Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 379/2015-T
Data da decisão: 2016-02-27  IMT  
Valor do pedido: € 5.980,00
Tema: IMT - Utilidade turística; benefício fiscal; caducidade do direito à liquidação – Reforma da decisão arbitral (anexa à decisão).
*Substitui a decisão arbitral de 27 de fevereiro de 2016.
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SUMÁRIO:

 

I. Não está apartada do âmbito da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a apreciação da legalidade de actos de liquidação de impostos, quando essa análise implica igualmente a formulação de um juízo sobre a aplicabilidade de um benefício fiscal.

 

II. A liquidação adicional é a correcção de uma liquidação deficiente em consequência de erros ou omissões, que tanto podem ser da responsabilidade dos serviços como dos contribuintes.

 

III. A emissão de documento de cobrança de IMT “a zeros”, supõe, para efeitos do cômputo do prazo de caducidade do direito à liquidação, um acto de liquidação.

 

IV. O prazo de caducidade do direito à liquidação de IMT é de 4 anos, contados da prática do acto de liquidação a corrigir, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 31.º do CIMT. 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

1.            Relatório

 

 

A - Geral

 

 

1.1.        A..., contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ..., ...-... Lisboa (de ora em diante designada “Requerente”), apresentou, no dia 12.06.2015, um pedido de constituição de tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando: (i) a anulação dos actos de liquidação adicional de Imposto Municipal sobre as Transmissões de Imóveis (“IMT”) e de Imposto do Selo (“IS”) que lhe foram notificados pelo ofício n.º..., de 18.02.2015, (doc. n.º 2 junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral) e (ii) a condenação da Administração Tributária a Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestações tributárias.

 

1.2.        Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro o signatário, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.

 

1.3.        Por despacho de 02.07.2015, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação dos Senhores Dr. B... e Dra. C... para intervirem no presente processo arbitral, em seu nome e representação.

 

1.4.        Em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído a 31.08.2015.

 

1.5.        No dia 03.09.2015 foi notificado o dirigente máximo do serviço da Requerida para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.

 

1.6.        No dia 29.09.2015 a Requerida apresentou a sua resposta.

 

 

B – Posição da Requerente

 

 

1.7.        A Requerente adquiriu, por escritura pública outorgada no dia 25.02.2010, pelo preço de € 92.000,00 (noventa e dois mil euros), o direito de superfície da fracção autónoma designada pelas letras “CB” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal identificado por “D...”, sito na..., ..., ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de ... sob o artigo ... (o “Imóvel”).

 

1.8.        À D... foi atribuída a utilidade turística a título prévio, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12, conforme despacho do Ministro do Turismo publicado no Diário da República, n.º 269, III Série, de 16.11.2004.

 

1.9.        Na sequência do pedido de liquidação prévia apresentado pela Requerente, a Requerida reconheceu, a 23.02.2010, ao abrigo do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12, que a aquisição do Imóvel por parte da Requerente beneficiava da isenção do IMT e da redução do IS (verba 1.1.) a um quinto.

 

1.10.      Pelo ofício n.º ... de 07.01.2015, a Requerente tomou conhecimento de que o Serviço de Finanças de ... entendia que devia ficar sem efeito a isenção e a redução concedidas a 23.02.2010 e, consequentemente, de que o dito Serviço pretendia efectuar a respectiva liquidação adicional de IMT e de IS.

 

1.11.      Através do ofício n.º ... de 18.02.2015, a Requerente tomou conhecimento de que a Chefe do Serviço de Finanças de ... havia revogado a isenção e a redução concedidas anteriormente, tendo sido notificada para proceder ao pagamento da liquidação adicional de € 5.980,00 de IMT e de € 588,80 de IS.

 

1.12.      A Requerente procedeu ao pagamento das quantias de € 5.980,00 de IMT e de € 588,80 de IS no dia 17.03.2015.

 

1.13.      A alteração de entendimento do Serviço de Finanças de ... deveu-se ao facto de ter constatado que o “benefício fiscal visa abranger a construção / criação de estabelecimentos para fomento da utilidade turística e não a aquisição de fracções mesmo que integradas em empreendimentos com atribuição de utilidade turística” e à mudança da orientação jurisprudencial entretanto verificada (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 3/2013).

 

1.14.      Os benefícios fiscais foram reconhecidos pela liquidação de 23.02.2010, sendo o acto da sua revogação de 18.02.2015, quase cinco anos depois.

 

1.15.      Os actos tributários podem ser revogados no prazo da sua revisão, conforme prescreve o n.º 1 do art.º 79.º da Lei Geral Tributária (LGT), sendo aplicável à revogação, por força do art.º 2.º da mesma lei, o disposto nos artigos 138.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo, com a redacção que estava em vigor à data dos factos (CPA).

 

1.16.      Ora, nos termos da alínea b) do n.º 1 e do n.º 2 do art.º 140.º do CPA, os actos administrativos válidos não são livremente revogáveis quando, como é o caso, “forem constitutivos de direitos ou de interesses legalmente protegidos” e não estejam em causa actos que tenham sido “desfavoráveis aos interesses dos seus destinatários”.

 

1.17.      Mesmo que se admitisse que a revogação operada visava um acto inválido, essa revogação, nos termos do disposto no art.º 141.º do CPA, só poderia ter por fundamento a sua invalidade e ocorrer no prazo do respectivo recurso contencioso, que há muito estaria precludido, fossem quais fossem as normas aplicáveis - art.º 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, art.º 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) ou art.º 141.º do CPA.

 

1.18.      Nem mesmo admitindo-se um mecanismo geral de revogação ou revisão de actos tributários, sempre se terá de respeitar a limitação temporal referente à possibilidade de serem lançadas liquidações adicionais de IMT, que só poderia acontecer “até decorridos quatro anos contados da liquidação a corrigir”, nos termos do n.º 3 do art.º 31.º do Código do IMT, não sendo aplicável o prazo de 8 (oito) anos previsto no art.º 35.º do mesmo Código.

 

1.19.      A Requerente pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, por pagamento indevido de prestação tributária, contados desde a data de pagamento até àquela em que for processado o competente título de anulação.

 

 

C – Posição da Requerida

 

 

1.20.      A Requerida, na sua resposta, começa por referir que a liquidação de IS objecto dos presentes autos havia sido já anulada, como era do conhecimento da Requerente.

 

1.21.      Prossegue a Requerida defendendo-se por excepção, ao expressar o entendimento de que a Requerente ataca o que considera ser uma revogação ilegal do despacho de reconhecimento de um benefício fiscal, não sendo essa uma questão relacionada com um acto tributário em sentido próprio, querendo obter do tribunal arbitral uma decisão de reconhecimento da isenção de IMT.

 

1.22.      Tal significa que o meio processual utilizado pela Requerente não é o adequado, devendo antes ter lançado mão de uma acção administrativa especial.

 

1.23.      Entende ainda a Requerida ser o tribunal arbitral incompetente para apreciar o pedido, já que não está abrangido no seu âmbito da competência material o conhecimento da matéria relativa ao reconhecimento de isenções tributárias.

 

1.24.      A Requerida, sem prejuízo das excepções invocadas, sustenta ainda que a Requerente adquiriu em 2010 o direito de superfície de uma fracção autónoma de um empreendimento que já se encontrava instalado e cuja utilidade turística foi reconhecida em 2004, concluindo, portanto, que ela adquiriu o mencionado direito real visando não a instalação de um empreendimento turístico (que na verdade já existia) mas antes a sua exploração.

