Processo n.º 14/2012-T
Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof.ª Doutora Paula Rosado Pereira e Dr. António Lobo Xavier (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 24-5-2012, acordam no seguinte:
1 – …, com sede em …, …, …, contribuinte fiscal n.º …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o mesmo número, requereu, ao abrigo dos artigos 10.º, n.º 2, e 30.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, com vista à declaração de ilegalidade do acto de liquidação n.º …, de …-6-2005, referente a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e derrama, respeitante ao exercício de 2001, num montante correspondente a € 279.001,94 e, bem assim, declarada a ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios associados num montante de € 35.337,68, num total de € 314.339,62, com a consequente anulação destas liquidações e com o consequente reembolso à requerente do montante indevidamente pago de € 314.339,62, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde 08.08.2005, até integral reembolso destas quantias.
A Requerente entende, em suma, que a “reanálise dos papéis de trabalho produzidos aquando da inspecção ao ano de 2001” que a Administração Tributária invocou como meio de obtenção dos elementos em que se baseou a liquidação referida é ilegal, quer se entenda que se trata da reabertura de um anterior procedimento de inspecção, proibida pelos arts. 36.º, 62.º, n.º 2, do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT) e 63.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária (LGT), quer se entenda que constitui uma segunda inspecção externa relativa àqueles impostos e ao ano de 2001, que é também proibida por este art. 63.º, n.º 4, da LGT.
Defende também a Requerente que, mesmo que não seja de anular a liquidação, é ilegal a liquidação de juros compensatórios, por, em suma, não estar demonstrada a sua culpa, exigida pelo art. 35.º da LGT.
A Requerente pretende também que, tendo pago a quantia liquidada, seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º da LGT, em caso de declaração de ilegalidade da liquidação referida.
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, dizendo, em conclusão:
a. Não existe qualquer vício de violação de lei no âmbito do procedimento interno de inspecção e na consequente liquidação adicional do IRC de 2001 da A.;
b. Não existe qualquer violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspectivo, pois em ambas as acções inspectivas, quer os fins, quer o lugar, quer o âmbito e a extensão encontram-se plenamente definidos, diferenciados e fundamentados;
c. Não restam dúvidas de que segundo procedimento inspectivo reveste natureza interna, até porque a AT nem sequer se deslocou à empresa a solicitar qualquer informação, apoiando-se apenas e exclusivamente em documentos que possuía e na declaração modelo 22 de IRC do exercício de 2001 e, posteriormente, em elementos entregues pelo sujeito passivo no âmbito do exercício do direito de audição;
d. Do facto de o segundo procedimento interno de inspecção ao exercício de 2001 ter decorrido em paralelo com o procedimento externo de inspecção ao exercício de 2002, não decorre qualquer violação de qualquer norma legal. Ambas foram efectuadas dentro do prazo legal e cumpriram todos os requisitos legais para a sua realização, não se descortinando que a última tenha tido qualquer influência no procedimento interno de 2001, bem pelo contrário.
e. Motivos pelos quais a defesa e manutenção da legalidade do procedimento inspectivo e das correcções efectuadas, bem como da correspondente liquidação adicional do IRC de 2001 a que aquela deu origem, não pode determinar o pagamento de qualquer juros indemnizatórios a favor da R. por manifesta falta de verificação dos pressupostos exigidos pelo art.º 43.º do LGT.
