Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 465/2015-T
Data da decisão: 2015-12-09  Selo  
Valor do pedido: € 22.718,65
Tema: IS - Verba 28.1 TGIS.
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DECISÃO ARBITRAL

 

1.    RELATÓRIO

 

A..., SA, com o NIPC... e sede na Avenida..., n.º..., em Lisboa (doravante Requerente), vem, em representação do F... (doravante F...), com o NIPC ... e do F... II (adiante F... II), com o NIC..., ambos com sede na mesma morada anterior, requerer a constituição de tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), para que este se pronuncie sobre a ilegalidade e determine a anulação dos atos de liquidação de Imposto do Selo do ano de 2014, emitidas ao abrigo da Verba 28.1, da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), relativas a dois prédios urbanos habitacionais da propriedade dos Fundos que representa.

Pede ainda a Requerente a condenação da AT no reembolso das quantias pagas ou a pagar, relativamente às liquidações impugnadas, bem como no pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, desde a data do pagamento do imposto indevido, até à data da sua efetiva restituição, atribuindo ao pedido o valor económico de € 22 718,65.

São os seguintes os fundamentos do pedido de anulação dos atos de liquidação de Imposto do Selo do ano de 2014:

a.    “Os Fundos aqui representados pela sociedade gestora Requerente, no âmbito da sua atividade, são proprietários de diversos prédios urbanos, incluindo prédios habitacionais, comerciais e terrenos para construção”;

b.    “Neste âmbito, (…) foram notificados dos atos de liquidação de Imposto do Selo do ano de 2014 (…), emitidos ao abrigo da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, aditada pelo artigo 4.º da Lei 55-A/2012, de 29 de outubro”;

c.    (…) “O normativo que está na origem dos atos de liquidação sub judice contraria de forma manifesta e intolerável os princípios basilares do Direito, atentando contra a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente contra o princípio da igualdade (…)”;

d.   (…) “A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, promoveu diversas alterações ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, ao Código do Imposto do Selo e à Lei Geral Tributária, na “prossecução do interesse público, em face da situação económica e financeira do País (…)” e da exigência de “(…) um esforço de consolidação que requererá, além de um permanente ativismo na redução da despesa pública, a introdução de medidas fiscais inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental (…)” – cf. Proposta de Lei n.º 96/XII/2.ª apresentada pelo Governo à Assembleia da República e que esteve na base da aprovação da mencionada Lei”;

e.    “O diploma pretendeu assim instituir medidas “(…) fundamentais para reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento (…) alarga a tributação dos rendimentos do capital e da propriedade, abrangendo equitativamente um conjunto alargado de sectores da sociedade portuguesa (…)” – cf.  Proposta de Lei n.º 96/XII/2.ª apresentada pelo Governo à Assembleia da República”;

f.     (…) “a referida Lei aditou à Tabela Geral do Imposto do Selo a respetiva verba 28 (…) através da [qual] o Governo pretendeu instituir (…) “tributação especial” que incide apenas sobre prédios urbanos de valor superior a um milhão de euros”;

g.    (…) “o Governo visou promover um “sistema fiscal mais equitativo”, em que os contribuintes “são chamados a contribuir de acordo com a sua capacidade contributiva” (…); “Porém (…) a tributação alcançada com esta verba é manifestamente contrária aos princípios constitucionais, em especial ao princípio da igualdade (…)”;

h.    “O princípio da igualdade (…) traduz a proibição de quaisquer discriminações no tratamento de situações iguais (dimensão igualizadora) e a admissão da desigualdade de tratamento de situações desiguais (dimensão diferenciadora) ”;

i.      “Este princípio encontra-se expressamente consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) (…); (…) o princípio da igualdade fiscal assume-se como uma expressão particular do princípio geral da igualdade, materialmente considerado, enquanto “igualdade na lei” (cf. Casalta Nabais, in Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra, 2005, pág. 153) ”;

j.      “Neste âmbito, o princípio da igualdade traduz-se na “(…) ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério – o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical) (…)” – cf.  Casalta Nabais, in Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra, 2005, págs. 151-152) ”;

k.    (…) “Este princípio da capacidade contributiva assenta (…) no princípio material da igualdade, constitucionalmente consagrado, tendo apoio nas restantes normas fiscais da CRP e na legislação tributária”;

l.      “O princípio da igualdade surge (…) no artigo 5.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) que determina expressamente que “a tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e promove a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento”, sendo que “a tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material”;

m.   (…) “em matéria de tributação do património, a CRP prevê uma regra especial: “a tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos” – cf. artigo 104.º, n.º 3 da CRP”;

n.    (…) “o princípio da capacidade contributiva, como pressuposto e critério da tributação, “(…) afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva (…)” – cf. Casalta Nabais, in Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra, 2005, pág. 154”; Está assim constitucionalmente vedada ao legislador ordinário a criação de normas de modo arbitrário (…)”;

o.    “Ora, (…) a verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo e a tributação especial resultante da mesma promovem um tratamento diferenciado e uma desigualdade injustificada entre os contribuintes, em manifesta violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP”;

p.    (…) “exclui, desde logo, de forma arbitrária, uma parcela significativa do património imobiliário “de elevado valor”; [a] violação do princípio da igualdade decorre (…) de o facto tributário relevante restringir-se apenas a uma parcela do património imobiliário de valor superior a € 1.000.000,00 – i. e. sobre o património imobiliário afeto e destinado a habitação –, estando excluído do âmbito da tributação todo o restante património de elevado valor (…) que se encontre afeto ou destinado a outros fins”;

