Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 225/2015-T
Data da decisão: 2016-06-13  IRC  
Valor do pedido: € 56.638,76
Tema: IRC 1996 - Montante de liquidações anteriores a considerar em liquidação adicional
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Decisão Arbitral[1],[2]

 

O tribunal arbitral em funcionamento com árbitro singular constituído no CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa nos termos do regime jurídico instituído pelo Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro, para o qual foi designado pelo respetivo Conselho Deontológico, o árbitro da lista do Centro Nuno Maldonado Sousa, elabora seguidamente a sua decisão arbitral.

 

1.      Relatório

 

1.1.   Identificação das partes e constituição do tribunal arbitral

A...-…, S.A., com sede na Rua..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, com o capital social de € 76.000.000,00, NIPC..., apresentou pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do RJAT e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 01-04-2015 e foi notificado à AT no mesmo dia.

Nos termos em que dispõem as normas do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, nº1, al. b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 26-05-2015. Em conformidade com a regra constante do artigo 11.º, n.º 1, al. c) do RJAT, o tribunal arbitral ficou constituído em 15-06-2015.

Este tribunal arbitral prorrogou o prazo para emissão e notificação às partes da decisão arbitral em 2 meses a contar do termo do prazo inicial, que ocorria em 10-02-2016, nos termos do artigo 21º-2 do RJAT. Na primeira reunião com as Partes prorrogou de novo aquele prazo por dois meses, com início no termo da 1ª prorrogação, em 10-04-2016, durante as férias judiciais.

 

1.2.   Identificação dos atos impugnados, síntese da pretensão da Requerente, seus fundamentos e vícios imputados aos atos

No seu Requerimento Inicial a Requerente peticionou a anulação da liquidação corretiva de IRC de 28/04/2000, com o n.º..., referente ao exercício de 1996 bem como das decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico que sucessivamente interpôs.

Alega que na liquidação corretiva agora impugnada, a AT não levou em consideração todas as autoliquidações anteriores referentes ao ano de 1996, decorrentes da sua primeira declaração do exercício e das duas declarações de substituição que posteriormente apresentou e cujo imposto apurado foi satisfeito.

O vício apontado pela Requerente ao ato impugnado é assim o erro sobre os pressupostos de facto.

Em síntese, a Requerente pretende que seja anulada a liquidação corretiva n.º... ao seu IRC de 1996 e consequentemente anuladas as decisões de indeferimento da reclamação hierárquica e do recurso hierárquico que interpôs. Peticiona também a restituição do montante de € 9.431,27[3], correspondente a imposto que afirma ter “indevidamente entregue nos cofres do Estado”, acrescido de juros indemnizatórios.

A título subsidiário a Requerente pede que seja reconhecida a prescrição da dívida tributária resultante da liquidação adicional de IRC n. °... .

 

1.3.   Síntese da posição da AT

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou a sua Resposta sustentando a legalidade da liquidação e defendeu a improcedência do pedido e da sua fundamentação, entendendo que a liquidação está correta pois a Requerente, quando ela foi emitida, já tinha sido reembolsada do montante de 8.781.702$00, correspondente a autoliquidação que fez e cujo pagamento, que satisfez, foi anulado. Este movimento influencia o valor das liquidações anteriores da forma expressa na liquidação corretiva. Afirma também que a Requerente não entregou ainda o valor de 1.410.298$65 (equivalente a € 7.034.54) cuja obrigação para si resultou da sua declaração de substituição modelo 22 de 02/09/1997, que originou a liquidação n.º... .

Conclui defendendo a sua absolvição dos pedidos.

 

2.      Saneamento

 

2.1.    Alteração do pedido

Em 01-04-2016 a Requerente peticionou também que a AT fosse condenada a pagar-lhe indemnização pela emissão de garantia que considerou indevida.

A AT pronunciou-se no sentido do indeferimento dessa alteração ao pedido.

Por despacho de 26-04-2016 este tribunal arbitral indeferiu o pedido de cumulação sucessiva da Requerente por ser intempestivo, sendo inadmissível fazê-lo na fase do processo em que o foi (171º-2 CPPT).

 

2.2.   Instrução do processo e alegações

Em 05-04-2016 realizou-se a primeira reunião do tribunal arbitral com as partes e nela foi produzida prova testemunhal, inquirindo-se a testemunha arrolada pela Requerente.

