

k)      “A 22 de março de 2010, os Requerentes entregaram a sua declaração Modelo 3 relativa ao ano de 2010, a qual originou um valor a pagar de 15 476,71€ de IRS e 554,60€ de juros compensatórios” [cfr. cópia da liquidação (junta com o pedido arbitral, como documento n.º 9, cujo teor se dá como reproduzido) e o processo instrutor];

l)        Ao abrigo de troca de informação prevista no artigo 26.º da Convenção entre Portugal e a Bélgica para Evitar a Dupla Tributação e Regular Algumas outras questões em matéria de Impostos sobre o rendimento, assinada em Bruxelas em 16 de Julho de 1969 e aprovada pelo Decreto-Lei n.º 619/70, de 15 de dezembro, adiante abreviadamente designada por CDT as autoridades belgas comunicaram à Direcção de Serviços de Relações Internacionais da Autoridade Tributária rendimentos de pensões auferidos pelo Requerente em 2010, conforme excerto do ofício … daquela Direcção de Serviços (cfr. o processo instrutor);

m)    “(…)” “após insistência “foi rececionada nesta Direção de Serviços a resposta daquelas autoridades, através de carta datada de 21-10-2013 e posteriormente os anexos mencionados, nos quais se incluem as 5 fichas de pensões, redigidas em francês”, que se juntam se remetem (docs. 1 a 5), fichas cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, em conformidade com o que resulta do processo instrutor;

n)      “As autoridades fiscais da Bélgica salientam que sendo as pensões tributadas em Portugal, o contribuinte poderá pedir o reembolso do imposto retido na fonte (mencionado no campo 225 das fichas- processo instrutor)”;

o)      “Através de carta registada, com data de 29 de janeiro de 2014, o Primeiro Requerente foi notificado por parte da Direção de Finanças de Lisboa para se pronunciar sobre o projeto de alteração da sua declaração Modelo 3 de IRS do ano de 2010, em virtude da correção dos valores constantes do Anexo J de EUR 25.289, 47 para o valor total de EUR 721.366,04” [cfr. documento n.º 10 (junto com o pedido arbitral, cujo teor se dá como reproduzido) e o processo instrutor]:

 

p)      “Em causa estavam os valores auferidos pelo Primeiro Requerente e pagos pela E… S.A. no ano de 2010, no âmbito do regime complementar de segurança social acima referido, a título de complemento de reforma” (artigo 21.º do pedido arbitral);

q)      O Requerente pronunciou-se em sede de audiência prévia por ofício de 18.02.2014 reclamando o direito a um crédito de imposto no montante de € 91.567,68 que lhe foi retido na fonte na Bélgica e veio alegar um tratamento discriminatório uma vez que se o Fundo de pensões fosse residente em território português apenas seria sujeito a tributação de 2/5 do rendimento à taxa de 20% (cfr. o processo instrutor);

r)       “Não obstante as objeções formuladas pelos Requerentes, a Direção de Finanças de Lisboa decidiu manter a decisão de alteração da Modelo 3 apresentada para o ano de 2010, tendo decidido alterar os rendimentos constantes do Anexo J de EUR 25.289,47 para EUR 721.366,04” [cfr. documento n.º 12 (junto com o pedido arbitral, cujo teor se dá como reproduzido) e o processo instrutor];

s)       “Em virtude das correções acima referidas, os Requerentes foram notificados da liquidação n.º 2014… e da demonstração de acerto de contas n.º 2014…, relativas a IRS do ano de 2010, no valor de 312 415,30€ e juros compensatórios de 35 024,16€, a que corresponde o montante global de 347 439,46€, cuja data de pagamento voluntário terminou a 5 de novembro de 2014” [cfr. documento n.º 13, junto com o pedido arbitral, cujo teor esse dá como reproduzido) e o processo instrutor];

t)       “A 9 de dezembro de 2014, os Requerentes foram citados da instauração do processo de execução fiscal n.º …2014…, no valor total de EUR 348.667,09, para efeitos de cobrança coerciva do ato tributário acima referido” (artigo 26.º do pedido arbitral);

u)      No “dia 23 de dezembro de 2014, os Requerentes apresentaram junto do Serviço de Finanças de Loures … a garantia bancária n.º …-…-…, prestada pelo Banco ..., no valor de EUR 440.342,08, para efeitos de suspensão do processo acima referido” [cfr. documento n.º 14 (junto com o pedido arbitral, cujo teor se dá como reproduzido];

v)      A 30 de janeiro de 2015, os Requerentes submeteram pedido de constituição de tribunal arbitral para apreciação da legalidade da liquidação de IRS do ano de 2010 (cfr. o requerimento electrónico no sistema do CAAD).

 

9.2. Fundamentação da matéria de facto

 

A factualidade provada teve por base, a posição assumida pelas Partes e não contestada, a análise crítica dos documentos juntos aos autos pelos Requerentes (documentos 1 a 14 juntos com o pedido de pronúncia arbitral), que não foram impugnados, bem como o conteúdo do processo instrutor.