q.    (…) “ a lei, excluindo (…) os prédios urbanos que não estejam afetos a habitação (…) diferencia de modo evidente os contribuintes sem atender à respetiva capacidade contributiva”;

r.     (…) “Ora, (…) tais distinções (…) não poderão jamais ser arbitrárias (…) ao abrigo do princípio da igualdade fiscal, alicerçado no princípio da capacidade contributiva não poderá o legislador selecionar, arbitrariamente, determinados prédios que devam ser objeto de tributação e deixar de tributar outros”;

s.     (…) “entre a vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional, saliente-se: “só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, perceptíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença se prosseguem” – cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 47/2010 (sublinhado nosso) ”;

t.     “Pretendendo “sobrecarregar” os contribuintes que manifestam uma capacidade contributiva superior, o legislador não poderia ter excluído desta equação os contribuintes que detêm a propriedade de prédios de elevado valor que, contudo, não se encontram afetos/destinados a habitação (…) a propriedade de “prédios de elevado valor” afetos/destinados a habitação não revela, por si só, uma maior capacidade contributiva do que a propriedade de “prédios de elevado valor” afetos/destinados a outros fins;

u.    (…) “esta tributação especial, nos moldes em que foi implementada – ao incidir sobre prédios urbanos, isoladamente considerados – não logra “penalizar” ou “agravar” de forma efetiva todos os proprietários que têm um património imobiliário de elevado valor e que, como tal, demonstram uma “capacidade contributiva” superior”;

v.    (…) “atenta a solução tributária preconizada na verba 28 em análise, caso um proprietário detenha apenas um único prédio urbano e o mesmo tenha um valor patrimonial tributário superior a € 1.000.000,00, o mesmo será sujeito a tributação especial; diversamente, caso um proprietário detenha múltiplos prédios urbanos de valor unitário inferior a € 1.000.000,00, mas que no seu total perfaçam um valor muito superior àquele, não será sujeito a qualquer tributação especial”;

w.  (…) “a solução legal adotada conduz a tratamentos distintos de sujeitos passivos proprietários de patrimónios imobiliários de muito elevado valor, consoante tais patrimónios estejam concentrados ou dispersos (…) gera assim uma manifesta iniquidade (…)”;

x.    (…) “A aplicação da verba em análise gera, assim, (…) um tratamento desigual de situações de facto iguais, atentando contra o princípio geral da igualdade e contra o princípio da capacidade contributiva (…) conforme defendido por Sérgio Vasques: “A igualdade de um imposto mede-se pelos resultados da sua aplicação e, quando o legislador saiba de antemão que não pode tributar uma qualquer manifestação de riqueza com igualdade efetiva, deve então abster-se de a sujeitar a um imposto” – in Capacidade Contributiva, Rendimento e Património, intervenção no Fórum Direito Tributário, Universidade Católica de Brasília”;

y.     (…) “cumpre concluir que a tributação especial, em sede de imposto de selo, incidente sobre os prédios com afetação habitacional de valor superior a € 1.000.000, introduzida pela Lei n.º 55-A/2012, viola, pela forma como foi formulada, o princípio constitucional da igualdade tributária e o seu corolário traduzido no princípio da capacidade contributiva”;

z.    (…) “A verba 28 (…) colide ainda com o princípio da igualdade tributária ao determinar (…) dupla tributação de um mesmo facto tributário – i. e. a titularidade de um direito real (…) ainda que não resulte de forma expressa da CRP, a proibição da dupla tributação resulta do princípio da capacidade contributiva e, sem mais, do princípio constitucional penal do non bis in idem;

aa.  Deste modo, a verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo gera inevitavelmente uma discriminação negativa de determinados sujeitos passivos face a outros que, sobre o mesmo facto tributário, apenas veem incidir um único tributo. Neste âmbito, Casalta Nabais escreveu: “ao impor limites intrassistemáticos, ou seja, coerência entre s diversos impostos e coerência do sistema fiscal no seu conjunto, o princípio em causa [da igualdade] deve ser convocado para a solução de problemas tais como a dupla tributação interna, concretize-se esta numa dupla tributação (dupla tributação jurídica) ou numa sobreposição de impostos (dupla tributação económica), a tributação múltipla ou plural, que se traduz em os mesmos bens, por exemplo os imóveis, serem objeto de diversos impostos (…)” – in Direito Fiscal, 7.ª Edição, Coimbra, 2012, pág. 164”;

bb.    (…) atenta a aplicação da verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo, a titularidade de um direito real é simultaneamente tributada em Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) (…) e em Imposto do Selo (…) ambos os impostos incidem sobre (…) o mesmo facto tributário. – [cf. o] Processo n.º 744/2014-T (…); [assim] resulta demonstrado que a verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo é contrária ao princípio da igualdade tributária, aqui considerando a proibição constitucional da dupla tributação jurídica, e como tal deve a mesma, ao abrigo do artigo 204.º da CRP, ser desaplicada no caso concreto”;

cc. (…) “Sem prescindir do quanto ficou supra exposto, cumpre acrescer que os Fundos (…), enquanto fundos de investimento imobiliário, desenvolvem, a título principal, a atividade a compra e venda de bens imóveis, [p]elo que, a titularidade do direito de propriedade sobre imóveis, os quais se destinam a realizar o seu objeto social, não poderão jamais representar uma capacidade contributiva superior (…) consubstanciando antes bens de investimento, os quais se encontram afetos a operações imobiliárias (…) no âmbito das respetivas atividades”;

dd.   (…) “o Imposto do Selo previsto na referida verba não poderá incidir sobre a propriedade de imóveis que se constituem “ bens de investimento” de uma sociedade – cuja atividade consiste, exatamente, na compra e venda de imóveis –, conquanto nestas situações de facto não se encontram verificados os princípios base subjacentes à tributação aqui em análise”.

