Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 675/2015-T
Data da decisão: 2016-05-12  IMT  
Valor do pedido: € 6.500,00
Tema: IMT (Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis)
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. A... (“Requerente”), divorciada, contribuinte n.º..., residente na Avenida..., n.º..., ..., ..., ...-... Cascais, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.
  2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT).
  3. A Requerente pretende a pronúncia do Tribunal Arbitral tendo em vista a anulação do ato de liquidação adicional de relativas à aquisição em 23/11/2011 do prédio rústico da extinta freguesia de ... inscrito na matriz predial sob o artigo..., secção ...-... .
  4. Alega a Requerente, em síntese, que:
  5.  O entendimento da AT, segundo o qual o artigo 270.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) “não tem aplicação ao caso concreto, pois estamos perante uma transmissão onerosa de um bem imóvel isoladamente da empresa ou do estabelecimento”, é “inconstitucional, ilícito e diferente do entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Administrativo [em Acórdão de 30/05/2012]”, no qual é expresso o entendimento de que não sendo a redação do preceito em causa clara, “deve entender-se estarem isentas de IMT não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente” (cfr. sumário do referido Acórdão);
  6. Uma interpretação restritiva do preceito do CIRE em causa seria inconstitucional porque desrespeitaria o sentido e extensão da autorização legislativa concedida ao Governo nesta matéria.
  7. A Requerente optou pela não designação de árbitro.
  8. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou o árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação daa designação no prazo aplicável.
  9. As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
  10. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 16/02/2016.
  11. A AT apresentou resposta, na qual suscitou a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral e, sem prescindir, impugnou os fundamentos do pedido de pronúncia arbitral.
  12. A AT alega, no essencial, o seguinte:

 

A – Exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral

a)      Não estão abrangidos no âmbito da competência material do Tribunal Arbitral a apreciação de matérias relativas ao reconhecimento de isenções e benefícios fiscais;

b)      Decorre do pedido e da causa de pedir deduzidos que a pretensão da Requerente consiste no reconhecimento de que reunia os pressupostos para usufruir da isenção prevista no n.º 2 do artigo 270.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE);

c)      Assim resulta do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT, que o tribunal arbitral é incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir o pedido da Requerente ou conhecer da matéria a ele respeitante;

d)     A incompetência do tribunal constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que determina a absolvição da instância nos termos do artigo 576.º e alínea a) do art.º 577.º do Código de Processo Civil (CPC) aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, o que a AT desde logo requer.

 

B – Defesa por impugnação

e)      Sem prescindir, a AT apresenta ainda defesa por impugnação, considerando que não assiste qualquer fundamento á pretensão da Requerente;

f)       Segundo a AT, a isenção prevista no n.º 2 do art. 270.º do CIRE “abrange todos os actos integrados no âmbito de planos de insolvência, ou de pagamentos, ou de liquidação da massa insolvente, com a reserva, no entanto, de, caso o objecto da transmissão isenta ser a empresa ou o estabelecimento e não, um ou dois bens do seu activo”;

g)      É entendimento da AT que “se pode perfeitamente aceitar, que na interpretação do espírito do legislador, que apesar da autorização legislativa ter sido mais permissiva, que o legislador quanto à situação em causa apenas pretendeu manter a isenção no caso da transmissão da universalidade de bens associados ao exercício da actividade económica da empresa”;

h)      No mesmo sentido, a AT sustenta que “no que se refere à nova redacção do n.º 2 do artigo 270º do CIRE, que teve alteração através da redacção dada pelo Art.º 234º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, se o legislador não fez outra alteração que não fosse aditar os planos “de recuperação”, significa que o legislador não pretendeu atribuir mais isenções do que a que foi incluída na actual redacção”;

i)        Quanto à autorização legislativa, a AT sustenta que “[a]o autorizar o Governo apenas a aprovar um conjunto de benefícios fiscais no âmbito dos processos de insolvência e recuperação de empresas, a Assembleia da República concedeu-lhe a possibilidade de aprovar em bloco todos esses benefícios fiscais, aprovar apenas uma parte ou então pura e simplesmente não utilizar a autorização legislativa”, havendo, no caso do n.º 2 do artigo 270º do CIRE, uma utilização parcial da autorização legislativa concedida;

j)        Conclui a AT que “o acto em crise não padece de qualquer ilegalidade pelo que se impugna por infundado, todo o alegado no Pedido de Pronúncia Arbitral que contrarie o supra exposto, devendo ser considerada como improcedente a pretensão da Requerente e a Requerida absolvida de todos os pedidos”.

  1. Por despacho de 14/03/2016, o Tribunal decidiu dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, determinando que o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas sucessivas.
  2. Não foram apresentadas alegações.

