Decisão Arbitral
A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o tribunal arbitral singular constituído em 17 de novembro de 2015, decide nos termos que se seguem:
I. RELATÓRIO
1. No dia 02.09.2015, a sociedade “A…, LDA”, NIPC…, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante, “RJAT”), sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 21.09.2015.
3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do correspondente encargo no prazo aplicável.
4. Em 04.11.2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação da árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.ºe 7.º do Código Deontológico.
5. Assim, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 17.11.2015.
6. No presente processo arbitral, pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade dos atos de liquidação oficiosa do imposto único de circulação (IUC) relativo ao período de tributação de 2013 (juntos como documento 1 anexo ao pedido de pronúncia arbitral), cujo montante total ascende a € 159,43 e, consequentemente, determine a restituição do valor total de imposto pago acrescido de juros compensatórios.
7. A A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
- A Requerente é uma sociedade comercial que exerce a atividade de aluguer de veículos automóveis e de prestação de serviços conexos.
- No âmbito da sua atividade, a Requerente celebra contratos de aluguer de veículos e, no termo do contrato, procede diversas vezes à sua venda aos clientes.
- Os seguintes veículos foram objeto de venda:
N.º da liquidação
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Matrícula
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Ano da matrícula
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Mês da matrícula
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Ano de imposto em falta
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Valor a pagar (em euros)
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2013 …
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…-…-…
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2004
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Dezembro
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2013
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33,68
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2013 …
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…-…-…
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2003
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Dezembro
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2013
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53,68
|
2013 …
|
…-…-…
|
2004
|
Dezembro
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2013
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18,39
|
|
|
|
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Total:
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105,75
|
- Sempre que esteve ao seu alcance, a Requerente entregou aos novos proprietários os formulários de registo automóvel assinados por forma a que estes pudessem proceder ao averbamento do registo em seu nome junto da Conservatória do Registo Automóvel.
- As vendas em causa ocorreram antes da data do facto gerador do imposto único de circulação.
- Quanto ao veículo …-…-…, com matrícula de dezembro de 2007 e relativamente ao qual foi emitida a liquidação n.º 2013…, no valor de € 53,68, o mesmo foi objeto de um acidente na vigência do contrato de aluguer de veículo, tendo sido considerado pela seguradora como “perda total” e a esta alienado o respetivo “salvado”.
- Posteriormente, a Requerente procedeu à entrega de toda a documentação legal necessária ao cancelamento da matrícula do veículo junto das autoridades rodoviárias competentes, nos termos do disposto no artigo 41.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto e do artigo 119.º, n.º 8, do Código da Estrada.
- Também esta situação ocorreu em data anterior ao facto gerador do IUC do ano de 2013.
- Em 2015 a Requerente foi notificada das liquidações de IUC supra melhor identificadas, no valor total de € 159,43.
- A Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado e respetivos juros compensatórios.
- A Requerente entende que não é sujeito passivo de IUC relativamente aos veículos com as matrículas em questão em nenhum dos exercícios sobre os quais incidiram as liquidações oficiosas que são objeto do pedido de pronúncia arbitral, não obstante constar do respetivo registo automóvel como tal. Em suma, sustenta esse entendimento no facto de o artigo 3.º do CIUC estabelecer uma presunção ilidível no sentido de que são sujeitos passivos os proprietários dos veículos, considerando-se como tal aqueles em nome dos quais os veículos se encontram registados, podendo essa presunção ser afastada através de elementos de prova destinados a demonstrar que tal propriedade está inserida na esfera jurídica de outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida, ou a venda do “salvado”, ou a “perda total” do veículo.
- Neste sentido invoca jurisprudência arbitral constante das decisões proferidas nos processos arbitrais n.º 141/2014-T, 170/2013-T, 265/2013-T, 446/2014-T e 680/2014-T e jurisprudência dos tribunais judiciais, destacando a decisão do Tribunal Administrativo Sul de 19.03.2015, proferida no processo n.º 08300/14.
7.B. Na sua Resposta, a AT invocou, resumidamente, o seguinte:
· O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
· Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem; trata-se, isso sim, de uma opção clara de política legislativa cuja intenção foi a de que, para efeitos de IUC, fossem considerados proprietários aqueles que como tal constem do registo automóvel.
· No âmbito do processo n.º 210/13.0BEPNF, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel acolheu a posição sufragada pela Requerida nos termos supra explicitados.
· A presunção da propriedade automóvel decorre única, direta e exclusivamente do próprio regime registal automóvel, e não da legislação fiscal sobre automóveis que constitui um aspeto colateral àquele regime.