 9.3. Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

III.2. Matéria de Direito

 

10. A. Da legalidade da liquidação

 

Como vimos, os Requerentes pedem, a título principal, a anulação da liquidação com fundamento na violação do artigo 8.º da CRP e dos artigos 18.º, 56.º e 63.º do Tratado da Comunidade Europeia e, subsidiariamente, o reenvio prejudicial para o TJUE do presente processo quanto à questão relativa à incompatibilidade do artigo 21.º do EBF com o Direito Comunitário, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado.

 Apreciar-se-á, prioritariamente, o pedido principal, só passando a apreciar o pedido subsidiário se improceder aquele. Os pedidos subsidiários só devem, portanto, ser tomados em consideração no caso de não proceder um pedido anterior [artigo 554.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

A questão principal a decidir consiste em saber se a forma como o artigo 21.º do EBF (que se refere aos planos de poupança reforma e onde materialmente ambas as partes enquadram a questão a decidir[1]) foi aplicado pela Administração Tributária, é contrária ao direito legal interno, bem como à Constituição da República Portuguesa e às regras jurídicas da União Europeia, implicando, por conseguinte, a ilegalidade do ato de liquidação.

 

10.A.1. Norma legal que consagra o benefício fiscal em abstrato aplicável

 

 O artigo 21.º do EBF é uma disposição que atribui benefícios fiscais a dois sujeitos passivos distintos, no âmbito de dois impostos diferentes. Encerra, por conseguinte, dois regimes autónomos de concessão de benefícios fiscais, mas, ainda assim, atribuídos no mesmo contexto ─ o dos fundos de poupança-reforma e planos de poupança-reforma, como resulta da epígrafe da norma. Esta circunstância justificará, naturalmente, dada a ligação estreita que existe entre eles, a sua inclusão na mesma disposição legal. Convém, no entanto, não esquecer que, sem prejuízo da sua proximidade, estão contidos na norma, realce-se, dois benefícios fiscais distintos.

O primeiro, constante do artigo 21.º, n.º 1, do EBF, respeita aos fundos poupança-reforma, poupança-educação e poupança reforma-educação que se constituem e operem nos termos da legislação nacional e como benefício a isenção em IRC.

É o seguinte o seu conteúdo: “Ficam isentos de IRC os rendimentos dos fundos de poupança-reforma, poupança-educação e poupança-reforma/educação, que se constituam e operem nos termos da legislação nacional.”

O segundo, constante do artigo 21.º, n.º 3, do EBF, tem como beneficiários os sujeitos passivos de IRS a quem sejam pagas importâncias resultantes de fundos de poupança-reforma, sem se prever, na norma, que estes tenham que ter sido constituídos ou sequer operem nos termos da legislação nacional. O benefício fiscal, na parte que em concreto interessa para a decisão da causa, consiste na inclusão das importâncias pagas, quando haja reembolso total ou parcial, na categoria E do IRS, na consideração destas apenas em 2/5 e na sua tributação autónoma a uma taxa de 20% (artigo 21.º, n.º 3, alínea b), n.ºs 1 e 2, do EBF).

Assim se refere na norma em causa: “3- As importâncias pagas pelos fundos de poupança-reforma, mesmo nos casos de reembolso por morte do participante, ficam sujeitas a tributação nos seguintes termos:

a)      De acordo com as regras aplicáveis aos rendimentos da categoria H de IRS, incluindo as relativas a retenções na fonte, quando a sua perceção ocorra sob a forma de prestações regulares e periódicas;

b)      De acordo com as regras aplicáveis aos rendimentos da categoria E de IRS, incluindo as relativas a retenções na fonte, em caso de reembolso total ou parcial, devendo, todavia, observar-se o seguinte:

1)      A matéria colectável é constituída por dois quintos do rendimento;

2)      A tributação é autónoma, sendo efectuada à taxa de 20%”.

 

Estamos, assim, ainda que contidos na mesma norma, perante dois benefícios fiscais distintos.

O artigo 21.º, n.º 1, do EBF que se refere unicamente aos fundos e implica uma isenção de IRC não é, assim, relevante para a decisão do caso sob escrutínio. Não se desenvolverão, por isso, questões de eventual discriminação face a outros fundos, por não quadrarem com o objeto da causa.

 

10.A.2. Da aplicabilidade, no caso concreto, do benefício fiscal

 

Tendo-se concluído, no ponto anterior, que relevante, no presente caso, é o segundo benefício fiscal (previsto no n.º 3 do referido artigo 21.º) referente aos beneficiários dos reembolsos feitos por fundos de poupança reforma, será, nesse contexto, decisivo determinar se os Requerentes podem ou não beneficiar desse regime.