Foram juntos documentos ao RI e à R-AT. A AT juntou o processo administrativo.

Pela Requerente e pela AT foram apresentadas alegações escritas, como foi acordado por ambas.

 

2.3.   Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e tem competência em razão da matéria segundo dispõem as regras do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

As Partes são titulares de personalidade e capacidade judiciárias (sendo a da AT nos termos da disciplina constante do artigo 4.º, n.º 1 do RJAT e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e do artigo 1.º, al. a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), são legítimas e estão regularmente representadas.

Não há nulidades que inquinem o processo.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa pelo que se impõe decidir.

 

2.3.1.     Exceções processuais: A prescrição e a falta de interesse em agir

Nos artigos 84 a 93 do seu RI a Requerente vem invocar a prescrição da obrigação tributária, sustentando que o seu prazo é de 10 anos (34º CPPT, na versão então vigente), que se iniciou no início do ano seguinte ao facto tributário. Embora a reclamação graciosa e o recurso hierárquico interrompam a contagem da prescrição, esse efeito interruptivo deixa de ocorrer se o processo estiver parado, por facto não imputável ao contribuinte por mais de um ano.

A Requerente conclui que a dívida se encontra prescrita desde 01/01/2008, com base nos seguintes elementos:

a)      A reclamação graciosa foi proposta em 04/10/2000;

b)      A reclamação graciosa esteve parada por mais de um ano por causa não imputável à Requerente, “conforme resulta do próprio projeto de decisão e dos seus documentos anexos”.

A AT (11 a 21 R-AT) manifestou-se no sentido da improcedência deste pedido.

Em geral a prescrição não afeta a validade do ato tributário que foi praticado antes de esta ocorrer. A invalidade do ato é aferida relativamente à situação que vigorava no momento da sua prática e a prescrição não é um dos vícios que tipicamente inquine a sua validade originária; a prescrição retira a eficácia a um ato tributário que foi válido. É nesta linha de orientação que este instituto é regulado de forma particular no direito fiscal, que não considera a prescrição como causa de impugnação mas antes como fundamento de oposição à execução (204º-1-d CPPT), que é de conhecimento oficioso (175º CPPT).

Não obstante, a doutrina[4] e a jurisprudência[5] têm entendido que a prescrição poderá ser conhecida em sede de impugnação judicial, quando se pretenda evitar a prática de atos inúteis, designadamente quando com a sua declaração se torne de todo desnecessário analisar a validade do ato, pois mesmo que a decisão da impugnação reconheça a sua validade, o ato tributário não produzirá já efeitos jurídicos, visto que a sua cobrança em processo de execução irá naufragar, com o reconhecimento da prescrição que se impõe, nos termos expostos.

O conhecimento da prescrição na impugnação judicial tributária encontra-se sempre subordinado a requisitos especiais, nomeadamente (i) que a declaração da prescrição inutilize na totalidade os efeitos do ato pois se parte deste não for afetada pela prescrição, haverá que averiguar da validade da parte não afetada e o ato de apreciação já não será inútil[6]; (ii) que o processo revele todos os factos necessários ao conhecimento da prescrição[7], em especial os factos suspensivos ou interruptivos, devidamente circunstanciados de forma a poder aferir-se a responsabilidade pela sua ocorrência.

No caso dos autos a Requerente não juntou cópia do processo de reclamação graciosa completamente organizado, desde a sua interposição até à sua decisão final de indeferimento, com todas as vicissitudes, oferecendo apenas como prova para o efeito “o projeto de decisão e os documentos anexos”. Também o processo administrativo não permite a este tribunal aperceber-se da marcha da reclamação graciosa passo a passo, pois a sua organização não está feita de modo a revelá-lo.

Na inexistência de elementos que permitam conhecer com segurança os factos interruptivos da prescrição, não é possível a este tribunal decidir sobre a sua ocorrência, o que se imporia se os dados completos fossem conhecidos, para obstar à prática de atos inúteis, que são proibidos (130º CPC).