· Logo, a ilisão da presunção da propriedade automóvel necessariamente terá de ser dirigida ao, ou melhor dizendo, contra o que consta do próprio registo automóvel, e não contra o mero efeito fiscal que decorre da informação registal automóvel como, no fundo, acaba por querer fazer a Requerente.
· A não atualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito ativo deste imposto.
· A interpretação dada pela Requerente traduz-se num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português.
· A argumentação apresentada pela Requerente de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel nessa qualidade, é errada à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado no CIUC na medida em que o legislador pretendeu criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.
· Quanto aos documentos juntos pela Requerente para ilisão da presunção consagrada no artigo 3.º do CIUC, entende a AT que, quanto ao documento 3, é um documento interno que nada prova quanto à não propriedade dos veículos.
· Quanto ao documento 2, a AT entende que também esse é insuficiente para provar a transferência de propriedade alegada pela Requerente, citando, nesse sentido, a recente jurisprudência emanada do CAAD (processos n.º 63/2014-T, n.º 150/2014-T e n.º 220/2014-T).
· A esse propósito, entende a AT que a inequívoca transferência da propriedade tanto para os alegados compradores como para as seguradoras poderia ser indiciada mediante a junção de cópia do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel, pois trata-se de documento assinado pelas partes intervenientes.
· Porém, a Requerente não juntou cópias do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazer em momento ulterior.
· A AT entende ainda que a podia ter cuidado da atualização do registo automóvel nos termos do artigo 5.º/1-a) do Decreto-Lei 54/75, de 12 de fevereiro, e do artigo 118.º/4 do Código da Estrada, e que, não tendo mandado cancelar as matrículas dos veículos aqui em apreço, forçoso é concluir que a Requerente não procedeu com o zelo que lhe era exigível.
· Consequentemente, deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral, nos termos do artigo 527.º/1 do CPC ex vi artigo 29.º/1-e) do RJAT. De igual modo, a AT não deve ser responsabilizada pelo pagamento de juros indemnizatórios na medida em que os pressupostos legais da respetiva atribuição se não encontram verificados.
III. SANEAMENTO
1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
3. O processo não padece de vícios que o invalidem.
4. Pretende-se a apreciação conjunta da legalidade de 114 liquidações de IUC, relativas aos anos de 2009 a 2012. Assim, verificam-se os pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT e no artigo 104.º do CPPT, sendo de admitir a cumulação em virtude da identidade do imposto e da circunstância de a análise dos atos tributários em causa depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da aplicação das mesmas regras de direito.
IV. MATÉRIA DE FACTO
IV.1. Factos provados
Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo (PA) junto aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:
1. A Requerente é uma sociedade comercial que exerce a atividade de aluguer de veículos automóveis e de prestação de serviços conexos.
2. No âmbito da sua atividade, a Requerente celebra contratos de aluguer de veículos e, no termo do contrato, procede diversas vezes à sua venda aos clientes.
3. A Requerente emitiu faturas de venda dos seguintes veículos:
I. Em 17.04.2009, do veículo com a matrícula …-...-… ;
II. Em 01.02.2007, do veículo com a matrícula …-…-… 2003;
III. Em 07.12.2009, do veículo com a matrícula …-…-… .
4. O mês e ano de matrícula do veículo …-…-… são, respetivamente, dezembro de 2004.
5. O mês e ano de matrícula do veículo …-…-… são, respetivamente, dezembro de 2003.
6. O mês e ano de matrícula do veículo …-…-… são, respetivamente, dezembro de 2004.
7. O facto gerador subjacente à liquidação n.º 2013…, referente ao veículo de matrícula …-…-… ocorreu no mês de dezembro de 2013;
8. O facto gerador do imposto subjacente à liquidação n.º 2013…, referente ao veículo de matrícula …-…-…, ocorreu no mês de dezembro de 2013;
9. O facto gerador do imposto subjacente à liquidação n.º 2013…, referente ao veículo de matrícula …-…-…, ocorreu no mês de dezembro de 2013.
10. O veículo de matrícula …-…-… tem matrícula de dezembro de 2007;
11. O facto gerador do imposto subjacente à liquidação n.º 2013 …, ocorreu no mês de dezembro de 2007;
12. Em 29.05.2009, a B… – Companhia de Seguros, S.A., enviou uma comunicação à Conservatória do Registo Automóvel referente ao veículo de matrícula …-…-…, ao abrigo do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
13. Em 29.05.2009, a B…– Companhia de Seguros, S.A., enviou uma comunicação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P., referente ao veículo de matrícula …-…-…, ao abrigo do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
14. Nas comunicações referidas nos pontos anteriores foi comunicado que o veículo em causa tinha sofrido um acidente a 07.10.2008, que o valor de reparação era superior a 70% do valor venal do veículo à data do sinistro e que a indemnização não se destinava à efetiva reparação do veículo.
