Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 744/2015-T
Data da decisão: 2016-05-03  IRC  
Valor do pedido: € 13.901,43
Tema: IRC – Tributação Autónoma
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Decisão Arbitral

 

 

I.                   RELATÓRIO

 

A..., LDA, pessoa colectiva n.º ..., com sede no..., n.º ..., em Lisboa, com o capital social de €100.000,00, apresentou um pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT OU Requerida), com o objectivo de obter a declaração de ilegalidade do acto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada e, consequentemente do acto de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2012, no valor de €13.901,43.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD em 22 de Dezembro de 2015 e automaticamente notificado à AT.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 22 de Fevereiro de 2016.

 

A AT respondeu, defendendo a improcedência do pedido.

 

Foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em face do teor da matéria contida nos autos.

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão representadas (artigo 4.º, e n.º 2 do artigo 10 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

Não ocorrem quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento imediato do mérito da causa.

 

II.                MATÉRIA DE FACTO

 

Com base nos elementos que constam do processo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

A.    A Requerente entregou no dia 17 de Maio de 2013 a declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2012, tendo apurado um montante de tributações autónomas em IRC de €13.901,43 (Documento n.º 1);

 

B.     A Requerente procedeu ao pagamento do IRC apurado na referida declaração referente ao exercício de 2012 (Documento n.º 3);

 

C.    Ao imposto resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma em IRC, não pôde a Requerente inscrever o valor relativo às referidas taxas de tributação autónoma em IRC, por impedimento do sistema informático da AT;

 

D.    O sistema informático da AT não permitiu à Requerente deduzir, dentro das forças da colecta de IRC resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma, os montantes de pagamentos especiais por conta acumulados;

 

E.     Em consequência, a Requerente apurou um crédito de imposto pago por referência ao exercício fiscal de 2012, a título de pagamentos especiais por conta (PEC), no montante de €27.848,08 (Documentos n.º 4 e 5);

 

F.     A Requerente efectuou PEC em montante superior à colecta das tributações autónomas em IRC do exercício de 2012, que ascendeu a €13.901,43.

 

G.    A 15 de Maio de 2015 foi apresentada reclamação graciosa do acto de autoliquidação já identificado;

 

H.    A AT não se pronunciou sobre a reclamação graciosa até à data da apresentação da presente petição arbitral.

 

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.             MATÉRIA DE DIREITO

 

A principal questão que se coloca nos presentes autos reconduz-se a saber se os valores pagos a título de pagamento especial por conta pela Requerente podem ser deduzidos à colecta produzida pelas taxas de tributação autónoma, em sede de IRC.

 

A este propósito, a Requerente alega no seu pedido de pronúncia arbitral o seguinte:

 

1.      A colecta do IRC prevista no artigo 90.º, n.º 1, e n.º 2, alínea c), do CIRC, na redacção em vigor em 2013, abrange também a colecta das tributações autónomas em IRC;

2.      Sendo entendido que a tributação autónoma é IRC, é indiferente se a norma de benefício se refere ao que se apura em aplicação do artigo 90.º do CIRC (como é o caso do SIFIDE), ou directamente ao IRC, como é o caso do PEC.

3.      A jurisprudência arbitral tem defendido que as tributações autónomas respeitantes, pelo menos, a encargos com viaturas, ajudas de custo e despesas de representação causa são um substituto (ou complemento) da indedutibilidade dos custos em IRC, donde a natureza de IRC da colecta produzida por estas tributações autónomas.

4.      Pela mesmíssima razão, pede este contribuinte que, coerentemente, se conclua que a colecta de IRC constituída por estas tributações autónomas esteja disponível, a par da restante colecta do IRC, na operação das deduções à colecta previstas no artigo 90.º do CIRC, entre as quais se encontra a dedução do PEC.

5.      Quer na matriz decisória gerada no processo n.º 59/2014-T, quer nas matrizes decisórias (seguidas em muitas outras decisões) geradas nos processos n.ºs 80/2014-T e 187/2013-T, o que ressalta é isto:

 

a) as tributações autónomas relativas a encargos com viaturas, despesas de representação e ajudas de custo, são IRC (e nos processos n.ºs 6/2014-T e 80/2014-T integrou-se na mesma qualificação a tributação autónoma sobre bónus de gestores, que aí também estava em causa, o mesmo tendo ocorrido noutros processos com respeito também a esta tributação, e bem assim à tributação autónoma sobre indemnizações a gestores por cessação de funções, de que são exemplo os processos n.ºs 659/2014-T e 697/2014-T);

b) tributam ainda o rendimento, por serem um substituto da medida alternativa de aumentar o rendimento tributável via indedutibilidade da despesa ou encargo sobre que incide a tributação autónoma (cfr. em especial processos n.ºs 80/2014-T e 187/2013-T);

c) por serem IRC, deve-se-lhes aplicar a norma dirigida à colecta (imposto apurado) do IRC constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC;

d) extraindo uma regra mais geral, como faz a decisão proferida no processo n.º 59/2014-T, “as tributações autónomas de que são sujeitos passivos pessoas colectivas são consideradas IRC, pelo que lhes serão aplicáveis as normas do CIRC que não contendam com a sua especial forma de incidência e taxas aplicáveis”.