 

3.      Decisão

 

3.1.   Matéria de facto

A forma como a matéria de facto foi alegada pelas partes não facilitou o seu entendimento, obrigando o tribunal a socorrer-se da extensa documentação junta, nem sempre organizada e com legibilidade reduzida. A rapidez da compreensão foi também prejudicada pela indicação indistinta de valores em escudos e em euros, obrigando a constantes cálculos para encontrar a equivalência. A prova também foi dificultada pelo método de referenciação utilizado pois os documentos juntos (utilizando o termo documentos de acordo com o regime legal que consta dos artigos 362º a 379º do CC) não se encontravam individualmente referenciados, como é praxe forense, impedindo que se entendesse que documento concreto pretendia a parte utilizar para confirmar a sua afirmação. Fazem também parte do acervo de elementos juntos diversos prints de sistemas informáticos, presume-se que na sua maioria do sistema da própria AT. Tenha-se presente que os documentos devem ser assinados pelo seu autor (373º CC) e que simples impressões não podem evidentemente constituir meio de prova.

Da instrução do processo resultou a seguinte matéria de facto provada e a relação de factos alegados e não provados que abaixo também se indica.

 

3.1.1.     Factos que se consideram provados

Nestes autos ficaram assentes os seguintes factos:

A.    A Requerente apresentou em 28-04-1997 declaração de rendimentos modelo 22, referente ao IRC do exercício de 1996 e apurou o lucro tributável de 164.708.512$00, a matéria coletável de 70.152.144$00, IRC liquidado de 25.254.772$00 e na qual inscreveu o valor de retenções na fonte de 8.781.702$00 e calculou o IRC a pagar no valor de Esc.: 16.473.070$00 e o valor da derrama em 2.525.477$00 e o total a pagar de 18.998.547$00. (13 e 14 RI: PA1, pp. 63-72, campos 401, 409, 448, 449, 452 e 459. 34 R-AT)

B.     Em 02/09/1997 a Requerente apresentou declaração de substituição modelo 22, referente ao IRC do exercício de 1996 e nela inscreveu o valor do IRC liquidado de 43.246.461$00, o montante de 8.701.702$00 de retenções na fonte, o IRC a pagar de 15.466.212$00 e o total a pagar de 19.790.858$00. (14 RI: PA1, pp. 87-99, campos 448, 449, 452 e 459. 38 R-AT)

C.     Com data inscrita de 19/05/1999 a Requerente apresentou segunda declaração de substituição ao modelo 22 e nela não inscreveu qualquer valor de retenções na fonte e inscreveu o valor do IRC liquidado de 43.246.461$00, o IRC a pagar de 4.457.056$00 e o total a pagar de 8.781.702$00, que nessa data entregou à Fazenda Pública através do documento n.º... . (16 e17 RI: doc.4, anexo I, pp. 45-58, campos 448, 449, 450, 452 e 459. 37 R-AT. O pagamento encontra-se documentado na p. 46).

D.    A Requerente pagou por referência ao exercício de 1996 IRC e derrama em montante que ascende a 47.571.107$00 (equivalente a € 237.283,68), correspondente à adição das seguintes entregas:

a.       Em 28/04/1997 a Requerente pagou 18.998.547$00 (equivalente a € 94.764,35 €). (21 RI e 47 R-AT)

b.      Em 01/09/1997 a Requerente pagou o valor de 19.790.858$00 (equivalente a € 98.716,38) através do documento n.º.... . (9 e 21 RI: PA1, p. 104. 47 R-AT)

c.       Em 19/05/1999 através do documento n.º..., entregou a quantia de 8.781.702$00 (equivalente a € 43.802,94); (9, 16 e17 RI: doc.4, anexo I. 40 R-AT).

E.     Por carta de 27/05/1999 a Requerente solicitou por escrito à Direção Geral dos Impostos o reembolso do imposto apurado de Esc.: 8.781.702$00 invocando o “n.º 4 do artigo 12º-A do DL 42/91 de 22 de janeiro”. (15 RI: doc. 9).

F.      Em 17/04/2000, no âmbito do procedimento de restituição de IRC, foi emitido à ordem da Requerente pela Direção de Serviços de Cobrança do IR, o cheque n.º..., no montante de 8.781.702$00, que respeitava “à anulação do pagamento n.º ... de 03/04/2000” que foi enviado ao Chefe da Repartição de Finanças do ... Bairro Fiscal do …, para que se “procedesse à compensação de dívidas existentes naquela repartição de finanças” (22 RI: doc. 4, anexo II, pp. 60-61).

G.    Em 31/05/2000 o cheque n.º ... no montante de 8.781.702$00 foi entregue à Requerente na Repartição de Finanças do ... Bairro Fiscal do Porto. (23 RI: doc. 4, anexo II, pp. 62-63).