15. Através das comunicações referidas nos pontos anteriores os seus destinatários foram informados de que o adquirente do veículo era a C… Unipessoal, Lda., tendo sido indicados a respetiva morada e NIF.
16. Em 2015 a Requerente foi notificada das liquidações de IUC acima identificadas, no valor total de € 159,43.
17. A Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado e respetivos juros compensatórios.
IV.2. Factos não provados
Não existem factos com relevância para a decisão que tenham sido considerados não provados.
V. THEMA DECIDENDUM
A questão de fundo em causa nos presentes autos consiste em saber se os factos alegados pela Requerente consubstanciam motivos de exclusão de incidência subjetiva de imposto e se, em consequência, se deve considerar que os atos impugnados enfermam de erro sobre os pressupostos do facto tributário, o que consubstanciaria um vício de violação de lei determinante da respetiva anulação, com as devidas consequências legais.
VI. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A Requerente fundamenta o seu pedido em factos dos quais retira a conclusão de que já não era proprietária dos veículos em causa na data em que ocorreram os factos geradores das liquidações impugnadas, pretendendo, assim, provar que não é sujeito passivo desse imposto.
1) Quanto ao primeiro conjunto de situações:
Invoca a Requerente o disposto no artigo 3.º do CIUC, o qual, em seu entender, estabelece uma presunção implícita de propriedade dos veículos a favor de quem os mesmos se encontrem registados, presunção essa que, por força da aplicação da regra geral prevista no artigo 73º da Lei Geral Tributária, é ilidível mediante prova em contrário. Já para a Requerida, o artigo 3.º do CIUC não estabelece qualquer presunção implícita, mas uma verdadeira ficção legal, inilidível.
Esta questão tem sido abundantemente tratada pela jurisprudência arbitral ao longo dos últimos anos (cf. as decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de maio de 2014, 293/2013-T, de 9 de junho de 2014, 46/2014-T de 5 de setembro, 246 e 247/2014 T, de 10 de outubro, entre outros), tendo ainda sido objeto do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 19-03-2015, processo n.º 08300/14. Seguindo este tribunal de perto a linha jurisprudencial delineada nos processos acima indicados, indicar-se-ão aqui apenas os seus traços mais significativos.
Assim, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC estabelece que:
“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.“
A questão que se discute a propósito desta norma é a seguinte: deverá entender-se que o legislador utilizou a palavra “considerando-se” como poderia ter utilizado a palavra “presumindo-se” ou, pelo contrário, que o legislador quis estabelecer uma ficção legal, vedando a possibilidade de se realizar prova em contrário?
Nos termos do disposto no artigo 349.º do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.” Por outro lado, o n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil esclarece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.
No que diz respeito às presunções de incidência tributária, determina o artigo 73.º da Lei Geral Tributária que estas admitem sempre prova em contrário.
As “ficções legais” consistem, diferentemente, “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas”[1].
Ora, contrariamente ao que defende a Requerida e como já foi reconhecido nas decisões arbitrais e judiciais referidas, a análise do elemento literal, bem como dos elementos histórico e teleológico presentes na norma em questão conduzem à conclusão de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária. Tratando-se a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC de uma norma de incidência tributária, outro entendimento seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal.
Quanto ao elemento histórico, importa referir que o CIUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos, o qual já consagrava expressamente que o imposto era devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados[2]. Por outro lado, o artigo 2.º do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”.
É certo que, no CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se”, o que, na perspetiva da Requerida, traduziu a consagração de uma ficção legal, inilidível. Não consideramos, no entanto, que assim seja. A mudança de verbo não consubstancia uma alteração de fundo na norma de incidência, que, a nosso ver, continua a estabelecer uma presunção ilidível mediante prova em contrário – em conformidade, aliás, com o disposto no artigo 73.º da LGT.
Como afirmam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao n.º 3 do artigo 73.º da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”[3].
Em suma, em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante[4]. A título de exemplo, refere Jorge Lopes de Sousa que no artigo 40.º, n.º 1, do CIRS, se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46.º, n.º 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal[5].
Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC.
Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria. Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel.
Nesta conformidade, considerando os elementos de interpretação da lei referidos, somos conduzidos à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exatamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível. Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo.
