Processo n.º 5/2011-T
Decisão arbitral
I. Relatório
1. …, SGPS, SA, pessoa colectiva n.º …, com domicílio fiscal na … (de ora em diante, a Requerente), apresentou, em 20-09-2011, invocando o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, pedido de pronúncia arbitral sobre os atos de liquidação adicional de IRC n.º …, de liquidação de juros compensatórios n.º … e de acerto de contas n.º …, relativos ao seu exercício de 2007, sendo Requerida a Direcção-Geral dos Impostos.
2. No pedido de pronúncia arbitral, em conformidade com o disposto no artigo 10.º, n.º 2, al. g) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (de ora em diante, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), a Requerente manifestou a intenção de designar árbitro nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do referido RJAT.
Em consequência, a constituição do Tribunal Arbitral processou-se em conformidade com o disposto na alínea b) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 6.º e nos n.ºs 2, 4, 5 e 6 do artigo 11.º do RJAT, tendo as partes procedido à designação do respectivo Árbitro, o Senhor Dr. Rui Barreira, indicado pela Requerente, e o Senhor Dr. João Menezes Leitão, indicado pela Requerida, os quais, por seu turno, com observância do prescrito pelo artigo 3.º, n.º 2, al. b) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, designaram por acordo o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Jorge Lino Alves de Sousa como Árbitro-Presidente.
A reunião prevista no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT teve lugar em 10-11-2011, que é assim a data em que o Tribunal Arbitral se considera constituído (artigo 11.º, n.º 8 do RJAT).
Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
3. A pretensão objecto do pedido de pronúncia arbitral consiste na declaração de ilegalidade do mencionado ato de liquidação de IRC no que concerne à correção fiscal no valor de € 48.250.000,00, efectuada na esfera individual da sociedade …, SGPS, SA, por não aceitação de uma menos-valia apurada com a liquidação de uma sua participada, na sequência da desconsideração, por aplicação da cláusula geral antiabuso do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, de uma operação de distribuição de dividendos prévia à referida liquidação, correção essa a que corresponde o valor proporcional de imposto liquidado de € 7.436.027,40.
4. O quadro alegatório em que se sustenta o pedido de pronúncia arbitral prende-se, em breve súmula, com o seguinte:
4.1. A sociedade …, SGPS, SA (a seguir, …)era detida, desde 1 de Julho de 2002, a 100% pela sociedade …, SGPS, SA (a seguir, …), a qual adquiriu a participação na primeira, em 1 de Julho de 2002, por €96.500.000,00.
4.2. A … alienou à Requerente, ... SGPS, SA, em 28 de Dezembro de 2006, a participação de mais de 99% de que era titular na …, SGPS, SA, com o que obteve uma mais-valia contabilística de €145.082.393,25, excluo na IMC﷽﷽articipaç valorzaça adopçRRE, accionista efída de tributação nos termos conjugados dos então artigos 46.º do Código do IRC (CIRC) e 31.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), e um resultado líquido de exercício de €143.405.274,65.
4.3. Neste mesmo ano de 2006, a …, acionista única da …, apurou um resultado líquido de €140.272.729,00, por força da adopção, pela primeira vez, do método da equivalência patrimonial na valorização da sua participação na …, que foi de €140.295.620,00, correspondente à diferença da apropriação do resultado da … (€143.405.275,00) e de uma amortização de “trespasse” (€3.109.655,00), tendo a participação da … na … passado a estar contabilizada, em 31 de Dezembro de 2006, pelo valor de €177.712.169,00, correspondente ao valor do capital próprio da … à mesma data, sem que o montante de €143.405.275,00 tenha concorrido para a formação do lucro tributável da …, dado o disposto no n.º 7 do artigo 18.º do Código do IRC, que estatui a exclusão de tributação dos efeitos da adopção do método da equivalência patrimonial.
4.4. Dada a alienação da participação na …, SGPS, SA, a … deixou de ter qualquer participação social, pelo que foram adoptadas pelo Grupo duas decisões: por um lado, distribuir os fundos que pertenciam à … e que tinham resultado da mais-valia realizada com a transmissão da …, já que não serviriam para o exercício de qualquer atividade se permanecessem na sociedade, mas eram necessários para o esforço de reafectação das disponibilidades financeiras geradas e existentes no seio do Grupo, necessárias para potenciar os investimentos estratégicos na área dos media e conteúdos e para reduzir a exposição do endividamento externo; por outro lado, proceder à dissolução e liquidação da sociedade ..., dada a ausência de atividade que se perspectivava.
4.5. A ..., que tinha um capital próprio de €177.712.169,00 procedeu, em 27 de Abril de 2007, à distribuição e pagamento de dividendos à acionista única … no montante de €177.650.000,00, lucros distribuídos estes que foram excluídos da base tributável da … por força do então disposto no artigo 32.º, n.º 1 do EBF e no artigo 46.º do CIRC.
4.6. Em 19 de Outubro de 2007, a … foi objecto de dissolução e liquidação, tendo sido de €0,00 o valor atribuído à acionista única …, em resultado da partilha do património da …, pelo que a …, nos termos dos então artigos 75.º, n.º 2, al. b) e 42.º, n.º 3 do CIRC, registou e declarou uma menos-valia fiscal de €48.250.000,00, correspondente a 50% da diferença negativa entre o valor de €0,00 atribuído em resultado da partilha e o valor da aquisição da participação na … de €96.500.000,00.
4.7. Estas atuações tiveram como objectivos aproximar da cúpula estratégica do Grupo os negócios operativos desenvolvidos nas áreas de media e da produção de conteúdos e focar nessas áreas a atividade e as disponibilidades financeiras do Grupo.
4.8. A Administração Fiscal veio, porém, a proceder a uma correção fiscal, no mencionado valor de €48.250.000,00, em relação à sociedade …, por não aceitação da menos-valia apurada com a liquidação da sua participada …, por força da desconsideração, por aplicação da cláusula geral antiabuso do n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária (LGT), da operação de distribuição de dividendos prévia à referida liquidação.
4.9. O apuramento da menos-valia que resultou dos atos de distribuição de dividendos e de liquidação da participada não constitui uma atuação abusiva, por não envolver a utilização de “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”, não lhe sendo aplicável o comando do n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária.