Na reunião prevista no art. 18.º do RJAT, as partes prescindiram da prova testemunhal apresentada e produziram alegações orais.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2 – A matéria relevante para apreciar estas excepções é a seguinte, com indicação dos fundamentos do decidido:
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Em execução da Ordem de Serviço n.º …, foi efectuada uma acção de inspecção tributária externa à Requerente, de âmbito geral, relativamente ao exercício de 2001, sendo a Requerente notificada, em 4-12-2003, do projecto de conclusões do relatório de inspecção (documentos de fls. 5 e seguintes do ficheiro denominado «P14 T 2012 – Autoridade Tributária e Aduaneira – PA – 1.pdf» e fls. 37 e seguintes do ficheiro junto com a designação «Impugnação.pdf», cujo teor se dá como reproduzido);
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A Requerente, depois de exercício de direito de audição prévia, foi notificada em …-3-2004, do relatório final da inspecção (documento n.º 5 junto com o pedido de constituição de tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Com base neste relatório foi efectuada a liquidação adicional através da qual foi reduzido o montante de reembolso a favor da requerente para € 21.929.422,94 (acordo das partes, através do artigo 10.º do pedido de constituição do tribunal arbitral e do artigo 15.º da resposta);
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No dia …-5-2005, a Requerente foi notificada de que a administração tributária efectuou «correcções resultantes de análise interna», nos termos dos arts. 77.º da LGT e 61.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, indicando que se tratava de «correcções meramente aritméticas efectuadas à matéria colectável ou ao imposto» do exercício 2001 «resultante de análise interna», em que se inclui uma «fundamentação das correcções ao exercício de 2001» (documento n.º 6 junto com o pedido de constituição de tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Na «Fundamentação das correcções ao exercício de 2001» a Administração Tributária refere, além do mais, que verificou os elementos em que se basearam as correcções «Pela reanálise dos papéis de trabalho produzidos aquando da inspecção ao ano de 2001» (documento de n.º 6, junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, constando tal indicação dos elementos utilizados das páginas 42 e seguintes do ficheiro denominado «Documento 1 a 9.pdf» e páginas 20 a 28 do documento do processo administrativo designado como «P14 T – Autoridade Tributária e Aduaneira –Parte-3.pdf»);
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Posteriormente, a Requerente foi notificada de uma «demonstração de liquidação de IRC» com a compensação n.º …, datada de …-6-2005, e a liquidação com o n.º …, datada de …-6-2005, na qual se reduziu em € 279.001,94 o montante de reembolso a favor da requerente para € 21.615.083,32 e se liquidaram juros compensatórios no montante de € 35.337,68, documento este acompanhado de uma «demonstração da liquidação de juros» e de uma «demonstração de acerto de contas», do que resultou o montante de € 314.339,62 a pagar adicionalmente (documento. n.º 2 junto com pedido de constituição de tribunal arbitral e páginas 29 a 31 do documento do processo administrativo designado como «P14 T – Autoridade Tributária e Aduaneira –Parte-3.pdf», cujo teor se dá como reproduzido);
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Em …-11-2005 a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação adicional de IRC (documento n.º 1 junto com o pedido de constituição de tribunal arbitral);
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A reclamação graciosa referida na alínea anterior não foi decidida pela administração tributária;
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Em …-9-2006, a Requerente apresentou uma impugnação judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal de …, que correu termos com o n.º … (documentos n.ºs 3 e 4, juntos com o pedido de constituição de tribunal arbitral);
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Em 23-1-2012, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo;
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Até 23-1-2012, não tinha sido proferida decisão no processo de impugnação judicial n.º … (acordo das partes);
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Em …-8-2005, a Requerente pagou a quantia liquidada pelo acto impugnado, no montante de € 314.339,62 (3.ª página do documento n.º 2, junto com a pedido de constituição de tribunal arbitral);
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Através de ofício datado de …-4-2005, a Requerente foi notificada do relatório de Inspecção Tributária relativo ao exercício de 2002, cuja cópia consta do documento n.º 7 junto com o pedido de constituição de tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido.
3 – A questão essencial que é objecto do presente processo reconduz-se a saber se a Administração Tributária, depois de concluído um procedimento de inspecção tributária e de ser notificada uma liquidação adicional de IRC relativa ao ano de 2001, que se baseou em alterações à matéria colectável, pode proceder a novas alterações e proceder a nova liquidação daquele imposto, relativa ao mesmo ano, com base em análise interna dos elementos recolhidos naquele procedimento.
A Requerente coloca também a questão da legalidade da liquidação de derrama, consequente da liquidação de IRC, e dos juros compensatórios.
4 – Como se refere no início da «FUNDAMENTAÇÃO DAS CORRECÇÕES AO EXERCÍCIO DE 2001» que consta do relatório dos serviços de Inspecção Tributária em que se baseou a liquidação impugnada, as correcções efectuadas basearam-se na «reanálise dos papéis de trabalho produzidos aquando da inspecção ao ano de 2001» (documento n.º 6 junto com o pedido de constituição de tribunal arbitral, a fls. 42 do ficheiro de documentos).
Assim, independentemente de algumas correcções terem sido efectuadas com base em outros elementos fornecidos pela Requerente ao exercer o direito de audição sobre o projecto daquele relatório, é de considerar assente que as correcções efectuadas e notificadas à Requerente tiveram como fonte elementos recolhidos no procedimento de inspecção externa ao ano de 2001.
