DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. No dia 24 de julho de 2015, A..., na qualidade de cabeça-de-casal da Herança Indivisa de B..., NIF..., residente na Avenida..., n.º..., 1.º esquerdo, Lisboa (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade e a anulação dos «documentos de liquidação» n.ºs 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015... e 2015..., referentes à 1.ª prestação e n.ºs 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015 ... e 2015..., referentes à 2.ª prestação do Imposto do Selo [Verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (doravante, TGIS)], no valor total de € 11.554,68, respeitante ao ano de 2014 e ao prédio urbano inscrito sob o artigo ... na matriz predial urbana da freguesia das..., concelho de Lisboa, compreendido na Herança Indivisa de B... .
A Requerente juntou 4 (quatro) documentos e arrolou uma testemunha, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas.
É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
1.1. No essencial e em breve síntese, a Requerente alegou o seguinte (que mencionamos maioritariamente por transcrição):
- As sobreditas liquidações de Imposto do Selo são referentes ao prédio urbano sito na Avenida..., n.º..., freguesia das..., Lisboa, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... e respeitam ao período tributário do ano de 2014;
- As mesmas liquidações foram emitidas com data de 20 de março de 2015 e o termo do respetivo prazo de pagamento da 1.ª prestação verifica-se no final do mês de abril de 2015 e da 2.ª prestação no final do mês de julho de 2015;
- Atento o disposto no art. 103.º, n.º 3, da CRP, verifica-se a manifesta inexistência de um dos pressupostos legais do facto tributário nas liquidações em causa, enfermando as mesmas de nulidade, a qual expressamente é invocada;
- Subsidiariamente, aquelas liquidações de Imposto do Selo enfermam de erro quer quanto aos pressupostos de facto quer quanto à taxa aplicável ao imposto em causa;
- O prédio em apreço encontra-se em propriedade vertical e contém 12 partes, andares ou divisões com utilização independente os quais uma grande parte (mas não a totalidade) se destina a habitação, sendo que nenhum dos andares destinados a habitação tem um valor patrimonial tributário igual ou superior a € 1.000.000,00, pelo que terá de concluir-se pela não verificação do pressuposto legal de incidência do Imposto do Selo previsto na verba 28.1 da TGIS, sendo, pois, ilegais, os atos de liquidação impugnados;
- A AT não pode considerar o valor total do prédio para a incidência deste imposto, constituindo flagrante ilegalidade e inconstitucionalidade considerar no cômputo do valor o somatório dos valores patrimoniais tributários atribuídos a cada andar ou divisão independente;
- A AT não pode distinguir entre duas situações (propriedade horizontal e propriedade vertical) onde o próprio legislador não o fez, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, assim como o princípio da legalidade fiscal previsto no art. 103.º, n.º 2, da CRP e ainda os princípios da justiça, igualdade (arts. 13.º e 104.º, n.º 3, da CRP) e proporcionalidade fiscal;
- A verba 28 da TGIS, ao abrir a possibilidade de se tributar de modo diferenciado a titularidade de património imobiliário de igual valor detido por pessoas diferentes em razão de critérios que podem contender, sem a mínima justificação, com, nomeadamente, o princípio da capacidade contributiva, não pode deixar de ser considerada inconstitucional, por violação do princípio da igualdade;
- A Requerente procedeu ao pagamento do valor total de imposto constante das liquidações em causa, pelo que requer o respetivo reembolso, acrescido de juros indemnizatórios, desde as datas de pagamento até à sua efetiva devolução.
2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 7 de agosto de 2015.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4. Em 22 de setembro de 2015, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 7 de outubro de 2015.
6. No dia 4 de novembro de 2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual, para além de deduzir matéria de exceção, impugnou, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente e concluiu pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
A Requerida não juntou documentos, nem requereu a produção de quaisquer outras provas.
Na mesma ocasião, a Requerida juntou aos autos o respetivo processo administrativo (doravante, abreviadamente designado PA).