 

6.      Se as tributações autónomas não fossem (afinal) IRC para efeitos do artigo 90.º do CIRC, como tem vindo a pretender a AT noutros processos relativos a deduções à colecta (que já não a AT alheia a esses processos, que tem de administrar anualmente a liquidação das TA – cfr. Doc. n.º 11), com base então em que norma é feita e tem sido feita a liquidação das tributações autónomas?

 

7.      Pelo que se a AT entende que naquele artigo 90.º do CIRC não está incluída a colecta de IRC resultante das tributações autónomas (apurada nos termos do artigo 88.º), mas apenas a colecta de IRC resultante do lucro tributável (apurada nos termos do artigo 87.º), sempre teria que se concluir na mesma que, afinal, a liquidação da própria tributação autónoma é, em si mesma, ilegal, por força quer do artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da Lei Geral Tributária, quer do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa: “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva termos da lei ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos .

8.      Num cenário em que, apesar de todos os argumentos expostos acima, se entenda não ser possível efectuar a dedução dos benefícios fiscais e dos pagamentos especiais por conta disponíveis para utilização aos montantes devidos a título de tributações autónomas, argumentando-se que, apesar de na sua essência as tributações autónomas serem IRC, a sua liquidação não tem enquadramento na norma de liquidação do IRC consagrada no artigo 90.º do Código do IRC (o que apenas como mera hipótese teórica se concebe), então a requerente solicita, a título subsidiário, que seja anulada a autoliquidação do período de tributação de 2012, na parcela correspondente às tributações autónomas, pelo facto de as mesmas terem sido liquidadas e cobradas sem base legal para o efeito.

9.      As razões que levaram a Direcção de Serviços do IRC a afastar a possibilidade de dedução do crédito de imposto por DTI à colecta das tributações autónomas não são extensíveis às restantes realidades, designadamente aos créditos decorrentes do SIFIDE ou do CFEI, que, aliás, curiosamente, e à semelhança das tributações autónomas, resulta da aplicação de uma percentagem a certas despesas (de investimento), ou ao PEC.

10.  A Requerente pagou imposto em montante superior ao legalmente devido (cfr. Docs. n.ºs 1 e 3), pelo que, declarada a ilegalidade das (auto)liquidações na parte aqui peticionada, a Requerente tem direito não só ao respectivo reembolso, mas, também, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), a juros indemnizatórios.

11.  Com a Lei do Orçamento do Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, doravante LOE 2016), o Parlamento interveio nesta matéria a pedido da AT, e reiterou que o artigo 89.º do CIRC se aplicava também à liquidação das tributações autónomas (parte 1 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC). Inexplicavelmente, não reiterou expressamente que o artigo 90.º do CIRC também se aplica à liquidação das tributações autónomas, o que, atendendo desde logo ao teor do seu n.º 1, que concretiza o que tinha sido anunciado no precedente artigo 89.º, não se entende.

12.  O legislador em sede de LOE 2016 optou por afastar a aplicação de parte do disposto no artigo 90.º do CIRC para a colecta do IRC, à colecta da tributação autónoma em IRC (parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC), tendo atribuído carácter interpretativo àquela norma;

13.  Como se expressa o Assento do STJ n.º 2/82, de 18 de Junho, “[s]e a norma, além de incerta, é já controvertida, então a lei nova só pode qualificar-se de interpretativa se resolve o problema dentro dos parâmetros da controvérsia a tal respeito gerada, perfilhando uma forte corrente jurisprudencial anterior.”;

14.  Recorda-se que com respeito especificamente ao tema das deduções à colecta temos 4 acórdãos arbitrais, envolvendo 8 árbitros distintos, que por unanimidade (e em dois dos processos houve escolha de árbitros pelas partes: 369/2015-T e 370/2015-T) confirmaram, coerentemente com a jurisprudência anterior, a aplicabilidade (por não excluída por lei, antes prevista sem excepções para o IRC) das deduções à colecta em IRC à colecta em IRC da tributação autónoma: acórdãos proferidos nos processos n.ºs 769/2014-T, 219/2015-T, 369/2015-T e 370/2015-T;

15.  Como se afirma no acórdão do STJ uniformizador de jurisprudência, proferido no processo n.º 075143, de 2 de Março de 1994, citando Baptista Machado, “[p]ara tanto, é de ter presente a noção que de lei interpretativa nos deu Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 247: Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou, pelo menos, incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação ou aplicação da lei.

16.  O n.º 21 é por inteiro um novo preceito, que inexistia previamente à LOE 2016.

17.  Donde que, tendo em conta este contexto de imprecisão da norma (artigo 135.º da LOE 2016), a que se soma quer a directriz legal de que se deve presumir que o legislador adoptou as soluções mais acertadas, quer a directriz da interpretação mais conforme à constituição, seja de entender que quando atribuiu carácter interpretativo “à redacção dada pela presente lei ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC” o artigo 135.º da LOE 2016 quer referir-se à parte 1, e não à parte 2, do referido n.º 21.