No art. 63.º, n.º 3, da LGT (na redacção inicial, vigente até às alterações introduzidas pela Lei n.º 37/10, de 2 de Setembro) estabelecem-se limitações genéricas relativas ao procedimento de inspecção, designadamente proibindo-se a realização de «mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas».
Assim, antes de mais, importa apurar se a «reanálise dos papéis de trabalho produzidos aquando da inspecção ao ano de 2001» efectuada pela Administração Tributária constitui acto de procedimento externo ou interno de fiscalização.
5 – O critério de distinção entre procedimentos de inspecção internos e externos extrai-se do art. 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, em que se esclarece que o procedimento é interno «quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos» e é externo «quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso».
O critério de distinção entre procedimentos de inspecção internos e externos assenta, assim, na existência ou não de actos praticados fora dos serviços da Administração Tributária para obtenção dos elementos relevantes: se os actos se praticaram exclusivamente nesses serviços, está-se perante um procedimento interno; se algum ou alguns actos necessários para apurar os factos tributários foram praticados fora desses serviços, «total ou parcialmente», está-se perante um procedimento externo.
O que permite concluir que a análise de documentos que foram obtidos pela Administração Tributária com base em actos praticados fora dos seus serviços é de qualificar como acto de procedimento de inspecção externa, pois, independentemente de a actividade de análise se ter efectuado nas instalações da Administração Tributária, não se baseou exclusivamente na análise formal e de coerência dos documentos de que a administração tributária dispunha sem ter praticado os actos de inspecção externa. A inspecção só será qualificável como interna quando foi efectuada com base em documentos não obtidos através de actos inspectivos exteriores aos serviços.
À face desta classificação das inspecções, a actividade da Administração Tributária subjacente ao acto impugnado assume as características de procedimento de inspecção externo, pois não se baseou em mera «análise formal e de coerência dos documentos» de que a administração tributária dispunha sem ter efectuado actos de inspecção externa, mas sim em «reanálise dos papéis de trabalho produzidos aquando da inspecção ao ano de 2001», isto é, em elementos que chegaram ao conhecimento da Administração Tributária no âmbito de uma inspecção externa, como se refere no documento n.º 6, junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral. À classificação desta «reanálise» como englobada num procedimento de inspecção externa não obsta o facto de esta nova actividade inspectiva não ter exigido deslocações exteriores aos serviços da Administração Tributária, pois para uma inspecção ter a natureza de procedimento externo não é necessário que todos os actos sejam praticados fora das instalações desses serviços, bastando, como se referiu, que «os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos (...)».
Assim, a classificação adequada dos actos inspectivos consubstanciados por tal reanálise baseada em elementos obtidos numa inspecção externa é a de actos de um procedimento de inspecção externa.
É certo que esta «reanálise dos papéis de trabalho produzidos aquando da inspecção ao ano de 2001» não configura um novo procedimento de inspecção externa com a totalidade da tramitação prevista no RCPIT, mas, devendo qualificar-se os actos praticados como sendo de um procedimento de inspecção externa, não pode deixar de se concluir que ela implica uma reabertura do procedimento de inspecção externa relativo ao ano de 2001
Por isso, a questão da admissibilidade do acto praticado deve ser apreciada sob esta perspectiva.
O art. 36.º, n.º 2, do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária estabelece que «o procedimento de inspecção é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início». A regra é reafirmada no art. 53.º do mesmo diploma, em que se estabelece que «a prática dos actos de inspecção é contínua, só podendo suspender-se em caso de prioridades excepcionais e inadiáveis da administração tributária reconhecidas em despacho fundamentado do dirigente do serviço», mas sem prejuízo dos prazos legais de conclusão do procedimento previstos naquele diploma (n.ºs 2 e 3 deste art. 53.º.).
Aquele prazo do procedimento de inspecção «poderá ser ampliado» por mais dois períodos de três meses, nas circunstâncias descritas no n.º 3 daquele art. 36.º.
Mas, como o próprio termo indica, a ampliação não prejudica a regra da continuidade, tendo aquela de ser decidida antes de o procedimento terminar. A ampliação tem de ser uma «prorrogação» e não uma reabertura ou renovação de um procedimento já terminado. Aliás, o n.º 4 do mesmo artigo, em que se estabelece que «a prorrogação da acção de inspecção é notificada à entidade inspeccionada com a indicação da data previsível do termo do procedimento», confirma que é este o sentido daquela possibilidade de ampliação.
