PROCESSO N.º 37/2012 – T
DECISÃO ARBITRAL
1. RELATÓRIO
1.1. …, SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, SA. ( “requerente”), contribuinte fiscal n.º …, com sede na …Lisboa, requereu, em 13.02.2012, a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“RJAT”) e dos art.ºs 1.º e 2.° da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março, tendo em vista a declaração de ilegalidade parcial da liquidação da derrama municipal do Grupo do qual é sociedade dominante, relativa ao exercício de 2010, num montante de € 51.400,70, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante designada por “AT” ou “requerida”).
1.2. A requerente optou por não designar árbitro. Nos termos da al. a) do n.º 2, do art.º 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou como árbitro único o signatário, António Moura Portugal.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído no CAAD no dia 17 de Maio de 2012 para apreciar e decidir o objeto do presente processo, conforme consta da ata de constituição junta aos autos e cujo conteúdo se dá por reproduzido.
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1.3. A requerente alega, como causa de pedir, a ilegalidade da liquidação de IRC de 2010 por errónea quantificação da derrama municipal porquanto esta, quando se aplique o RETGS [cfr. o n.º 1 do art.º 70.° do Código do IRC (CIRC)], no sentido de que deve ser calculada atendendo ao rendimento relevante do Grupo [lucro tributável sujeito a IRC -cfr n.º 1 do art.º 14. ° da Lei das Finanças Locais (LFL)], pelo que é sobre este lucro tributável do Grupo Fiscal, calculado pela sociedade dominante através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais de cada uma das sociedades que o compõem, que tem de incidir a derrama municipal, nos termos da legislação em vigor.
Conclui pedindo «a declaração da ilegalidade (parcial) da liquidação do IRC com o nº … e da demonstração de liquidação de IRC nº …, relativas ao exercício de 2010” e “o reembolso do montante de € 51.400,70” acrescido de juros indemnizatórios.
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1.4. A Requerida, para tanto notificada, apresentou a sua resposta, defendendo-se por exceção e impugnação, tendo alegado o seguinte:
- a requerida está impossibilitada de estar em juízo como única demandada em matéria respeitante à derrama municipal por este ser um imposto co-administrado com o Município, que tem um interesse pessoal e direto em agir, pelo que se imporia a intervenção principal provocada do município;
- o município não está vinculado à jurisdição do CAAD e consequentemente o tribunal arbitral é incompetente para proferir decisão de mérito sobre o litigio
- a derrama municipal incide sobre a soma do lucro individual apurado por cada uma das sociedades integrantes do Grupo e não sobre o lucro tributável do Grupo
- a derrama é um imposto autónomo do IRC pelo que apenas se socorre das regras de cálculo do IRC para apuramento do lucro tributável, não sendo estas relevantes para efeitos de sujeição à derrama.
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1.5. A requerente respondeu à exceção de incompetência do tribunal arbitral suscitada pela requerida, propugnando pela respetiva improcedência.
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Cumpre, pois, apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A DECIDIR
Atentas as posições das partes assumidas nos articulados apresentados, as questões a decidir sobre as quais a presente decisão arbitral se pronunciará são as seguintes:
a) questões processuais: incidente de intervenção principal provocada e incompetência do tribunal arbitral;
b) a alegada ilegalidade parcial do ato de liquidação da derrama municipal relativa ao exercício de 2010, do Grupo no qual a requerida é sociedade dominante, na parte a que corresponde o montante de € 51.400,70;
c) o crédito de juros indemnizatórios invocado pela requente, a acrescer ao montante do tributo indevidamente liquidado e pago.
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3. QUESTÕES PROCESSUAIS
3.1. Incidente de intervenção principal provocada dos Municípios em cuja área geográfica foram gerados rendimentos pelas sociedades do Grupo da requerente:
Ao contrário do que a Requente sustenta, a AT não alega ser parte ilegítima na presente demanda mas antes que “a legitimidade para intervir no presente litígio será igualmente dos Municípios (sujeitos ativos e co-administradores do imposto) e não da AT, em exclusivo” (cfr. art. 15º da resposta).