18.  Como ressalva J. Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, reimpressão, Outubro de 2012 na p 245, na nota de rodapé n.º 1, cita este Autor o acórdão do Pleno do STA de 21.01.1981, onde se afirma o seguinte: “"A qualificação, como lei interpretativa, feita pelo legislador, de uma disposição que não pode considerar-se como norma interpretativa por natureza, por representar solução que não corresponde a um dos sentidos possíveis da norma anterior, equivale a uma mera cláusula de retroactividade”.—"É inadmissível a aplicação, como norma interpretativa, de disposição que, apesar de como tal qualificada pelo legislador, constitui afinal norma inovadora, nos termos referidos no número antecedente, nos casos em que o ordenamento jurídico-constitucional não permitiria a simples e directa aplicação retroactiva da disposição de carácter inovador".

19.  O regime de aplicação de leis no tempo previsto no Código Civil (onde se inclui por direito próprio o seu artigo 13.º), não se aplica no que respeita a matérias que disponham de um regime privativo para o efeito, em obediência a princípios distintos, como é o caso (actualmente) dos impostos: cfr. artigo 12.º da LGT e artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

20.  No caso concreto em análise julga-se haver mais até do que dúvida razoável de que a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC possa ter-se como uma norma que interpreta (ou reitera) uma outra norma, e que o faz dentro dos limites possíveis da interpretação (entre os quais o textual da norma pré-existente), por mais do que uma razão, acima devidamente expostas.

21.  Mas mesmo que não houvesse certeza a este propósito, atento o papel garantístico, com dignidade constitucional, da proibição de retroactividade da lei fiscal, a dúvida razoável é suficiente: no mínimo, transfere o ónus (se é que não esteve lá sempre, atentas as regras gerais do ónus da prova) para quem clama pela natureza interpretativa de uma lei e com isso pretenda aplicá-la retroactivamente, de mostrar (anulando a dúvida razoável) que é essa realmente a sua natureza.

22.  E mais ainda: mesmo que lograsse essa demonstração de se estar perante uma lei (a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC) interpretativa autêntica (por oposição a lei interpretativa só de nome), ainda assim a eventual pretensão de atribuição de carácter retroactivo a esta norma não se coadunaria com a proibição constitucional de retroactividade da lei fiscal.

23.  Como se expressou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/00, no primeiro caso (julga-se) de aplicação do novo parâmetro constitucional saído da revisão de 1997 (o parâmetro da proibição de retroactividade da lei fiscal, constante do n.º 3 do artigo 103.º da Constituição), do princípio constitucional de proibição de retroactividade dos impostos deduz-se também a proibição de leis interpretativas, sejam ou não “autênticas” leis “interpretativas”.

24.  Vejamos, porque se julga valer a pena, o discurso legitimador do entendimento vertido neste acórdão:

 

(…) se é verdade que as leis autenticamente interpretativas, não abalam, verdadeiramente, as expectativas concretas anteriores dos destinatários das mesmas, no caso de a interpretação tornada vinculativa já ser conhecida e tiver sido mesmo aplicada (…), todavia, mesmo nesses casos, a vinculação interpretativa que tais leis comportam, ao tornar-se critério jurídico exclusivo da aplicação do texto anterior da lei, modifica a relação do Estado, emitente de normas, com os seus destinatários. A exclusão pela lei interpretativa de outras interpretações propugnadas e já aplicadas noutros casos (…) leva a que o Estado possa a posteriori impedir que o Direito que criou funcione através da sua lógica intrínseca comunicável aos destinatários das normas, permitindo que interfira na interpretação jurídica um poder imperativo e imediato que altera o quadro dos elementos relevantes da interpretação jurídica.

Nesta medida, poder-se-á entender que a lei interpretativa, ainda que autêntica, ao pretender vigorar para o período anterior à sua emissão, nos termos do artigo 13º do Código Civil, altera o contexto de auto-vinculação dos órgãos de aplicação do Direito ao Direito e, consequentemente, afecta a segurança dos destinatários das normas protegida por uma proibição (constitucional) de retroactividade. Haverá, consequentemente, nesta última situação, uma garantia de segurança mais forte inerente à proibição de retroactividade.

Ora, a proibição constitucional explícita de retroactividade em matéria fiscal não pode ser interpretada de modo que exclua o sentido forte anteriormente referido de protecção da segurança, ou seja restritivamente em termos semelhantes à jurisprudência anterior do Tribunal, como se não tivesse sido alterado o texto constitucional e apenas resultasse dos princípios gerais. Na expressa proibição de retroactividade não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito.” (cfr. pp 9 e 10 da versão PDF, publicada no site do Tribunal Constitucional).