H.    Na sequência de ação de inspeção pela AT a Requerente foi notificada por ofício de 18-09-2000 da liquidação corretiva de IRC de 28/04/2000, com o n.º..., referente ao exercício de 1996, na qual se apurou o valor a pagar de 11.355.052$00, que incluía juros compensatórios de 2.977.348$00 e contemplava a dedução do montante de liquidações anteriores de 38.789.405$00. (1, 32 e 34 RI: doc. 1; 6 R-AT)

I.       As alterações efetuadas à matéria coletável do exercício de 1996, resultaram das correções referidas no Relatório de Inspeção Tributária, documento que consta do processo administrativo, que aqui se dá por inteiramente reproduzido (7 R-AT: PA1, pp. 7- 26).

J.       Em 04/10/2000 a Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação corretiva n.º ... do IRC de 1996, à qual foi atribuído o número de processo ... (...), nos termos do documento junto ao RI com o n.º 2, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, fundamentando-se em especial em:

8. Por último, ao determinar o montante de liquidações anteriores a inscrever na linha 23 do quadro demonstrativo do apuramento do imposto constante da nota de cobrança, os serviços apenas tomaram em conta os valores de imposto apurados e entregues na primeira declaração de rendimentos do período e na declaração de substituição entregue em 28 de Abril e 2 de Setembro de 1997, no montante de 38.789.405$00.

K.    Por ofício de 25/07/2006 a Requerente foi notificada de que por despacho de 21/02/2005 foi deferida a reclamação com o número de processo ...  (...). (39 RI: doc. 3, p. 30)

L.     Por ofício de 25/07/2006 a Requerente foi notificada de que em 04/07/2006 foi elaborado o DUC n.º..., com vista à correção da liquidação n.º ... de 28/04/2000, pelo que deveria aguardar nota demonstrativa da liquidação corrigida. (60/12 RI: doc. 3, p. 30)

M.   A AT veio posteriormente a manifestar que a comunicação do deferimento da reclamação graciosa “foi um erro na notificação expedida em 25/07/2006”. (66 RI: doc. 5, p. 67).

N.    A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa por despacho de 15/11/2013 (4. RI: doc. 5, p. 67)

O.    Em 22/12/2013 a Requerente interpôs recurso hierárquico do despacho de 15/11/2013 que indeferiu a reclamação graciosa com o número de processo ..., nos termos do documento junto ao RI com o n.º 2, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, fundamentando-se em especial em: (4. RI: doc. 6, p. 98)

16. A referida liquidação corretiva constitui, conforme acima referido, o objeto da Reclamação Graciosa de cujo indeferimento ora se recorre.

17. O montante de imposto apurado resultava da desconsideração do montante de € 43.802,94 [8.781.702$00],

18. Com efeito, no cálculo do imposto na referida liquidação corretiva, os serviços da AT não tiveram em linha de conta a Dec1aração de Substituição submetida pela Reclamante em 19/03/1999 e a correspondente autoliquidação de imposto concretizada através da Guia de Pagamento n.º... .

P.      Por ofício de 21/01/2015 foi notificado à Requerente o indeferimento do recurso hierárquico. (5 RI: doc. 7, p. 107)

Q.    A Requerente nunca foi notificada da liquidação n.º ... de 20/04/2000. (46 RI)

 

3.1.2.     Factos que se consideram não provados

Não se consideram provados as seguintes alegações de matéria de facto, pelas razões indicadas:

Em 19 do RI afirma-se que a “A AT efetuou a liquidação adicional com o n.º ... de 16/10/1999, no montante de 1.410.298$65 e juros compensatórios de 76.503$93, totalizando 1.486.803$00”. Para prova dessa afirmação indica-se o respetivo documento n.º 8 que é afinal um quadro de resumo elaborado pela própria Requerente e que não tem capacidade probatória. Não é por esta razão possível assentar estes elementos.