 

 

II – SANEADOR    

 

Decidindo a exceção

  1. O objeto dos autos não é uma questão de reconhecimento de uma isenção, mas sim um ato de liquidação de imposto decorrente da desconsideração de uma isenção, pelo que a apreciação da sua legalidade se enquadra no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
  2. Na verdade, a isenção em causa é de reconhecimento automático, conforme decorre do disposto nos artigos 10.º, n.º 8, alínea d) do Código do IMT e artigo 5.º, n.º 1 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, competindo somente ao serviço de finanças a sua verificação e declaração.
  3. Tal como é afirmado no processo arbitral n.º 123/2015-T, de 1 de setembro de 2015, no qual se decidiu que o tribunal arbitral tem competência para anular liquidações de IMT onde seja desconsiderado o benefício fiscal previsto no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE, «está-se perante uma isenção de reconhecimento automático, como resulta da alínea d) do n.º 8 do artigo 10.º do CIMT, pelo que nem tinha de haver qualquer acto autónomo de reconhecimento da isenção, sendo no momento apropriado para a prática de um acto de liquidação a Autoridade Tributária e Aduaneira terá de apreciar se o interessado usufrui de benefício fiscal. Por isso, sendo o acto de liquidação lesivo dos interesses da Requerente e sendo o único acto praticado pela administração tributária sobre a situação, tem de ser assegurada a sua impugnabilidade contenciosa com fundamento em qualquer ilegalidade, como decorre do princípio da tutela judicial efectiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP. Por outro lado, a questão de saber se o acto de liquidação é legal, quando não há qualquer acto destacável trata-se a questão de saber se tem ou não de haver um reconhecimento da isenção (pelo Tribunal Judicial ou pela Autoridade Tributária e Aduaneira) são questões que têm a ver com a legalidade da liquidação, que devem ser apreciadas nos tribunais tributários em processo de impugnação judicial, como decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT».
  4. Assim sendo, o presente tribunal considera ter competência material para conhecer do pedido, pelo que improcede a exceção de incompetência material do tribunal, suscitada pela AT.
  5. O Tribunal encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, nº 1, alínea a), 5.º e 6.º, nº 1, do RJAT.
  6. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4º e 10º do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.
  7. Cumpre apreciar e decidir do mérito do pedido.

 

 

III – DOS FACTOS

 

Factos provados

Considera o Tribunal como provados os seguintes factos:

  1. Em 23/11/2011, a Requerente comprou, no âmbito de um processo de insolvência em que era falida a sociedade comercial com a firma “B..., Lda.”, o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ... e inscrito na matriz rústica sob o art...., secção ...-..., pelo preço de € 130.000,00;
  2. No âmbito dessa compra e venda, a Requerente ficou isenta do pagamento de IMT, com fundamento na norma constante do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE;
  3. Através do ofício n.º..., de 01/09/2015, foi a Requerente notificada do despacho do Chefe do Serviço e Finanças de Cascais..., datado de 28/05/2015, proferido na sequência do exercício do direito de audição prévia, quanto à liquidação adicional de IMT de que a Requerente foi notificada através do ofício n.º..., de 27/07/2015, ficando a Requerente ainda notificada para o pagamento, no prazo de 30 dias, do imposto apurado, no valor de € 6.500.

 

Factos não provados

  1. Com relevo para a decisão, não existem factos essenciais não provados.

 

 Fundamentação da decisão da matéria de facto

  1. Os factos foram dados como provados com base na prova documental

 

 

IV – DO DIREITO

  1. No presente processo, está em causa apurar se a liquidação adicional de IMT em crise enferma de ilegalidade por violação do disposto no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresa, aprovado pelo Dec. Lei nº 53/2004 e sucessivas alterações), o qual dispõe o seguinte:

«Estão igualmente isentas de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os actos de venda, permuta ou cessão de empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente».