25.  Mais tarde, no seu Manual de Direito Fiscal, o mesmo Autor reiterava esta mesma conclusão nos seguintes termos: Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora 2007, p 193 e ss, em especial 196: “(...) parece indiscutível que doravante, depois da última revisão constitucional [de 1997], as normas ditas interpretativas ou materialmente interpretativas publicadas em matéria fiscal não serão aceites por vigorar o princípio da proibição da lei fiscal retroactiva.”.

26.  Concluindo, caso se entenda (i) que o artigo 135.º da LOE 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março) atribuiu natureza interpretativa também à parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, isto é, também ao segmento normativo “não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global [de tributação autónoma em IRC] apurado”, introduzido pela mesma LOE 2016 (pelo seu artigo 133.º), (ii) e que daí resultaria a aplicação do artigo 13.º do Código Civil enquanto prescreve a aplicação retroactiva das leis interpretativas, se esteja então perante uma inconstitucionalidade material do referido artigo 135.º da LOE 2016, por violação da proibição de retroactividade em matéria de impostos prevista no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição, quer se tenha concluído, quer não (e entende-se que não), estar-se perante uma lei materialmente interpretativa.

 

Por sua vez a AT alega, em síntese, o seguinte:

 

1.      Tanto a jurisprudência como a doutrina já abordaram, abundantemente, a caracterização da figura “tributações autónomas” em IRC (e em IRS) e a evolução legislativa verificada desde a sua criação, pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 09.06, até à actualidade;

2.      As considerações tecidas a este respeito revelam que a figura das tributações autónomas tem sido instrumentalizada para a prossecução de objectivos diversos, que abarcam desde o originário propósito de evitar práticas de evasão e de fraude –, através de despesas confidenciais ou não documentadas, ou de pagamentos a entidades localizadas em jurisdições com regimes fiscais privilegiados, à substituição da tributação das vantagens acessórias sob a forma de despesas de representação ou de atribuição de viaturas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, na esfera dos respectivos beneficiários ­–, até à finalidade de prevenir o fenómeno designado por “lavagem de dividendos” (cfr. n.º 11 do art.º 88.º Código do IRC) ou de onerar, por via fiscal, o pagamento de rendimentos considerados excessivos (cfr . n.º 13 do mesmo preceito).

3.      Na linha da caracterização das tributações autónomas efectuada na Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo n.º 80/2014-T – e na expressão feliz aí utilizada de que “as tributações autónomas não são mais do que mecanismos coadjuvantes do eixo central do IRC, que é o de tributar lucros (…)”.

4.      E conforme é ainda explicado na mesma Decisão Arbitral, “a inclusão das tributações autónomas no respectivo código (…) tem como corolário lógico a aplicação das normas gerais próprias deste imposto que não contendam com a sua especial forma de incidência”.

5.      Reconhece-se, assim, que o caracter autónomo destas tributações, decorrente da especial configuração dada aos aspectos material e temporal dos factos geradores, impõe, em determinados domínios, o afastamento ou uma adaptação das regras gerais de aplicação do IRC;

6.      Na realidade, a integração das tributações autónomas, no Código do IRC (e do IRS), conferiu uma natureza dualista, em determinados aspectos, ao sistema normativo deste imposto, que se corporizou, nomeadamente, no quadro da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do Código do IRC, em apuramentos separados das respectivas colectas, por força de obedecerem a regras diferentes.

7.      E isso, pois, num caso, trata-se da aplicação da(s) taxa(s) do artigo 87.º do Código do IRC à matéria colectável determinada segundo as regras contidas no capítulo III do Código e, noutro caso, trata-se da aplicação das taxas aos valores das matérias colectáveis relativas às diferentes realidades contempladas no artigo 88.º do CIRC.

8.      Ou seja, ao contrário do que é afirmado no ponto 9 da declaração de voto de vencido anexa à Decisão Arbitral proferida no processo n.º 697/2014-T, não há uma liquidação única de IRC, mas, antes dois apuramentos;

9.      Isto é, dois cálculos distintos que, embora processados, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º do mesmo código, são efectuados com base em parâmetros diferentes, pois cada uma se materializa na aplicação das suas próprias taxas, previstas nos artigos 87.º ou no 88.º do CIRC, às respectivas matérias colectáveis determinadas igualmente de acordo com regras próprias.

10.  Impõe-se que seja feito um exercício interpretativo em ordem a determinar se o regime das deduções da colecta do IRC, enquanto parte integrante do sistema-regra deste imposto e pré-existente à incorporação no respectivo das tributações autónomas, também se projecta nas (múltiplas) colectas destas tributações;

11.  Ou seja, importa determinar se as deduções previstas no n.º 2 do art.º 90.º do Código do IRC estão compreendidas nas áreas de conflito que resultam da aplicação do regime geral do IRC à disciplina das “tributações autónomas;

12.  Afirma-se, assim, na decisão arbitral proferida no processo n.º 113/2015-T que sendo astributações autónomas” [são] de todo alheias à prossecução do objectivo conceptual do CIRC, é forçoso concluir que haverá situações em que as regras gerais não serão idóneas para regular a situação, por prosseguirem fim diverso. É justamente nestas situações em que as normas preexistentes do CIRC contribuam para a determinação do rendimento real, que se verificará a sua inadequação para regerem as “tributações autónomas”. Nestes casos de dissonância haverá os tais conflitos que importa dirimir.