Conclui a requerida AT que se afigura essencial a intervenção principal provocada dos Municípios no presente processo arbitral (cfr. art. 29º da resposta).
Não assiste razão à requerida AT.
O incidente de intervenção principal provocada, previsto nos artigos 325º e seguintes do Código de Processo Civil, consiste na faculdade de as partes chamarem a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária. Essa faculdade está condicionada à alegação da causa do chamamento e à justificação do interesse que, através do chamamento se pretende acautelar.
Nos termos do art. 16º c) do RJAT constitui princípio vigente no âmbito da jurisdição arbitral “a autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas”. Daqui resulta que, por um lado, os árbitros conduzem livremente o processo arbitral e, por outro lado, as normas de natureza processual contidas no Código de Processo Civil não são aplicáveis imediata e automaticamente ao processo arbitral (devendo antes submeter-se ao escrutínio da sua adequação à “obtenção em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas” pelas partes).
Acresce que, atento o disposto no art. 29º do RJAT, as normas do Código de Processo Civil, estão em último lugar na lista taxativa e sequencial de normas de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário.
Assim, a intervenção de terceiros no processo arbitral tributário só será admissível se (i) não prejudicar o desiderato de “obtenção em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas” [art. 16º c) RJAT] e (ii) se reconduzir a um caso omisso na legislação de natureza procedimental ou processual tributária cuja integração da lacuna não seja possível por recurso às normas previstas nas alíneas a), b) e c) do art. 29º RJAT.
Como se demonstrará, a possibilidade de intervenção provocada de terceiros no processo arbitral tributário não é uma lacuna cujo preenchimento deva ser obtido por via de recurso para o Código de Processo Civil e, por outro lado, entende-se que o chamamento dos Municípios no presente caso prejudicaria, de forma inadmissível, o princípio de celeridade que rege o processo arbitral.
Na verdade, o processo tributário português está construído como um contencioso de anulação em que se aprecia a legalidade dos atos impugnados com vista à sua anulação total ou parcial ou à declaração de nulidade ou inexistência, sem possibilidade de reforma ou substituição dos atos praticados pela Administração. Por isso, o contencioso tributário não assume a configuração de um processo de partes mas sim de um processo dirigido a um ato, em que a legitimidade passiva caberá ao autor do ato (necessariamente indicado na petição inicial nos termos do art. 108º nº1 CPPT).
Atenta a estrutura do contencioso tributário a intervenção de terceiros interessados na manutenção do ato tributário impugnado não constitui uma lacuna cujo preenchimento possa ser feito por recurso às normas de aplicação subsidiária previstas no art. 29º RJAT mas antes uma intencional exclusão de terceiros do âmbito do processo. Neste sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo em acórdão proferido no processo 0624/10, em 17-11-2010 no qual se dispôs que “Atenta a natureza subjectiva do contencioso tributário em geral e a estrutura do processo de impugnação judicial … se não encontra espaço para a defesa de contra-interesses particulares na manutenção do acto impugnado…” (acórdão disponível para consulta na página www.dgsi.pt).