A análise dos elementos recolhidos durante a acção de inspecção externa integra-se no âmbito do procedimento de inspecção, pois ele tem de culminar com um relatório em que têm de ser identificados e sistematizados os factos detectados e sua qualificação jurídico-tributária, inclusivamente a «descrição dos factos fiscalmente relevantes que alterem os valores declarados ou a declarar sujeitos a tributação, com menção e junção dos meios de prova e fundamentação legal de suporte das correcções efectuadas» [art. 63.º, n.º s 2 e 3 alínea i), do RCPIT, relativo à «conclusão do procedimento de inspecção»].
Esse relatório é o momento procedimental adequado para apreciar todos os elementos probatórios apurados, inclusivamente os fornecidos pelo sujeito passivo no exercício de direito de audição que procedimentalmente o precede.
Não há, assim, qualquer cobertura legal para, depois de elaborado o referido relatório e da «conclusão do procedimento de inspecção», ser efectuada reanálise dos elementos recolhidos durante o procedimento de inspecção externa e elaborado um novo relatório, pois tal consubstancia uma reabertura do procedimento.
6 – A Requerente tem, assim, razão ao invocar falta de previsão legal para «reabrir, reanalisar, modificar ou promover aditamentos a quaisquer relatórios de inspecção finalizados, concluídos, fechados (e com eles, fechado também o procedimento inspectivo em causa)» (art. 28.º do pedido de constituição do tribunal arbitral), como fundamento de ilegalidade da referida «reanálise».
Com efeito, o art. 55.º da LGT, em sintonia com o art. 266.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que «a administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários».
Concretizando o «princípio da legalidade», o art. 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo [subsidiariamente aplicável, por via do art. 2.º, alínea c), da LGT] preceitua que «os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos».
Aquela limitação derivada dos poderes que sejam conferidos à Administração evidencia que o princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa». ( 1 )( 2 ) ( 3 )
Assim, é de concluir, desde logo, que a falta de suporte legal para a «reanálise dos papéis de trabalho produzidos aquando da inspecção» externa, depois da elaboração do relatório da inspecção externa e de estar concluído este procedimento, implica violação do princípio da legalidade. ( 4 )
É de notar, neste contexto, que o facto de a Requerente não invocar expressamente a violação deste princípio como vício do acto impugnado, não é obstáculo a que se dê este enquadramento jurídico à invocação da falta de fundamento legal para a referida «reanálise», que invoca.
Na verdade, a aplicação do enquadramento jurídico adequado não se confunde com alteração da causa de pedir e vigora no nosso direito processual o princípio ius novit curia, que se traduz em o tribunal não estar limitado pelas alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664.º do Código de Processo Civil).
Em processos impugnatórios, quando a causa de pedir é um determinado comportamento ilegítimo da Administração, que é invocado como fundamento do pedido de anulação, não há «necessidade de relacionar o facto com a fattispecie normativa», podendo «o juiz aplicar uma norma que o recorrente não tenha indicado, ou uma norma diferente daquela que por ele tenha sido erradamente indicada, desde que o recorrente tenha correctamente qualificado a conduta como ilegal, por referência ao conteúdo material de uma norma efectivamente existente». ( 5 )
No caso em apreço, a Requerente invocou falta de fundamento legal para «reabrir, reanalisar, modificar ou promover aditamentos a quaisquer relatórios de inspecção finalizados, concluídos, fechados (e com eles, fechado também o procedimento inspectivo em causa)», pelo que a questão da existência ou não de cobertura legal para esta actuação é explicitamente colocada, não havendo qualquer obstáculo a que seja apreciada a luz do princípio da legalidade, apesar de não expressamente indicadas as normas que o definem.,
Conclui-se, assim, que é ilegal, por falta de fundamento na lei, o que consubstancia ofensa do princípio da legalidade, a referida «reanálise» de elementos obtidos pela Administração Tributária no âmbito do direito de audição de um procedimento de inspecção depois de elaborado o relatório e concluído o procedimento.
7 – Para além desta ofensa do princípio da legalidade, a referida actuação da Administração Tributária implica violação do preceituado no art. 36.º, n.ºs 2, 3 e 4, do RCPIT, que estabelecem a regra da continuidade da inspecção e estabelecem rigorosamente prazos para conclusão do procedimento e sua prorrogação e estabelecem taxativamente as circunstâncias em que esta pode ocorrer.