13.  De acordo com esta tese interpretativa, sempre que se detecte incompatibilidade entre os objectivos inerentes à estrutura geral do IRC e os objectivos que presidem às tributações autónomas, à partida, as regras gerais que integram a disciplina deste imposto não lhe são aplicáveis;

14.  Donde resulta como evidente que a integração das tributações autónomas, no Código do IRC (e do IRS), conferiu uma natureza dualista, em determinados aspectos, ao sistema normativo deste imposto, que se corporizou, nomeadamente, no quadro da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, em apuramentos separados das respectivas colectas, por força de obedecerem a regras diferentes, pois, num caso, trata-se da aplicação da(s) taxa(s) do art.º 87.º do CIRC à matéria colectável determinada segundo as regras contidas no capítulo III do Código, i. e., tendo como base o lucro e, noutro caso, trata-se da aplicação das taxas aos valores das matérias colectáveis relativas às diferentes realidades contempladas no art.º 88.º do CIRC;

15.  Convém clarificar que a liquidação das tributações autónomas é efectuada com base nos artigos 89.º e 90.º n.º 1 do Código do IRC mas, aplicando regras diferentes para o cálculo do imposto: (1) num caso a liquidação opera, mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria colectável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código e (2) no outro caso, são apuradas diversas colectas consoante a diversidade dos factos que originam a tributação autónoma.

16.  Donde resulta que o montante apurado nos termos do alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º não tem um carácter unitário, já que comporta valores calculados segundo regras diferentes, a que estão associadas finalidades também diferenciadas, pelo que as deduções previstas nas alíneas do n.º 2 só podem ser efectuadas à parte do colecta do IRC com a qual exista uma correspondência directa, por forma a ser mantida a coerência da estrutura conceptual do regime- regra do imposto.

17.  Para a base de cálculo dos pagamentos por conta apenas é considerada o IRC apurado com base na matéria colectável determinada segundo as regras do capítulo III e as taxas do art.º 87.º do respectivo Código.

18.  De salientar que a coerência e adequação deste entendimento alicerça-se na própria natureza dos pagamentos por conta do imposto devido a final, os quais, de acordo com a definição do artigo 33.º da LGT são “as entregas pecuniárias antecipadas que sejam efectuadas pelos sujeitos passivos no período de formação do facto tributário”, constituindo uma “(…) forma de aproximação do momento da cobrança ao do da percepção do rendimento de modo a colmatar as situações em que essa aproximação não pode efectivar-se através das retenções na fonte.”.

19.  Portanto, em boa lógica, só faz sentido concluir que a respectiva base de cálculo corresponda ao montante da colecta do IRC resultante da matéria colectável que se identifica com o lucro/rendimento do exercício do sujeito passivo.

20.  Relativamente aos créditos de imposto destinados a eliminar a dupla tributação internacional (jurídica e económica) os próprios normativos (artigos 91.º e 91.º-A do CIRC), que regulam o seu modo de cálculo, especificam que os rendimentos em causa devem ter sido incluídos na matéria colectável, grandeza que, por razões óbvias, só pode ser a determinada com base no lucro (capítulo III do Código) que constitui o núcleo central do IRC.

21.  Também, para as deduções à colecta a título de benefícios fiscais, o montante ao qual são efectuadas só pode respeitar ao imposto liquidado com base na matéria colectável, determinada com base nas regras do capítulo III e das taxas previstas no artigo 87.º do CIRC.

22.  A natureza jurídica do PEC, revelada pela sua configuração como “instrumento ou garantia de pagamento do tributo por conta do qual é exigido, e não como imposição a se” (cfr. Acórdão do TC supra citado), bem como pela função que lhe está associada no combate à evasão e fraude fiscais, liga indissociavelmente este pagamento ao montante do IRC apurado sobre a matéria colectável determinada com base no lucro (capítulo III do Código).

23.  Em suma, a interpretação do n.º 2 do art.º 90.º em coerência com a natureza e conteúdo das deduções previstas nas suas alíneas, entre as quais figura o PEC, deve ser feita à luz dos objectivos gerais do IRC que se reconduzem, na sua essência, à tributação do rendimento das pessoas colectivas, determinado em conformidade com as regras do capítulo III do respectivo código;

24.  Sendo, por isso, manifestamente destituída de qualquer base a pretensão da ora Requerente de dedução do montante suportado em sede de pagamento especial por conta à colecta produzida pelas tributações autónomas nos anos de 2012 e 2013;

25.  O Orçamento de Estado para 2016 aditou o número 21 ao artigo 88.º do Código do IRC, atribuindo ao mesmo com carácter interpretativo, onde: “A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”

26.  Percorrendo todo o itinerário percorrido pela Requerida e as conclusões que daí se retiram (ao contrário do que pretende a Requerente demonstrar) é notório que o raciocínio evidenciado e pré existente à aprovação da norma, refuta integralmente os argumentos da Requerente no que à questão de fundo dos autos se refere.