 

1.25.      Para a Requerida, o disposto no n.º 4 do art.º 47.º do EBF impõe que o reconhecimento da isenção dependa da apresentação de um requerimento pelos sujeitos passivos num prazo que está naturalmente associado à instalação do empreendimento.

 

1.26.      Acresce que o n.º 6 (e não do n.º 5 como por lapso é dito) do art.º 47.º do EBF remete expressamente para o disposto no Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de Dezembro, sendo certo que neste diploma o acento tónico da isenção tributária está na finalidade com que a fracção foi adquirida.

 

1.27.      Invoca igualmente a Requerida o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/2013, de 23 de Janeiro, que vai no sentido de julgar que o legislador pretendeu conferir um incentivo apenas às aquisições de imóveis com o objectivo de neles instalar empreendimentos qualificados de utilidade turística. Há, pois no entender da Requerida, dois procedimentos distintos: o da instalação e o da exploração de empreendimentos turísticos e só aquela justifica os benefícios em causa.

 

1.28.      Por último, sustenta a Requerida não serem devidos quaisquer juros indemnizatórios uma vez que do acto impugnado não resultou a obrigação de pagamento de imposto superior ao devido.   

 

 

D – Conclusão do Relatório e Saneamento

 

 

1.29.      Tendo a Requerida suscitado as excepções da impropriedade do meio processual empregue e da incompetência material do Tribunal Arbitral, em homenagem ao princípio do contraditório, a Requerente pronunciou-se sobre elas, sustentando a sua improcedência, já que o pedido de pronúncia arbitral visa expressamente a declaração de ilegalidade de uma liquidação adicional de IMT.

 

1.30.      Por despacho de 02.02.2016, o tribunal arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), uma vez que era seu entendimento terem as partes carreado para o processo todos os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão.

 

1.31.      O tribunal arbitral proferiu a sua decisão no dia 27.02.2016, tendo dela a Requerida apresentado recurso uma vez que, por lapso dos serviços, não havia chegado ao conhecimento do tribunal o seu requerimento de que não prescindia do direito de apresentar alegações.

 

1.32.      O Tribunal Central Administrativo Sul anulou a decisão arbitral, tendo ordenado a baixa do processo ao CAAD.

 

1.33.      Por despacho de 30.04.2021, o tribunal arbitral convidou as partes a apresentarem as suas alegações, direito que apenas a Requerida exerceu.

 

1.34.      A Requerida, nas suas alegações, sustenta que a “causa de pedir dos presentes autos consiste na ilegalidade do ato de revogação do benefício fiscal, e não na ilegalidade do acto de liquidação”, reiterando, pois, a incompetência do tribunal arbitral. 

 

1.35.      Ainda que se entenda serem improcedentes as excepções invocadas pela Requerida, entende ela que o pedido é improcedente, por não estarem reunidos no caso em apreço os pressupostos para que a Requerente possa gozar do benefício fiscal em causa.  

 

1.36.      As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

1.37.      A cumulação de pedidos efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se porquanto o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação posta em crise.

 

1.38.      O processo não padece de qualquer nulidade. Foram suscitadas pela Requerida as excepções da impropriedade do meio processual empregue e da incompetência material do Tribunal Arbitral, que, a serem julgadas procedentes, obstam à apreciação do mérito da causa. Assim, deverá tribunal arbitral, antes do mais, apreciá-las.

 

 

2.            As excepções da impropriedade do meio processual empregue e da incompetência material do tribunal arbitral

 

Como se disse, a Requerida expressa o entendimento de que a Requerente faz uso de um meio processual impróprio, quando devia ter lançado mão de uma acção administrativa especial, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 97.º do CPPT. Ora, este entendimento não pode prevalecer, já que falece o seu primeiro fundamento. Aquela disposição diz expressamente que “o recurso contencioso dos actos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação (…)”. Forçoso é reconhecer que a Requerente suscita junto deste tribunal arbitral a apreciação da legalidade de um acto de liquidação.

 

Entende ainda a Requerida que o tribunal arbitral se deve abster de conhecer o pedido uma vez que não está abrangido no seu âmbito de competência a cognoscibilidade da matéria relativa ao reconhecimento de isenções tributárias.

 

No n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fixa-se a competência dos tribunais arbitrais, podendo eles apreciar as seguintes pretensões:

 

a)            A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; e

b)           A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.

 

Pretendeu o legislador que a regra da arbitrabilidade dos actos tributários assentasse na liquidação de tributos, ficando de fora da competência dos tribunais arbitrais, entre outros, “a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária” . Igual conclusão se pode extrair do art.º 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, diploma que fixa os termos em que a administração tributária e aduaneira se vincula à jurisdição arbitral.

 

O que acaba de ser afirmado não equivale a considerar apartada do âmbito da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, como sugere a Requerida, a apreciação da legalidade de actos de liquidação de impostos, quando essa análise implica igualmente a formulação de um juízo sobre a aplicabilidade de um qualquer benefício fiscal . Na verdade, parece a este tribunal arbitral que apreciar a legalidade de um acto administrativo de indeferimento ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais (apreciação que, como dissemos, escapa à competência desta jurisdição arbitral) não é o mesmo que julgar a legalidade de um acto de liquidação que faz tábua rasa de um benefício fiscal que o sujeito passivo entende ser-lhe aplicável ope legis, como é o caso dos autos.

 

Assim, entende este tribunal arbitral ser materialmente competente para apreciar o pedido.

 

 

3.            Matéria de facto

 

3.1. Factos provados

 

                               Têm-se por provados os seguintes factos:

 

3.1.1.     A Requerente adquiriu, por escritura pública outorgada no dia 25.02.2010, pelo preço de € 92.000,00 (noventa e dois mil euros), o direito de superfície da fracção autónoma designada pelas letras “CB” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal identificado por “D...”, sito na..., ..., ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de ... sob o artigo ... (doc. n. o 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.2.     À D... foi atribuída a utilidade turística a título prévio, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12, conforme despacho do Ministro do Turismo publicado no Diário da República, n.º 269, III Série, de 16.11.2004.

 

3.1.3.     Da declaração com o número ..., datada de 23.02.2010, consta que, ao abrigo do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12, a aquisição do Imóvel por parte da Requerente beneficiava da isenção do IMT e da redução do IS (verba 1.1.) a um quinto (docs. de fls. 4 e 5 do processo administrativo junto com a resposta da Requerida ao pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.4.     Pelo ofício n.º ... de 07.01.2015, o Serviço de Finanças de ... comunicou à Requerente o entendimento de que devia ficar sem efeito a isenção e a redução concedidas a 23.02.2010 e, consequentemente, a sua pretensão de efectuar a respectiva liquidação de IMT e de IS (doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.5.     A Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, recebida nos serviços da Requerida a 29.01.2015 (doc. de fls. 9 do processo administrativo junto com a resposta da Requerida ao pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.6.     Pelo ofício n.º ... de 18.02.2015 foi comunicado à Requerente o despacho da Chefe do Serviço de Finanças de ... que havia revogado a isenção e a redução concedidas em 2010, notificando-se a Requerente para proceder ao pagamento da liquidação adicional de € 5.980,00 de IMT e de € 588,80 de IS (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.7.     A Requerente procedeu ao pagamento das quantias de € 5.980,00 de IMT e de € 588,80 de IS no dia 17.03.2015 (doc. sem número junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.8.     A Requerida anulou entretanto o acto de liquidação de € 588,80 referente ao IS (consenso das Partes).