4.10. O que aconteceu “foi, de forma simples e objectiva, o seguinte: pretendendo dissolver e liquidar uma sociedade em cujo capital participava integralmente (…) – porque a sua existência autónoma era já desprovida de interesse económico, na perspectiva dos interesses do Grupo de que ambas faziam parte – o respectiva sócio (…), cumprindo todos os preceitos legais aplicáveis, decidiu proceder previamente à distribuição para si próprio dos resultados que figuravam no correspondente balanço, os quais assumiam um valor que em parte alguma foi posto em causa pela Administração fiscal”, existindo “uma clara racionalidade económica quer na distribuição dos lucros, quer na dissolução e liquidação da ...”.
4.11. O ato impugnado padece de “fundamentação insuficiente e ilegal” quanto à aplicação da norma antiabuso por “interpretação errónea e insuficiente dos elementos “meio e normativo””.
4.12. A liquidação impugnada, quanto à correção resultante da aplicação da cláusula antiabuso, é ilegal por violação do artigo 103.º da CRP, do n.º 2 do artigo 38.º da LGT e do artigo 63.º do CPPT.
5. A Requerida Direcção-Geral dos Impostos apresentou contestação, na qual, em síntese abreviada, alegou o seguinte:
5.1. A atuação em apreciação, dados os termos em que a sociedade … procedeu à distribuição de dividendos e foi objecto de dissolução e liquidação, teve como único objectivo a criação artificial de uma menos-valia fiscal, sem a mínima correspondência com uma perda económica efetiva, com vista apenas a gerar no Grupo encabeçado pela Requerente um prejuízo fiscal com efeitos no ano de 2007 e em anos seguintes por força do instituto do reporte, pelo que “é um exemplo paradigmático de uma atuação anómala, anormal e abusiva, por total desconformidade com a realidade económica que presidiu ao seu surgimento, que, por isso, não pode deixar de ser sujeita, em nome do princípio da legalidade e da capacidade contributiva, à aplicação da cláusula anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT”.
5.2. Mediante as atuações empreendidas, “a …, titular de uma participação de 100% no capital social da sociedade ..., adquirida, em 1 de Julho de 2002, por €96.500.000,00 e a que em 31 de Dezembro de 2006 atribuiu contabilisticamente o valor de €177.712.169,00, num investimento, portanto, claramente positivo e manifestamente lucrativo, “conseguiu” no ano seguinte de 2007 – mediante o esvaziamento dos capitais próprios, no montante de € 177.650.000,00, da … e a subsequente configuração de um resultado negativo de partilha, dada a atribuição, após liquidação, à acionista única de €0,00 – transformar tal investimento lucrativo, a que corresponderia um rendimento de aplicação de capitais no montante de €81.150.000,00 (diferença entre custo de aquisição de €96.500.000,00 e resultado de partilha de €177.650.000,00), numa perda fiscal, apurando artificialmente uma menos-valia fiscal, nos termos do artigo 75.º, n.º 2, alínea b) e do artigo 42.º, n.º 3 do CIRC, de €48.250.000,00”.
5.3. O contribuinte, com esta atuação, procurou “ficcionar e construir artificiosamente uma perda fiscal que nunca suportou”, pelo que “ao reagir contra as consequências fiscais desta atuação, em conformidade com o n.º 2 do art. 38.º da LGT, a Administração não está, de modo algum, a obrigar o contribuinte a levar a cabo o comportamento ou a obter o resultado mais tributado de entre todas as opções disponíveis; o que está simplesmente é a impedir a configuração artificial e a utilização abusiva de uma perda em termos fiscais que nunca foi suportada em termos económicos”.
5.4. “O esvaziamento da … em termos de todo e qualquer ativo apenas é explicável pelo intuito de, por essa via, se obter uma menos-valia fiscal”.
5.5. “(N)um normal processo de liquidação e partilha seria apurado um rendimento de aplicação de capitais, determinado nos termos do artigo 75.º, n.º 2, al. a) do CIRC, no montante de €81.150.000,00 (correspondente à diferença entre o custo de aquisição - €96.500.000,00 - e o resultado da partilha - €177.650.000,00) e a tal rendimento seria aplicável a dedução prevista no artigo 46.º do CIRC”.
5.6. Os atos jurídicos em que culminou a atuação subjudice, que tiveram como único fito a criação de perdas artificiais para utilização atual ou futura no Grupo encabeçado pela Requerente, sem qualquer perda económica subjacente, revestem uma forma anómala, inusual, artificiosa, pelo que constituem uma operação abusiva, violando a intenção legislativa presente no artigo 75.º, n.º 2, al. b) do CIRC.
5.7. A fundamentação da aplicação da cláusula antiabuso foi efectuada em conformidade com os requisitos estabelecidos no n.º 9 do artigo 63.º do CPPT.
5.8. Verificam-se, no caso em apreço, todos os pressupostos legais estabelecidos na previsão do artigo 38.º, n.º 2 da LGT.
6. Para além destas alegações relativas ao mérito da causa, a Requerida, na sua contestação, defendeu-se previamente por exceção, tendo invocado que:
6.1. O ato de autorização de aplicação de norma antiabuso, que deve ser sindicado através de ação administrativa especial, a interpor nas circunstâncias de tempo previstas no artigo 58.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), atento o disposto no n.º 2 do artigo 97.º do CPPT e no artigo 191.º do CPTA, constitui, por força do n.º 10 do artigo 63.º do CPPT, um ato destacável para efeitos de impugnação contenciosa, pelo que, caso não seja impugnado, nos termos mencionados, a decisão nele contida consolida-se como caso decidido ou resolvido, o que se projeta no ato final em que se insere, que não pode ser sindicado com fundamento em vícios próprios do ato destacável.
6.2. A Requerente não coloca em causa nenhum elemento atinente à liquidação propriamente dita, mas antes esgrime argumentos contra a decisão que autorizou a aplicação da norma antiabuso e que projetou na liquidação em causa a correção contestada, pelo que se verifica a inadequação do meio processual utilizado como forma de sindicância do ato que autorizou a aplicação da norma antiabuso.
6.3. A sindicabilidade do ato que autorizou a aplicação da norma antiabuso ficaria, em qualquer caso, prejudicada pela circunstância de ser manifesta a intempestividade da presente ação aferida face ao momento em que ocorreu a notificação da decisão que autorizou a aplicação da norma antiabuso.
6.4. A Requerente carece de legitimidade para, em nome próprio, “atacar” uma correção efectivada na esfera individual de uma sua participada, já que a relação que se estabelece entre as sociedades, integradas em grupos abrangidos pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades, não prejudica a manutenção da autonomia jurídica e patrimonial da sociedade dominada, o que impossibilita que a sociedade dominante venha a pôr em causa ato decisório em matéria tributária que aquela tenha acatado.