27.  Com efeito, a lei ao atribuir carácter interpretativo, não se afasta das soluções que já antes se viam firmadas quer pela Lei, quer pela prática jurídico-tributária, antes sim, interpreta e esclarece a aplicação prática dos dispositivos ora controvertidos, revelando uma solução não inovatória, de forma a que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.

 

Face ao exposto, relativamente à posição das Partes e aos argumentos apresentados, para determinar se o acto tributário sub judice é ou não ilegal será necessário verificar qual é a interpretação que deve ser efectuada à norma constante do artigo 90.º, n.º 2 d) do Código do IRC.

 

Vejamos o que deve ser entendido.

 

A – DA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 90.º, N.º 1 E 2 D) DO CÓDIGO DO IRC

Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.

 

Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:

 

 

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

 
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.


3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

Assim, tendo em conta os referidos princípios, importa atender ao disposto no artigo 90.º, do Código do IRC, que estabelece o seguinte:

 

Artigo 90.º

Procedimento e forma de liquidação

 

1 — A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:


a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria colectável que delas conste; 

 

b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efectuada até 30 de Novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada; 

 

c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.

 

2 — Ao montante apurado nos termos do número anterior são efectuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:

 

a)      A correspondente à dupla tributação jurídica internacional;

b)      A correspondente à dupla tributação económica internacional; 

c)      A relativa a benefícios fiscais;

d)      A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º; 

e)      A relativa a retenções na fonte não susceptíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável. 

3 — (Revogado).


4 — Ao montante apurado nos termos do n.º 1, relativamente às entidades mencionadas no n.º 4 do artigo 120.º, apenas é de efectuar a dedução relativa às retenções na fonte quando estas tenham a natureza de imposto por conta do IRC.

 

5 — As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respectivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria colectável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo. 


6 — Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as deduções referidas no n.º 2 relativas a cada uma das sociedades são efectuadas no montante apurado relativamente ao grupo, nos termos do n.º 1. 

 

7 — (Revogado pela Lei n.º 82-C/2014, de 31 de dezembro)


8 — Relativamente aos sujeitos passivos abrangidos pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável, ao montante apurado nos termos do n.º 1 apenas são de efetuar as deduções previstas nas alíneas a) e e) do n.º 2.


9 — Das deduções efetuadas nos termos das alíneas a) a d) do n.º 2 não pode resultar valor negativo.


10 — Ao montante apurado nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 apenas são feitas as deduções de que a administração fiscal tenha conhecimento e que possam ser efectuadas nos termos dos nºs 2 a 4.  


11 — Nos casos em que seja aplicável o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 79.º, são efectuadas anualmente liquidações com base na matéria colectável determinada com carácter provisório, devendo, face à liquidação correspondente à matéria colectável respeitante a todo o período de liquidação, cobrar-se ou anular-se a diferença apurada. 

 

12 — A liquidação prevista no n.º 1 pode ser corrigida, se for caso disso, dentro do prazo a que se refere o artigo 101.º, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas.


Assim, atendendo ao elemento literal da norma constante do artigo 90.º, n.º 2 d) do Código do IRC, entende-se que ao montante da colecta de IRC apurado, é dedutível o pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º daquele Código.


De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 15.º do Código do IRC, a matéria colectável obtém-se pela dedução ao lucro tributável dos montantes correspondentes a prejuízos fiscais e eventuais benefícios fiscais.

O lucro tributável das entidades que exerçam a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, é, por sua vez, nos termos do artigo 17.º do Código do IRC quantificado partindo do resultado líquido do exercício apurado nos termos da normalização contabilística, adicionado das variações patrimoniais positivas e deduzido das variações patrimoniais negativas, não refletidas naquele resultado, sendo adicionados e deduzidos os ajustamentos previstos no Código.

A matéria coletável é apurada, partindo do lucro tributável, ao qual são deduzidos determinados benefícios fiscais, bem como os prejuízos fiscais passíveis de dedução.

O IRC devido é genericamente calculado sobre a matéria coletável apurada, por aplicação àquela da taxa de IRC (Coleta).

No apuramento do lucro tributável incluem-se as despesas, gastos e encargos previstos no artigo 88.º do Código do IRC.

Não obstante, as despesas, gastos e encargos previstos no artigo 88.º do Código do IRC são objecto de tributação autónoma.

Essas taxas de tributação autónoma constituem IRC, tal como as taxas gerais, as taxas liberatórias ou as taxas especiais de IRS constituem IRS.[1]

Tendo em conta que a colecta de IRC inclui as despesas, gastos e encargos objecto de tributação autónoma[2], então, atento o disposto no n.º 2 d) do artigo 90.º da Código do IRC, o PEC deve ser deduzido à colecta de IRC apurada, que abrange as taxas de tributação autónoma devidas.

De facto, a liquidação do IRC (e das taxas de tributação autónoma) regula-se pelo disposto no artigo 90.º, n.º 1 a) do Código do IRC, segundo o qual Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, (…) a liquidação de IRC tem por base a matéria colectável que delas conste.