A Administração Tributária e Aduaneira entendeu que esse benefício fiscal não seria aplicável aos Requerentes, por entender que aquele só se aplicará quando o fundo de poupança-reforma se constitua e opere nos termos da legislação nacional, como expressamente estatui o regime constante do n.º 1 do artigo 21.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).

Cabe verificar se assim é, sendo este o aspecto central a apreciar.

Vejamos.

 

a)      Interpretação da norma

 

Como acima referido, resulta do mencionado n.º 3 do artigo 21.º que:

“3- As importâncias pagas pelos fundos de poupança-reforma, mesmo nos casos de reembolso por morte do participante, ficam sujeitas a tributação nos seguintes termos: a) De acordo com as regras aplicáveis aos rendimentos da categoria H de IRS, incluindo as relativas a retenções na fonte, quando a sua perceção ocorra sob a forma de prestações regulares e periódicas; b) incluindo as relativas a retenções na fonte, em caso de reembolso total ou parcial, devendo, todavia, observar-se o seguinte: 1) A matéria colectável é constituída por dois quintos do rendimento; 2) A tributação é autónoma, sendo efectuada à taxa de 20%”.

De acordo com as regras de interpretação da lei previstas no artigo 9.º do Código Civil, embora a interpretação da norma não se deva cingir à letra da lei (antes se devendo “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” – artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), o legislador proíbe, de modo expresso, no n.º 2 do mesmo artigo 9.º, que seja “considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.

Assim sendo, a letra assume-se, naturalmente, como o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa, qual seja, segundo BAPTISTA MACHADO, “a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei”[2]. Como também refere OLIVEIRA ASCENSÃO[3], “a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito”.

Ou seja, ainda que, por hipótese, recorrendo a outros elementos de interpretação (por exemplo ao elemento histórico ou ao elemento teleológico), o intérprete conclua que o legislador teve a intenção de consagrar um determinado regime jurídico, essa intenção não é de considerar se não tiver apoio no elemento literal do preceito em causa.

Ora, do texto do artigo 21.º, n.º 3, do EBF (norma cuja aplicabilidade se pondera no caso concreto) não resulta o mínimo indício literal de aplicação do limite que, aí sim, consta da letra do n.º 1 do mesmo artigo.

Aliás, a circunstância de esse limite se encontrar previsto no referido n.º 1, solidifica a ideia de que o mesmo não se aplica no âmbito do n.º 3 do mesmo preceito.

Com efeito, como resulta do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, o intérprete deve presumir “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Presumindo-se que o legislador é rigoroso e se sabe exprimir, e tendo bem presente um enquadramento que implica uma especial atenção à letra da lei ─ que para a doutrina mais tradicional, em matérias essenciais dos impostos, como são os benefícios fiscais, se deve impor no momento da interpretação ─ , não deve ser automático o paralelo entre a formulação que existe no artigo 21.º, n.º 1, do EBF (que limita o benefício em IRC a fundos que se constituam e operem nos termos da legislação nacional) e o que resulta dos números seguintes, em especial do n.º 3. Aí a formulação escolhida não é a mesma, não tendo o legislador optado por se referir aos fundos com o enquadramento do artigo 21.º, n.º1, do EBF, ao que não será certamente alheio o facto de se abordar um benefício fiscal distinto concedido a um sujeito passivo diferente. Com efeito, o legislador limitou-se tão-só a fazer referência a fundos de poupança reforma, deixando de fora os fundos poupança-educação e fundos mistos (poupança-reforma/educação). Pelo que sai reforçada a convicção de que as formulações e regimes relativos aos fundos não terão de ser as mesmas quer nas circunstâncias em que estes são, eles próprios, sujeitos dos benefícios fiscais, quer no contexto em que aqueles fundos surgem unicamente como devedores dos reembolsos que garantirão benefícios aos sujeitos passivos de IRS. Aliás, no contexto do artigo em análise, não se faz depender a concessão do benefício fiscal aos beneficiários dos planos de poupança-reforma, da sujeição dos fundos pagadores a IRC e à subsequente isenção daí decorrente. Devendo entender-se, por consequência, que esses fundos pagadores podem, até, nem sequer estar sujeitos a IRC em Portugal.

Assim, se o legislador expressamente referiu, aquele limite, no elemento literal do n.º 1, do artigo 21.º do EBF, quanto ao benefício fiscal em IRC, não teria deixado de o fazer, caso essa fosse a sua intenção, no n.º 3 do mesmo preceito, quanto ao benefício fiscal em IRS.

Se estabeleceu essa diferenciação clara entre os dois regimes, não foi por mero lapso - a proximidade entre as duas normas não lhe permitiria esquecer-se dessa menção no n.º 3 e, se quisesse que esse limite fosse comum aos dois regimes sem o mencionar, repetidamente, no n.º 1 e no n.º 3, mencioná-lo-ia numa cláusula geral, comum a ambas as normas, que não apenas no n.º 1.