Pelo exposto, segue-se a jurisprudência arbitral do CAAD (vertida, entre outras, na decisão arbitral proferida no processo 5/2012-T) que tem considerado “que no âmbito do processo tributário não será aceitável a intervenção de terceiros interessados na manutenção do ato impugnado” e que “mesmo que se entendesse que tal não era assim, e que a referida intervenção seria admissível, quer nos termos do CPTA, quer (o que como se viu seria altamente improvável) nos termos do Código de Processo Civil, sempre a mesma seria de excluir no âmbito do processo arbitral, por previsivelmente obstar à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas. É que, como se afirmou já, o processo arbitral (tributário, no caso), tem uma finalidade e uma intencionalidade específicas, que assentam essencialmente na tutela de valores de celeridade. E se esses valores não podem – é certo – preterir garantias essenciais das partes, tal limitação não se deverá estender, para além daquilo que imperativamente resulte da lei, a questões que digam respeito a terceiros, ou relações das partes para com terceiros. Ora, o instituto em causa, a intervenção principal provocada, visa em primeira linha tutelar interesses do terceiro chamado (cfr. neste sentido ac. do STJ de 08-04-2010, proferido no processo 2294/06.9TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt), tendo em conta as relações jurídicas entre aquele e o chamante. Neste quadro, devidamente ponderadas as exigências de celeridade que devem orientar as decisões deste tribunal arbitral em matéria de regulação da relação processual, e as previsíveis repercussões do deferimento da pretensão da entidade demandada que ora se aprecia no andamento da marcha processual, sempre se deveria entender que as normas do Código de Processo Civil relativas à intervenção principal provocada em que a entidade demandada fundou a sua pretensão, serão, em concreto, inaplicáveis à presente instância arbitral”.
3.1. Da incompetência do tribunal arbitral alegada pela Requerida AT
Alega a requerida AT a “não vinculação dos Municípios à jurisdição do CAAD e consequentemente a incompetência do Tribunal arbitral para proferir decisão de mérito sobre a questão em litígio, porquanto esta não será apta a fazer caso julgado em relação aos municípios, o que terá consequências relevantes no caso de ser dado provimento ao pedido da Requerente, ficando esta impossibilitada de executar a decisão arbitral contra os Municípios, por não ter quanto a eles natureza de caso julgado”.
A Requerida AT suscita a questão da incompetência do tribunal arbitral como consequência de uma intervenção principal provocada dos Municípios. Sucede que, como supra se demonstrou, o presente processo não admite a intervenção dos Municípios, pelo que nem se coloca a questão da não vinculação dos Municípios à jurisdição do CAAD.
Por outro lado, ainda relativamente à apreciação da não vinculação dos Municípios à jurisdição do CAAD, agora em função da matéria, sempre se dirá que mesmo que a não vinculação dos Municípios fosse suscitada como decorrência da especial particularidade de os credores finais da receita de derrama serem os Municípios e não a AT também tal exceção seria considerada improcedente. Com efeito, embora seja da competência dos municípios a iniciativa do lançamento de derrama num determinado ano económico e a definição da respetiva taxa - art.º 14.° da Lei das Finanças Locais aprovada pela Lei n.° 2/2007, de 15 de Janeiro - é à AT que compete todo o procedimento de liquidação e cobrança da derrama municipal (o que é manifesto pelo facto de ser a AT quem confere e confirma a autoliquidação pelo contribuinte, quem procede às liquidações oficiosas, quem fiscaliza o cumprimento das obrigações tributárias em sede de derrama, quem aprecia as reclamações graciosas e emite informações genéricas sobre esse tributo, em suma, quem “administra” o tributo). Verificado que está que é a AT que administra a derrama, não restam dúvidas de que o tribunal arbitral é competente para apreciar o presente pedido. Esta questão foi já apreciada no processo P19/ 2011 - T no qual claramente se enunciou que “a competência dos tribunais arbitrais está definida no art.º 2.° do RJAT, de cujo n.° 1, alínea a), decorre deterem os tribunais arbitrais competência para a apreciação da pretensão de declaração de ilegalidade de atos de liquidação e de autoliquidação de tributos. Dispõe, por seu turno, o mesmo RJAT, no n.º 1 do seu art.º 4.º, que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria conjunta dos ministros das Finanças e da Justiça. Ora, tal vinculação foi estabelecida pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em cujo art.º 1.º se postula a vinculação à jurisdição arbitral dos serviços - DGCI e DGAIEC - que administram e controlam os impostos em Portugal, sendo certo que a matéria em litígio não se enquadra em nenhuma das situações excludentes contempladas no respetivo art.º 2.°. Deste modo, há que concluir encontrar-se a matéria em litígio incluída na competência deste tribunal arbitral, com a consequente vinculação da AT à presente arbitragem, o mesmo que é dizer pela improcedência da arguida exceção dilatória de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria para a apreciação do litígio”.