Em 9i e 21 do RI a Requerente afirma ter pago o valor de “1.410.298$65 (equivalente a € 7.034,54 €) referentes a imposto determinado no âmbito da liquidação adicional n.º..., de 16/10/1999”. Indica-se para prova o “print junto como anexo III do documento n.º 4”. Por seu turno a AT sustenta que esse pagamento não foi feito (42-45 e 59 R-AT). Como se referiu não se considera que o print seja meio idóneo de prova, tanto mais que as próprias obrigações contabilísticas da Requerente não permitem dispensar que tenha esse movimento devidamente documentado. Note-se que a Requerente não circunstancia sequer a sua afirmação, indicando quando e como ocorreu o alegado pagamento. Não está por isso convicto o tribunal da existência efetiva deste pagamento, que obrigava a que houvesse efetiva entrega de meio de pagamento (cheque, transferência bancária, etc.), não bastando mera operação contabilística.

Em 35º do R-AT afirma-se que “A declaração de Rendimentos modelo 22, apresentada em 1997-04-28, originou a liquidação n.º..., resultando imposto a pagar no montante de € 7.034,54” referenciando-se para prova o documento a demonstração da liquidação de IRC junta como 3. O documento n.º 3 é afinal um print do sistema, de legibilidade duvidosa e sem força probatória nos termos já aludidos. Não é assim possível fazer a correspondência entre a declaração de rendimentos aqui referida e o n.º da liquidação que se diz ter sido por ela originada.

Em 38º do R-AT afirma-se que “A declaração modelo 22 de substituição, apresentada em 1997-09-02, originou a liquidação n.º..., da qual resultou imposto a pagar no montante de 1.410.298$65”. Em 39º do R-AT afirma-se que “Da segunda declaração de substituição, resultou a liquidação n.º..., com imposto a pagar no montante de 8.781.702$00. Em nenhum destes artigos se referencia qualquer prova para que se possa aferir da numeração indicada para as liquidações. Não é também aqui possível fazer a correspondência entre as declarações de rendimentos aqui referidas e o n.ºs das liquidações que se diz terem sido por elas originadas.

Em 48 e 54 do R-AT afirma-se que a quantia paga pela Requerente em 1999-05-19 através da guia ... no montante de 8.781.702$00 (correspondente a € 43.802,94), referente a autoliquidação, não foi considerada na liquidação impugnada porque o seu valor foi restituído à Requerente em 2000-06-03. Em nenhum destes artigos se referencia qualquer prova que possa sustentar a fundamentação que aqui se pretende ter presidido à entrega daquele montante à Requerente. Não é por isso possível assentar essa parte da afirmação da AT.

 

3.1.3.     Fundamentação da matéria de facto provada

A convicção do tribunal assentou na prova documental constante dos autos e na posição tomada relativamente a cada facto pelas Partes nos articulados, devidamente identificada em 3.1.1.

Foi também levada em consideração para apreciação dos pontos F) e G) o depoimento da testemunha B..., técnico oficial de contas da Requerente, que depôs com conhecimento direto da matéria em causa, pois participou nas operações relatadas.

 

3.2.   Matéria de direito

 

3.2.1.     Questão de fundo:

O âmago do litígio que este tribunal está vinculado a resolver consiste em determinar de que modo se devem refletir na liquidação impugnada as anteriores liquidações feitas pela Requerente e de que maneira devem ser nelas considerados os pagamentos que fez para satisfação desses apuramentos.

Para isso importa (i) determinar com rigor em que consistem afinal a liquidação e o pagamento; (ii) qual a regulação jurídica existente sobre a matéria; (iii) assentar a relevância jurídica dos factos assentes; (iv) e finalmente apurar a correção da liquidação impugnada.

Em termos gerais através da liquidação “determina-se a coleta aplicando a taxa à matéria coletável, a menos que haja deduções à coleta, caso em que a liquidação também abarca esta última operação”[8]. A liquidação por sua vez pode assumir a forma de liquidação normal ou liquidação especial, como são a liquidação consequente que ocorre esta operação obedece a procedimento próprio, não comum, como acontece nas situações de aplicação das cláusulas anti abuso (cfr. os artigos 62º e 63º do CPPT) e a liquidação adicional,[9], que acontece quando, depois de liquidado o imposto, a AT corrija a liquidação feita pelo contribuinte (é a situação prevista nos artigos 99º-1 e 90º-12 do CIRC atualmente vigente). A liquidação adicional aparece assim como o resultado de correção feita pela AT.

Por sua vez através do pagamento, que é a visão do contribuinte da cobrança, “o imposto vai dar entrada nos cofres do Estado, seja através da cobrança voluntária se há lugar ao pagamento espontâneo pelo contribuinte do montante liquidado, seja através de cobrança coerciva se for preciso recorrer à apreensão dos bens necessários à solvência do débito fiscal do devedor”[10].