Termina a Requerente por pedir a não aplicação, no caso concreto, da verba 28, da TGIS, “por manifesta inconstitucionalidade” (designadamente, por violação do princípio da igualdade), a declaração de ilegalidade das liquidações impugnadas e a condenação da Requerida à restituição do valor do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios “até à decisão final da presente ação arbitral”.

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta, defendendo-se por exceção e por impugnação:

1.    Por exceção:

a.    “Não questiona a Requerente a sujeição ao imposto de selo da verba 28.1. da Tabela Geral anexa ao CIS (TGIS) (…); Entenderá, porém, que tal liquidação padece de ilegalidade por a Verba 28 da TGIS padecer de inconstitucionalidade por violação do Princípio da Igualdade na sua vertente do Princípio da Coerência do Sistema Fiscal, consagrado nos artigos 13º e 104º, nº 3 da Constituição da República (CRP) ”;

b.    “Cingir-se-á o pedido de pronúncia arbitral à desaplicação da norma da Verba 28 da TGIS pelo Tribunal Arbitral por alegada inconstitucionalidade e consequente restituição do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios”;

c.    (…) “A competência da jurisdição arbitral, nos termos do art. 2º, nº1, do RJAT, esgota-se na apreciação das pretensões de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação dos tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta e de declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria colectável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria colectável e de atos de fixação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria colectável e de atos de fixação de valores patrimoniais”, “Referindo, ainda, o nº 2 do mesmo artigo que os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”;

d.   (…) “estará vedado ao Tribunal Arbitral a apreciação da alegada violação de princípio constitucional da igualdade da Verba 28 da TGIS nos modos formulados pela Requerente, por não assentar na situação concreta do caso sob apreciação e na legislação aplicável”;

2.    Por impugnação:

a.    (…) “a situação dos prédios de que a Requerente é proprietária subsume-se cabalmente na previsão da verba 28.1. da TGIS que faz depender a sujeição ao imposto do selo, da conjugação de dois factos - a afetação habitacional e o valor patrimonial do prédio urbano inscrito na matriz ser igual ou superior a € 1.000.000,00”;

b.    “O art. 13º da CRP preceitua o seguinte:

“1- Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2- Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

c.    “O legislador com a Verba28.1 da TGIS introduziu um princípio de tributação sobre a riqueza exteriorizada na propriedade (…) sobre os prédios urbanos com afetação habitacional, de mais elevado valor, ditos de luxo, e que se traduziu na fixação de um valor mensurável - o Valor Patrimonial Tributário igual ou superior a € 1.000.000,00”;

d.   “O critério legislativo assentaria no facto de a propriedade de imóveis afetos a habitação de valor igual ou superior a € 1.000.000,00 demonstrar uma superior capacidade contributiva do respetivo proprietário (…)”;

e.    “Tal decorre inequivocamente da Proposta de Lei nº 96/XII – 2ª, de 21/09/2012 (…): “A prossecução do interesse público, em face da situação económico-financeira do país exige um esforço de consolidação que requererá, além de um permanente ativismo na redução da despesa pública, a introdução de medidas fiscais inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental.

Estas medidas são fundamentais para reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento. O Governo está fortemente empenhado em garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho. (…)

Por outro lado será criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre os prédios urbanos de afectação habitacional cujo valor patrimonial seja igual ou superior a um milhão de euros”. (Destaque nosso) ”;

f.     “E a mesma conclusão pode retirar-se das declarações do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais aquando da discussão na generalidade daquela Proposta de Lei, ao expor: «O Governo elegeu como princípio prioritário da sua política fiscal a equidade social. Esta é ainda mais importante em tempos de rigor como forma de garantir a justa repartição do esforço fiscal. (…)

Para que o sistema fiscal promova mais igualdade é fundamental que o esforço de consolidação orçamental seja repartido por todos os contribuintes e incida sobre todos os tipos de rendimento, abrangendo com especial ênfase os rendimentos de capital e as propriedades de elevado valor. (…)

Em primeiro lugar o Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação» ”;

g.    “A norma da Verba 28.1 não pode deixar de se enquadrar no objetivo expresso do legislador de onerar adicionalmente os prédios habitacionais de valor mais elevado na consecução de repartir, para além dos titulares de rendimentos e pensões, também pelos titulares de determinado património imobiliário, os sacrifícios impostos pela austeridade numa conjuntura económica e financeira concreta do país”;

h.    “É neste enquadramento que se pode aferir a conformidade da Verba 28.1 com o princípio da igualdade e o princípio da capacidade contributiva”; “O conteúdo e conformação do princípio da igualdade nas várias vertentes e na dimensão da capacidade contributiva tem sido abundantemente tratado pela Jurisprudência e Doutrina. Assim”,

i.      (…) “no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 563/96, de 16 de Maio, referir-se-ia que «… o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais) - cfr., entre tantos outros, e além do já citado acórdão nº 186/90, os acórdãos nºs. 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93, 516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, I Série, de 3 de Março de 1988, e II Série, de 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de 1993, 6 de Outubro do mesmo ano, e 19 de Janeiro e 30 de Agosto de 1994, respetivamente.