Assim, a não menção daquele limite afigura-se corresponder antes a uma opção deliberada do poder legislativo, que há-de servir de ponto de partida e limite da interpretação que se faça do preceito.

É verdade que os benefícios fiscais implicam, por definição, uma exceção ao regime-regra, traduzindo um verdadeiro ius singulare.

É, por isso, certo que, sendo o regime dos benefícios fiscais, um regime excepcional, está vedada a interpretação, por analogia, que alargue o benefício a outros sujeitos que não os previstos na lei. Neste contexto, é legítimo impor que se vede ao intérprete a possibilidade de estender a isenção de IRC a outros fundos que não tivessem sido constituídos e operassem nos termos da legislação nacional, desconsiderando o que está expressamente previsto na letra da lei. Mas isso não legitima o intérprete a restringir os termos de aplicação do benefício fiscal aos sujeitos que, nos termos da lei, dele são titulares.

E se o respeito pelas referidas normas interpretativas é sempre importante, na interpretação de quaisquer normas jurídicas (nomeadamente como forma de preservar a separação dos poderes legislativo e executivo), esse respeito torna-se especialmente importante no âmbito das normas de direito fiscal. Dada a ligação do teor da excepção às matérias essenciais dos impostos, isso decorre, de resto, do princípio da legalidade fiscal, assim como do princípio da tipicidade que, como expressões do princípio do Estado de Direito, exigem que os tipos fundamentadores de tributos sejam determinados de tal modo que o sujeito passivo comum e médio possa apreender facilmente o sentido normativo das disposições legais, sem necessitar para isso de ser um técnico de direito.

Neste enquadramento, decide-se no sentido da improcedência (por legalmente inadmissível e não consentâneo com as boas regras de hermenêutica jurídica) da interpretação do n.º 3 do artigo 21.º do EBF, defendida pela Administração Tributária, no sentido de restringir a aplicação do benefício fiscal em causa aos sujeitos passivos que tenham subscrito planos de poupança-reforma assegurados por fundos constituídos e operando nos termos da legislação nacional.

 

b)      Interpretação constitucionalmente adequada (Princípio da igualdade)

 

Ainda que, contudo, houvesse dificuldades quanto à delimitação do tipo de fundos que permitiria atribuir benefícios aos sujeitos passivos de IRS, persistindo dúvidas quanto à interpretação da norma, deveria ser escolhido o sentido que, conquanto não decorresse de outros elementos de interpretação, fosse o sentido necessário e que se tornasse possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental[4].

Com efeito, a interpretação mais abrangente do artigo 21.º, n.º 3, alínea b), do EBF acima explicitada é a que melhor se conforma, desde logo, com o artigo 13.º da CRP.

Do mencionado preceito decorre que seja respeitado o princípio da igualdade de um modo geral, incluindo no plano tributário. Implicando que nesse domínio, por regra, a tributação seja pautada por uma ideia de generalidade e universalidade. Domina igualmente neste campo a ideia de uniformidade, ou seja, que a tributação seja feita de acordo com o mesmo critério, idêntico para todos. Convém, ainda sublinhar, que o princípio não pode ser entendido num sentido estritamente formal (igualdade perante a lei), devendo ser também entendido na sua aceção material (igualdade na lei) que se traduz (i) tanto numa dimensão horizontal, ou seja, os indivíduos nas mesmas condições devem pagar o mesmo imposto, (ii) como numa vertical que levará a que os indivíduos que estejam em condições diferentes devem paguem impostos distintos em função dessa diferença. Devendo as condições em que se encontram os sujeitos passivos ser aferidas em função da sua capacidade contributiva. Isto é, a partir do rendimento de cada contribuinte (englobando o rendimento acumulado e gasto em consumo), revelado através do dinheiro ou dos bens convertíveis em dinheiro de que cada um dispõe.

Também é sabido que o princípio da igualdade não impede a diferenciação de tratamento desde que tenha justificação e fundamento material bastante, o que implica que qualquer que seja o critério discriminador, ele só procederá, contudo, quando se invoquem razões capazes de justificar o tratamento discriminador.

Com efeito, em primeiro lugar, quando a Administração Tributária e Aduaneira refere ser legítima a discriminação (que resulta da interpretação que sustenta) entre sujeitos passivos que recebam pagamentos provenientes de fundos de poupança-reforma que se constituam e operem nos termos da legislação nacional e sujeitos passivos que recebam pagamentos provenientes de fundos de poupança-reforma que não se constituam nem operem nos termos da referida legislação, menciona, por diversas vezes, estar em causa um tratamento diferente entre residentes e não residentes, mencionando, a esse propósito, vários acórdãos do TJUE que aludem e corroboram essa distinção.