Do que se acaba de expor resulta claro que a liquidação e o pagamento são fases perfeitamente distintas e sucessivas da dinâmica do imposto. Na fase da liquidação apura-se o quantitativo a pagar através de operações técnicas. Na fase da cobrança, onde se enquadra o pagamento, dão-se apenas as operações em que se arrecadam as quantias liquidadas.

O pagamento é consequência de determinada liquidação e em cada uma das operações em que se desenvolve a liquidação – quer seja a auto liquidação, a liquidação pela AT ou a liquidação adicional também pela AT – ressalta que nela não são levados em consideração os pagamentos de liquidações anteriores.

Feita determinada liquidação ela passa a constituir um ato administrativo exequível, que será tratado na fase da cobrança, sem que se lhe possam opor os vícios específicos da liquidação, como se alcança do regime da oposição à execução, que constitui em si a forma coerciva da cobrança. Com efeito, estando vigente na ordem jurídica determinado ato de liquidação, os órgãos próprios da AT impulsionarão essa cobrança a que o contribuinte só se poderá opor invocando situações que sejam alheias ao apuramento do imposto, como se alcança do elenco do artigo 204º do CPPT, muito em especial do seu n.º 1-i.

Concluindo, pode dizer-se que o pagamento de determinada liquidação é irrelevante para uma outra liquidação. Nesta apenas se determina a matéria coletável e aplicando a esta a taxa, computa-se a coleta, a que se farão as deduções à coleta que sejam admitidas. Nos casos de liquidação adicional haverá apenas que determinar as correções a efetuar, de forma a que seguidamente, na subsequente fase da cobrança, a AT atue “cobrando ou anulando as diferenças apuradas” (77º-9 do CIRC vigente em 1996).[11].

A propósito da liquidação adicional cabe ainda dizer que a sua natureza adicional parece resultar sobretudo do resultado que se pretende que tenha, que acresce ao imposto já liquidado e nem tanto da forma como as operações de cálculo são feitas. Como se alcança da generalidade dos modelos utilizados, a AT executa de novo todos os cálculos necessários ao apuramento do imposto e subtrai a este o valor de anteriores liquidações, que não tenham sido anuladas (independentemente do pagamento).

O regime jurídico aplicável à liquidação e vigente em 1996 é afinal consentâneo com o que se acaba de expor. O artigo 71º, no seu n.º 2, regulava que na liquidação deviam ser efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada sem aludir em nenhuma delas a pagamentos de liquidações anteriores:

a) A relativa a dupla tributação económica de lucros distribuídos;

b) A correspondente à dupla tributação internacional;

c) A correspondente à coleta de Contribuição Autárquica;

d) A relativa a benefícios fiscais;

e) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.

Também então se previa a liquidação adicional nos casos de exame à contabilidade do sujeito passivo (artigo 77º-2-b), efetuando-se a necessária correção e subsequentemente cobrança ou anulação das diferenças apuradas (71º-9).

Veja-se agora que factos assentes são relevantes para aplicação do regime exposto.

Foram feitas as seguintes liquidações de IRC da Requerente relativamente ao exercício de 1996:

Facto

 

Total a pagar PTE

Total a pagar EUR

A

Declaração de 28-04-1997

18.998.547

94.764,35

B

Declaração de 02-09-1997

19.790.858

98.716,38

C

Declaração de 19-05-1999

8.781.702

43.802,94

 

Subtotal

47.571.107

237.283,68

I

Liquidação corretiva de 28-04-2000

11.355.052

56.638,76

 

Total

58.926.159

293.922,44

 

Importa determinar se alguma destas declarações foi objeto de anulação.

Em 48 e 54 do R-AT afirma-se que a quantia paga pela Requerente em 1999-05-19 através da guia ... no montante de 8.781.702$00 (correspondente a € 43.802,94), referente a autoliquidação, não foi considerada na liquidação impugnada porque o seu valor foi restituído à Requerente em 2000-06-03. Em sede de apreciação da matéria de facto já se deixou dito que não se considerava provado qual fora o fundamento desta restituição. De todo o modo restituir um valor pago não significa anular um ato de liquidação; a restituição pode ser uma consequência dessa anulação mas não constitui em si a revogação do ato praticado. Aliás essa anulação não foi sequer invocada.