6.1. No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua Resposta (que mencionamos maioritariamente por transcrição):
A Requerida começa por invocar a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, esgrimindo a seguinte argumentação:
- O Tribunal Arbitral é materialmente incompetente, face ao disposto no art. 2.º do RJAT, para apreciar a legalidade de uma prestação do ato de liquidação, que não é em si nenhum ato tributário, não havendo qualquer dúvida, até pelo valor do processo e por todos os documentos a ele juntos, que a Requerente impugna, exclusivamente, as notas de cobrança que constituem as 1.ªs e 2.ªs prestações do imposto relativo ao imóvel;
- Pelo que se verifica a manifesta incompetência material do Tribunal Arbitral, devendo a exceção invocada ser julgada procedente.
Posteriormente, a Requerida entra na defesa por impugnação, argumentando o seguinte que aqui destacamos:
- O que está aqui em causa são liquidações que resultam da aplicação direta da norma legal, que se traduz em elementos objetivos, sem qualquer apreciação subjetiva ou discricionária;
- O conceito de prédio encontra-se definido no artigo 2º, n.º 1, do CIMI, estando estatuído no seu n.º 4 que, no regime de propriedade horizontal, cada fração autónoma é havida como constituindo um prédio, pelo que decorre da análise do preceito normativo que um «prédio em propriedade total com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente» é, inequivocamente, diverso de um imóvel em regime de propriedade horizontal, constituído por frações autónomas, ou seja, vários prédios;
- Quanto à liquidação de IMI, tratando-se de prédios em propriedade total, o valor patrimonial tributário que serve de base ao seu cálculo, será indiscutivelmente o valor patrimonial tributário que a Requerente define como «valor global do prédio»;
- Estando correta a liquidação e sendo devido o imposto apurado, não são devidos os juros indemnizatórios, desde logo por não existir qualquer erro imputável aos Serviços, que se limitaram a atuar, como deviam, no estrito cumprimento da norma legal;
- Carece de sustentação legal a tese defendida pela Requerente, pois muito embora a liquidação do Imposto do Selo, nas situações previstas na verba nº 28.1 da TGIS, se processe de acordo com as regras do CIMI, a verdade é que o legislador ressalva os aspetos que careçam das devidas adaptações, a saber, aqueles em que, como é o caso dos prédios em propriedade total, ainda que com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente (muito embora o IMI seja liquidado relativamente a cada parte suscetível de utilização independente) para efeitos de Imposto do Selo releva o prédio na sua totalidade pois que, as divisões suscetíveis de utilização independente não são havidas como prédio, mas apenas as frações autónomas no regime de propriedade horizontal, conforme o disposto no n.º 4 do art. 2.º do CIMI;
- O vício de violação de lei por erro quanto aos pressupostos de direito deve ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica as liquidações impugnadas por configurarem uma correta aplicação da lei aos factos;
- Não se vislumbra como é que a tributação em causa possa ter violado o princípio da igualdade, pois a previsão da verba 28.1 da TGIS não consubstancia qualquer violação a este princípio, inexistindo qualquer discriminação na tributação de prédios constituídos em propriedade horizontal e prédios em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, ou entre prédios com afetação habitacional e prédios com outras afetações;
- A propriedade horizontal e a propriedade vertical são institutos jurídicos diferenciados, sendo que o legislador pode submeter a um enquadramento jurídico tributário distinto, logo, discriminatório, os prédios em regime de propriedade horizontal e vertical, em especial, beneficiando o instituto juridicamente mais evoluído da propriedade horizontal, sem que essa discriminação deva ser considerada necessariamente arbitrária;
- Não se pode concluir por uma alegada discriminação em violação do princípio da igualdade quando, na verdade, estamos perante realidades distintas, valoradas pelo legislador de forma diferente;
- Nestes termos, mantêm-se integralmente válidas e legais as notas de cobrança do Imposto do Selo, verba 28 da TGIS, 1.ª e 2.ª prestações, ora impugnadas.