A interpretação discriminadora que a Administração Tributária e Aduaneira defende não assenta, porém, no critério da residência do sujeito que é impedido de ser titular do benefício fiscal. No caso dos autos, a limitação quanto à aplicação do benefício fiscal implica discriminação entre os próprios residentes. Com efeito, na interpretação da Administração Tributária e Aduaneira, se um residente receber pagamentos de um fundo de poupança-reforma que se constitua e opere em Portugal, beneficiaria do tratamento fiscal favorável em causa; um residente que receba pagamentos de um fundo de poupança-reforma que não se constitua e não opere em Portugal não beneficiaria (de acordo com a mesma interpretação) desse tratamento fiscal mais vantajoso.

Não está, nesta medida, em causa, o critério de discriminação fiscal (relativo à residência) que, em determinados acórdãos e sob certas condições, o TJUE aceita como legítimo.

Por outro lado, alega, a Administração Tributária e Aduaneira (ainda que para justificar a não violação do princípio da liberdade de circulação de capitais) que o tratamento diferenciado (discriminação) consoante a residência do fundo se situe ou não em Portugal se justifica na medida em que o benefício fiscal em causa se destina “a incentivar os particulares ao investimento em planos de poupança reforma” (artigo 72.º do Pedido Arbitral), de modo a reforçar a “coesão do sistema público de pensões nacional” (artigo 74.º do Pedido Arbitral), assim se fomentando “a sustentabilidade do sistema de segurança social e o reforço de mecanismos de poupança, tendo em vista o equilíbrio das finanças públicas” (artigo 76.º do Pedido Arbitral).

Não se afigura que, também por aqui, sejam invocadas razões que possam fundamentar o tratamento discriminatório, entre sujeitos passivos residentes, que a interpretação que defende implica. Na verdade, não se vislumbra, e a Requerida não comprova, que apenas o investimento dos sujeitos passivos em fundos de poupança-reforma que se constituam e operem segundo a legislação nacional permita o cumprimento desses fins. Ou seja, não demonstrando que o investimento em fundos de poupança-reforma não contribui sempre para a prossecução desses objectivos (desoneração do sistema de segurança social e associado contributo para o equilíbrio das finanças públicas), independentemente de os fundos complementares de reforma se constituírem e operarem de acordo com a lei nacional ou segundo lei estrangeira, não demonstra a necessidade de discriminação entre sujeitos passivos que se encontram em situação fiscal igual.

No caso dos autos, repete-se, os Requerentes encontram-se exactamente nas mesmas circunstâncias dos sujeitos passivos a quem são pagas importâncias pelos fundos de poupança que se constituem e operem nos termos da legislação nacional. São igualmente residentes em Portugal, tendo, portanto, uma conexão com o ordenamento jurídico fiscal português que permite uma tributação de base mundial, em tudo semelhante ao dos outros residentes. Não havendo, portanto, razões atendíveis para que seja feita qualquer discriminação. A nível do direito fiscal internacional, de modo a preservar o equilíbrio a nível das regras de repartição do poder tributário entre os Estados, é normalmente aceitável que um residente não tenha exactamente o mesmo enquadramento fiscal que um não residente, podendo estar sujeito a um regime de tributação distinto. Não se concebe, todavia, que sujeitos passivos, todos residentes, que se encontrem exactamente nas mesmas circunstâncias em termos de capacidade contributiva, e que tenham rendimentos cuja fonte é exactamente a mesma, sejam objecto de um tratamento diferente. É certo que os benefícios fiscais são por natureza discriminatórios, traduzindo-se numa daquelas situações em que pode haver alguma discriminação (artigo 7.º, n.º 3, da LGT). Porém, quem está exactamente nas mesmas circunstâncias não pode ser alvo de um tratamento distinto. Especialmente num enquadramento em que, tal como é admitido pelas partes, nem sequer assistiu aos requerentes a possibilidade de optar por um fundo nacional (artigo 66.º da resposta da Autoridade Tributária).

Nestes termos, não podemos deixar de concluir que a Administração Tributária e Aduaneira não provou que as razões que invoca se afiguram fundamentos juridicamente aptos para sustentar que o benefício fiscal em causa não se aplica a todos os sujeitos passivos residentes em Portugal que recebam pagamentos efectuados por fundos de poupança-reforma.

Nesta medida, o regime constitucional português em matéria de igualdade, imporia um entendimento amplo do artigo 21.º, n.º 3, do EBF, por força da aplicação do artigo 13.º da CRP.

 

c)      Interpretação em conformidade com o Direito da União

 

Além do mais, do artigo 8.º da CRP, em especial do n.º 4, decorre que as disposições dos tratados que regem a União Europeia sejam aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União. Implicando este enquadramento um efeito directo das disposições dos tratados na ordem jurídica portuguesa, incluindo as liberdades económicas fundamentais. Os efeitos da sua proteção levam não só a que a legislação dos Estados-membros deva ser interpretada em conformidade com essas liberdades, mas também que, em caso de incompatibilidade declarada entre as disposições internas e uma qualquer dessas liberdades, a legislação nacional deixe de poder ser aplicada.