No que respeita à invocada impossibilidade de a AT “executar a decisão arbitral contra os Municípios” sempre se dirá que, a admitir que se verifica essa impossibilidade, a mesma é irrelevante para efeito de conhecimento das questões de mérito suscitadas pela Requerente. Na verdade, inexistindo uma situação de litisconsórcio necessário, compete à Requerente configurar o pedido contra aqueles contra quem pretende executar a decisão. Por isso, o interesse da Requerida na execução da decisão contra terceiros é irrelevante sendo antes à requerente que compete decidir contra quem pretende obter decisão que possa vir a ser executada coercivamente. Acresce que sendo a Requerida a autora da ilegalidade fundamentadora do pedido e tendo sido a Requerida a entidade cobradora do montante da liquidação impugnada, só contra a Requerida é que a Requerente terá interesse em executar a decisão, nomeadamente para efeito de reembolso do montante pago em excesso. As relações entre a Requerida e os Municípios, enquanto titulares últimos da receita de derrama, são externas ao presente processo arbitral em função do pedido tal como configurado pela Requerente. A decisão quanto à situação concreta objeto do pedido (a ilegalidade do ato impugnado) produz o seu efeito útil normal, regulando definitivamente a situação (entre Requerida e Requerente) mesmo que seja executável apenas contra a Requerida. A Requerida não fica, no entanto, impedida de vir a efetivar quaisquer pretensões que possa ter contra os Municípios na decorrência da decisão proferida neste processo arbitral, devendo para tal utilizar os meios extrajudiciais ou judiciais aplicáveis.
4. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Em matéria de facto relevante, dá o tribunal por assentes os seguintes factos:
a) A Requerente é sociedade dominante do Grupo ao qual, no exercício de 2010, foi aplicável o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades e que era composto por si e pelas sociedades
b) em 30 de Maio de 2011, a requerente procedeu à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC referente ao exercício de 2010 do Grupo de sociedades sujeito ao RETGS de que é sociedade dominante;
c) de acordo com a referida declaração de rendimentos entregue, no exercício em causa o Grupo sujeito ao RETGS apurou matéria coletável não isenta no valor de € 7.625.089,90 e derrama municipal no valor de € 179.846,31.
d) a liquidação de IRC revela um apuramento da correspondente derrama municipal ao nível dos grupos de sociedades sujeitos ao RETGS, como é o caso da requerente, de acordo com o entendimento dos Serviços da Administração Fiscal sobre esta matéria após a entrada em vigor do art. 14º da Lei 2/2007 de 15 de Janeiro e vertido no Oficio Circulado nº 20132.
e) o entendimento dos Serviços da Administração Fiscal sobre esta matéria com base no qual a derrama da Requerente relativa ao exercício de 2010 foi apurada é o de que “ a derrama municipal deverá ser calculada e indicada individualmente por cada uma das sociedades na sua declaração, sendo preenchido também o anexo A, se for caso disso. O somatório das derramas municipais assim calculadas será indicado no campo 364 do quadro 10 da correspondente declaração do Grupo, competindo o respetivo pagamento à sociedade dominante”.
f) a diferença entre a derrama municipal liquidada de acordo com o entendimento dos Serviços da Administração Fiscal (€ 179.846,31) e a derrama que seria apurada em função do lucro tributável do Grupo Fiscal (€ 128.445,61) é de € 51.400,70;
g) em 21 de Setembro de 2011, a requerente apresentou, junto do Serviço de Finanças de Lisboa 6, reclamação graciosa contra a referida liquidação de IRC respeitante ao exercício de 2011;
h) a reclamação graciosa foi indeferida por despacho proferido, em 30 de Dezembro de 2011, pelo Exmo. Senhor Chefe de Divisão da Direcção de Finanças de Lisboa;
Os factos dados como provados resultam da matéria não contestada pelas partes e documentalmente provado nos autos.