 

3.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

 

 

4.            Matéria de direito

 

4.1. Questões a decidir

 

Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo:

 

a)            A de saber se o acto tributário consubstanciado na declaração com o número ..., datada de 23.02.2010, de onde consta que, ao abrigo do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12, é um acto de revogação de um benefício fiscal;

 

b)           A de apurar qual o prazo de caducidade do direito à liquidação aplicável no caso dos autos: se o prazo geral de 4 anos, nos termos dos artigos 45.º da LGT e 31.º, n.º 3, do CIMT ou o prazo de 8 anos a que se refere o n.º 1 do art.º 35.º do CIMT;

 

c)            Caso se conclua que não caducou o direito da Requerida proceder à liquidação do IMT em causa, a de determinar se a aquisição pela Requerente do Imóvel é beneficiária da isenção a que se refere o n.º 1 do art.º 20º do Decreto-Lei nº 423/83, de 05.12;

 

d)           A de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação contestada, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral, poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

 

 

4.2. A revogação de benefício fiscal

 

Alega a Requerente que a dita liquidação adicional ora posta em crise mais não é do que uma revogação de um benefício fiscal, fundada no novo entendimento jurisprudencial segundo o qual “a aquisição de unidades de alojamento por consumidores finais não pode beneficiar das isenções não pode beneficiar das isenções consagradas no artigo 20.º do DL 423/83”. Acrescenta a Requerente não ser possível a revogação de um acto válido quando ele for constitutivo de direitos ou de interesses legalmente protegidos, nos termos do artigo 140.º, n.º 1, al. b) do CPA em vigor à data dos factos. Refere também que ainda que se julgasse inválido o acto de reconhecimento do benefício fiscal em causa, o mesmo só seria revogável dentro de prazo há muito expirado aquando da sua revogação (artigo 141.º do mesmo diploma).

 

Ora, importa esclarecer que o referido benefício fiscal é automático (verificados os condicionalismos legalmente impostos) . Nos termos do artigo 7.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, com a redacção em vigor à data dos factos, “todas as pessoas, singulares ou colectivas, de direito público ou de direito privado, a quem sejam concedidos benefícios fiscais, automáticos ou dependentes de reconhecimento, ficam sujeitas a fiscalização da Direcção-Geral dos Impostos e das demais entidades competentes, para controlo da verificação dos pressupostos dos benefícios fiscais respectivos e do cumprimento das obrigações impostas aos titulares do direito aos benefícios”. Quer isto dizer que não é ilegal, antes é uma decorrência do princípio da legalidade, a verificação, por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira, dos pressupostos de que depende a aplicação de um benefício fiscal. Como é evidente, dessa verificação há-de poder resultar uma leitura diversa daquela que determinou, ainda que de forma automática, um benefício fiscal, conquanto a liquidação do imposto em causa se faça antes de expirado o prazo no qual é possível proceder à sua liquidação .

 

4.3. O prazo de caducidade do direito à liquidação

 

Compreende-se, assim, que se suscite a questão que se refere ao prazo de caducidade do direito à liquidação de IMT no caso dos autos. A resposta a dar a esta pergunta pode ditar a solução a dar ao problema controvertido.

 

4.3.1. O n.º 3 do art.º 31.º e o n.º 1 do art.º 35.º, ambos do CIMT 

               

O artigo 45.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária dispõe que “O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro”. Importa, portanto, ver o que refere a este propósito do CIMT.

 

Entende a Requerente que o prazo de caducidade do direito à liquidação no caso sub judice é o prazo de 4 anos imposto pelo n.º 3 do art.º 31.º do CIMT. Já a Requerida julga ser aplicável o prazo de 8 anos a que faz apelo o n.º 1 do art.º 35.º também do CIMT.

 

 Vale a pena atentar no que prescrevem os referidos artigos.

 

Artigo 31.º

Liquidação adicional

1 - Em caso de omissão de bens ou valores sujeitos a tributação ou havendo indícios fundados de que foram praticados ou celebrados actos ou contratos com o objectivo de diminuir a dívida de imposto ou de obter outras vantagens indevidas, são aplicáveis os poderes de correcção atribuídos à administração fiscal pelo presente Código ou pelas demais leis tributárias.

 

2 - Quando se verificar que nas liquidações se cometeu erro de facto ou de direito, de que resultou prejuízo para o Estado, bem como nos casos em que haja lugar a avaliação, o chefe do serviço de finanças onde tenha sido efectuada a liquidação ou entregue a declaração para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 19.º, promove a competente liquidação adicional. 

 

3 - A liquidação só pode fazer-se até decorridos quatro anos contados da liquidação a corrigir, excepto se for por omissão de bens ou valores, caso em que poderá ainda fazer-se posteriormente, ficando ressalvado, em todos os casos, o disposto no artigo 35.º.

 

4 - A liquidação adicional deve ser notificada ao sujeito passivo, nos termos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário, a fim de efectuar o pagamento e, sendo caso disso, poder utilizar os meios de defesa aí previstos.

 

Já o art.º 35.º do mesmo Código dispõe o seguinte:

 

Artigo 35.º

Caducidade do direito à liquidação

 

1 - Só pode ser liquidado imposto nos oito anos seguintes à transmissão ou à data em que a isenção ficou sem efeito, sem prejuízo do disposto no número seguinte e, quanto ao restante, no artigo 46.º da Lei Geral Tributária.

 

2 - Sendo desconhecida a quota do co-herdeiro alienante, para efeitos do artigo 26.º, aos oito anos acrescerá o tempo por que o desconhecimento tiver durado.

 

3 - Nos actos ou contratos por documento particular autenticado, ou qualquer outro título, quando essa forma seja admitida em alternativa à escritura pública, o prazo de caducidade do imposto devido conta-se a partir da data da promoção do registo predial

 

Ora, nos termos do art.º 35.º do CIMT, conjugado com o n.º 1 do art.º 45.º da LGT, o prazo de caducidade do direito à liquidação do IMT é de 8 anos a contar da transmissão ou da data em que a isenção ficou sem efeito. Esta regra é, porém, contrariada pela disposição especial constante do n.º 3 do art.º 31.º, que prescreve que, no caso de liquidação adicional, esse prazo será de 4 anos, contados da liquidação a corrigir.

 

Tudo está, pois, em saber se a liquidação ora impugnada configura uma verdadeira liquidação adicional ou se, pelo contrário, não assume essa natureza.

 

4.3.2. Liquidação e liquidação adicional 

               

Apurados os elementos da relação de imposto, importa fixar o quantitativo da prestação tributária, o que ocorre por via da liquidação, que consiste, assim, na aplicação da taxa fixada na lei à matéria colectável, também apurada nos termos legais .

 

No caso vertente, a notária que intervém na escritura pública de aquisição do Imóvel em causa por parte da Requerente não se limita a reconhecer a isenção prevista no artigo 20.º do dito Decreto-Lei n.º 423/83. Antes arquiva, como se lê a fls 120 do livro n.º 74, “declaração com o número 160 910 005 115 903, datada de 23/02/2010, comprovativa da isenção do pagamento do IMT nos termos do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de Dezembro (…)”.

 

Importa, portanto, apreciar a natureza jurídica dessa declaração de IMT, no sentido de saber, para os efeitos que aqui importa surpreender, se estamos diante de uma verdadeira liquidação de imposto, caso em que a liquidação ora impugnada seria uma liquidação adicional, ou se, pelo contrário, não se trata de uma liquidação de imposto em sentido próprio, sendo a liquidação que agora nos ocupa uma primeira liquidação. A resposta a dar a estas perguntas ditará o prazo de que a Requerida dispõe para liquidar o IMT.