Com efeito, estas normas não podem deixar de considerar-se como tendo natureza imperativa, pois só assim assumem alguma utilidade.
Ora, como bem defende a Requerente, a admissibilidade da actuação que a Administração Tributária levou a cabo no caso em apreço, reconduzir-se-ia a que, ao arrepio de tal natureza imperativa daquelas normas, a observância de tais prazos e condições de prorrogação fosse meramente facultativa, pois a Administração Tributária sempre estaria a tempo de, depois de estar concluído o procedimento e de tais prazos terem transcorrido, proceder à análise que deveria ter feito e não fez antes da conclusão do procedimento e nos prazos previstos na lei, reabrindo «informalmente e sem sujeição ao regime de prorrogação, o procedimento de inspecção, através de uma, assim denominada, “inspecção interna” a tanto dirigida» (como bem diz a Requerente no art. 41.º do pedido de constituição do tribunal arbitral).
8 – Mas, a referida actuação da Administração Tributária não se restringe à violação de regras procedimentais, afectando, sem fundamento legal, o direito da Requerente à segurança da situação jurídica criada na sequência da elaboração do primeiro relatório e acto de liquidação que concretizou o seu conteúdo.
Na verdade, o art. 63.º, n.º 3, da LGT (na redacção inicial, actual n.º 4), depois de estabelecer que «o procedimento da inspecção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objectivos a prosseguir», proíbe a realização de «mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas».
O objectivo daquela proibição é, em primeira linha, evitar que um mesmo contribuinte ou obrigado tributário seja sobrecarregado mais que um vez com os incómodos que as acções de fiscalização externas são susceptíveis de lhe provocar.
Mas, conjugando esta norma com as do art. 36.º, n.ºs 2 e 3, do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, em que se estabelece que «o procedimento de inspecção é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início» e apenas pode ser ampliado por mais dois períodos de três meses, nas circunstâncias aí taxativamente indicadas (sem prejuízo da suspensão nos caso previstos), conclui-se que os efeitos daquela proibição de, sem «factos novos», se realizar novo procedimento de inspecção externo respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, são amplificados, pois da globalidade deste regime legal resulta uma garantia para o contribuinte de que não pode ser alterada a definição jurídica da sua situação efectuada na sequência da conclusão do procedimento de inspecção externo, com base em factos que foram apurados pela Administração Tributária durante a inspecção.
Com efeito, como se referiu, inutilizar-se-ia toda a relevância da fixação de prazos máximos para conclusão do procedimento de inspecção se se entendesse que a Administração Tributária podia, depois de elaborado o relatório da inspecção e concluído o procedimento, elaborar novos relatórios com base nos elementos recolhidos durante a inspecção.
O alcance garantístico do referido deste regime é confirmado, de forma patente, pelo art. 64.º do RCPIT em que se prevê a possibilidade de ampliação da proibição de alteração da posição jurídica assumida no relatório da inspecção, através do sancionamento das conclusões do relatório da inspecção, que impede a Administração Tributária de «proceder relativamente à entidade inspeccionada em sentido diverso do teor das conclusões do relatório nos três anos seguintes ao da data da notificação destas, salvo se se apurar posteriormente simulação, falsificação, violação, ocultação ou destruição de quaisquer elementos fiscalmente relevantes relativos ao objecto da inspecção» (n.º 4 deste art. 64.º).
Assim, é de concluir que o contribuinte tem direito a que, depois de elaborado o relatório da inspecção externa e concluído o respectivo procedimento, não seja alterada a regulação da sua situação jurídica efectuada com base nos factos apurados na inspecção, sem que existam «factos novos».
No caso em apreço, as novas correcções efectuadas após a «reanálise dos papéis de trabalho produzidos aquando da inspecção ao ano de 2001», não se baseiam, pelo menos nessa parte, em «factos novos», pois não se podem considerar como tal factos cujos elementos comprovativos a Administração Tributária já tinha em seu poder no momento em que concluiu o procedimento de inspecção.
Por isso, é de concluir que a actuação da Administração Tributária ao elaborar o novo relatório de inspecção e praticar os actos subsequentes não se compagina com tal regime legal e ofende o direito da Requerente a não ver alterada a situação jurídica definida na sequência do primeiro relatório.