Considera-se não existirem factos não provados tendo todos os factos relevantes para a decisão da causa sido julgados provados.
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5. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
5.1. Ilegalidade da Liquidação de IRC impugnada
Analisadas as questões processuais cumpre julgar a questão de mérito que constitui objeto do pedido da Requerente e que se refere à base de incidência da derrama municipal quando seja aplicável o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS).
A questão que se coloca é a de saber se o cálculo da derrama municipal, nos casos de contribuintes sujeitos ao RETGS, deve incidir sobre o lucro consolidado do grupo, ou, diversamente, deverá incidir sobre o lucro individual de cada uma das sociedades integrantes do Grupo.
O artigo 14. °, n.º 1 da Lei das Finanças Locais (LFL) prevê que a derrama municipal incida, até ao limite de 1,5%, sobre o “lucro tributável sujeito e não isento de IRC”.
Os artigos 69º a 71º do Código do IRC estabelecem o regime especial de tributação dos grupos societários. O n.º 1 do art.º 69°, do Código do IRC determina que “existindo um grupo de sociedades, a sociedade dominante pode optar pela aplicação do regime especial de determinação da matéria colectável em relação a todas as sociedades do grupo”.
Especifica o n.º 1 do art.º 70.° do Código do IRC que “(...) o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo”.
Impõe-se, pois, apurar o sentido da expressão “lucro tributável sujeito e não isento de IRC” vertido do art. 14º nº1 da LFL quando esteja em causa um Grupo de sociedades que tenha optado pela aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades.
Cumpre apreciar.
A LFL não se limita, no art. 14º nº1, a estabelecer que a derrama incide sobre o lucro tributável para efeitos de IRC antes concretiza a incidência da derrama sustentando que a derrama incide sobre “lucro tributável sujeito e não isento de IRC”. Se assim é, atento um argumento de natureza literal, terá de se considerar que o lucro tributável sujeito e não isento é só um, o do Grupo societário. Por isso, mostra-se, de todo irrelevante a discussão em torno do caráter acessório ou dependente da derrama face ao IRC já que são as próprias regras definidas para a derrama que apontam no sentido indicado de que a base de incidência da derrama se define pelo lucro tributável do Grupo e não da soma dos lucros individuais de cada uma das sociedades integrantes do Grupo.
Este argumento literal é reforçado pelo argumento sistemático que permite verificar que o legislador pretendia efetivamente referir-se ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC do Grupo Societário e não aos lucros individuais das sociedades componentes do Grupo. Com efeito, noutros casos do ordenamento jurídico tributário, o legislador soube exprimir o pensamento legislativo no sentido de consagrar a tese que a requerida defende (de que o lucro tributável a ter em causa é a soma dos lucros individuais das sociedades do Grupo), o que implica concluir, à luz do art. 9º nº 3 do Código Civil, que o legislador exprimiu o seu pensamento em termos adequados, tendo, no art. 14º nº1 da LFL optado por considerar que a derrama incide sobre o lucro do Grupo e, por exemplo, no art. 87º-A do CIRC, considerou que quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, o lucro tributável a ter em conta é o apurado na declaração periódica individual de cada uma das sociedades do grupo.