 

A declaração arquivada pela notária é emitida pelos serviços da Requerida, identifica o adquirente e o alienante do Imóvel, refere o facto tributário (“aquisição de figuras parcelares do direito de propriedade sobre imóveis”), descreve o bem sobre que incide o direito de superfície a ser transaccionado, indica a matéria colectável (“€ 92.000,00”), menciona a taxa aplicável (“6,50%”), assinala a isenção de que a transacção beneficia (“33 – Utilidade Turística (Art.º 20.º do D.L. 423/83), 100% sobre a matéria colectável”) e revela ainda um n.º de liquidação (“´...”).

 

Como é bom de ver, esta declaração sugere a existência de um acto de liquidação de IMT, cuja colecta, por causa do benefício fiscal em causa, é € 0,00.

 

Aliás, sem qualquer surpresa, no ofício n.º ... de 07.01.2015, a Requerida, depois de concluir que a aquisição do Imóvel “não pode beneficiar das isenções consagradas no art.º 20.º n.º 1 do DL 423/83”, determina a efectuação da referida liquidação conforme projecto que apresenta e a que dá o título de “Liquidação Adicional”.

 

Também sem espanto, o documento de cobrança com o número..., de 17.03.2015, procede à descrição do acto de liquidação e afirma peremptoriamente que “desta forma fica sem efeito a liquidação de IMT n.º .../2010”.

 

Como se pode verificar, a situação dos autos nada tem que ver com aquelas em que nunca houve qualquer intervenção da Autoridade Tributária e Aduaneira e o reconhecimento da isenção fiscal é feito pelo notário interveniente na respectiva escritura pública de aquisição. Na verdade, quando uma isenção fiscal é, por assim dizer, reconhecida por notário não parece defensável atribuir ao reconhecimento notarial ou registral a natureza de acto tributário, muito menos a vocação de um acto de liquidação de imposto. Nessas situações, portanto, tem sido considerado que a liquidação motivada pela constatação do erro em que se traduz o reconhecimento de um benefício que se julga afinal inaplicável não é uma liquidação adicional em sentido próprio, por não haver nenhuma liquidação anterior a que ela possa acrescer. E, se assim é, não pode aplicar-se o prazo de caducidade do direito à liquidação constante do n.º 3 do art.º 31.º do CIMT, sendo antes aplicável o prazo do artigo 35.º do mesmo Código.

 

A questão que importa agora dirimir é se a situação dos autos é igual ou de alcance equivalente àquelas a que se acabou de fazer referência. Parece-nos, na verdade, que não é. Na situação a que se reportam os presentes autos é clara a existência de um prévio acto de liquidação, promovido por quem tem competência para a sua prática, ainda que na base de uma declaração do sujeito passivo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 19.º do CIMT. Nesse acto de liquidação, praticado no dia 23.02.2010, para o que aqui interessa sublinhar, diz-se que a transacção era beneficiária de uma isenção, tendo a Requerida, no âmbito das suas competências, verificado que o dito benefício fiscal não era, afinal, aplicável. Contudo, é forçoso reconhecer que entre o dia 23.02.2010 e o dia 07.01.2015 nada de relevante ocorreu quanto ao conhecimento que da situação fazia a Requerida. O mesmo é dizer que a Requerente, por sua iniciativa, levou à presença da Requerida, em momento anterior à emissão do documento de cobrança a zeros, todos os elementos de que ela precisava para fazer uma correcta leitura da situação de facto e fazer uma aplicação adequada da lei ao caso.

 

Como é evidente, os actos tributários uma vez praticados não ganham a aura da eternidade. Estão desde logo, como é sabido, sujeitos a revisão. Contudo esta evidência não infirma outra: a de que o decurso do tempo condiciona o exercício de direitos, sendo esse condicionamento uma das manifestações do princípio da segurança jurídica.

 

No caso vertente, não estamos perante uma isenção que, sem mais, ficou “sem efeito”, como se lê no n.º 1 do art.º 35.º do CIMT, expressão que a Requerida também usa quando leva ao conhecimento da Requerente a liquidação ora impugnada. Estamos antes diante de uma tentativa por parte da Requerida de corrigir um erro em que ela própria incorreu aquando da prática do acto de liquidação que agora pretende ver substituído por outro que faça uma correcta aplicação da lei ao caso. Ou seja, a Requerida entende, e porventura bem, que laborou em erro quando, ao proceder à liquidação de IMT em 2010, considerou a transmissão em causa isenta do imposto. É justamente a situações como esta, estamos em crer, que se aplica o n.º 3 do art.º 31.º do CIMT.

 

Parece a este tribunal, para efeitos de apreciação do que aqui está em causa, um excesso formal fazer corresponder uma liquidação a zeros a uma não liquidação ou, no que nos parece ser em tudo equivalente, ficcionar que uma liquidação a zeros, ainda que emitida exclusivamente na base dos elementos declarados pelo contribuinte, nenhuma intervenção da Autoridade Tributária supõe existir. Até se aceita que essa intervenção não possa ser tida, como vimos já, como o reconhecimento do direito a um benefício fiscal. Contudo, o simples facto de a Autoridade Tributária e Aduaneira ser destinatária de conhecimento dos factos aportados pelo contribuinte – nos quais se inclui o pretenso direito a um determinado benefício fiscal – impõe que não se ignore que esse conhecimento teve lugar. Mesmo que se entenda que, dado o automatismo da emissão do documento de cobrança, o Fisco não conhece a situação de facto, não pode admitir-se que os serviços tributários podem pura e simplesmente ignorar a declaração do contribuinte. Na verdade, parece ferir o equilíbrio de direitos e obrigações estabelecido pelo legislador admitir serem equivalentes, no que respeita à caducidade do direito à liquidação, a situação em que a Autoridade Tributária e Aduaneira ignora em absoluto a ocorrência do facto gerador do imposto e aquela em que foi, no cumprimento de um dever legal, levado ao conhecimento dos serviços tributários tudo quanto releva para a correcta apreciação tributária da operação.

 

Aliás, o excesso de formalismo que não podemos aceitar ganha ainda maior visibilidade quando se distingue – no que parece ter sucedido com a aquisição que aqui nos ocupa – duas situações que devem ter tratamento em tudo idêntico. No caso do IMT pretende-se que não houve liquidação, por ter sido o documento de cobrança emitido a zeros. Já no caso do Imposto do Selo pela mesmíssima aquisição e na base dos mesmíssimos elementos fornecidos pelo contribuinte, terá havido liquidação porque o benefício não era uma isenção, como no caso do IMT, mas uma redução do imposto. Ora, se o argumento para dizer que não houve liquidação se funda no automatismo da emissão do documento de cobrança não se percebe como é que esse juízo pode alterar-se quando do documento de cobrança resulta uma importância a pagar.

 

A intervenção que houve dos serviços tributários numa situação, foi a mesma que terá havido na outra. No aresto que já referimos  pode ler-se: “Ainda que haja intervenção dos serviços da AT ao receber a declaração do sujeito passivo, essa intervenção não implica a definição de direitos e obrigações na situação jurídica concreta, mas uma mera confirmação dos dados fornecidos pelo sujeito passivo, o qual é o único responsável pelos mesmos. E essa confirmação não consubstancia qualquer juízo sobre o direito ao benefício”. Não dissentimos destas afirmações. Contudo, não podemos aceitar que elas autorizem a leitura de que o prazo de caducidade do direito à liquidação numa situação como a descrita é o mesmo que se aplica às situações em que a Autoridade Tributária e Aduaneira ignora em absoluto o facto gerador do imposto. Se não conhece, não podia ignorar.