7. Notificada para o efeito, a Requerente pronunciou-se quanto à matéria de exceção alegada pela Requerida na sua Resposta, pugnando pela improcedência da exceção que foi arguida.
Na mesma ocasião, a Requerente prescindiu da inquirição da testemunha por si arrolada.
8. Em 18 de novembro de 2015, foi proferido despacho a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.
9. Notificadas para o efeito, ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados.
***
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
O processo não enferma de nulidades.
As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.
II.1. Da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria
A Requerida arguiu esta exceção, invocando o seguinte argumento nuclear:
«O Tribunal Arbitral é materialmente incompetente, face ao disposto no art. 2.º do RJAT, para apreciar a legalidade de uma prestação do acto de liquidação, que não é em si nenhum acto tributário, não havendo qualquer dúvida, até pelo valor do processo e por todos os documentos a ele juntos, que a Requerente impugna, exclusivamente, as notas de cobrança que constituem as 1.ªs e 2.ªs prestações do imposto [do Selo, respeitante ao ano de 2014,] relativo ao imóvel.».
A Requerente pronunciou-se sobre esta exceção, pugnado pela respetiva improcedência, nos seguintes termos que importa respigar:
«Cotejando o requerimento da Requerente verifica-se que a mesma pede a declaração de nulidade dos actos tributários relativos à liquidação do I.S. sobre a verba 28.1 da Tabela Geral.
Obviamente que a liquidação daquele imposto de selo se consubstancia posteriormente na notificação ao contribuinte para o pagamento do imposto que no caso é dividido em 3 prestações tudo isto reportado a cada um dos andares do edifício, porquanto são efectuadas tantas liquidações quantos os andares para habitação existentes no prédio.
Inclusive no ponto d) do seu petitório a requerente pede que “lhe sejam restituídas as quantias pagas referentes às liquidações (no valor total de 17.331,83 € - correspondentes às 3 prestações já pagas) efectuadas relativas a cada um dos andares ou parte de utilização independente…”.»
Tendo em conta que o âmbito de competência material do tribunal é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (art. 13.º do CPTA aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT) e que a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que é de conhecimento oficioso (art. 16.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), importa apreciar, primacialmente, a exceção dilatória suscitada pela Requerida sobre a incompetência do tribunal arbitral.
Como ponto de partida para a apreciação desta questão, importa fixar aquele que é o objeto deste processo, tal qual o mesmo foi expressamente delineado e balizado pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral. Nessa perspetiva, compulsado aquele articulado inicial, cumpre destacar os seguintes segmentos do mesmo:
«I – Do objecto do pedido
A pronúncia arbitral tem por objecto a impugnação das liquidações constantes dos Documentos de Liquidação n.º 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015 ... e 2015..., referentes à 1.ª prestação e 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015..., 2015... e 2015..., referentes à 2.ª prestação respeitantes a Imposto de Selo da Verba 28.1 TGIS»
«VII – Indicação do valor da utilidade económica do pedido
Valor: o correspondente à soma dos valores das quantias pagas nas 1.ª e 2.ª prestações decorrentes das liquidações em causa, ou seja 11.554,68 €.»
«Valor: 11.554,68 €.»
Em face destes trechos do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se meridianamente evidente que a Requerente expressamente cingiu o objeto deste processo à apreciação da pretensão de declaração de ilegalidade das 1.ª e 2.ª prestações de Imposto do Selo (Verba 28.1 da TGIS), no valor total de € 11.554,68, respeitante ao ano de 2014 e ao referenciado prédio urbano. Na verdade, ao enunciar o objeto do processo e depois ao desenvolver a respetiva causa de pedir, a Requerente não alude nunca à liquidação (total) do Imposto do Selo, feita ao abrigo da verba 28.1 da TGIS, respeitante ao ano de 2014 e ao referenciado prédio urbano (apenas menciona as 1.ª e 2.ª prestações), nem faz qualquer menção ao valor total da respetiva coleta de imposto (apenas menciona o valor das 1.ª e 2.ª prestações).