E se a AT não cobrou oportunamente a liquidação em causa pelos meios ao seu alcance, essa omissão não pode ser imputada à Requerente. O pressuposto do sistema é que as liquidações sejam autonomamente cobradas, não sendo legítimo ao contribuinte discutir nessa fase a legalidade da liquidação.

Há assim que considerar que em momento anterior à liquidação adicional de 28-04-2000 foram feitas pela Requerente liquidações cujo total a pagar ascende a 47.571.107$00, valor que era suscetível de cobrança na totalidade. Era este o valor que a AT deveria subtrair na rúbrica “montante de liquidações anteriores” e não apenas 38.789.405$00. Procedendo da forma em que o fez cometeu erro sobre os pressupostos de facto, que constitui ilegalidade que vicia o ato nos termos do artigo 99-a) do CPPT. Anula-se em consequência a liquidação impugnada, na medida que resultar da adição ao “montante das liquidações anteriores” indicado na liquidação, do valor de € 43.802,94 (correspondente a 8.781.702$00), resultado da diferença entre 47.571.107$00 e 38.789.405$00.

 

3.2.2.    Outros pedidos

Nos termos da norma do artigo 100º da LGT “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”. Parece claro que assiste ao contribuinte o direito a serem-lhe restituídas as importâncias que tenha pago, relativas a liquidações feridas de ilegalidade, de modo a que o seu património seja reconstituído no quantitativo que tinha no momento antecedente a esse pagamento.

Importa contudo avaliar se este Tribunal Arbitral goza de competência para lhe reconhecer esse direito ou para condenar a AT nesse sentido. Para isso importa ter presente que (i) com o RJAT se pretendeu reforçar a tutela eficaz dos direitos e interesses legalmente protegidos dos sujeitos passivos (preâmbulo do decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro); (ii) o caráter imperativo das decisões arbitrais para a AT tem a extensão dos exatos termos dessas mesmas decisões (24º-1 RJAT); (iii) a obrigação de reconstituição pela AT está subordinada ao próprio âmbito da procedência do pedido (que pode ser total ou parcial) (100º LGT).

O primeiro elemento interpretativo citado impede que se conceba qualquer sistema que obstaculize ou dificulte que a decisão arbitral atinja o seu objetivo, que é a definição do direito no caso concreto. A tutela dos direitos dos sujeitos passivos não se basta com menos, i.e., da decisão devem resultar todas as consequências necessárias para que se obtenha a legalidade. Não se pode conceber que declarada a ilegalidade do ato tributário o sujeito passivo tenha ainda que recorrer a outra instância para ver declarado o seu direito à reconstituição da situação.

Por outro lado, o segundo elemento leva a considerar que sendo as decisões arbitrais imperativas para a AT nos seus exatos termos (24º-1 RJAT), isso significa que estas devem conter todos os elementos necessários a que a AT possa com toda a exatidão, repor a legalidade e para isso é indispensável que decisão contenha os precisos limites e termos em que julga.

O terceiro elemento ilustra afinal esta necessidade de exatidão ou precisão da decisão. Ao afirmar que a obrigação de reconstituição pela AT está subordinada ao próprio âmbito da procedência, a lei (100º LGT) cria um nexo de dependência entre a decisão e a obrigação de reconstituição. A reconstituição é feita na medida em que a pretensão seja julgada procedente. Não há reconstituição sem procedência e a medida da precedência define a medida da reconstituição. A necessidade desta precisão é claríssima nos casos de procedência parcial. Quando ocorra a procedência parcelar como deve comportar-se a AT? A resposta só pode ser uma – nos exatos termos e limites em que foi proferida a decisão, quer seja judicial ou arbitral.

Do exposto resulta que a decisão sobre a reconstituição deve ser tomada pelo tribunal arbitral quando lhe for pedida a apreciação da questão.

Neste processo a Requerente peticiona a restituição do montante de € 9.431,27 (com o contravalor de 1.890.799$87), correspondente a imposto que afirma ter “indevidamente entregue nos cofres do Estado”, acrescido de juros indemnizatórios.