O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, "razoável, racional e objectivamente fundadas", sob pena de, assim não sucedendo, "estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes", no ponderar do citado acórdão nº 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J.C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).» (Sublinhado nosso)”;

j.      “Sobre o princípio da igualdade escreveria José Casalta Nabais in Direito Fiscal, Almedina, 2012, 7.ª Edição, pág. 155, que «(...) o princípio da igualdade fiscal tem sempre ínsita sobretudo a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos e quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção dessa diferença»”;

k.    “E relativamente ao princípio da capacidade contributiva em correlação com o princípio da igualdade, pronunciar-se-ia o Tribunal Constitucional nomeadamente no Acórdão n.º 197/2013, de 9 de Abril, referindo que «…o princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária. Isto porque se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o tertium comparationis - leia-se, o critério - que há de servir de base à comparação. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera tanto como condição ou pressuposto quanto como critério ou parâmetro da tributação (...). Opera como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe; vale como critério ou parâmetro porque determina que a exação do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua "capacidade de gastar" (ability to pay). Ou seja, contribuintes com a mesma capacidade de gastar devem pagar os mesmos impostos (igualdade horizontal), e contribuintes com diferente capacidade de gastar devem pagar impostos diferentes (igualdade vertical)»”;

l.      “Na mesma linha de entendimento discorreria o Acórdão nº 187/2013 no sentido de que «O princípio da capacidade contributiva representa uma certa concepção do sistema fiscal segundo o qual “cada contribuinte deve pagar na medida da sua capacidade”, opondo-se assim, a uma concepção em função do princípio do benefício, que determinaria de “cada um pagar na medida dos benefícios que recebe do Estado”.

Sendo certo que a Constituição não se refere expressamente ao princípio da capacidade contributiva, existe uma consistente construção doutrinária e jurisprudencial em torno deste conceito.

Sousa Franco (Finanças Públicas e Direito Financeiro, vol. II, págs. 186-187) é peremptório na afirmação de que a capacidade contributiva está subjacente à Constituição fiscal (…). Saldanha Sanches (ob. cit, pág. 227), analisando a estrutura do sistema fiscal português que resulta dos artigos 103° e 104° da Constituição conclui haver uma «definição indireta da capacidade contributiva como princípio estruturante do sistema através da tributação do rendimento». Casalta Nabais (ob. cit.. págs. 445 e segs.) afirma que o princípio da capacidade contributiva extrai-se do princípio da igualdade, estabelecido no artigo 13° da Constituição. Também Sérgio Vasques (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2011, pg. 251), considera que o princípio da capacidade contributiva representa «o critério material de igualdade adequado aos impostos» ”;

m.  “Contrariamente aos argumentos esgrimidos pela Requerente, a norma da verba 28.1 da TGIS não afronta o princípio da capacidade contributiva como não contém definições legislativas arbitrárias e injustificadas de impostos”; (…)“o legislador elegeu de forma racional e objetiva um determinado pressuposto de facto como base de incidência (…) pelo que não se vê qualquer arbitrariedade do legislador ao optar por um critério tributário, o do VPT como base de incidência da Verba 28”;

n.    (…) “O legislador teve em vista, ao eleger a base de incidência da Verba 28.1 da TGIS, o prédio em si mesmo considerado e não o património predial global do contribuinte, em obediência ao desiderato político consignado na Proposta de Lei traduzido na justa repartição do esforço fiscal (…)”;

o.    (…) “Tal opção legislativa traduziria igualmente a opção política de afastar da tributação do imposto os prédios urbanos destinados a outras atividades ou os prédios rústicos no âmbito de uma situação económica concreta, gravemente recessiva, em coerência e prossecução dos objectivos do sistema fiscal consagrados na CRP. Trata-se de uma opção do legislador racional, justificada, objectiva e coerente”; (…) “a Verba 28.1 da TGIS não incorre em nenhuma arbitrariedade ou de alguma forma viola o princípio da igualdade em matéria tributária na vertente da capacidade contributiva”;

p.    “Na definição dada pelo professor Casalta Nabais, in Direito fiscal, 5ª edição, 2009, págs. 233 e 234, a dupla tributação consiste «(...) a uma situação de concurso de normas (…) em que o mesmo facto tributário se integra na hipótese de incidência de duas normas tributárias diferentes, o que implica, de um lado, a identidade do facto tributário e, do outro, a pluralidade de normas tributárias. Como requisito da identidade do facto tributário, costuma exigir-se a regra das quatro identidades, ou seja, a identidade do objeto, a identidade do sujeito, a identidade do período de tributação e a identidade do imposto”;

q.    (…) “é de referir que o IMI e o IS são impostos de natureza diferente e com base de incidência real distintas”. “Com efeito, o IMI é um imposto municipal que incide exclusivamente sobre o património imobiliário, conquanto o IS incide sobre operações que, independentemente da forma da sua materialização, revelem rendimento ou riqueza”;

r.     “O facto de a Verba 28.1da TGIS incidir sobre os prédios urbanos com afectação habitacional de VPT igual ou superior a € 1.000.000,00 não altera a natureza do IS para um imposto sobre o património, na medida em que continua a incidir sobre uma operação reveladora de rendimento ou riqueza”; “(…) como vem sendo consignado pelo Tribunal Constitucional «não existe nos preceitos constitucionais invocados qualquer referência expressa ao fenómeno da dupla tributação e muito menos uma sua proibição expressa», (Cfr. Acórdão nº 363/01, de 12 de Julho), podendo mesmo ser desejada pelo legislador, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12-07-2006, proferido no processo nº 0126/06, de 12 de Julho”.