Dito isto. A competência dos tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD é, desde logo, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, o qual estatui o seguinte:
“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.”
A fim de determinar se o Tribunal Arbitral é ou não materialmente competente para apreciar a pretensão deduzida nestes autos, afigura-se necessário averiguar se o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação de duas das prestações de uma liquidação de Imposto do Selo, efetuada ao abrigo da verba 28.1 da TGIS, equivale a um pedido de anulação total ou parcial da mesma liquidação ou, não equivalendo, se aquelas prestações, consideradas de per si, poderão configurar atos suscetíveis de impugnação autónoma.
Relativamente à primeira questão, adiantamos desde já que entendemos que duas prestações de Imposto do Selo não equivalem a uma liquidação desse imposto. Porquanto, o n.º 7 do artigo 23.º do CIS, na redação que lhe foi dada pelo artigo 3.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, dispõe que: “Tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMI”. Ora, a expressão “o imposto é liquidado anualmente” indicia que é efetuada uma única liquidação anual, embora a mesma possa ser dividida, para efeitos de pagamento – e apenas para este efeito –, em prestações, como decorre do disposto nos arts. 44.º, n.º 5 do CIS e 120.º do CIMI.
Assim, não existem tantas liquidações quantas as prestações em que a coleta de imposto deva ser paga (contrariamente ao entendimento evidenciado pela Requerente ao apelidar de “documentos de liquidação” cada uma das indicadas notas de cobrança de Imposto do Selo que lhe foram notificadas), pois a divisão de uma liquidação em prestações não passa de uma mera técnica de arrecadação de receitas. Como é referido na decisão arbitral proferida no processo n.º 205/2013-T (disponível em www.caad.org.pt/tributario/decisoes), “da circunstância do valor da liquidação [de Imposto do Selo] poder ser pago em várias prestações, não decorre que existam três liquidações (…) tratando-se, diferentemente, de uma liquidação que pode ser paga em várias prestações”.
Como explicita António Braz Teixeira (Princípios de Direito Fiscal, Volume I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 1995, pp. 243 e 244): “A prestação correspondente à obrigação de imposto pode ser instantânea ou periódica (…) [sendo] necessário não confundir as prestações periódicas que, embora realizando-se por actos sucessivos, em momentos diversos, têm origem numa mesma obrigação e constituem as várias parcelas de uma mesma prestação que se cindiu, com as prestações que devem efectuar-se periodicamente, não devido a uma divisão da prestação global, mas sim ao nascimento, também periódico, de novas obrigações, pela permanência dos pressupostos de facto da tributação”.
Por outro lado, saber se uma prestação pode ser havida como parte autonomamente impugnável da liquidação, remete-nos para a questão da divisibilidade do ato tributário de liquidação e consequente possibilidade da sua anulação parcial.
Tem vindo a ser entendido, pela doutrina e pela jurisprudência, que a liquidação é um ato divisível, quer por natureza, por respeitar a uma obrigação de natureza pecuniária, quer por definição legal, uma vez que o artigo 100.º LGT admite a “procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo”, situação em que a Administração fiscal fica obrigada “à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”. No entanto, para que haja anulação parcial do ato tributário, necessário se torna que a ilegalidade o afete apenas em parte (neste sentido, o acórdão do STA, proferido em 10 de abril de 2013, no processo n.º 0298/12, disponível em www.dgsi.pt). Assim, nos casos em que o ato tributário é divisível, se for pedida a anulação parcial de um ato tributário, o tribunal não poderá, em princípio, anulá-lo totalmente; se for pedida a sua anulação integral e o ato for apenas parcialmente anulável, o pedido será parcialmente improcedente.