No caso concreto, pelos motivos já enunciados em a), este tribunal considera que não há uma oposição entre a letra da lei e qualquer uma das liberdades de circulação. Ainda, porém, que quanto a esse aspecto dúvidas houvesse, sempre se imporia, assim, que a interpretação que se fizesse dessa disposição fosse conforme às liberdades económicas fundamentais, devendo ser respeitadas todas aquelas que sejam susceptíveis de ser postas em causa pela aplicação da legislação nacional. Importa a esse respeito salientar que não há (quando a situação a enquadrar tenha unicamente conexão com Estados-Membro) qualquer ordem de prioridade entre elas. Isso sem prejuízo de terem existido no passado dúvidas acerca do efeito que teria, para uma eventual prioridade entre as várias liberdades económicas fundamentais, o facto de o texto do artigo do artigo 57.º do TFUE dizer que se consideram serviços as prestações que não sejam reguladas nas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, capitais e pessoas. Sendo neste momento pacífico (contrariamente ao que diz a Autoridade Tributária no artigo 47.º da Resposta) que o teor do artigo não aponta para que essa liberdade se aplique apenas como uma alternativa relativamente às outras. Foi ao decidir o caso Fidium Finanz[5] que o TJ considerou que esta disposição não estabelecia uma ordem de prioridades entre a liberdade de prestação de serviços e outras liberdades económicas fundamentais.

No caso em análise uma interpretação do artigo 21.º, n.º 3, alínea b), do EBF que limitasse a sua aplicação aos sujeitos passivos que beneficiassem de pagamentos de fundos poupança-reforma constituídos e operando nos termos da legislação nacional poria em causa a liberdade de circulação de capitais e a liberdade de prestação de serviços.

Apesar de não haver uma definição de «circulação de capitais» no Tratado, o TJ confirmou em vários acórdãos, ao fazer uma lista não exaustiva dos movimentos de capital, que a terminologia aplicada a esses movimentos no Anexo I da Diretiva do Conselho 88/361/ CEE, de 24 de junho de 1988, para a implementação do antigo artigo 67.º do TCE, hoje revogado, ainda tem alguma relevância. Aliás, isso foi reconhecido pelo TJ no caso Trummer and Meyer [6], ao mesmo tempo que se evidenciou a circunstância de o artigo 63.º, n.º 1, do TFUE reproduzir de certo modo o conteúdo do artigo 1.º da Diretiva 88/361/CEE. Nesse contexto, o TJ tem decidido que podem ser reconduzidos aos movimentos de capitais no contexto do artigo 63.º do TFUE, nomeadamente, os investimentos ditos «diretos»[7] que têm,  através da aquisição de acções, o objectivo de participar na gestão e controlo de uma sociedade, assim como os investimentos ditos «de carteira», isto é, os investimentos sob a forma de aquisição de títulos no mercado de capitais com o único objectivo de realizar uma aplicação financeira sem intenção de influir na gestão e no controlo da empresa[8].

A referência ao anexo da directiva a que se tem vindo a aludir, não impede, porém, que constituam movimentos de capitais, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, outras operações, aí não previstas, designadamente os reembolsos feitos pelos fundos de que tratamos. Além disso, o artigo 63.º do TFUE assegura, tanto a liberdade de circulação de capitais como a de pagamentos, o que é suficientemente abrangente para acomodar os reembolsos de que tratamos.

A liberdade de prestação de serviços[9] proíbe a discriminação de nacionais de um Estado-Membro na prestação de serviços em outro Estado-Membro[10], o que ocorreria se o tipo de fundo que estivesse em causa condicionasse o benefício a obter pelo sujeito passivo de IRS. Apesar de termos em vista em primeira linha a posição dos requerentes e não tanto a dos fundos, impõe-se que a interpretação das disposições contemple as disposições do sistema jurídico considerando-o na sua globalidade. Devendo por isso atender-se igualmente à liberdade de prestação de serviços.

No caso em apreço, a única forma de impedir que haja uma restrição a estas liberdades é ser fiel à letra do preceito, não o tornando mais restritivo.

Por fim, é de referir (embora com menor relevo no presente caso, na medida em que, nesta acção o tribunal se pronuncia quanto à protecção de quem recebe pagamentos de fundos de poupança-reforma e não dos próprios fundos) que a aplicação da interpretação defendida pela Requerida implicaria também a restrição da liberdade de circulação de capitais do lado dos fundos de poupança-reforma.  

Mesmo que se entendesse que decorria da lei que o benefício deveria ser limitado aos beneficiários de fundos que tivessem sido criados e operassem segundo a legislação portuguesa e se recorresse a razões de interesse geral para justificar qualquer restrição às liberdades fundamentais, esse exercício seria apenas concebível a propósito do regime de tributação dos fundos propriamente ditos. Com efeito, só aí haveria uma comparação entre residentes e não residentes, contexto em que normalmente são invocadas essas justificações[11]; já não será aceitável invocar fora desse contexto, tal como fez a Autoridade Tributária e Aduaneira (artigo 70.º da resposta), a necessidade de assegurar a coerência do regime fiscal e evitar a diminuição de receitas.