 

Termina a AT por defender a total improcedência da “pretendida ilegalidade da Verba 28.1 por violação do princípio da igualdade consignado no art. 13º da CRP em todas as suas vertentes” e, já que tanto a exceção invocada como a questão controvertida versam, exclusivamente, sobre matéria jurídica, por requerer a dispensa de realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, bem como a produção de alegações.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no CAAD em 23 de julho de 2015, tendo sido aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 6 de agosto de 2015.

 

A Requerente informou não pretender designar árbitro; assim, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º, do RJAT, foi a signatária nomeada pelo Conselho Deontológico do CAAD, o que aceitou no prazo legalmente previsto, sem oposição das Partes.

 

O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído em 5 de outubro de 2015 e é materialmente competente para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

Por despacho arbitral de 10 de novembro de 2015, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT, assim como a produção de alegações, se a Requerente a isso se não opusesse, no prazo de 10 dias. No mesmo despacho se designou a data de 9 de dezembro de 2015 para prolação da decisão arbitral, advertindo-se a Requerente de que, até àquela data, deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

Por requerimento de 20 de novembro de 2015, veio a Requerente pronunciar-se sobre a exceção invocada pela AT. Notificada por despacho de 23 de novembro de 2015 para apresentar alegações, no prazo de 10 dias, a AT não contra alegou.

 

2.    MATÉRIA DE FACTO

2.1. Factos que se consideram provados:

2.1.1. O F... era, em 31 de dezembro de 2014, proprietário da fração autónoma designada pela letra B, do prédio urbano inscrito sob o artigo ... da União das Freguesias de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, sito na Rua..., n.º..., ...– Cascais, com o valor patrimonial tributário (VPT) de 1 234 719,88;

2.1.2. Sobre o VPT da fração autónoma identificada no ponto anterior, foi efetuada, em 20 de março de 2015, a liquidação de Imposto do Selo – Verba 28.1, referente ao ano de 2014, da quantia de € 12 347,20, pagável em três prestações anuais, nos meses de abril, julho e novembro de 2015;

2.1.3. O F... foi notificado para pagamento da primeira prestação da referida liquidação de Imposto do Selo, através da nota de cobrança n.º 2015..., no valor de € 4 115,74, que efetuou em 22 de abril de 2015;

2.1.4. O F...  II  era,  em  31  de  dezembro  de  2014,  proprietário  da fração autónoma designada pela letra H, do prédio urbano inscrito sob o artigo ... da União das Freguesias de Aldoar e Foz do Douro, concelho do Porto, sito na Rua de..., n.ºs ...-..., ...– Porto, com o VPT de € 1 037 144,50;

2.1.5. Sobre o VPT da fração autónoma identificada no ponto precedente, foi efetuada, em 20 de março de 2015, a liquidação de Imposto do Selo – Verba 28.1, referente ao ano de 2014, da quantia de € 10 371,45, pagável em três prestações anuais, nos meses de abril, julho e novembro de 2015;

2.1.6. O F... II foi notificado para pagamento da primeira prestação da referida liquidação de Imposto do Selo, através da nota de cobrança n.º 2015..., no valor de € 3 457,15, que satisfez em 22 de abril de 2015.

 

2.2. Fundamentação da matéria de facto provada:

A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada resultou da análise da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (cópias das notas de cobrança identificadas supra, dos comprovativos dos respetivos pagamentos e das cadernetas prediais dos imóveis tributados), não contestada pela Requerida.

 

2.3. Factos não provados

Não existem factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.

 

3.        MATÉRIA DE DIREITO – FUNDAMENTAÇÃO

3.1.   Questão prévia – Exceção de incompetência do Tribunal Arbitral.

Na sua resposta, vem a AT invocar a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral para a “apreciação da alegada violação do princípio constitucional da igualdade da Verba 28 da TGIS, nos modos formulados pela Requerente, por não assentar na situação concreta do caso sob apreciação e na legislação aplicável”, que a verificar-se, conduzirá à absolvição da instância. Trata-se de questão processual de conhecimento prioritário, nos termos do n.º 1 do artigo 608.º, do Código de Processo Civil, de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, ex vi do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT. Vejamos pois.

Sob a epígrafe de “Apreciação da inconstitucionalidade”, dispõe o artigo 204.º, da CRP, que “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou nos princípios nela consignados”.

Assim, impõe esta norma o dever de exame dos atos normativos eventualmente aplicáveis a um caso concreto, o que se traduz na “garantia de uma decisão judicial em conformidade com a constituição[1]. Consagra-se, assim, um sistema de fiscalização difusa da constitucionalidade das normas, da competência dos tribunais (de todos os tribunais – “incluindo os tribunais arbitrais”[2], que têm no artigo 209.º, n.º 2, da CRP, um suporte constitucional explícito).