Como complemento, também o argumento histórico de interpretação concorre para o sentido que se defende porquanto só com a Lei do OE para 2012 (Lei nº 64-B/2011) se veio alterar o nº 8 do art. 14º da LFL consagrando-se expressamente que “quando seja aplicável o regime de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do Grupo”, o que claramente demonstra que, até à entrada em vigor desse diploma, não era esse o regime. É este também o entendimento do STA ao concluir no acórdão de 02.05.2012 (Processo nº 0234/12) que “o art.º 14.º, n.º 8, da Lei das Finanças Locais, na redação que lhe foi dada pelo art. 57º da Lei do Orçamento do Estado para 2012 (Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro) é uma norma inovadora e não interpretativa” o que o STA fundamenta por recurso à doutrina de BAPTISTA MACHADO (Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, Almedina, 1968, p. 287) ao defender que “para que a lei nova possa ser interpretativa, de sua natureza, é preciso que haja matéria para interpretação. Se a regra de direito era certa na legislação anterior, ou se a prática jurisprudencial que lhe havia de há muito sido atribuído um determinado sentido, que se mantinha constante e pacífico, a lei nova que venha resolver o respetivo problema jurídico, em termos diferentes, deve ser considerada uma lei inovadora”. Neste contexto, sendo a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo pacífica, em sentido aliás inverso ao consagrado na lei nova, haveremos de concluir que não estamos perante um lei interpretativa mas sim perante uma lei inovadora, portanto, com aplicação apenas para o futuro – art. 12º do CC”. No mesmo sentido, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO (O DIREITO Introdução e Teoria Geral – Uma Perspetiva Luso-Brasileira, 11.ª edição, Coimbra, Almedina, 2001, p. 551) estabelece os critérios para detetar normas interpretativas nos seguintes termos: “Como se sabe então que a lei é interpretativa?
1) Antes de mais por declaração expressa contida no texto do diploma.
2) Tem igualmente significado a afirmação expressa do caráter interpretativo constante do preâmbulo do diploma (...).
3) Se a fonte expressamente nada determinar, o caráter interpretativo pode resultar ainda do texto, quando for flagrante a tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente. Não vemos razão para exigir que o caráter interpretativo seja expressamente afirmado, quando a retroatividade não tem de o ser”.
Ora, no presente caso, nem a Lei do Orçamento do Estado para 2012 nem o n.º 8 do citado art.º 14.º da LFL fazem qualquer alusão ao hipotético caráter interpretativo da norma nem existe qualquer referência na economia do texto desse preceito a uma eventual situação normativa duvidosa preexistente que se pretendesse resolver. Não restam, pois, dúvidas de que o regime contido no art. 14º da LFL, anterior à entrada em vigor da Lei do Orçamento de Estado para 2012, era o de que a base de incidência da derrama correspondia ao lucro sujeito e não isento de IRC do Grupo e não de cada uma das sociedades que fazem parte do Grupo.
A acrescer a estes argumentos, outros dois concorrem para a interpretação que se vem defendendo e que já foram expostos na decisão arbitral proferida no processo 5/2012-T nos seguintes moldes: “também o elemento racional da interpretação suporta a posição defendida pela ora requerente, já que, como também a mesma aponta, tal posição não causa dificuldades acrescidas em sede de repartição do produto da derrama municipal pelos municípios que a ele tenham direito, e que tal solução realiza de forma mais perfeita o princípio constitucional da tributação das empresas pelo lucro real. Por fim, e como também referiu a ora requerente em sede de alegações orais, uma eventual falta de clareza da lei, ou mesmo uma sua lacuna, em matéria de distribuição da derrama pelos municípios nos casos de tributação de grupos de sociedades, nunca poderia justificar uma correção – interpretativa ou analógica – ao nível dos pressupostos da incidência do tributo em causa, antes, e quando muito, poderia implicar uma correção ao nível das normas reguladoras dessa mesma distribuição”.