6.5. Sem conceder, o Tribunal Arbitral, atento o que está regulado na Lei n.º 10/2011 e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, é incompetente em razão da matéria para o presente pedido de pronúncia arbitral, porquanto o que a Requerente efetivamente pretende é a declaração de ilegalidade da decisão que autorizou a aplicação das normas antiabuso, matéria que não é susceptível de resolução por via arbitral.
7. A Requerente pronunciou-se, por escrito, sobre as exceções invocadas pela Requerida na sua contestação, sustentando a sua improcedência, com base, designadamente, na alegação de que a decisão de autorizar a aplicação de normas antiabuso não é um ato destacável e, mesmo que o fosse, a ausência de reação contenciosa autónoma ao mesmo não implicaria a preclusão da reação contra o ato final com fundamento nas mesmas ilegalidades do primeiro.
8. Em 14-12-2011 teve lugar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, no âmbito da qual o Tribunal Arbitral admitiu, em atenção ao disposto na al. b) do n.º 1 do mesmo artigo 18.º, a oposição escrita apresentada pela Requerente às questões de natureza exceptiva suscitadas pela resposta da Requerida
Na mesma reunião, ao abrigo da al. a) do n.º 1 do artigo 18.º do RJAT, o Tribunal Arbitral decidiu, com o acordo das partes, proferir, de modo autónomo, decisão sobre as exceções invocadas até ao dia 31-01-2012.
Cumpre, então, agora, proferir decisão.
II. Thema decidendum
9. As questões de natureza exceptiva que, por poderem obstar ao conhecimento do pedido e ao julgamento de mérito do objecto do processo, é necessário apreciar e decidir, de modo autónomo, no presente processo arbitral, são as seguintes:
a) competência do Tribunal Arbitral;
b) “caso decidido” quanto à correção contestada;
c) legitimidade da Requerente;
d) adequação processual e tempestividade da reação impugnatória.
A apreciação de cada uma destas exceções supõe, evidentemente, que a respectiva decisão não seja prejudicada pela solução dada a outra (artigo 660.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força da al. e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).
III. Fundamentação fáctica
10. Antes de entrar na apreciação destas questões, cumpre apresentar a matéria factual que é relevante para a respectiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo tributário junto e em face dos factos alegados, se fixa como segue:
I. A Requerente, …SGPS, SA, encabeça um grupo de sociedades sujeito, no exercício de 2007, ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), do qual faz parte a sociedade …, SGPS, SA.
II. No exercício de 2007 verificou-se a saída do perímetro do grupo da sociedade …, SGPS, SA, por, nesse ano, ter sido dissolvida e liquidada.
III. A sociedade … era titular, desde 1 de Julho de 2002, de uma participação de 100% na sociedade …, adquirida por €96.500.000,00.
IV. A … alienou à Requerente, …SGPS, SA, em 28 de Dezembro de 2006, a única participação de que era titular, a saber, uma participação de mais de 99% na …, SGPS, SA, pelo valor de €222.000.000,00, com o que obteve uma mais-valia contabilística de €145.082.393,25 e um resultado líquido de exercício de €143.405.274,65.
V. No ano de 2006, a … apurou um resultado líquido de €140.272.729,00, por força da adopção, pela primeira vez, do método da equivalência patrimonial na valorização da sua participação na …, que foi de € 140.295.620,00, correspondente à diferença da apropriação do resultado da ... (€143.405.275,00) e de uma amortização de “trespasse” (€3.109.655,00), tendo a participação da … na … passado a estar contabilizada, em 31 de Dezembro de 2006, pelo valor de €177.712.169,00, correspondente ao valor do capital próprio da … à mesma data
VI. A …, que possuía capitais próprios de €177.712.169,00, procedeu, em 27 de Abril de 2007, à distribuição e pagamento de dividendos à acionista única … no montante de €177.650.000,00.
VII. Em 19 de Outubro de 2007, a … foi objecto de dissolução e liquidação, tendo o valor atribuído à acionista única …, em resultado da partilha do património da …, sido de €0,00, pelo que a …, nos termos dos artigos 75.º, n.º 2, al. b) e 42.º, n.º 3 do CIRC, declarou uma menos-valia fiscal de €48.250.000,00, correspondente a 50% da diferença negativa entre o valor de €0,00 atribuído em resultado da partilha e o valor da aquisição da participação na … de €96.500.000,00.
VIII. Em 20 de Abril de 2010, a … foi notificada, através do ofício n.º …, do despacho de 13 de Abril de 2010, para abertura do procedimento próprio para aplicação das normas antiabuso, nos termos do n.º 1 do artigo 63.º do CPPT para os efeitos consignados no n.º 2 do artigo 38.º da LGT.
IX. Em 18 de Junho de 2010, a … foi notificada, através do ofício n.º ... para exercer o direito de audição, no prazo de trinta dias, sobre o projeto relativo à aplicação das normas antiabuso, nos termos do n.º 5 do artigo 63.º do CPPT, o qual não foi exercido.
X. Por despacho de 16-08-2010 do Subdiretor Geral dos Impostos, em substituição do Diretor-Geral dos Impostos, foi autorizada a aplicação da norma geral antiabuso, prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, o que conduziu à não aceitação da menos-valia fiscal no valor de €48.250.000,00, deduzida pela … no … da Declaração Modelo 22 de IRC, do exercício de 2007, com base nos fundamentos constantes do relatório notificado à sociedade …, conforme ofício n.º … de 1.10.2010.
XI. Em 3 de Setembro de 2010, a … foi notificada através do ofício n.º …, da autorização da aplicação da cláusula geral antiabuso, nos termos do n.º 7 do artigo 63.º do CPPT, constando da referida notificação o seguinte:
“Fica por este meio V. Exa notificada da autorização de aplicação da cláusula geral anti-abuso – artigo 38.º, n.º 2 da LGT – conforme despacho proferido a 16 de Agosto de 2010 pelo Substituto Legal do Diretor-Geral dos Impostos, de acordo com o disposto no artigo 63.º, n.º 7 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), e respectiva informação, que se anexam.
Mais se informa V. Exa que – conforme dispõe o artigo 63.º, n.º 10 do CPPT – esta decisão de autorização da aplicação da disposição antiabuso, é susceptível de ser impugnada através de ação administrativa especial, no prazo de três meses, a contar da presente notificação, nos termos do artigo 58.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA)”.