Na falta de qualquer norma que preveja forma diferente de liquidação aplicável às taxas de tributação autónoma, a sua liquidação só pode realizar-se nos termos referidos.

Na verdade, não conseguimos identificar no Código do IRC qualquer norma especial aplicável à liquidação das tributações autónomas, que nos permita concluir pela inaplicabilidade da norma geral estabelecida no artigo 90.º do Código do IRC.[3]

Tal como afirma a própria AT em 38.º da sua douta resposta, “a liquidação das tributações autónomas é efectuada com base nos artigos 89.º e 90.º, n.º 1 do Código do IRC mas, aplicando regras diferentes para o cálculo o imposto.”

De facto, a liquidação das tributações autónomas tem a mesma base legal que a liquidação de IRC, sendo, no entanto, a matéria colectável e as taxas de tributação aplicáveis diversas.

Em consequência, e tendo em conta uma interpretação literal das normas envolvidas, apenas é possível concluir que prevendo-se na alínea d) do n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC que Ao montante apurado nos termos do número anterior são efectuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada: (…) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º; do ponto vista literal, o PEC deve ser deduzido à colecta (de IRC, incluindo as tributações autónomas).[4]

 

Vejamos se a interpretação teológica e sistemática da norma sub judice altera a conclusão encontrada.

 

O artigo 90.º do CIRC refere-se às formas de liquidação do IRC, pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária, aplicando-se ao apuramento do imposto devido em todas as situações prevista no Código, incluindo a liquidação adicional (n.º 10).[5]

Por isso, ele aplica-se também à liquidação do montante das tributações autónomas, que é apurado pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária nos termos do artigo 90.º do CIRC, não havendo qualquer outra disposição que preveja termos diferentes para a sua liquidação. A sua autonomia restringe-se às taxas aplicáveis e à respectiva matéria tributável, mas o apuramento do seu montante é efectuado nos termos do artigo 90.º.

 

Tal como já foi longamente explicitado pela Jurisprudência[6], o propósito subjacente à criação das taxas de tributação autónoma é o combate à evasão fiscal, visando-se com a sua criação obviar à transferência para a esfera das empresas de despesas que têm subjacentes intuito remuneratório, de modo a melhorar o enquadramento fiscal dos rendimentos da esfera pessoal, ou a obviar a que sejam contabilizados custos que não têm uma causa empresarial.[7]

Esse objectivo é prosseguido através da tributação autónoma, não sendo desvirtuado pelo facto desse imposto puder ser satisfeito pelo imposto cobrado através do PEC.

Acresce que, mesmo que assim não se entendesse, na ausência de norma especial relativamente à forma de liquidação das taxas de tributação autónoma, não se vê de que modo se possa entender existir um conflito de normas e daí retirar como consequência a impossibilidade de dedução do PEC à colecta, aí incluindo as tributações autónomas.[8]

Na verdade, na ausência de norma especial relativamente à forma de liquidação das taxas de tributação autónoma, esta deverá processar-se nos termos gerais previstos no Código do IRC, por força do princípio da legalidade tributária, que resulta do disposto no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 8.º da Lei Geral Tributária, que impedem que a liquidação de imposto se efectue sem base legal.

Conclui-se, assim, que, contrariamente ao defendido, nesta situação, pela AT, a norma prevista no artigo 90.º, n.º 1 e 2 d) do Código do IRC, deve ser interpretada no sentido de se considerar que a colecta de IRC abrange as taxas de tributação autónoma, que são também IRC.

 

B – DO NOVO ARTIGO 88.º, N.º 21 do CÓDIGO DO IRC

 

A Lei do Orçamento do Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, doravante Lei do OE), introduziu ao artigo 88.º do Código do IRC o n.º 21, segundo o qual:

21 -    A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”.

 

Atenta a nova redacção dada ao artigo 88.º, n.º 21 do Código do IRC, verifica-se que o legislador veio, então, considerar que a liquidação das tributações autónomas em sede de IRC deve ser efectuada nos termos gerais, mas que não podem ser efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.

Deste modo, parece poder concluir-se que, à luz da nova redacção do artigo 88.º do Código do IRC, o PEC previsto no artigo 90.º, n.º 2 d) do Código do IRC não pode ser deduzido à colecta das tributações autónomas.

De acordo com o disposto no artigo 135.º da Lei do OE:

A redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos n.ºs 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa.

Alega, contudo, a Requerente que apenas a 1.º parte da norma - A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores tem natureza interpretativa, enquanto que a 2.º parte da norma - não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado – não pode ser entendida como interpretativa.

Sobre o que se deverá entender por normas interpretativas dispõe o artigo 13.º do Código Civil (CC), o seguinte:

1- A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza.

2 – A desistência e a confissão não homologadas pelo tribunal podem ser revogadas pelo desistente ou confitente a quem a lei interpretativa for favorável.

Em anotação ao artigo acima transcrito esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela[9], que “Deve considerar-se lei interpretativa aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado (cfr. Batista Machado, ob. Cit., págs. 286 e segs.).