 

É ainda um excesso de formalismo, parece-nos, fundar a inexistência de liquidação na técnica pela qual o benefício se materializa. Convenhamos que para estes efeitos uma isenção ou uma liquidação a zeros é economicamente equivalente. É conhecida a doutrina que sustenta ser uma isenção fiscal um facto impeditivo da constituição da obrigação tributária . Mas não podemos aceitar a afirmação segundo a qual, tendo havido o facto tributário à data da transmissão, “daí não pode retirar-se, sem mais, que houve uma liquidação da qual não teria resultado imposto a pagar por dele estar o recorrente isento, pelo contrário, por força dessa isenção, não se procedeu, então, a qualquer liquidação de IMT” .  Estranha-se aliás que se diga “daí não pode retirar-se, sem mais, que houve uma liquidação” (sublinhado nosso). Não é, como se procurou demonstrar “sem mais” que se retira que houve uma liquidação da qual não resultou imposto a pagar e que se entende ser a liquidação ora posta em crise uma liquidação adicional, entendida esta, como bem se refere no aresto acabado de citar, como uma “correcção de uma liquidação deficiente em consequência de erros ou omissões, que tanto podem ser da responsabilidade dos serviços como dos contribuintes”. Erros de facto ou de direito, acrescentamos nós. O erro que houve, mesmo que da responsabilidade do contribuinte, terá sido considerar-se aplicável uma isenção fiscal que vieram depois os serviços tributários considerar não tinha cabimento.  

 

Parece, pois, a este tribunal arbitral que, no caso em apreço, o prazo de caducidade do direito à liquidação de IMT é de 4 anos, contados da prática do acto de liquidação a corrigir, razão por que a liquidação adicional promovida pela Requerida no dia 17.03.2015 não pode subsistir na ordem jurídica, por extemporânea.

 

                4.4. Conclusão

 

Pelo exposto, entende o tribunal arbitral que é ilegal o acto de liquidação de IMT ora posto em crise .

 

                4.5. Dos juros indemnizatórios

 

A alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT dispõe que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.

 

Não se ignora que a autorização legislativa concedida ao Governo pelo art.º 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, na base da qual foi aprovado o RJAT, determina que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Ainda que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fundem a competência dos tribunais arbitrais em “declarações de ilegalidade”, parece razoável o entendimento segundo o qual se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo certo que nos processos de impugnação judicial, para além da anulação de actos tributários, podem ser apreciados pedidos de indemnização, desde logo relativos a juros indemnizatórios.

 

Com efeito, o princípio da cognoscibilidade dos pedidos de indemnização, em reclamação graciosa ou em processo judicial, justifica-se sempre que o dano que se pretende ver ressarcido resulte de facto imputável à administração tributária e aduaneira. Manifestações desse princípio podem ser encontradas no n.º 1 do art.º 43.º da LGT e no art.º 61.º do CPPT.

 

O direito à percepção de juros indemnizatórios por parte da Requerente depende, pois, da verificação dos seguintes pressupostos: a) erro imputável aos serviços; b) que do referido erro resulte o pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido; c) que o erro dos serviços, seja analisado em sede de reclamação graciosa ou de impugnação judicial.

 

No caso vertente, o erro imputável aos serviços existe e reside no facto de ter sido exigido à Requerente o pagamento de um imposto, o IMT, que por ela não era devido em virtude da caducidade do direito à liquidação. Da análise do processo administrativo verifica-se que a Requerida poderia e deveria ter-se abstido de praticar o acto de liquidação adicional ora impugnado e esse erro merece ser censurado nos termos da lei, desde logo à luz do que dispõem o art.º 43.º e o art.º 100.º da LGT. Consequentemente, entende o tribunal arbitral que tem a Requerente direito a juros indemnizatórios.

 

 

5.            Questão prejudicada: o benefício da isenção a que se refere o n.º 1 do art.º 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12

 

Tendo o tribunal arbitral julgado estar caducado o direito da Requerida proceder à liquidação do IMT em causa, surge prejudicada e processualmente inútil a apreciação da questão de saber se a transmissão a que se reportam os autos poderia beneficiar da isenção de IMT prevista no n.º 1 do art.º 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12.

 

 

6.            Decisão

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

 

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequentemente anular o acto de liquidação que motivou o documento de cobrança com o número..., de 17.03.2015;

 

b)           Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente pelo montante por esta pago, porque indevidamente exigido, no montante de € 5.980,00; 

 

c)            Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde a data do pagamento indevido até ao seu integral reembolso.

 

 

7.            Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, na alínea a) do n.º1 do art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 5.980,00 (cinco mil novecentos e oitenta euros).

 

 

 

8.            Custas

 

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.

 

Lisboa, 30 de Julho de 2021

 

O Árbitro

 

______________________________

(Nuno Pombo)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

1.            Relatório

 

 

A - Geral

 

 

1.1.        A…, contribuinte fiscal n.º…, residente na Rua dos…, … – 2.º andar, …-… Lisboa (de ora em diante designada “Requerente”), apresentou, no dia 12.06.2015, um pedido de constituição de tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando: (i) a anulação dos actos de liquidação adicional de Imposto Municipal sobre as Transmissões de Imóveis (“IMT”) e de Imposto do Selo (“IS”) que lhe foram notificados pelo ofício n.º…, de 18.02.2015, (doc. n.º 2 junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral) e (ii) a condenação da Administração Tributária a Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestações tributárias.

 

1.2.        Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro Nuno Pombo, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.

 

1.3.        Por despacho de 02.07.2015, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação dos Senhores Dr. B… e Dra. C… para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.

 

1.4.        Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído a 31.08.2015.

 

1.5.        No dia 03.09.2015 foi notificado o dirigente máximo do serviço da Requerida para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.

 

1.6.        No dia 29.09.2015 a Requerida apresentou a sua resposta.

 

 

B – Posição da Requerente

 

 

1.7.        A Requerente adquiriu, por escritura pública outorgada no dia 25.02.2010, pelo preço de € 92.000,00 (noventa e dois mil euros), o direito de superfície da fracção autónoma designada pelas letras “CB” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal identificado por “D…”, sito na…, …, ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de ... sob o artigo … (o “Imóvel”).

 

1.8.        À D… foi atribuída a utilidade turística a título prévio, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12, conforme despacho do Ministro do Turismo publicado no Diário da República, nº269, III Série, de 16.11.2004.

 

1.9.        Na sequência do pedido de liquidação prévia apresentado pela Requerente, a Requerida reconheceu, a 23.02.2010, ao abrigo do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12, que a aquisição do Imóvel por parte da Requerente beneficiava da isenção do IMT e da redução do IS (verba 1.1.) a um quinto.

 

1.10.      Pelo ofício n.º … de 07.01.2015, a Requerente tomou conhecimento de que o Serviço de Finanças de ... entendia que devia ficar sem efeito a isenção e a redução concedidas a 23.02.2010 e, consequentemente, de que pretendia efectuar a respectiva liquidação adicional de IMT e de IS.

 

1.11.      Através do ofício n.º … de 18.02.2015, a Requerente tomou conhecimento de que a Chefe do Serviço de Finanças de ... havia revogado a isenção e a redução concedidas anteriormente, tendo sido notificada para proceder ao pagamento da liquidação adicional de € 5.980,00 de IMT e de € 588,80 de IS.