XII. A Requerente foi objecto dos atos de liquidação adicional de IRC n.º … , de liquidação de juros compensatórios n.º … e de acerto de contas n.º … relativos ao seu exercício de 2007, que assentam, em parte, na correção fiscal no valor de €48.250.000,00, efectuada na esfera individual da sociedade …, por não aceitação da menos-valia apurada com a liquidação da ..., dada a desconsideração, por aplicação da cláusula geral antiabuso do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, da operação de distribuição de dividendos prévia à referida liquidação, correspondendo a esta correção o valor proporcional de imposto liquidado de €7.436.027,40.
A convicção sobre os factos assim dados como provados fundou-se na prova documental junta aos autos pela Requerente (documentos 1 a 6 juntos à petição) e nos relatórios e documentos incluídos no …, especificamente no Relatório constante a fls. 73 a 81 e nos ofícios constantes a fls. 83, 85 a 121, 123 e 343 do … (paginação nossa dado o … não se encontrar previamente paginado), os quais não foram impugnados.
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão das questões prévias.
IV. Do Direito
a) Da competência do Tribunal Arbitral
11. As questões processuais susceptíveis de determinar a absolvição da instância devem ser conhecidas segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica (artigo 660.º, n.º 1 do Código de Processo Civil - CPC).
Deste modo, antes de mais nada, é necessário conhecer a matéria da competência do Tribunal Arbitral, dada a sua apreciação preceder o conhecimento de qualquer outra questão, em termos de prioridade cronológica absoluta (cfr. os artigos 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e 288.º, n.º 1, al. a) do CPC1), porquanto, com exceção precisamente da sua própria competência, o tribunal que seja incompetente está impedido, não só de apreciar o mérito da causa, mas todos os demais pressupostos processuais.
Assim, de acordo com o bem conhecido princípio da competência-competência (Kompetenz-Kompetenz), de acordo com o qual o tribunal tem competência para verificar a sua própria competência, seja qual for o critério de que ela derive, ainda que para concluir pela sua incompetência, cabe, previamente, proceder à apreciação desta matéria.
12. Como se referiu, a Requerida, na sua contestação, excepciona a incompetência do tribunal arbitral para julgar a presente demanda, fundando-se em que aquilo que a Requerente efetivamente pretende com o seu pedido de pronúncia arbitral é a declaração de ilegalidade da decisão que autorizou a aplicação das normas antiabuso, o que, segundo a Requerida, constitui matéria que não é susceptível de resolução por via arbitral, dado não constar do elenco das pretensões sujeitas a apreciação de tribunal arbitral que se encontra consagrado no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT.
13. A competência do tribunal para julgar a causa que nele foi instaurada, que constitui pressuposto processual essencial e, como tal, condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, é a medida da sua jurisdição, pelo que um certo tribunal é competente para o julgamento de uma certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação. Consabidamente, a verificação do tribunal competente mediante o preenchimento desses critérios opera como factor de legitimação dos poderes de que esse tribunal se pode servir para apreciar a admissibilidade da ação, instrui-la e julgá-la.
Pois bem, em geral a competência do tribunal deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam, tendo em conta o modo como surgem formulados na petição inicial, independentemente da sua procedência ou não. A competência apura-se, portanto, de acordo com o quiddisputatum ou quiddecidendum tal como o mesmo é configurado pelo autor (vd., assim, entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.03.2010, proc. 2425/07.1TBVCD.P1.S1 e de 10.12.09, proc. 09S0470, divulgados in www.dgsi.pt).
Deste modo, para a determinação do Tribunal competente deve ter-se em atenção a descrição do objecto do processo apresentada pelo autor na petição inicial, a apresentação da pretensão deduzida em juízo, pelo que cabe, no caso, atender aos termos em que a Requerente configurou o pedido de pronúncia arbitral.
14. O pedido objecto dos presentes autos arbitrais é a declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC e juros compensatórios e da demonstração de acerto de contas, acima identificados, relativos ao exercício de 2007, que titulam imposto liquidado no montante de € 13.045.662,09.
O ato de liquidação impugnado é contestado apenas quanto à correção, a que corresponde o valor proporcional de imposto liquidado de €7.436.027,40, “no valor de € 48.250.000,00, efectuada na esfera individual da sociedade …, SGPS, SA, por não aceitação de uma menos-valia apurada com a liquidação de uma sua participada, na sequência da desconsideração, por aplicação da cláusula geral anti-abuso do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, de uma operação de distribuição de dividendos prévia à referida liquidação”.
Verifica-se, assim, em atenção ao modo como configura a pretensão no seu requerimento de pronúncia arbitral, que a Requerente formula pedido dirigido contra os atos de liquidação adicional de IRC n.º …, de liquidação de juros compensatórios n.º … e de acerto de contas n.º …, relativos ao seu exercício de 2007, em ordem à respectiva anulação, com base em vícios de violação de lei que são diretamente imputados à liquidação subjudice.
Ora, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, e em atenção ao disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, a competência dos tribunais arbitrais tributários compreende a apreciação de pretensão atinente à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, no caso do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, que é administrado pela Direção-Geral dos Impostos2.
Desta forma, atento o facto de a Requerente formular pedido de anulação da liquidação impugnada, invocando como causa de pedir a respectiva ilegalidade, ainda que especificamente fundada na ilegitimidade jurídica da aplicação da norma antiabuso, cabe julgar este Tribunal como competente.
Na verdade, não é o ato de aplicação da cláusula antiabuso que constitui o objecto do pedido formulado pela Requerente –caso em que se colocaria a necessidade de recurso à ação administrativa especial, para o que não se admite arbitragem tributária, como se retira do elenco taxativo constante do artigo 2.º do RJAT e se evidencia no confronto com os meios processuais previstos no artigo 97.º do CPPT – mas diretamente a liquidação identificada, sendo os vícios apontados na petição nela configurados como vícios da própria liquidação.
A demanda, tal como se encontra formatada pela Requerente, inclui-se, pois, no âmbito da competência do Tribunal Arbitral, conforme é fixada pela alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
Termos em que se julga improcedente a invocada exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral.
b) Do “caso decidido ou resolvido”
15. A matéria exceptiva alegada pela Requerida que importa apreciar de seguida prende-se com a verificação da existência de caso decidido ou caso resolvido.
A este respeito, a Requerida assinala que a Requerente, na sua petição, não coloca em causa nenhum aspecto atinente à liquidação tributária, não apontando qualquer vício de violação de lei que especificamente a inquine, mas antes dirige a sua censura contra a decisão prévia, tomada ao abrigo do artigo 63.º do CPPT, de autorização da aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária.