Conforme decidido no Assento do STJ n.º 2/82, de 18 de Junho, “[s]e a norma, além de incerta, é já controvertida, então a lei nova só pode qualificar-se de interpretativa se resolve o problema dentro dos parâmetros da controvérsia a tal respeito gerada, perfilhando uma forte corrente jurisprudencial anterior.

 

Ora, no caso sub judice, a matéria interpretada pelo n.º 21 do artigo 88.º do Código que esclarece que A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores parece ter verdadeira natureza interpretativa, conquanto tal entendimento, para além de resultar da Lei, como se defende nesta decisão, tem um carácter genericamente consensual pelos aplicadores daquela.

Contudo, a matéria interpretada pelo n.º 21 do artigo 88.º do Código que pretende esclarecer que não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado, não parece ser uma verdadeira norma interpretativa, uma vez que não existe um entendimento constante e pacífico sobre essa discussão.[10]

Ademais, a existir um certo entendimento sobre a questão “interpretada” poder-se-á dizer que tal seria no sentido contrário.[11]

Razão pela qual se considera que não é possível concluir que “se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tornou praticamente certo o sentido da norma antiga”[12].

Ora, como defende Oliveira Ascensão,[13] as leis ditas interpretativas que são materialmente inovadoras são leis particularmente censuráveis pois “nelas se exarcebam os inconvenientes que nunca deixam de acompanhar as leis interpretativas quaisquer que sejam”, na medida em que vão dar lugar a uma grave lesão da segurança jurídica.

 

Acresce que, não havendo base legal anterior aplicável especificamente à liquidação das tributações autónomas, não há, também, na verdade, uma norma especificamente interpretada, na qual se possa integrar a designada norma interpretativa, ou pelo menos, a percepção sobre a norma interpretada é bastante dificultada.

 

Também por isso, entende-se que os contribuintes não podiam contar com a norma criada pelo disposto na 2.º parte do n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC, razão pela qual a norma em causa pode violar expectativas seguras e legitimamente fundadas.

 

Assim sendo, a 2.º parte da norma em causa não pode ser considerada uma norma interpretativa em sentido autêntico, sendo, portanto, proibida a sua retroactividade.[14]

Atento o exposto, conclui-se que a 2.º parte da norma em análise não pode ser aplicada ao caso sub judice, cujo acto impugnado se reporta ao ano 2012, sob pena de violação do disposto no artigo 103.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 12.º da LGT.

 

 

IV.             DECISÃO

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

 

A)    Julgar totalmente procedente o pedido de anulação do de indeferimento da reclamação graciosa apresentada relativamente ao acto de autoliquidação de IRC referente ao ano 2012, na parte correspondente à dedução à colecta das taxas de tributação autónoma, no valor de €13.901,43;

 

B)    Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir ao Requerente o montante de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios;

 

C)    Condenar a Requerida nas custas do presente processo, por ser a parte vencida.

 

 

V.                VALOR DO PROCESSO

 

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1 a) do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em €13.901,43.

 

VI.             CUSTAS

 

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €918,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 3 de Maio de 2016

 

A Árbitro

 

 

 

Magda Feliciano

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

 

 

 

 

 

 



[1] Vide artigo 23.º.-A do Código do IRC, Decisão do CAAD, proferida no âmbito do processo n.º 59/2014-T, processo n.º 113/2015-T e Informação n.º 1221/2012, proferida no âmbito do processo de consulta à AT, sancionada em 16 de Julho de 2012.

[2] Embora as taxas de tributação autónoma não sejam dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável, nos termos do disposto no artigo 23.-A, n.º 1 a) do Código do IRC.

[3] Razão pela qual veio a ser aditado o n.º 21 ao artigo 88.º do Código de IRC, que será analisado em B.

[4] Utilizando o vocábulo utilizado no artigo 23.º-A do Código do IRC.

[5] Decisão do CAAD, proferida no âmbito do processo n.º 769/2014-T.

[6] Decisão do CAAD, proferida no âmbito do processo n.º 163/2014-T, de 21.07.2014.

[7] José Luis Saldanha Sanches, in Manual de Direito Fiscal, 3.º ed., Coimbra Editora: 2007, p. 407.

[8] De acordo com o n.º 4 do artigo 11.º da LGT, “As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica.”

[9] Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pp. pag. 62.

[10] Vide Acórdão do STJ, proferido no âmbito do processo n.º 10/12.5SFPRT.P1.S1.

[11] Decisões do CAAD proferidas no âmbito dos processos n.º 769/2014-T, n.º 163/2014-T, n.º 219/2015-T e n.º, 370-2015.

[12] J. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1991, pp. pág. 245.

[13] In O Direito: Introdução e Teoria Geral, Coimbra, 1997 pp. pag. 561.

[14] In Fiscalidade 1, Janeiro 2000, pp. pag. 88, Saldanha Sanches defende mesmo que a lei interpretativa não possa ter lugar em matéria fiscal.