  1. O elemento literal do artigo 270.º, n.º 2 do CIRE determina que a isenção de IMT é aplicável quer à venda, quer à permuta, quer à cessão, sendo que apenas quanto a esta última se exige a transmissão de empresa ou universalidade.
  2. De acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de março, que aprovou o CIRE, “mantêm-se, no essencial, os regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais, bem como à indiciação de infracção penal (§49).
  3. Nos termos do diploma que aprovou o CPEREF (DL nº 123/93, de 23 de abril), “além de um tratamento bastante favorecido dos dois processos abrangidos pelo diploma no domínio das custas judiciais, adopta-se ainda neste decreto-lei um conjunto de incentivos de natureza fiscal, através dos quais se procura especialmente evitar penalizações indevidas ou graves inconvenientes para as operações jurídicas, económicas ou financeiras em que pode desdobrar-se o processo de recuperação”.
  4. Ainda segundo este diploma,“[a]fastaram-se com essa intenção alguns encargos de carácter fiscal ou parafiscal relacionados com os negócios jurídicos susceptíveis de constituírem o meio de recuperação aprovado pelos credores, tendo nomeadamente em vista o imposto do selo, a contribuição autárquica, o imposto municipal de sisa e os próprios emolumentos devidos pelos actos”.
  5. Assim sendo, revela-se contrário ao fim pretendido pelo legislador – manutenção no essencial dos regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais – o entendimento de que estariam excluídas de isenção do IMT as vendas de elementos do ativo da empresa, ainda que integradas no âmbito do plano de insolvência ou de pagamentos ou praticadas no âmbito da liquidação da massa insolvente.
  6. Nas palavras do Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão emitido em 30 de maio de 2012 (Processo n.º 0949/11):

«Esta interpretação [seguida pela Autoridade Tributária in casu] choca, contudo - como bem observado na sentença recorrida -, com aquilo que o legislador consignou no n.º 49 do preâmbulo do CIRE no que respeita aos benefícios fiscais, onde se afirma que: “mantêm-se, no essencial, os regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais” sendo certo que a alínea c) do n.º 2 do artigo 121.º do CPEREF isentava de imposto municipal de sisa as transmissões de bens imóveis».

  1. Subscreve-se ainda o entendimento expresso pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 17 de dezembro de 2014 (Processo n.º 01085/14), segundo o qual:

«Tendo em conta o fim que o legislador pretende alcançar com a concessão de tal isenção, - fomentar e apoiar a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador, dando «um bónus» a quem adquirir os bens imóveis que integram a massa insolvente – compre estes bens que compra mais barato porque não tem de pagar o IMT que seria devido na aquisição de um imóvel similar fora do processo de insolvência – e que serão vendidos em fase de liquidação, o ambíguo texto do n.º 2 do artº 270º pode ser objecto de uma leitura mais clara e inequívoca sem recurso a qualquer interpretação extensiva. Basta que nos interroguemos se para alcançar o fim antes definido faz qualquer diferença que se esteja a vender globalmente a empresa com todo o seu activo e o seu passivo, que se esteja a vender um ou mais dos estabelecimentos comerciais que a integravam, que se esteja a vender bens que integravam o seu património mas não eram utilizados no seu giro comercial – por exemplo um imóvel recebido em pagamento de uma dívida de que a empresa insolvente era credora – para que se esteja perante uma venda que é praticada no âmbito da liquidação da massa insolvente? E, se nas mesmas situações se tratar não de vendas mas de permutas ou cessões – sendo que esta palavra há-de ter sido utilizada em sentido impróprio na medida em que associada ao mundo empresarial se costuma reportar a cessão de exploração, cessão do estabelecimento comercial, próximos da locação e não da alienação, e no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas se mostra utilizada também quanto à aquisição de bens pelos credores? Cremos que a resposta não pode deixar de ser negativa».

  1. Uma interpretação do disposto no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE em conformidade com a Constituição da República Portuguesa, aponta no mesmo sentido.
  2. Com efeito, tal como é afirmado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 30 de maio de 2012 (Processo n.º 0949/11):

«O n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, cuja redacção não é clara no que respeita ao âmbito da isenção de IMT aí consignada, deve ser interpretado em conformidade com a alínea c) do n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, pois que entre dois sentidos da lei, ambos com apoio - pelo menos mínimo - na respectiva letra, deve o intérprete optar por aquele que o compatibilize com o texto constitucional (interpretação conforme à constituição) [assim] deve entender-se estarem isentas de IMT não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito do plano de insolvência ou de pagamentos praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente».

  1. No mesmo sentido pronunciou-se, ainda, o Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 3 de julho de 2013 (Processo n.º 0765/13) no qual foi decidido que:

«O n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, cuja redacção não é clara no que respeita ao âmbito da isenção de IMT aí consignada, poderá, quando muito, interpretar-se como abrangendo não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidade de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente».

  1. Conclui-se, assim, pela procedência do pedido de anulação do ato de liquidação de IMT contestado, com todas as consequências legais.

 

 

V – DECISÃO

De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

a)      Julgar improcedente a exceção suscitada pela AT;

b)      Julgar procedente o pedido de pronuncia arbitral;

c)      Anular, com todos os efeitos legais, o ato de liquidação de IMT em crise no presente processo.

 

Valor do processo

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 6.500,00.

 

Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ficando o seu pagamento a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 12/05/2016

 

     O Árbitro

 

 

(Paulo Nogueira da Costa)