Com a agravante de o argumento de evitar a diminuição de receitas, mesmo numa situação em que o contexto fosse o correcto, não ser seguramente aceite, dado não ter o TJ até à data acolhido esta restrição. Essa orientação foi demonstrada de modo claro em Manninen[12].

De notar que, com base numa contextualização idêntica, o artigo 16.º do EBF, referente a fundos de pensões e equiparáveis teve de ser alterado em 2012, na sequência da decisão do TJ Comissão Europeia v. República Portuguesa[13], onde foram invocadas razões de ordem pública, como a preservação da coerência[14] e da eficácia dos controlos fiscais[15], de modo a não limitar o benefício fiscal aos fundos que tivessem sido constituídos e operassem de acordo com legislação portuguesa. Na sequência dessa decisão, o regime de isenção teve de ser igualmente estendido a fundos de pensões constituídos em outros Estados-Membros, mediante o cumprimento de certas condições[16].

Exercício semelhante justificar-se-ia a propósito da tributação dos fundos de poupança-reforma em sede de IRC, no âmbito do artigo 21.º, n.º 1, do EBF. Todavia, os efeitos que daí decorressem não teriam um impacto direto nos sujeitos passivos beneficiários dos pagamentos dos fundos, dada a independência do regime que lhes é aplicável (reflectido inclusivamente num número diferente do preceito em análise) [17]. Além disso, não seria possível fazer esse exercício directamente relativamente a sujeitos passivos residentes sujeitos a uma tributação de base mundial.

 

            Finalmente, convém ainda salientar que da aplicação da convenção sobre dupla tributação celebrada entre Portugal e a Bélgica (referida pela Requerida) não decorre qualquer vantagem específica para os Requerentes em Portugal, sendo apenas atribuída uma vantagem genérica, unicamente no país da fonte (devendo aí, e só aí, ser reclamados eventuais reembolsos, mediante prova da residência em Portugal). Vantagem que está ao alcance de qualquer sujeito passivo que se encontre nas mesmas circunstâncias. Tem, portanto, repita-se, um efeito nulo na tributação dos pagamentos realizados em Portugal. Assim, ainda que as convenções possam ser consideradas para determinar se duas situações comparáveis são ou não tratadas de forma diferente ou se duas situações diferentes são tratadas da mesma forma, isso só é possível se tiverem efeitos no direito do Estado a nível do qual haverá a suposta discriminação[18] ─ o que não é seguramente o caso.

Importa acrescentar, para concluir, que ainda que fosse reconhecida uma qualquer vantagem em Portugal, a simples ideia de que a discriminação seria compensada não tem normalmente aceitação como causa que possa justificar a restrição às liberdades fundamentais. Pois, logo no caso Avoir Fiscal[19], um dos primeiros casos concernentes aos impostos diretos, este argumento foi rejeitado[20].

           

***

Deste modo, atento o que ficou exposto, procede o vício de violação de lei alegado pelos Requerentes, relativamente à interpretação (defendida pela Requerida) do artigo 21.º, n.º 3, alíneas a) e b) do Estatuto dos Benefícios Fiscais, no sentido de restringir a concessão dos benefícios daí decorrentes unicamente aos sujeitos passivos que tenham subscrito planos de poupança-reforma junto de fundos que tenham sido constituídos e operem nos termos da legislação portuguesa.

 

10.B. Do direito dos Requerentes ao pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia, nos termos do artigo 53.º da LGT.

 

A segunda questão jurídica substantiva decidenda é a de saber se os Requerentes têm, como peticionam, direito à indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação caução para suspender o processo de execução fiscal.

Com relevância para a decisão, resulta da matéria de facto dada como provada que:

- “A 9 de dezembro de 2014, os Requerentes foram citados da instauração do processo de execução fiscal n.º …2014…, no valor total de EUR 348.667,09, para efeitos de cobrança coerciva do ato tributário acima referido” [ponto x) da matéria de facto dada como provada];

-“No “dia 23 de dezembro de 2014, os Requerentes apresentaram junto do Serviço de Finanças de Loures … a garantia bancária n.º …-…-…, prestada pelo Banco ..., no valor de EUR 440.342,08, para efeitos de suspensão do processo acima referido” [cfr. documento n.º 14 (junto com o pedido arbitral, cujo teor se dá como reproduzido]” - ponto y) da matéria de facto dada como provada;

O artigo 53.º da LGT, que, sob a epígrafe, “Garantia em caso de prestação indevida”, dispõe o seguinte:

1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

2-O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3.A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4.A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.”

 

Da conjugação dos n.ºs 1 e 2 extrai-se que, em caso de erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, o devedor é indemnizado pelos prejuízos resultantes da prestação da garantia independentemente do tempo por que tenha tido que a manter.