Argumenta, então, a Requerida que o ato de autorização de aplicação da cláusula geral antiabuso previsto no n.º 7 do artigo 63.º do CPPT constitui um ato procedimental destacável, por força do disposto no n.º 10 do mesmo artigo 63.º, que determina que tal ato é “passível de recuso contencioso autónomo”. Nestes termos, sustenta a Requerida o seguinte: “O carácter de ato destacável e a consequente impugnabilidade direta significam ainda que, se o ato não for impugnado nas circunstâncias descritas, a decisão neles contida se consolida, formando-se caso decidido ou resolvido, projetando-se inelutavelmente no ato final em que se insere, que não pode ser sindicado com fundamento em vícios (desconformidades) próprios do ato destacável”.
Temos, pois, em suma, que a Requerida alega que, perante a possibilidade de impugnação contenciosa autónoma e direta do ato de autorização da aplicação da cláusula antiabuso, a ausência de reação contra o mesmo, mediante a competente ação administrativa especial, precludiu o direito de impugnação do ato final de liquidação com que culminou o procedimento no que concerne à matéria factual e jurídica que deveria ser suscitada a respeito de tal ato procedimental.
Vale isto por dizer que a Requerida invoca o denominado “caso decidido” ou “caso resolvido”.
Cabe, então, proceder à apreciação desta questão.
16. Antes de mais, importa consignar que, efetivamente, os elementos de facto e de direito que são invocados para sustentar a ilegalidade da liquidação objecto dos presentes autos arbitrais limitam-se exclusivamente à aplicação da cláusula geral antiabuso, não constando do pedido de pronúncia arbitral qualquer outra matéria factual ou jurídica que, para além desta, seja convocada em relação à liquidação impugnada.
Com efeito, o que se encontra em causa é, para utilizar a formulação, já acima citada, da própria Requerente, “a correção efectuada na esfera individual da …, por não aceitação da menos-valia apurada com a liquidação da …, na sequência da desconsideração, por aplicação da cláusula geral anti-abuso do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, da operação de distribuição de dividendos prévia à referida liquidação”.
Constata-se, pois, que a impugnação que a Requerente dirige contra o ato de liquidação adicional em causa convoca a respectiva ilegalidade em atenção à decisão de aplicação da cláusula antiabuso e dos vícios de que padece.
17. Pois bem, cabe reconhecer que o ato de autorização da aplicação da norma antiabuso constitui um ato administrativo relativo a questão tributária que assume a natureza de ato procedimental destacável para efeitos da sua impugnação contenciosa, o que se traduz na autonomização da sua específica impugnação em relação à impugnação do ato final do procedimento, a liquidação tributária, que tem esse ato como pressuposto.
Nos termos do n.º 1 do artigo 63.º do CPPT3,a liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições antiabuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende de abertura para o efeito de procedimento próprio. Ora, prescreve o n.º 7 deste mesmo artigo 63.º que: “A aplicação das disposições antiabuso será prévia e obrigatoriamente autorizada, após a observância do disposto nos números anteriores, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em que ele tiver delegado essa competência”, determinando o n.º 10 da mesma disposição que: “A autorização referida no n.º 7 do presente artigo é passível de recurso contencioso autónomo”.
Pois bem, como refere o Conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, vol. I, 6.ª ed., 2011, p. 583: “O ato que autoriza a aplicação da disposição antiabuso é contenciosamente recorrível, porque expressamente se refere a sua recorribilidade, no n.º 10 deste art. 63.º”, o que revela que se entendeu “atribuir a tal ato a natureza de ato destacável para efeitos de impugnação contenciosa”. Deste modo, continua este Autor, “(s)endo destacável o ato do dirigente máximo do serviço que autorize a aplicação da disposição antiabuso, os vícios de que ele enferme, apenas podem ser invocados na ação administrativa especial que vise a sua anulação, não podendo ser fundamento de impugnação do subsequente ato de liquidação”.
Este entendimento tem sido sempre seguido pela doutrina que explicitamente considerou este aspecto do regime da aplicação de disposição antiabuso. Assim, JOÃO FILIPE PACHECO DE CARVALHO, “O regime procedimental de aplicação das normas anti-abuso” inFiscalidade, n.º 23 (Julho/Setembro 2005), pp. 76-77, abrigando-se expressamente à posição, acima citada, de LOPES DE SOUSA, consigna o seguinte: “Por força de expressa disposição nesse sentido, a decisão de autorização em análise é susceptível de impugnação autónoma segundo a forma da ação administrativa especial. Trata-se de um ato que assume a natureza de ato destacável”. Por seu lado, FRANCISCO DE SOUSA DA CÂMARA, “As operações de reestruturação e a cláusula anti-abuso prevista no artigo 67.º/10 do CIRC” in Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, 2009, p. 109 escreve a este propósito: “O contribuinte terá a possibilidade de recorrer contenciosamente daquela decisão (hoje, mediante o recurso a uma ação administrativa especial) a propor no prazo de três meses, se se tratar de um ato anulável ou a todo o tempo se estiver perante um ato nulo ou ato inexistente. Sendo este um ato destacável, os vícios próprios do ato devem ser atacados de imediato, sob pena de se consolidarem na ordem jurídica e não poderem mais ser objecto de impugnação aquando da prática do ato de liquidação do imposto”.
Em conclusão, ao prever, no n.º 10 do artigo 63.º do CPPT, a submissão a impugnação contenciosa autónoma do ato de autorização de aplicação da cláusula antiabuso, o legislador conferiu a este ato o cariz de ato destacável, com a consequência de as ilegalidades que, eventualmente, o possam afectar, não poderem constituir fundamento da impugnação da liquidação final.
18. Pretende, porém, a Requerente, na resposta às exceções que apresentou, que, neste âmbito, se tem de ter em conta as regras gerais atinentes à impugnabilidade dos atos administrativos, especificamente o disposto no artigo 51.º do CPTA, que seria “aplicável ao procedimento tributário por via das remissões das alíneas c) dos artigos 2.º da LGT e do CPPT, e aos presentes autos por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011”. Segundo a Requerente, por força da aplicação do n.º 3 deste artigo 51.º do CPTA (onde se estabelece que: “Salvo quando o ato em causa tenha determinado a exclusão do interessado do procedimento e sem prejuízo do disposto em lei especial, a circunstância de não ter impugnado qualquer ato procedimental não impede o interessado de impugnar o ato final com fundamento em ilegalidades cometidas ao longo do procedimento”), a não impugnação de um ato interlocutório – no caso a decisão de autorização de aplicação da cláusula antiabuso –não preclude o direito de dirigir a sua reação a tal respeito contra o ato final do procedimento.