Relativamente à liquidação de Imposto do Selo, como tem vindo a ser reiteradamente afirmado em diversas decisões de tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD (neste sentido, entre outras, as decisões proferidas nos processos n.ºs 205/2013-T, 408/2014-T, 726/2014-T, 736/2014-T, 90/2015-T e 137/2015-T, disponíveis em www.caad.org.pt/tributario/decisoes), “a liquidação de imposto é só uma e só ela constituirá um acto lesivo, susceptível de ser objecto de uma única impugnação, pelo que, quando a lei prevê o seu pagamento em varias prestações, escalonadas no tempo, a anulação do acto tributário terá consequências relativamente a todas elas, fazendo cessar a obrigação de pagar ou impondo a obrigação de restituição dos montantes de imposto já pagos pelo sujeito passivo, bem como o ressarcimento da situação através do pagamento de juros compensatórios, tudo a cargo da Autoridade Tributária.
O que a lei não prevê, nem em sede arbitral, nem em sede de processo de impugnação judicial é a pretensão anulatória de pagamento de prestações de imposto isoladas uma vez que tal efeito decorrerá apenas da anulação do acto tributário de liquidação que, como vimos, consiste na quantificação do montante total a pagar e que é apenas e tão só um único acto tributário.” (decisão arbitral proferida no processo n.º 90/2015-T).
Nesta parametria, as 1.ªs e 2.ªs prestações de Imposto do Selo (corporizadas nas aludidas notas de cobrança), objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, não são impugnáveis de per si, uma vez que não consubstanciam atos de liquidação de tributos (cf. arts. 95.º da LGT e 97.º, n.º 1, do CPPT aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), mas apenas duas das prestações em que o pagamento do Imposto do Selo liquidado pode ser realizado, ou seja, consubstanciam parcelas de uma prestação global, com origem numa mesma obrigação.
Noutra ordem de considerações, como é referido na decisão arbitral proferida no processo n.º 726/2014-T, o “facto de a declaração de ilegalidade dos atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, os atos de determinação da matéria colectável e de fixação de valores patrimoniais, integrarem a competência dos tribunais arbitrais, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, devendo o pedido de constituição do tribunal arbitral, quanto a eles, ser apresentado no prazo de 30 dias a contar da data da respectiva notificação, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, leva à conclusão necessária de que os atos de impugnação autónoma a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, são os atos de liquidação, de autoliquidação e de pagamentos por conta, ainda que, relativamente a estes, tenha sido apresentada reclamação graciosa ou recurso hierárquico, expressa ou tacitamente indeferidos.
Tendo-se excluído a possibilidade de uma prestação configurar um ato tributário de liquidação, muito menos se lhe poderá atribuir a natureza de autoliquidação ou de pagamento por conta.”
Nestes termos, impõe-se concluir que as 1.ªs e 2.ªs prestações de Imposto do Selo (corporizadas nas aludidas notas de cobrança), objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, não estão incluídas no âmbito do art. 2.º, n.º 1, alínea a), o RJAT, pois não constituem “actos de liquidação de tributos”, nem consubstanciam os “actos susceptíveis de impugnação autónoma” a que alude o art. 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, pelo que é julgada procedente a arguida exceção de incompetência absoluta do Tribunal Arbitral, em razão da matéria, para apreciar a pretensão formulada neste processo e, consequentemente, a Requerida é absolvida da instância (art. 16.º, n.º 1, do CPPT e arts. 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a), do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
*
Em consequência da procedência da exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, fica prejudicado o conhecimento do mérito da causa (art. 576.º, n.º 2, do CPC aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
***
III. DECISÃO
Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal Arbitral, em razão da matéria, e, consequentemente, absolver a Requerida da instância.
b) Condenar a Requerente nas custas do processo.
*
VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 11.554,68.
*
CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, o montante das custas é fixado em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
*
Lisboa, 27 de janeiro de 2016.
O Árbitro,
(Ricardo Rodrigues Pereira)