Por último, cumpre atender, na presente análise, ao valor jurídico do registo automóvel. Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 1.º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Acrescenta ainda o artigo 7.º do Código do Registo Predial que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. O registo de propriedade automóvel não tem, portanto, natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Logo, a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário. E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, salvas as exceções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo[6]. Em suma, o registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto. No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer exceção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo; do mesmo modo, o titular inscrito no registo deixará de ser o proprietário, pese embora ainda possa constar, por algum tempo ou mesmo muito, do registo como tal.
De notar ainda que as transmissões efetuadas são oponíveis à Requerida, apesar do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, que dispõe: “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros quando registados.” A noção de terceiros para efeitos de registo está consagrada no n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que, manifestamente não é o caso da AT. Assim, a AT não é terceiro para efeitos de registo.
Em consequência do que antecede, o proprietário registado de um automóvel pode fazer prova, para efeitos de tributação em sede de IUC, de que já não é o proprietário efetivo do veículo em causa, nomeadamente por ter procedido à respetiva venda. E a prova da existência de um contrato de compra e venda pode ser efetuada por qualquer meio, sendo a fatura um documento contabilístico idóneo para este efeito, como para muitos outros, nomeadamente fiscais. As faturas titulam vendas, transações ou prestações de serviços que se presumem verdadeiras por força da presunção de veracidade instituída no artigo 75.º da LGT. Neste sentido, não se aceita que se questione a sua força probatória apenas para o fim da prova da transmissão da propriedade do veículo, sob pena de cairmos no absurdo jurídico de, a partir do mesmo documento, se reconhecer que a transação existiu para efeitos de incidência de imposto sobre o rendimento, mas não existiu para efeitos de IUC. Mas, tratando-se de uma presunção, nada impede a demonstração da sua falsidade ou inadequação face aos requisitos legais estabelecidos no artigo 36.º do CIVA. Trata-se, também neste caso, de uma presunção ilidível, sendo que o ónus da prova cabe à AT.
Alega a Requerente que, à data em que ocorreram os factos tributários, já havia transmitido a propriedade das viaturas para terceiros adquirentes. Para prova disso junta cópias de faturas, nas quais se mencionam, entre outros elementos, a matrícula da viatura, o número de cliente, a identificação do destinatário, o valor, a descrição “valor de venda da viatura” e a indicação de que “a viatura é vendida no estado e uso em que se encontra.”
As faturas apresentadas pela Requerente beneficiam, como se disse, da presunção de veracidade contida no artigo 75.º da LGT, desde que cumpram os requisitos legais e demonstrem a correspondência à realidade de facto que a Requerente pretende demonstrar nos autos: a transmissão da propriedade das viaturas. No caso concreto, não existem razões para pôr em causa a presunção de veracidade contida no artigo 75.º da LGT. Assim, consideram-se as faturas juntas como documento 2 como documentos idóneos para provar a ocorrência de uma venda da viatura a que se referem.
Quanto ao veículo de matrícula …-…-…, as comunicações juntas pela Requerente demonstram também a efetiva transmissão da propriedade sobre a mesma após o acidente ocorrido.
Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, entende-se não ser o mesmo procedente. Efetivamente, tal como já se decidiu em processos arbitrais anteriores que correram termos no CAAD (cf. os processos 26/2013-T e 243/2013-T): “O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respetivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.”
Atendendo a esta justificação, com a qual se concorda, conclui-se, também no presente caso, pela improcedência do mencionado pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
VII. DECISÃO
Em conformidade com que fica exposto supra, decide-se:
(i) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, como tal, declarar a ilegalidade das liquidações impugnadas, determinando-se a restituição do imposto e juros compensatórios pagos;
(ii) Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios.
Valor: em conformidade com o disposto nos artigos artigo 97.º - A, n.º 1, alínea a), do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 159,43.
Custas: nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 306.00, a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, 10 de março de 2016
A Árbitro,
Raquel Franco
[1] Cfr. F. Rodrigues Pardal, “O uso de presunções no direito tributário”, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 325-327, página 20 e ss..
[2] Cfr. o artigo 3.º do Regulamento do Imposto sobre Veículos, anexo ao indicado DL 599/72, de 30 de Dezembro.
[3] Cfr. Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, Encontro da Escrita Editora, p. 651.
[4] Cfr. Jorge Lopes de Sousa (2011), Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado. Volume I. 6.ª Edição. Áreas Editora: Lisboa, pp. 589 e ss..
[5] Cfr. Ob. Cit., pp. 590 e ss..
[6] Cf., entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ: de 31.05.1966, Proc. N.º 060727 (Relator: Conselheiro Lopes Cardoso); de 05.05.2005 (Relator: Conselheiro Araújo Barros) e de 14.11.2013, in Proc. N.º 74/07.3TCGMR.G1.S1 (Relator: Conselheiro Serra Baptista).