No caso dos autos, o erro de que padece a liquidação cuja legalidade se discute resulta de erro dos serviços sobre os pressupostos de direito. Por outro lado, a liquidação objecto de impugnação foi da exclusiva iniciativa da Administração Tributária e os Requerentes em nada contribuíram para que ela fosse efectuada, pelo que o erro é imputável exclusivamente à própria Administração.

Os Requerentes referem ter pago garantia bancária, no valor de EUR 440.342,08, pelo que têm direito a ser indemnizados dessa despesa e ainda de outras posteriores, que vierem a ser comprovadas.

Não dispondo de elementos que permitam determinar o montante da indemnização, a condenação terá de ser efectuada tendo por referência a quantia que se provou ter sido expendida acrescida do que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão (cfr.o artigo 609.º do Código do Processo Civil e o artigo 565.º do Código Civil).

 

IV.              Decisão 

Temos em que acorda este Tribunal Arbitral em:

·         Julgar procedente a excepção dilatória de incompetência para este Tribunal ordenar a extinção do processo executivo;

·         Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência deste Tribunal para apreciação de pedido de indemnização por prestação de garantia indevida;

·         Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2014…, resultante da demonstração de acerto de contas n.º 2014…, relativo ao exercício de 2010 e, em consequência, anular a liquidação impugnada;

·         Julgar procedente o pedido dos Requerentes quanto ao direito ao pagamento de uma indemnização por prestação de garantia para suspender o processo de execução fiscal n.º …2014…, e condenar a Autoridade tributária e aduaneira a pagar aos Requerentes a indemnização que for liquidada em execução do presente acórdão.

 

V.                Valor do Processo

 De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2, do C.P.C., do art. 97.º-A, n.º 1, al. a), do C.P.P.T., e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 347.439,46.

 

VI.             Custas 

Custas, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de € 5 814,00, nos termos do previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma.

 

Lisboa, 18 de Setembro de 2015.

 

 

Os árbitros,

 

 

 

Fernanda Maçãs

 

 

 

 

João Sérgio Ribeiro

 

 

 

 

Rui Ferreira Rodrigues 

 

 

 



[1] Cfr. artigos 65.º, 66.º, 72.º e 75.º da Resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira, e artigo 44.º do Pedido.

[2] Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, pp. 187 ss.

[3] Cfr. O Direito, Introdução e Teoria Geral, Lisboa, 1978, p. 350.

[4] Cfr. Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 313-316.

[5] C-452/04, de 3 de Outubro de 2006, n.º 32.

[6] C-222/97, de 16 de Março de 1999, n.º 21.

[7] Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11, de 13 de Novembro de 2012, n.º 102; Glaxo Wellcome, C-182/08, de 17 de Setembro de 2009, n.° 40; Idryma Typou, C-81/09, de 21 de Outubro de 2010, n.° 48.

[8] Cfr. Comissão Europeia v. República Portuguesa, C‑171/08, de 8 de Julho de 2010, n.º 49; Manfred Trummer and Peter Mayer, C-222/97, de 16 de Março de 1999; Commission v. France, C-483/99, de 4 de Junho de 2002; Commission v. United Kingdom, C-98/01, de 13 de Maio de 2003; Commission v. Netherlands, processos apensos C-282/04 e C-283/04, de 28 de Setembro de 2006.

[9] Cfr. artigo 57.º do TFUE.

[10] Zanotti, C-56/09, de 20 de Maio de 2010; Comissão Europeia v República Portuguesa, C-105/08, de 17 de Junho de 2010; X, C-498/10, de 18 de Outubro de 2012.

[11] Ver, como exemplos, Bachmann, proc. C-204/90, de 28 de Janeiro de 1992; Kranhenheim, proc. C-157/07, de 23 de Outubro de 2008; Wielockx, proc. C-80/94, de 11 de Agosto de 1995; Danner, proc. C-136/00, de 3 de Outubro de 2002.

[12] C-319/02, de 7 de Setembro de 2004.

[13] Proc. C-493/09, de 6 de Outubro de 2011.

[14] Proc. C-493/09, cit., n.º 19.

[15] Proc. C-493/09, cit., n.º 20.

[16] Cfr. artigo 16.º, n.ºs 7, 8 e 9, do EBF.

[17] A não ser, naturalmente, que se entendesse que o facto de os regimes fazerem parte do mesmo artigo obrigaria a que houvesse uma absoluta identidade, em termos de sentido, entre as referências feitas, nos vários números do artigo, ao termo fundo de poupança-reforma ─ o que não corresponde à opção feita por este tribunal.

[18] Cfr. Bouanich, C-265/04, de 19 de Janeiro de 2006.

[19] C-270/83, 28 de Janeiro de 1986.

[20] Nesse sentido ver também Commerzbank, C-330/91, de 13 de Julho de 1993.