Por outro lado, tem o Supremo tribunal Administrativo “vindo a decidir uniformemente que os atos que aplicam normas inconstitucionais (…) est[ão] submetidos ao regime geral das invalidades[3], sendo, nessa medida, anuláveis.

A Requerente vem arguir a inconstitucionalidade da norma de incidência contida na verba 28.1, da TGIS, enquanto fundamento para a emissão das liquidações de Imposto do Selo impugnadas, e que considera determinantes da sua anulação pela via judicial.

Dá-se, por isso, como não verificada a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral, invocada pela Requerida.

 

3.2.   Da invocada inconstitucionalidade da verba 28.1, da TGIS, por violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva

A norma da verba 28.1, da TGIS, aditada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, veio estabelecer, na sua redação inicial, a incidência do Imposto do Selo sobre a propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos de “afetação habitacional”, cujo VPT constante da matriz, nos termos do CIMI, fosse igual ou superior a € 1 000 000,00, à taxa de 1%, vindo a base tributável a ser alargada aos terrenos para construção, após a redação que lhe foi dada pela lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2014).

Não se conforma a Requerente com o tratamento, que considera desigualitário, da tributação de imóveis de afetação ou destino habitacional, com VPT igual ou superior a € 1 000 000,00, que se traduz numa dupla tributação do mesmo facto tributário – a titularidade de um direito real (em sede de IMI e de IS), deixando de fora os prédios urbanos com um VPT da mesma ordem de grandeza, mas com destinação diversa, por contrariedade entre os resultados da aplicação da referida norma de incidência e os fins assumidos pelo Governo na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 96/XII/2.ª, que esteve na origem da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro.

Assim como se não conforma com o facto de a tributação incidir apenas sobre prédios urbanos de VPT a partir de determinado patamar (€ 1 000 000,00) e não sobre o valor global do património imobiliário dos sujeitos passivos, por vezes de valor muito superior àquele mínimo tributável.

Tanto mais que, como é o caso dos Fundos que representa, os prédios urbanos sobre os quais incidiram as liquidações de Imposto do Selo objeto do pedido de pronúncia arbitral são bens de investimento, detidos no âmbito de uma atividade de compra e venda de imóveis.

Considera a Requerente que, através da instituição de uma “tributação especial” incidente sobre os prédios urbanos nas condições definidas pela norma da verba 28.1, da TGIS, o Governo pretendeu “um sistema fiscal mais equitativo”, no qual os contribuintes seriam “chamados a pagar de acordo com a capacidade contributiva”; no entanto, a imposição daquela “tributação especial”, revelar-se-ia uma manifesta violação do princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º, da CRP e, mais concretamente no princípio da igualdade fiscal, a aferir pelo critério da capacidade contributiva, nas suas dimensões igualizadora e diferenciadora.

 

Cumpre decidir:

1.    O sistema fiscal, enquanto conjunto de impostos vigente num determinado espaço jurídico, deve participar de certas caraterísticas, como sejam a equidade na distribuição da carga fiscal entre os cidadãos e a eficácia financeira, de modo que as receitas geradas sejam adequadas à satisfação das necessidades financeiras e objetivos de política orçamental[4].

2.    Há no entanto que distinguir entre os impostos fiscais, que têm como principal objetivo a arrecadação de receitas e os impostos extrafiscais, através dos quais se prosseguem outras finalidades que não a obtenção de receitas. Entre nós, de acordo com o n.º 1do artigo 103.º, da CRP, “O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” tendo, assim, como principal escopo a arrecadação de receitas que permitam a satisfação das necessidades públicas.

3.    Contudo, mesmo os impostos fiscais tenderão à igualdade na repartição dos encargos entre os contribuintes, aferida pela sua capacidade contributiva, cujo principal índice é o rendimento[5], sem prejuízo de a mesma ser observada na tributação do património ou de outras manifestações de riqueza que possam ser, também, indiciadoras dessa capacidade.

4.    A igualdade jurídica exige a proibição do arbítrio, as vantagens ou desvantagens infundadas na atribuição de direitos ou na imposição de deveres pelo que, tal como se escreveu no Parecer n.º 14/78, da Comissão Constitucional, “ (…) a satisfação de exigências postas pela Constituição ou por outras razões, imporão, por vezes, que a lei não seja aparentemente igual para todos os cidadãos, desde que tais desvios aparentes se não possam apresentar como expressão de privilégios ou encargos ligados às pessoas como tais. São desigualdades legislativas de compensação ou de concreta igualização de condições harmónicas ainda com o princípio da igualdade, no seu mais exigente e moderno sentido de igualdade social ou de facto”[6].

5.    No que respeita ao princípio da igualdade fiscal, escreveu-se no Parecer n.º 5/81, da Comissão Constitucional: “O princípio da igualdade, no terreno dos impostos, encontra-se formulado na Constituição, resultando do disposto no referido artigo 13.º, em conjugação com o preceituado nos artigos 105.º, 106.º e 107.º (atuais artigos 103.º, 104.º e 105.º, da CRP, após a 4.ª revisão constitucional).

E na base deste princípio da igualdade tributária está o conteúdo material do Estado de Direito, tendendo para a proibição do tratamento desigual que se não funde em razões objetivas.