Esta argumentação da Requerente não pode ser acolhida, atenta a existência de soluções legais específicas no âmbito do contencioso tributário, a que cabe dar aplicação, em conformidade com o n.º 2 do artigo 2.º e com as alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 29.º, ambos do RJAT.
No âmbito do contencioso tributário rege o artigo 54.º do CPPT, que acolhe o princípio da impugnação unitária, dado dispor o seguinte: “Salvo quando forem imediatamente lesivos do direito do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida”.
Trata-se aqui, está bem de ver, da consagração de um regime distinto daquele que, atento o mencionado artigo 51.º do CPTA, foi acolhido, em termos gerais, no contencioso administrativo. Como se dá conta no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23-6-2010, proc. n.º 01032/09 (divulgado em www.dgsi.pt): “enquanto a partir da entrada em vigor do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e da opção legislativa materializada no n.º 1 do seu artigo 51.º, a lesividade imediata do ato administrativo deixou de constituir atributo da sua impugnabilidade, pois que deixou de se exigir que o ato tenha sido praticado no termo de uma sequência procedimental, passando essa impugnabilidade a depender apenas da externalidade do ato, ou seja, da susceptibilidade de produzir efeitos jurídicos que se projetem para fora do procedimento onde o ato se insere (lesividade potencial) (...), já no âmbito do contencioso tributário a impugnabilidade do ato continua a depender da sua lesividade imediata e atual, da produção de efeitos negativos imediatos na esfera jurídica do contribuinte, pela violação dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”.
Desta forma, de acordo com o regime vigente no contencioso tributário, dado que é o ato final de liquidação que atinge a esfera jurídica dos sujeitos passivos, é esse ato de liquidação e apenas ele o ato por regra contenciosamente impugnável. Assim, por força do princípio da impugnação unitária vigente no contencioso tributário, “só há impugnação judicial do ato final do procedimento, do ato que, por fixar a posição final da administração tributária, afecta imediatamente a esfera patrimonial do contribuinte, definindo os seus direitos e deveres, embora as ilegalidades que afectem os atos preparatórios do ato tributário sejam impugnáveis em sede da impugnação deste” (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 6ª ed., 2010, p. 380).
Esta regra de definitividade horizontal conhece, porém, a exceção que resulta da presença de “disposição expressa em sentido diferente”, a que faz apelo a parte inicial do artigo 54.º do CPPT. Nestes termos, a presença de previsão legal expressa implica a destacabilidade, para efeitos de impugnação contenciosa autónoma e imediata, de ato preparatório da decisão que finaliza um procedimento.
Note-se, aliás, que a possibilidade de um certo ato administrativo assumir o carácter de ato destacável, sujeito a impugnação contenciosa direta e autónoma, é expressamente salvaguardada no n.º 3 do próprio artigo 51.º do CPTA, que ressalva o disposto em lei especial (“sem prejuízo do disposto em lei especial”). Bem assinala, a propósito desta menção do artigo 51.º, n.º 3 do CPTA, LOPES DE SOUSA (ob. cit., p. 469) que “se todos os atos procedimentais com efeitos externos são, facultativamente, passíveis de impugnação contenciosa, a previsão expressa da impugnabilidade autónoma de determinado ato, para ter algum alcance útil, deverá ser interpretada, na falta de elementos que permitam concluir em contrário, como uma manifestação de uma intenção legislativa de impor a impugnação autónoma, com o consequente corolário de ficar precludido o direito de impugnar esse ato conjuntamente com o ato final do procedimento”4.
De qualquer modo, como se disse, o que importa é dar devido relevo à especialidade do contencioso tributário, dada a solução particular que consta do artigo 54.º do CPTA. Para continuar a citar LOPES DE SOUSA (idem, ibidem), “no domínio do contencioso tributário, quando uma norma especial estabelece que um determinado ato inserido num procedimento tributário é impugnável autonomamente, é de concluir que se trata de um ato destacável para efeitos de impugnação contenciosa e que a opção legislativa especial pela impugnabilidade autónoma tem ínsita uma intenção legislativa de que esse ato apenas dessa forma pode ser impugnado, não podendo, consequentemente, as respectivas ilegalidades ser invocadas na impugnação do ato final do procedimento”.
Precisamente: o n.º 10 do artigo 63.º do CPPT estabelece que o ato de autorização da aplicação de disposição antiabuso “é passível de recurso contencioso autónomo” (hoje ação administrativa especial), pelo que tal ato em matéria tributária constitui um ato destacável5, dado estar expressamente previsto na lei o seu escrutínio judicial imediato e autónomo.
Impôs, assim, o legislador uma defesa antecipada por banda do destinatário em relação à autorização de aplicação de disposição antibuso, dado que tal ato, ainda que, em si e só por si, não lesivo, vai com grande probabilidade programar uma lesividade final. Desta forma, neste campo resulta para o destinatário um ónus de impugnação: o não exercício do direito de impugnar o ato destacável obsta à impugnação da decisão final com fundamento em ilegalidade da decisão antecedente.
19. Da factualidade objecto dos presentes autos arbitrais, conforme decorre da matéria fáctica fixada (vd. supra n.º 10, XI), resulta que, no caso vertente, o ato de autorização de aplicação da cláusula antiabuso foi notificado à sociedade … em 3 de Setembro de 2010.
Tal ato, em conformidade, com o artigo 58.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA, aplicável por força do disposto no n.º 2 do artigo 97.º do CPPT e no artigo 191.º do CPTA, deveria ser objecto de impugnação através de ação administrativa especial, a propor no prazo de três meses a contar da sua notificação para o destinatário (artigo 59.º, n.º 1 do CPTA), em caso de anulabilidade do ato, ou a todo o tempo, em caso de nulidade ou inexistência.
Ora, perante as consequências de regime associadas à natureza de ato destacável6 da autorização para aplicação de cláusula antiabuso, a saber, por um lado, que os vícios que afectem o ato destacável podem ser invocados unicamente na respectiva impugnação e não na impugnação do ato de liquidação que com base nele seja praticado e, por outro lado, que na impugnação do ato de liquidação que tem por base o ato destacável, o interessado não pode servir-se dos fundamentos (ilegalidades específicas) que dizem respeito ao ato destacável, verifica-se, em face do objecto do presente processo, que falece um pressuposto de admissibilidade da impugnação da liquidação subjudice, porquanto, ao não ter sido objecto de imediata impugnação, aquele ato de autorização da cláusula antiabuso consolidou-se na ordem jurídica, ficando precludida a possibilidade de impugnar, com base na respectiva ilegalidade, a admitir que ocorresse, a liquidação que partiu desse ato.