 

1.12.      A Requerente procedeu ao pagamento das quantias de € 5.980,00 de IMT e de € 588,80 de IS no dia 17.03.2015.

 

1.13.      A alteração de entendimento do Serviço de Finanças de ... deveu-se ao facto de ter constatado que o “benefício fiscal visa abranger a construção / criação de estabelecimentos para fomento da utilidade turística e não a aquisição de fracções mesmo que integradas em empreendimentos com atribuição de utilidade turística” e à mudança da orientação jurisprudencial entretanto verificada (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 3/2013).

 

1.14.      Os benefícios fiscais foram reconhecidos pela liquidação de 23.02.2010, sendo o acto da sua revogação de 18.02.2015, quase cinco anos depois.

 

1.15.      Os actos tributários podem ser revogados no prazo da sua revisão, conforme prescreve o n.º 1 do art.º 79.º da Lei Geral Tributária (LGT), sendo aplicável à revogação, por força do art.º 2.º da mesma lei, o disposto nos artigos 138.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo, com a redacção que estava em vigor à data dos factos (CPA).

 

1.16.      Ora, nos termos da alínea b) do n.º 1 e do n.º 2 do art.º 140.º do CPA, os actos administrativos válidos não são livremente revogáveis quando, como é o caso, “forem constitutivos de direitos ou de interesses legalmente protegidos” e não estejam em causa actos que tenham sido “desfavoráveis aos interesses dos seus destinatários”.

 

1.17.      Mesmo que se admitisse que a revogação operada visava um acto inválido, essa revogação, nos termos do disposto no art.º 141.º do CPA, só poderia ter por fundamento a sua invalidade e ocorrer no prazo do respectivo recurso contencioso, que há muito estaria excedido, fossem quais fossem as normas aplicáveis - art.º 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, art.º 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) ou art.º 141.º do CPA.

 

1.18.      Nem mesmo admitindo-se um mecanismo geral de revogação ou revisão de actos tributários, sempre se terá de respeitar a limitação temporal referente à possibilidade de serem lançadas liquidações adicionais de IMT, que só poderia acontecer “até decorridos quatro anos contados da liquidação a corrigir”, nos termos do n.º 3 do art.º 31.º do Código do IMT, não sendo aplicável o prazo de 8 anos previsto no art.º 35.º do mesmo Código.

 

1.19.      A Requerente pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, por pagamento indevido de prestação tributária, contados desde a data de pagamento até àquela em que for processado o competente título de anulação.

 

 

C – Posição da Requerida

 

 

1.20.      A Requerida, na sua resposta, começa por referir que a liquidação de IS objecto dos presentes autos havia sido já anulada, como era do conhecimento da Requerente.

 

1.21.      Prossegue a Requerida defendendo-se por excepção, ao expressar o entendimento de que a Requerente ataca o que considera ser uma revogação ilegal do despacho de reconhecimento de um benefício fiscal, não sendo essa uma questão relacionada com um acto tributário em sentido próprio, querendo obter do tribunal arbitral uma decisão de reconhecimento da isenção de IMT.

 

1.22.      Tal significa que o meio processual utilizado pela Requerente não é o adequado, devendo antes ter lançado mão de uma acção administrativa especial.

 

1.23.      Entende ainda a Requerida ser o tribunal arbitral incompetente para apreciar o pedido, já que não está abrangido no seu âmbito da competência material o conhecimento da matéria relativa ao reconhecimento de isenções tributárias.

 

1.24.      A Requerida, sem prejuízo das excepções invocadas, sustenta ainda que a Requerente adquiriu em 2010 o direito de superfície de uma fracção autónoma de um empreendimento que já se encontrava instalado e cuja utilidade turística foi reconhecida em 2004, concluindo portanto que ela adquiriu o mencionado direito real visando não a instalação de um empreendimento turístico (que na verdade já existia) mas a sua exploração.

 

1.25.      Para a Requerida, o disposto no n.º 4 do art.º 47.º do EBF impõe que o reconhecimento da isenção dependa da apresentação de um requerimento pelos sujeitos passivos num prazo que está naturalmente associado à instalação do empreendimento.

 

1.26.      Acresce que o n.º 6 (e não do n.º 5 como por lapso é dito) do art.º 47.º do EBF remete expressamente para o disposto no Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de Dezembro, sendo certo que neste diploma o acento tónico da isenção tributária está na finalidade com que a fracção foi adquirida.

 

1.27.      Invoca igualmente a Requerida o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/2013, de 23 de Janeiro, que vai no sentido de julgar que o legislador pretendeu conferir um incentivo apenas às aquisições de imóveis com o objectivo de neles instalar empreendimentos qualificados de utilidade turística. Há, pois no entender da Requerida, dois procedimentos distintos: o da instalação e o da exploração de empreendimentos turísticos e só aquela justifica os benefícios em causa.

 

1.28.      Por último, sustenta a Requerida não serem devidos quaisquer juros indemnizatórios uma vez que do acto impugnado não resultou a obrigação de pagamento de imposto superior ao devido.   

 

 

D – Conclusão do Relatório e Saneamento

 

 

1.29.      Tendo a Requerida suscitado as excepções da impropriedade do meio processual empregue e da incompetência material do Tribunal Arbitral, em homenagem ao princípio do contraditório, a Requerente pronunciou-se sobre elas, sustentando a sua improcedência, já que o pedido de pronúncia arbitral visa expressamente a declaração de ilegalidade de uma liquidação adicional de IMT.

 

1.30.      Por despacho de 02.02.2016, o tribunal arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), uma vez que era seu entendimento terem as partes carreado para o processo todos os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão.

 

1.31.      As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

1.32.      A cumulação de pedidos efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se porquanto o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação posta em crise.

 

1.33.      O processo não padece de qualquer nulidade. Foram suscitadas pela Requerida as excepções da impropriedade do meio processual empregue e da incompetência material do Tribunal Arbitral, que, a serem julgadas procedentes, obstam à apreciação do mérito da causa. Assim, deverá tribunal arbitral, antes do mais, apreciá-las.

 

 

2.            As excepções da impropriedade do meio processual empregue e da incompetência material do tribunal arbitral

 

Como se disse, a Requerida expressa o entendimento de que a Requerente faz uso dum meio processual impróprio, quando devia ter lançado mão de uma acção administrativa especial, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 97.º do CPPT. Ora, este entendimento não pode prevalecer, já que falece o seu primeiro fundamento. Aquela disposição diz expressamente que “o recurso contencioso dos actos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação (…)”. Forçoso é reconhecer que a Requerente suscita junto deste tribunal arbitral a apreciação da legalidade de um acto de liquidação.

 

Entende ainda a Requerida que o tribunal arbitral se deve abster de conhecer o pedido uma vez que não está abrangido no seu âmbito de competência a cognoscibilidade da matéria relativa ao reconhecimento de isenções tributárias.

 

No n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fixa-se a competência dos tribunais arbitrais, podendo eles apreciar as seguintes pretensões:

 

a)            A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; e

b)           A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.

 

Pretendeu o legislador que a regra da arbitrabilidade dos actos tributários assentasse na liquidação de tributos, ficando de fora da competência dos tribunais arbitrais, entre outros, “a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária” . Igual conclusão se pode extrair do art.º 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, diploma que fixa os termos em que a administração tributária e aduaneira se vincula à jurisdição arbitral.