Da matéria provada resulta que a Requerente efetuou os seguintes pagamentos:

Facto

Pagamentos

PTE

EUR

D/a

28-04-1997

    18.998.547,00  

           94.764,35  

D/b

01-09-1997

    19.790.858,00  

           98.716,38  

D/c

19-05-1999

      8.781.702,00  

           43.802,94  

 

Total

    47.571.107,00  

         237.283,68  

 

 

Verifica-se que todos os pagamentos feitos pela Requerente não só não tiveram a finalidade de pagar a liquidação impugnada como se destinaram a satisfazer as liquidações anteriores que ela própria elaborou (vejam-se os factos A, B e C), não se vendo por isso que sejam indevidos. Como antes se disse, enquanto as liquidações não forem anuladas – e nada indica que foram - elas constituem atos executórios da Administração que devem ser cumpridos pelos contribuintes, in casu pela Requerente.

Crê-se que eram devidos face ao direito os pagamentos que a Requerente provou ter feito, nada havendo a restituir-lhe, razão porque se indefere o pedido de restituição e em consequência indefere-se também o pagamento de juros.

 

4.      Decisão

Considerando os elementos de facto e de direito coligidos e expostos, este tribunal arbitral decide:

a) Julgar procedente o pedido de anulação da liquidação adicional de IRC do exercício de 1996, na medida que resultar da adição ao “montante das liquidações anteriores” indicado na liquidação, do valor de € 43.802,94 (correspondente a 8.781.702$00), condenando-se a AT em conformidade.

b) Julgar improcedente o pedido de restituição do montante de € 9.431,27 e de juros indemnizatórios, absolvendo-se a AT deste pedido.

Condenam-se a Requerente e a AT no pagamento das custas em função do decaimento, que se apuram no local próprio.

 

5.      Valor do processo

De harmonia com o disposto no artigo 306º- 2, do CPC, ex-vi 29º-1-e) do RJAT e 97º-A, n.º 1-a) do CPPT ex-vi 3º-2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 56.638,76 €.

 

6.      Custas

Nos termos do artigo 22º-4 do RJAT e Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 2 142,00.

As custas ficam a cargo da parte que a elas tiver dado causa, entendendo-se que lhes dá causa a parte vencida, na parte em que o for (527º-1 e 2 CPC). Nestes autos e considerando a citada regra, a responsabilidade pelas custas é da Requerente na proporção de 17,7% e da AT na proporção de 82,3 %, cabendo à primeira o valor de € 379,49 e à segunda o valor de € 1.762,51.

 

Lisboa, 13 de junho de 2016

 

O árbitro,

 

 

(Nuno Maldonado Sousa)

 



[1] Nesta peça são utilizados os seguintes acrónimos, siglas e abreviaturas, com o significado indicado:

- AT: Autoridade Tributária e Aduaneira

- CC: Código Civil;

- CPC: Código de Processo Civil

- CPPT: Código do Procedimento e do Processo Tributário

- DL: Decreto-Lei

- LGT: Lei Geral Tributária

- NIF: Número de identificação fiscal

- R-AT: Resposta da AT

- RI: Requerimento inicial da Requerente

- RJAT: Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária instituído pelo DL n.º 10/2011 de 20 de janeiro

[2] Nesta peça são referidos valores em euros, assinalados com o símbolo “€” precedendo os algarismos e em escudos, assinalados com o símbolo “$”, como divisor centesimal.

[3] A que corresponde o contravalor em escudos de 1.890.799$87.

[4] Veja-se JORGE LOPES DE SOUSA - Código de Procedimento e de Processo Tributário: anotado e comentado. Vol. II. 6ª ed., Lisboa: Áreas Editora, 2011, pp. 109-111.

[5] Cfr. neste sentido o Ac. do STA de 02-12-2015, proc. 01364/14 [ANA PAULA LOBO], em www.dgsi.pt.

[6] Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, obra e local citados.

[7] Cfr. o Ac. do STA de 02-12-2015, citado.

[8] Cfr. JOSÉ CASALTA NABAIS - Direito Fiscal. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, p. 39.

[9] Cfr. JOSÉ CASALTA NABAIS, op. cit., p. 310.

[10] Cfr. JOSÉ CASALTA NABAIS - Direito Fiscal. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, p. 39.

[11] Na sua redação atual; o nº 12 do artigo 90.º foi renumerado pelo artigo 2.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que procede à reforma da tributação das sociedades, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas. Era anteriormente o artigo 83º-10 e o artigo 99º era então o 91º, na versão que resultou do Decreto-Lei 198/2001, de 3 de Julho. Na versão que vigorou até 2001 os artigos em causa eram o 71º e o 77º.