9 – Conclui-se, assim, que a referida «reanálise» de elementos fornecidos no exercício do direito de audição, depois de o procedimento estar findo, implica violação dos referidos arts. 36.º, n.ºs 2, 3 e 4, do RCPIT e do 63.º, n.º 3 (redacção inicial) da LGT, entendidos não só com o seu alcance procedimental, mas também do direito à segurança jurídica que da conjugação dos respectivos regimes emana.
A violação destas normas constitui vício de violação de lei, que justifica a anulação daquele acto procedimental, nos termos do art. 135.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por força do disposto na alínea c) do art. 2.º da LGT.
A anulação de tal acto de «reanálise» repercute-se nos consequentes actos de alteração da matéria tributável e de liquidação de IRC, derrama e juros compensatórios, que têm como pressuposto aquela actuação ilegal, pois são nulos os actos consequentes de actos anulados, por força do disposto no art. 133.º, n.º 2, alínea i), do CPA.
Procede, assim, o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC e derrama consequente n.º …, respeitante ao exercício de 2001, no montante de € 279.001,94 e da declaração de ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios associados num montante de € 35.337,68, no total de € 314.339,62.
10 – A Requerente pede, ainda, o reembolso do montante indevidamente pago de € 314.339,62, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde …-8-2005, até integral reembolso daquela quantia.
De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».
Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».
Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário» deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Cumpre, assim, apreciar o pedido de reembolso do montante indevidamente pago de € 314.339,62, acrescido de juros indemnizatórios.
11 – No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do acto de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».
No que concerne aos juros indemnizatórios, é também é claro que a ilegalidade do acto é imputável à Administração Tributária, que, por sua iniciativa praticou sem suporte legal.
Tem-se entendido, com base na referência que nesta norma se faz a «erro» que só em nos casos de anulações com fundamento em vícios respeitantes à relação jurídica tributária há lugar a pagamento de juros indemnizatórios, não sendo reconhecido tal direito no caso de anulações por vícios procedimentais ou de forma (sem prejuízo do direito de indemnização derivado de actos ilegais que o lesado sempre tem nos termos gerais da responsabilidade civil extracontratual, se se verificarem os respectivos pressupostos). ( 6 )
No caso presente, está-se perante um vício que, apesar de radicar em violação de normas de natureza procedimental relativas ao procedimento de inspecção tributária, é reconduzível a um vício atinente à relação jurídica tributária, pois o que está em causa é o direito que o contribuinte tem a ver mantida a definição do conteúdo desta relação que foi efectuada pelo primeiro acto de liquidação adicional, praticado na sequência da conclusão do procedimento de inspecção externa.
A posição da administração tributária, assente no entendimento de que, depois de concluído o procedimento de inspecção externa, pode reabri-lo e voltar a definir o conteúdo da relação jurídica tributária em termos diferentes dos que resulta do acto praticado o termo daquele procedimento constitui um vício de violação de lei substantiva, por ser incompatível com um regime jurídico que já não tem a ver com o procedimento tributário de inspecção, mas com a protecção substantiva do contribuinte: o direito à segurança jurídica criada com a consolidação do acto que, com base no procedimento de inspecção, definiu a sua situação jurídica perante a Administração Tributária, que é reconhecido ao contribuinte pelo regime dos arts. 36.º, n.ºs 2, 3 e 4, do RCPIT e do 63.º, n.º 3 (redacção inicial) da LGT.
Por isso, está-se perante um vício de violação de lei substantiva, consubstanciado em erro nos pressupostos de direito, imputável à Administração Tributária
Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia de € 314.339,62 e contados desde … de Agosto de 2005 até ao integral reembolso do referido montante.
Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:
– julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC e derrama, no valor de € 279.001,94;
– julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação dos correspondentes juros compensatórios, no valor € 35.337,68;
– julgar procedente o pedido de reconhecimento do direito da Requerente ao reembolso dos montantes pagos, num total de € 314.339,62:
– julgar procedente o pedido de reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios, à taxa legal, desde a data do seu pagamento – … de Agosto de 2005 – até à data do seu integral reembolso.
Valor do processo: De harmonia com o disposto no art. 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 314.339,62.
Custas: Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 5.508,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 29-6-2012
Os Árbitros
Jorge Lopes de Sousa (presidente e relator)
Prof.ª Doutora Paula Rosado Pereira
Dr. António Lobo Xavier