 

O que acaba de ser afirmado não equivale a considerar apartada do âmbito da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, como sugere a Requerida, a apreciação da legalidade de actos de liquidação de impostos, quando essa análise implica igualmente a formulação de um juízo sobre a aplicabilidade de um qualquer benefício fiscal . Na verdade, parece a este tribunal arbitral que apreciar a legalidade de um acto administrativo de indeferimento ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais (apreciação que, como dissemos, escapa à competência desta jurisdição arbitral) não é o mesmo que julgar a legalidade de um acto de liquidação que faz tábua rasa de um benefício fiscal que o sujeito passivo entende ser-lhe aplicável ope legis, como é o caso dos autos.

 

Assim, entende este tribunal arbitral ser materialmente competente para apreciar o pedido.

 

 

3.            Matéria de facto

 

3.1. Factos provados

 

                               Têm-se por provados os seguintes factos:

 

3.1.1.     A Requerente adquiriu, por escritura pública outorgada no dia 25.02.2010, pelo preço de € 92.000,00 (noventa e dois mil euros), o direito de superfície da fracção autónoma designada pelas letras “CB” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal identificado por “D…”, sito na…, …, ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de ... sob o artigo … (doc. n. o 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.2.     À D… foi atribuída a utilidade turística a título prévio, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12, conforme despacho do Ministro do Turismo publicado no Diário da República, n.º 269, III Série, de 16.11.2004.

 

3.1.3.     A Requerida reconheceu, a 23.02.2010, ao abrigo do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12, que a aquisição do Imóvel por parte da Requerente beneficiava da isenção do IMT e da redução do IS (verba 1.1.) a um quinto (docs. de fls. 4 e 5 do processo administrativo junto com a resposta da Requerida ao pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.4.     Pelo ofício n.º … de 07.01.2015, o Serviço de Finanças de ... comunicou à Requerente o entendimento de que devia ficar sem efeito a isenção e a redução concedidas a 23.02.2010 e, consequentemente, a sua pretensão de efectuar a respectiva liquidação de IMT e de IS (doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.5.     A Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, recebida nos serviços da Requerida a 29.01.2015 (doc. de fls. 9 do processo administrativo junto com a resposta da Requerida ao pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.6.     Pelo ofício n.º… de 18.02.2015 foi comunicado à Requerente o despacho da Chefe do Serviço de Finanças de ... que havia revogado a isenção e a redução concedidas em 2010, notificando-se a Requerente para proceder ao pagamento da liquidação adicional de € 5.980,00 de IMT e de € 588,80 de IS (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.7.     A Requerente procedeu ao pagamento das quantias de € 5.980,00 de IMT e de € 588,80 de IS no dia 17.03.2015 (doc. sem número junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

3.1.8.     A Requerida anulou entretanto o acto de liquidação de € 588,80 referente ao IS (consenso das Partes).

 

3.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

 

4.            Matéria de direito

 

4.1. Questões a decidir

 

Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo:

 

a)            A de saber qual o prazo de caducidade do direito à liquidação aplicável no caso dos autos: se o prazo geral de 4 anos, nos termos dos artigos 45.º da LGT e 31.º, n.º 3, do CIMT ou o prazo de 8 anos a que se refere o n.º 1 do art.º 35.º do CIMT;

 

b)           Caso se conclua que não caducou o direito da Requerida proceder à liquidação do IMT em causa, a de determinar se a aquisição pela Requerente do Imóvel é beneficiária da isenção a que se refere o n.º 1 do art.º 20º do Decreto-Lei nº 423/83, de 05.12;

 

c)            A de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação contestada, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral, poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

4.2. O prazo de caducidade do direito à liquidação

 

Compreende-se que a primeira questão a apreciar seja justamente a que se refere ao prazo de caducidade do direito à liquidação de IMT no caso dos autos. A resposta a dar a esta pergunta pode ditar a solução a dar ao problema controvertido.

 

 

4.2.1. O n.º 3 do art.º 31.º e o n.º 1 do art.º 35.º, ambos do CIMT 

               

Entende a Requerente que o prazo de caducidade do direito à liquidação no caso sub judice é o prazo de 4 anos imposto pelo n.º 3 do art.º 31.º do CIMT. Já a Requerida julga ser aplicável o prazo de 8 anos a que faz apelo o n.º 1 do art.º 35.º também do CIMT.

 

 Vale a pena atentar no que prescrevem os referidos artigos.

 

Artigo 31.º

Liquidação adicional

1 - Em caso de omissão de bens ou valores sujeitos a tributação ou havendo indícios fundados de que foram praticados ou celebrados actos ou contratos com o objectivo de diminuir a dívida de imposto ou de obter outras vantagens indevidas, são aplicáveis os poderes de correcção atribuídos à administração fiscal pelo presente Código ou pelas demais leis tributárias.

 

2 - Quando se verificar que nas liquidações se cometeu erro de facto ou de direito, de que resultou prejuízo para o Estado, bem como nos casos em que haja lugar a avaliação, o chefe do serviço de finanças onde tenha sido efectuada a liquidação ou entregue a declaração para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 19.º, promove a competente liquidação adicional. 

 

3 - A liquidação só pode fazer-se até decorridos quatro anos contados da liquidação a corrigir, excepto se for por omissão de bens ou valores, caso em que poderá ainda fazer-se posteriormente, ficando ressalvado, em todos os casos, o disposto no artigo 35.º.

 

4 - A liquidação adicional deve ser notificada ao sujeito passivo, nos termos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário, a fim de efectuar o pagamento e, sendo caso disso, poder utilizar os meios de defesa aí previstos.

 

Já o art.º 35.º do mesmo Código dispõe o seguinte:

 

Artigo 35.º

Caducidade do direito à liquidação

 

1 - Só pode ser liquidado imposto nos oito anos seguintes à transmissão ou à data em que a isenção ficou sem efeito, sem prejuízo do disposto no número seguinte e, quanto ao restante, no artigo 46.º da Lei Geral Tributária.

 

2 - Sendo desconhecida a quota do co-herdeiro alienante, para efeitos do artigo 26.º, aos oito anos acrescerá o tempo por que o desconhecimento tiver durado.

 

3 - Nos actos ou contratos por documento particular autenticado, ou qualquer outro título, quando essa forma seja admitida em alternativa à escritura pública, o prazo de caducidade do imposto devido conta-se a partir da data da promoção do registo predial

 

Ora, nos termos do art.º 35.º do CIMT, conjugado com o n.º 1 do art.º 45.º da LGT, o prazo de caducidade do direito à liquidação do IMT é de 8 anos a contar da transmissão ou da data em que a isenção ficou sem efeito. Esta regra é porém contrariada pela disposição especial constante do n.º 3 do art.º 31.º, que prescreve que, no caso de liquidação adicional, esse prazo será de 4 anos, contados da liquidação a corrigir.

 

Tudo está pois em saber se a liquidação ora impugnada configura uma verdadeira liquidação adicional ou se, pelo contrário, não assume essa natureza.

 

4.2.2. Liquidação e liquidação adicional 

               

Apurados os elementos da relação de imposto, importa fixar o quantitativo da prestação tributária, o que ocorre por via da liquidação, que consiste, assim, na aplicação da taxa fixada na lei à matéria colectável, também apurada nos termos legais .

 

No caso vertente, ao contrário de outras situações em que os tribunais, judiciais e arbitrais, têm sido chamados a dirimir litígios sobre o sentido e o alcance das isenções fiscais disponíveis no quadro do instituto da utilidade turística, concedidas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 423/83, a notária que intervém na escritura pública de aquisição do Imóvel em causa por parte da Requerente não se limita a reconhecer a isenção prevista no artigo 20.º do dito Decreto-Lei n.º 423/83. Antes arquiva, como se lê a fls 120 do livro n.º 74, “declaração com o número…, datada de 23/02/2010, comprovativa da isenção do pagamento do IMT nos termos do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de Dezembro (…)”.