A controvérsia interpretativa em torno deste regime deu origem a uma corrente jurisprudencial recente nos termos da qual o Supremo Tribunal Administrativo (STA) adotou a mesma interpretação da questão a decidir que aqui se propugna. Nesse sentido, no acórdão de 2 de Fevereiro de 2011 (Processo nº 909/2010) considerou o STA que “prevendo o CIRC, nos seus art.s 69.º a 71º, um regime especial de tributação dos grupos de sociedades, situação em que se encontra a impugnante, ora recorrida, e tendo esta optado, como a lei lhe faculta, pela aplicação desse regime para determinação da matéria colectável em relação a todas as sociedades do grupo, a determinação do lucro tributável, para efeitos de IRC, é apurada através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações individuais das sociedades que pertencem ao grupo. E, assim determinado o lucro tributável para efeitos de IRC, está necessariamente encontrada a base de incidência da derrama”. E no mesmo acórdão faz-se referência à “circunstância de, relativamente às sociedades que integrem um grupo de empresas e que optem pelo regime especial de tributação previsto nos artigos 69º a 71º do CIRC, se determinar o lucro tributável do grupo, em vez do lucro tributável de cada uma das sociedades individualmente, e, dessa forma, se encontrar a base de incidência da derrama devida globalmente, em vez de se apurar uma pluralidade de derramas individuais”.
Também no acórdão do STA de 22 de Junho de 2011 (Processo nº 309/2011) se concluiu que “de acordo com o actual regime da derrama que resulta da Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei 2/2007, de 15 de Janeiro, a derrama passou a incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC. Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama deve incidir sobre o lucro tributável do grupo e não sobre o lucro individual de cada uma das sociedades”.
Também na jurisprudência do CAAD, a questão de mérito dos presentes autos foi já decidida, tendo todas as decisões arbitrais julgado a questão nos moldes que aqui se propugnam. Nesse sentido veja-se as decisões proferidas nos processos P19/2011-T, P2/2012-T, P23/2011-T e P-5/2012-T.
Em face do exposto - na esteira da jurisprudência do STA e do CAAD que se reputa de plenamente correta atentas as normas jurídicas aplicáveis – julga-se que a derrama municipal incide, no caso de aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades, sobre o “lucro tributável do grupo” e não sobre o “lucro individual de cada uma das sociedades” e, em consequência, a liquidação de IRC impugnada padece de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, enfermando por isso de manifesta ilegalidade, devendo ser parcialmente anulada, na parte correspondente a € 51.400,70, liquidados em excesso a título de derrama municipal.
5.2. Juros indemnizatórios
A requerente peticiona ainda o pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do disposto nos art.ºs 61.º do CPPT e 43.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte o pagamento da dívida tributária em montante superior ao devido, considerando-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
No presente caso, a requerente foi compelida a preencher a declaração de rendimentos de acordo com o disposto no Oficio Circulado nº 20.132, o que teve como consequência o apuramento de um valor de derrama superior ao legalmente devido. Por outro lado, o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela requerente fundou-se exclusivamente no caráter vinculativo do Oficio Circulado 20.132 para os órgãos da Administração Tributária, o que demonstra e evidencia que o pagamento do montante de derrama superior ao devido resultou de erro imputável à Administração Tributária.
A Requerente tem, assim, direito a juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento do imposto indevido (anulado) até à data da emissão da respectiva nota de crédito, contando-se o prazo para esse pagamento do início do prazo para a execução espontânea da presente decisão (art.º 61.º, n.ºs 2 a 5, do CPPT), à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4 do artigo 43.º da LGT.
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6. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:
- julgar improcedente a exceção dilatória de incompetência do tribunal arbitral suscitada pela Requerida;
- julgar procedente e provado o pedido formulado no presente processo arbitral;
- anular parcialmente o ato de liquidação de IRC impugnado, na parte correspondente à derrama municipal relativa ao exercício de 2010, num montante de € 51.400,70 por violação de lei;
- ordenar a imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, o que determina o reembolso à requerente da quantia indevidamente liquidada e paga, bem como o pagamento de juros indemnizatórios à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4 do art.º 43.º da LGT até integral reembolso, relativos ao período que mediar entre a data do pagamento da quantia referida e a sua devolução à requerente.
Custas a cargo da requerida.
Notifique.
Lisboa, CAAD, 02 de Julho de 2012.
O Árbitro
António Moura Portugal