Como tal, o tribunal arbitral está impedido de apreciar o mérito da impugnação da liquidação, pelo que a decisão a adoptar não poderá deixar de ser a absolvição da instância.
20. Esclareça-se que esta decisão, para o caso vertente, se impõe ainda que esteja em causa uma liquidação efectuada na esfera jurídica da Requerente, como sociedade dominante de grupo sujeito ao Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades, objecto dos então artigos 63.º e seguintes do CIRC (atuais artigos 69.º e seguintes).
Com efeito, a correção tributária que foi determinada com base na aplicação da cláusula antiabuso realizou-se na esfera da sociedade …, sociedade dominada integrante do grupo de tributação sujeito ao RETGS que é encabeçado pela Requerente, em cuja esfera se procedeu à liquidação adicional subjudice.
Pois bem, importa notar, antes do mais, que no RETGS o lucro tributável do grupo assenta na soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo (artigo 64.º, n.º 1 do CIRC, atual artigo 70.º, n.º 1).
Determina, por isso, o n.º 6 do artigo 112.º do CIRC (atual n.º 6 do artigo 120.º) que: “Quando for aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades: a) A sociedade dominante deve enviar a declaração periódica de rendimentos relativa ao lucro tributável do grupo apurado nos termos do artigo 64.º; b) Cada uma das sociedades do grupo, incluindo a sociedade dominante, deve apresentar ou enviar a sua declaração periódica de rendimentos na qual seja determinado o imposto como se aquele regime não fosse aplicável”.
As sociedades integradas em grupo de sociedades submetidas ao RETGS mantêm, então, inteiramente, a respectiva personalidade jurídica e tributária, com perfeita autonomia, constituindo, cada uma, um centro de imputação autónomo para efeitos do cumprimento dos deveres acessórios e exercício dos direitos e garantias procedimentais. Assim, cada sociedade integrante do grupo tem de apresentar a sua própria declaração Modelo 22 de IRC, é objecto de procedimento de inspeção específico incidente sobre o respectivo lucro tributável, e procede à determinação do respectivo resultado seguindo plenamente as regras comuns de tributação. A declaração Modelo 22 de IRC do grupo é, subsequentemente, o reflexo (a adição) dos lucros tributáveis e prejuízos fiscais obtidos individual e autonomamente pelas empresas que integram o grupo.
Deste modo, impõe-se concluir, desde logo, que, para que uma correção concretizada na esfera de uma sociedade dominada e incidente sobre a respectiva matéria colectável individual não se repercuta na matéria colectável determinada em relação a todo o grupo de sociedades, é necessário, sempre que esteja em causa um ato destacável, que a sociedade dominada dela destinatária exerça devida e oportunamente o competente meio de reação. Quando isso não suceda, por a sociedade dominada não proceder à impugnação contenciosa autónoma no respectivo prazo legal, forma-se, como se disse, “caso decidido”, consolidando-se o ato em causa na ordem jurídica.
Ora, esta consolidação na ordem jurídica do ato em causa repercute-se, necessariamente, pelo menos prima facie, na determinação do lucro tributável do grupo, porquanto este constitui, como estabelece a lei, uma soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais individuais. Na verdade, admitir que se verifique a consolidação, na esfera individual de uma sociedade dominada, de correção efectuada à respectiva matéria colectável, sem repercussão subsequente na determinação do lucro tributável do grupo, seria permitir, afinal, em contradição com o disposto no n.º 1 do artigo 64.º do CIRC, que este lucro tributável do grupo não constitui a soma dos lucros tributáveis e prejuízos fiscais individuais.
Para não se produzir este resultado, com consequência na liquidação apurada relativamente ao grupo, a admitir que se deva reconhecer à sociedade dominante legitimidade para intervir processualmente em defesa dos seus interesses na própria determinação do resultado tributável de cada sociedade dominada, sempre seria necessário, tendo em conta o cariz de ato destacável da autorização de aplicação da cláusula antiabuso, e o regime a isso associado, atrás assinalado, que a sociedade dominante reaja, pelo meio e no prazo apropriados, contra esse ato destacável (cfr. artigos 58.º e 59.º do CPTA).
Não tendo isso sucedido, a decisão de autorização de aplicação da cláusula antiabuso, porque se trata de um ato destacável, volve-se em caso decidido ou caso resolvido igualmente para a Requerente no que concerne à determinação do lucro tributável do grupo.
Em qualquer caso, atenta a autonomia do ato destacável e a consolidação da decisão pertinente na ordem jurídica, não pode a liquidação final ser objecto de impugnação com fundamento em vícios desse ato destacável.
Daí a necessária absolvição da presente instância.
21. Verifica-se, assim, a procedência da exceção atinente ao caso decidido ou caso resolvido, a qual determina, como exceção dilatória que é, a absolvição da Requerida da instância, em conformidade com o disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 288.º do CPC, aplicável ex vi al. e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Por virtude da procedência desta exceção, fica prejudicado o conhecimento das demais questões exceptivas também suscitadas na contestação, e precludida a apreciação do mérito da causa.
V. Decisão
22. Face ao exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral, na procedência da exceção dilatória resultante da falta do pressuposto de admissibilidade da impugnação da liquidação resultante de caso decidido, em absolver a Requerida da instância.
Custas a cargo da Requerente, nos termos do artigo 5.º, n.º 2 do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, não cabendo proceder, em conformidade com o disposto no n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, à fixação do respectivo montante.
Notifique-se.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 26 de Janeiro de 2012.
O Árbitro-Presidente
(Jorge Lino Alves de Sousa)
O Árbitro (relator)
(João Menezes Leitão)
O Árbitro
(Rui Barreira)
(vencido nos termos da declaração anexa)
Declaração de Voto
Votei vencido pelas seguintes razões:
1º) Acompanhei a decisão arbitral que considerou o acto de autorização para a aplicação da cláusula geral antiabuso, nos termos do nº 10 do artº 63º do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), um acto destacável pelo que, não tendo sido autonomamente impugnado, a decisão nele contida se consolida, formando-se, assim, caso decidido ou resolvido, projectando-se no acto final em que se insere. Porém, entendo que a decisão arbitral não ponderou, nem retirou todas as consequências que resultam, no presente processo, da existência do Regime Especial de Tributação pelo Grupo de Sociedades (RETGS).
2º) Recorde-se que houve uma correcção tributária determinada com base na aplicação da cláusula antiabuso que se realizou na esfera da sociedade …, sociedade dominada integrante do Grupo de Tributação sujeito ao RETGS que é “encabeçado” pela Requerente, em cuja esfera se procedeu à liquidação adicional de IRC, liquidação essa objecto do pedido de pronuncia arbitral.