Deste modo, o princípio da igualdade comporta um duplo conteúdo: um que é negativo – que se traduz no princípio da generalidade – e um outro que é positivo, que se traduz no princípio da capacidade contributiva.

Esta igualdade é, contudo, necessariamente relativa e não impede que o legislador escolha e trate livremente as situações da vida que considere como factos tributáveis.

O mais que deverá é atender, na seleção que venha a fazer, a que a situação escolhida seja reveladora de capacidade contributiva. A isto ele não deverá fugir e sempre há de ter em conta tal capacidade na definição dos critérios da medida do tributo”.

6.    Assim, sendo a igualdade fiscal necessariamente relativa, o princípio da capacidade contributiva “tem que ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal” – cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 711/2006.

7.    A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, foi aprovada num contexto de desequilíbrio orçamental em que se tornou necessária a arrecadação suplementar de receitas fiscais, tendo em vista o cumprimento das metas orçamentais estabelecidas no âmbito do Plano de Assistência Económica e Financeira (PAEF) e fixadas no Memorando de Políticas Económicas e Financeiras.

8.    A exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 96/XII/2.ª, que esteve na origem da Lei n.º 55-A/2012, refere que:

A prossecução do interesse público, em face da situação económico-financeira do País, exige um esforço de consolidação que requererá, além de um permanente ativismo na redução da despesa pública, a introdução de medidas fiscais inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental.

Estas medidas são fundamentais para reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento. O Governo está fortemente empenhado em garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho. Em conformidade com esse desiderato, este diploma alarga a tributação dos rendimentos do capital e da propriedade, abrangendo equitativamente um conjunto alargado de sectores da sociedade portuguesa.

Nestes termos, será agravada a tributação dos rendimentos de capitais e das mais-valias mobiliárias, passando as respetivas taxas de 25% para 26,5% em sede de IRS. As taxas de tributação aplicáveis aos rendimentos obtidos de, ou transferidos para, os paraísos fiscais são também agravadas para 35%.

Por outro lado, é criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre os prédios urbanos de afetação habitacional cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a um milhão de euros.

Finalmente, este diploma introduz uma medida de reforço de combate a fraude e a evasão fiscais, através do reforço do regime aplicável às manifestações de fortuna dos sujeitos passivos (IRS) e às transferências de e para paraísos fiscais. Em primeiro lugar, reforça-se a operacionalização da liquidação do IRS com base em manifestações de fortuna, reduzindo-se o diferencial de 50% para 30% entre as manifestações de fortuna e os rendimentos declarados em sede de IRS. Por outro lado, as transferências de e para paraísos fiscais efetuadas entre contas do sujeito passivo, não declaradas nos termos da lei, passam a ser consideradas uma manifestação de fortuna e, nessa medida, sujeitas a tributação em sede de IRS por métodos indiretos” (Sublinhados nossos).

9.    Aquando da discussão do diploma na Assembleia da República, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais fundamentou deste modo as medidas fiscais ali propostas (Diário da Assembleia da República, I série, nº 9/XII/2, de 11 de outubro de 2012, págs. 31 e 32):

O Governo elegeu como princípio prioritário da sua política fiscal a equidade social. Esta é ainda mais importante em tempos de rigor como forma de garantir a justa repartição do esforço fiscal. No período exigente que o país atravessa, durante o qual se encontra obrigado a cumprir o programa de assistência económica e financeira, torna-se ainda mais premente afirmar o princípio da equidade. Não podem ser sempre os mesmos – os trabalhadores por conta de outrem e os pensionistas a suportar os encargos fiscais. Para que o sistema fiscal seja mais justo é decisivo promover o agravamento da base tributável exigindo um esforço acrescido aos contribuintes com rendimentos mais elevados e protegendo dessa forma as famílias portuguesas com menores rendimentos. Para que o sistema fiscal promova mais igualdade é fundamental que o esforço orçamental seja repartido por todos os contribuintes e incida sobre todos os tipos de rendimento, abrangendo com especial ênfase os rendimentos de capital e as propriedades de elevado valor. Esta matéria, recorde-se, foi amplamente abordada no acórdão do Tribunal Constitucional. Finalmente, para que o sistema fiscal seja mais equitativo, é crucial que todos sejam chamados a contribuir de acordo com a sua real capacidade contributiva, conferindo à administração tributária poderes reforçados para controlar e fiscalizar as situações de fraude e de evasão fiscal. Neste sentido, o Governo apresenta, hoje, um conjunto de medidas que reforçam efetivamente uma justa e equitativa distribuição do esforço de ajustamento por um conjunto alargado e abrangente de sectores da sociedade portuguesa. Esta proposta tem três pilares essenciais: a criação de uma tributação especial sobre prédios urbanos de valor superior a 1 milhão de euros; o agravamento da tributação sobre os rendimentos do capital e sobre as mais-valias mobiliárias; e o reforço das regras de combate à fraude e à evasão fiscais. Em primeiro lugar, o Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012, e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros. Com a criação desta taxa adicional o esforço adicional exigido a estes proprietários será significativamente aumentado em 2012 e 2013”. (Sublinhados nossos).