 

Como se vê, a notária que interveio na escritura não se limitou a interpretar a norma de isenção, considerando-a aplicável à transmissão objecto da referida escritura.

 

A declaração que a notária diz ter arquivado é emitida pelos serviços da Requerida, identifica o adquirente e o alienante do Imóvel, refere o facto tributário (“aquisição de figuras parcelares do direito de propriedade sobre imóveis”), descreve o bem sobre que incide o direito de superfície a ser transaccionado, indica a matéria colectável (“€ 92.000,00”), menciona a taxa aplicável (“6,50%”), assinala a isenção de que a transacção beneficia (“33 – Utilidade Turística (Art.º 20.º do D.L. 423/83), 100% sobre a matéria colectável”) e revela ainda um n.º de liquidação (“…”).

 

Como é bom de ver, esta declaração deixa ver cristalinamente a existência de um acto de liquidação de IMT, cuja colecta é € 0,00.

 

Aliás, sem qualquer surpresa, no ofício n.º ... de 07.01.2015, a Requerida, depois de concluir que a aquisição do Imóvel “não pode beneficiar das isenções consagradas no art.º 20.º n.º 1 do DL 423/83”, determina a efectuação da referida liquidação conforme projecto que apresenta e a que dá o título de “Liquidação Adicional”.

 

Também sem espanto, o documento de cobrança com o número …, de 17.03.2015, procede à descrição do acto de liquidação e afirma peremptoriamente que “desta forma fica sem efeito a liquidação a liquidação de IMT n.º…/2010”.

 

Como se pode verificar, a situação dos autos nada tem que ver com aquelas em que nunca houve qualquer liquidação de imposto, tendo o reconhecimento da isenção fiscal sido feito pelo notário interveniente na respectiva escritura pública e pelo conservador que procedeu ao competente registo. Na verdade, não parece defensável atribuir a esse reconhecimento notarial ou registral a natureza de acto tributário, muito menos a vocação dum acto de liquidação em sentido próprio. Nessas situações, portanto, tem sido considerado que a liquidação motivada pela constatação do erro em que se traduz o reconhecimento de um benefício que se julga afinal inaplicável não é uma liquidação adicional em sentido próprio, por não haver nenhuma liquidação anterior a que ela possa acrescer. E, se assim é, não pode aplicar-se o prazo de caducidade do direito à liquidação constante do n.º 3 do art.º 31.º do CIMT.

 

Ora, é diferente, como se disse, a situação a que se reportam os presentes autos. Nela é clara a existência de um prévio acto de liquidação, promovido por quem tem competência para a sua prática. Nesse acto de liquidação, praticado no dia 23.02.2010, entendeu a Requerida que a transacção era beneficiária de uma isenção que veio a considerar depois não ser afinal aplicável. Contudo, é forçoso reconhecer que entre o dia 23.02.2010 e o dia 07.01.2015 nada de relevante ocorreu quanto ao conhecimento que da situação fazia a Requerida. O mesmo é dizer que a Requerente, por sua iniciativa, levou à presença da Requerida todos os elementos de que ela precisava para fazer uma correcta interpretação da lei, fazendo-a aplicar adequadamente.

 

Como é evidente, os actos tributários uma vez praticados não ganham a aura da eternidade. Estão desde logo, como é sabido, sujeitos a revisão. Contudo esta evidência não infirma outra: a de que o decurso do tempo condiciona o exercício de direitos, sendo esse condicionamento uma das manifestações do princípio da segurança jurídica.

 

No caso vertente, não estamos perante uma isenção que, sem mais, ficou “sem efeito”, como se lê no n.º 1 do art.º 35.º do CIMT. Estamos antes diante de uma tentativa por parte da Requerida de corrigir um erro que ela própria cometeu aquando da prática do acto de liquidação que agora pretende ver substituído por outro que faça uma correcta aplicação da lei. Ou seja, a Requerida entende que laborou em erro quando, ao proceder à liquidação de IMT em 2010, considerou a transmissão em causa isenta do imposto. É justamente a situações como esta que se aplica o n.º 3 do art.º 31.º do CIMT.

 

Parece pois a este tribunal arbitral que, no caso em apreço, o prazo de caducidade do direito à liquidação de IMT é de 4 anos, contados da prática do acto de liquidação a corrigir, razão por que a liquidação adicional promovida pela Requerida no dia 17.03.2015 não pode subsistir na ordem jurídica, por extemporânea.

 

                4.3. Conclusão

 

Pelo exposto, entende o tribunal arbitral que é ilegal o acto de liquidação de IMT ora posto em crise.

 

                4.4. Dos juros indemnizatórios

 

A alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT dispõe que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.

 

Não se ignora que a autorização legislativa concedida ao Governo pelo art.º 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, na base da qual foi aprovado o RJAT, determina que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Ainda que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fundem a competência dos tribunais arbitrais em “declarações de ilegalidade”, parece razoável o entendimento segundo o qual se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo certo que nos processos de impugnação judicial, para além da anulação de actos tributários, podem ser apreciados pedidos de indemnização, desde logo relativos a juros indemnizatórios.

 

Com efeito, o princípio da cognoscibilidade dos pedidos de indemnização, em reclamação graciosa ou em processo judicial, justifica-se sempre que o dano que se pretende ver ressarcido resulte de facto imputável à administração tributária e aduaneira. Manifestações desse princípio podem ser encontradas no n.º 1 do art.º 43.º da LGT e no art.º 61.º do CPPT.

 

O direito à percepção de juros indemnizatórios por parte da Requerente depende, pois, da verificação dos seguintes pressupostos: a) erro imputável aos serviços; b) que do referido erro resulte o pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido; c) que o erro dos serviços, seja analisado em sede de reclamação graciosa ou de impugnação judicial.

 

No caso vertente, o erro imputável aos serviços existe e reside no facto de ter sido exigido à Requerente o pagamento de um imposto, o IMT, que por ela não era devido em virtude da caducidade do direito à liquidação. Da análise do processo administrativo verifica-se que a Requerida poderia e deveria ter-se abstido de praticar o acto de liquidação adicional ora impugnado e esse erro merece ser censurado nos termos da lei, desde logo à luz do que dispõem o art.º 43.º e o art.º 100.º da LGT. Consequentemente, entende o tribunal arbitral que tem a Requerente direito a juros indemnizatórios.

 

 

5.            Questão prejudicada: o benefício da isenção a que se refere o n.º 1 do art.º 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12

 

Tendo o tribunal arbitral julgado estar caducado o direito da Requerida proceder à liquidação do IMT em causa, surge prejudicada e processualmente inútil a apreciação da questão de saber se a transmissão a que se reportam os autos poderia beneficiar da isenção de IMT prevista no n.º 1 do art.º 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 05.12.

 

 

6.            Decisão

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

 

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequentemente anular o acto de liquidação que motivou o documento de cobrança com o número…, de 17.03.2015;

 

b)           Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente pelo montante por esta pago, porque indevidamente exigido, no montante de € 5.980,00; 

 

c)            Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde a data do pagamento indevido até ao seu integral reembolso.

 

 

7.            Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, na alínea a) do n.º1 do art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 5.980,00 (cinco mil novecentos e oitenta euros).

 

8.            Custas

 

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.

 

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2016

 

O Árbitro

(Nuno Pombo)