3º) Nas situações de RETGS, o lucro tributável sujeito a IRC é, por definição legal, constituído pela soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes a esse grupo societário submetido a esse regime – cf. artº 70º, nº 1 do Código do IRC.
Assim, no âmbito do RETGS, e por força do seu regime legal, o imposto (o IRC) incide sobre o lucro tributável do grupo. Já o lucro individual de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo não é lucro tributável sujeito a IRC mas apenas um valor que concorre para a formação do lucro tributável do grupo.
4º) Por outras palavras: no RETGS, a base de incidência desloca-se do lucro apurado individualmente por cada uma das sociedades que integram o grupo para o lucro tributável do grupo, este último determinado pela sociedade dominante.
Resulta, a nosso ver, inequívoco, dos artºs 70º e 120º, nº 6, do Código do IRC, que apenas o lucro do grupo está sujeito a IRC.
Os lucros individuais não estão sujeitos a IRC, sendo apenas parcelas da soma algébrica que define o lucro tributável do grupo, este sim, sujeito a IRC – a um outro propósito (o cálculo da derrama municipal), pode ver-se este entendimento nos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 2/2/2011 (Processo nº 909/10) e de 22/6/2011 (Processo nº 0309/11).
5º) Por outro lado, dos artigos 115º e 120º do Código do IRC, decorre, que cabe à sociedade dominante efectuar a declaração de rendimentos referente ao grupo, sendo que, repete-se, esse rendimento do grupo é o único tributável e, decorre, também, que a sociedade dominante é a devedora do imposto referente à tributação do lucro do grupo.
Bem se percebe, por isso, que a sociedade dominante tenha legitimidade para impugnar a liquidação de IRC, na medida em que essa liquidação tem a sociedade dominante como única destinatária, origina uma dívida de que é devedora essa mesma sociedade dominante.
Por outro lado, nessa contestação à liquidação de IRC, que a tem como destinatária, pode a sociedade dominante contestar as fixações de proveitos e custos que a Administração Fiscal tenha feito na ou nas sociedades dominadas.
6º) Perante este regime, torna-se necessário compatibilizá-lo com a existência da fixação de rendimentos feita pela Administração Fiscal às sociedades dominadas, apenas a estas notificadas, e que têm a natureza de acto destacável, como no caso da aplicação da cláusula geral antiabuso.
Isto é: temos, por um lado, um acto destacável, autonomamente impugnável, que apenas é notificado à sociedade dominada e temos, por outro, a liquidação do imposto, reflectindo as consequências desse anterior acto destacável, que vai ser notificado à sociedade dominante. Deste modo, como conciliar estas duas situações, de forma a que a sociedade dominante não fique desprovida da possibilidade de impugnar os actos lesivos dos direitos ou interesses legalmente protegidos, garantia constitucional estabelecida no artº 268º, nº 4 do CRP?
7º) No Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2/7/2008, Processo nº 0138/08, embora referente ao regime anterior ao do RETGS, isto é, ao regime do lucro consolidado, mas em que, quanto à questão da personalidade e da legitimidade das sociedades intervenientes, as conclusões são as mesmas, aponta-se, precisamente, para a necessidade de não deixar desprovida de tutela judicial qualquer entidade.
Estava aí em causa o acto destacável e, portanto, autonomamente impugnável, de caducidade da autorização para a tributação pelo lucro consolidado que tinha sido notificado apenas à sociedade dominante, tendo o Supremo invocado o artº 36º, nº 1, do CPPT, face ao qual “os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a este quando lhe sejam validamente notificados”, princípio esse, lembra o STA, também consagrado no artº 268º, nº 3 do CRP e no nº 6 do artº 77º da LGT.
Ora, não obstante a sociedade dominada integrar o grupo de sociedades, o certo é que ela mantém a sua autonomia jurídica, patrimonial e tributária, razão pela qual, concluiu o Supremo, o acto administrativo que declarou a caducidade da autorização para tributação pelo lucro consolidado teria de ser notificado à referida sociedade dominada, posto que o seu conteúdo afectava interesses e direitos inscritos na sua esfera jurídica.
Não tendo acontecido tal notificação, concluiu o Supremo Tribunal Administrativo, esse acto administrativo não se consolidou na ordem jurídica como caso resolvido, por falta de impugnação autónoma. E, note-se, esta conclusão do Supremo tinha a ver com uma sociedade dominada e não com a dominante.
8º) Pois bem: na presente pronuncia arbitral, constata-se que o acto que determinou a aplicação da medida antiabuso, não foi notificado à sociedade dominante e posto que o seu conteúdo afecta interesses e direitos inscritos na sua esfera jurídica, tal acto não se consolidou na ordem jurídica como caso resolvido.
9º) Aliás, o Supremo Tribunal Administrativo já se deparou com situação similar, isto é, com a existência de um acto destacável e autonomamente impugnável, notificado a ente diferente daquele a quem é atribuída legitimidade para impugnar a liquidação.
Assim, no Acórdão de 28/4/2010, Processo nº 0876/09, face a uma fixação da matéria tributável por métodos indirectos a uma sociedade, acto esse qualificado pelo STA como acto destacável, e sendo, posteriormente, chamados à lide os responsáveis subsidiários a quem a lei atribui legitimidade para impugnar a dívida (artº 22º, nº 4, da LGT), decidiu o Supremo, numa “interpretação consentânea com as disposições legais aqui em causa e que, sem ofender o regime legal aplicável, é que melhor se coaduna com o direito à obtenção da tutela jurisdicional efectiva dos direitos legalmente protegidos dos cidadãos” poderem aqueles responsáveis impugnar a dívida sem aquele condicionamento resultante da existência do acto destacável de fixação da matéria colectável que não foi autonomamente impugnado.
10º) Concluindo: o acto da Administração Fiscal aplicando a norma antiabuso, na medida em que afecta interesses e direitos inscritos na esfera jurídica da sociedade dominante e não tendo sido notificado a esta, não se consolidou na ordem jurídica por falta de impugnação autónoma; ao não se admitir que a sociedade dominante, quando notificada da liquidação incidente sobre o lucro tributável do grupo, reflectindo a aplicação da medida antiabuso, pode impugnar tal liquidação, contestando a aplicação da referida medida antiabuso, viola-se o artigo 268º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, negando-se a tutela jurisdicional efectiva aos direitos legalmente protegidos da referida entidade.
11º) Conheceria, assim, do mérito da acção.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2012.
(Rui Barreira)