10.    Temos assim que, por um lado, a propriedade de prédios urbanos habitacionais, de VPT igual ou superior a € 1 000 000,00, “enquanto medida fiscal dirigida a afetar mais intensamente os titulares de direitos reais de gozo sobre prédios urbanos de vocação habitacional e de mais alto valor, ao alcance apenas dos detentores de força económica elevada”, revela uma inequívoca capacidade contributiva, por se reportar a prédios de valor bastante superior ao da generalidade dos prédios urbanos com afetação habitacional, “suscetível de fundar a imposição de contributo acrescido para o saneamento das contas públicas aos seus titulares, em realização do aludido “princípio da equidade social na austeridade” – Cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 590/2015, de 11 de novembro.

11.    Por outro lado, como consta da fundamentação do mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 590/2015, que aqui se segue, o facto de o Imposto do Selo da verba 28.1, da TGIS, incidir sobre a propriedade concentrada num imóvel de VPT igual ou superior a € 1 000 000,00, deixando de tributar patrimónios de valor por vezes muito mais elevado, mas em que nenhum dos imóveis que o integram atinja aquele VPT: “(…) A tributação decorrente da norma de incidência alojada na verba nº 28 assume a natureza de imposto parcelar (assim, JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, ob. cit., pág. 507), tomando como base tributável o prédio urbano afeto à habitação, calculando o respetivo valor patrimonial tributário por unidade jurídica e económica relevante. Não constitui imposto geral sobre o património, ou mesmo imposto sobre todo o património imobiliário, em termos de fundar uma comparação radicada numa ótica de personalização do imposto e a partir de base que atenda a todo o património do sujeito tributário.

(…) Cabe referir que a Constituição não impõe ao legislador a criação de um imposto geral sobre o património, atribuindo à tributação sobre o património a função de contribuir para a igualdade entre os cidadãos (artigo 104º, nº 3, da Constituição), sendo o legislador livre quanto à solução a adotar (…)”.

12.    No que respeita à incidência do IS apenas a partir do patamar de € 1 000 000,00, continua a fundamentação do mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 590/2015: “Cabe referir que a existência de resultados aplicativos distintos perante valores muito aproximados - por excesso ou por defeito - de uma expressão quantitativa estipulada normativamente como limite – positivo ou negativo – de um qualquer efeito jurídico é conatural à respetiva fixação pelo legislador. Seja na definição da incidência fiscal, seja na estatuição de isenções ou benefícios fiscais assentes em critérios de valor, é sempre possível encontrar exemplos de contribuintes com tratamento diferenciado a partir de uma variação quantitativa de muito reduzida expressão”.

13.    A coerência do sistema fiscal impediria, em princípio, que não houvesse sobreposição de impostos quanto aos mesmos factos tributários, como a Requerente considera ocorrer no que respeita à propriedade de prédios urbanos habitacionais de VPT igual ou superior a € 1 000 000,00, tributados em sede de IMI e, em simultâneo em IS; contudo, não violando a referida tributação o princípio da capacidade contributiva em qualquer das suas vertentes, como decorre de quanto tem vindo a ser exposto, aquela dupla tributação encontra justificação na necessidade de obtenção de receitas estaduais, através da tributação em sede de IS, uma vez que a receita do IMI pertence aos municípios.

14.    Por fim, sempre se dirá que o facto de os imóveis sobre os quais incidiram as liquidações impugnadas serem “bens de investimento”, afetos a operações imobiliárias habitualmente desenvolvidas pelos respetivos proprietários, no âmbito da atividade de compra e venda de imóveis, não afetando a capacidade contributiva revelada, determinará que a tributação pela verba 28.1, da TGIS, seja suscetível de alguma atenuação no âmbito empresarial, já porque constitui custo da atividade, já pela possibilidade de repercussão (nos preços) que, em maior ou menor grau, sempre existe mesmo nos impostos sobre o rendimento das empresas.

15.    Face ao exposto, conclui-se que a verba 28.1, da TGIS, não é suscetível da censura constitucional peticionada pela Requerente, por se não verificar a violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, em qualquer das vertentes invocadas.

 

4.      DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados, decide-se:

4.1.Não julgar inconstitucional a norma da verba 28.1, da TGIS, na sua aplicação ao caso concreto;

4.2.Julgar improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral e determinar a manutenção dos atos de liquidação de Imposto do Selo de 2014 impugnados.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 22 718,65 (vinte e dois mil, setecentos e dezoito euros e sessenta e cinco cêntimos).

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 1 224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Requerente.

 

Lisboa, 9 de dezembro de 2015.

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990. 

 



[1] Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa” – Anotada, Vol. II, 4.ª Edição (reimpressão), Coimbra Editora, 2014, págs. 519 e ss.

[2] Idem, ibidem.

[3] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, in “Código de Procedimento e de Processo Tributário”, anotado e comentado, VOL. II, 6.ª edição, Áreas Editora, pág. 331.

[4] Neste sentido, cfr. PEREIRA, Paulo T., AFONSO, António, ARCANJO, Manuela, SANTOS, José C. G., “Economia e Finanças Públicas”, Escolar Editora, Lisboa, 2005, págs. 205 e ss.

[5] Cfr. RIBEIRO, J. J. Teixeira, “Lições de Finanças Públicas”, 5.ª edição, Coimbra Editora, 1995, págs. 264 e ss.

[6] Apud João Martins Claro, “O princípio da Igualdade”, in “Nos Dez Anos da Constituição”, Lisboa INCM, 1986, págs. 29 e ss.