Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 325/2015-T
Data da decisão: 2015-11-10  IMT  
Valor do pedido: € 6.089,88
Tema: IMT – Isenção relativa a aquisição do imóvel para habitação própria e permanente
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Decisão Arbitral

                                                             

O árbitro Dr. André Festas da Silva, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 11 de Agosto de 2015, decide o seguinte.

 

I. RELATÓRIO

I.1

1.      Em 22 de Maio de 2015 o contribuinte A…, NIF …, residente na Rua …, n.º… …, ... requereu, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação de árbitro singular pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma.

2.      O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 08 de Junho de 2015.

3.      O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º, n.º1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos. 

4.      A AT apresentou a sua resposta em 30 de Setembro de 2015.

5.      Por despacho de 02.10.2015, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas.

6.      Em 05 de Outubro de 2015 o Requerente apresentou as suas alegações de direito.

7.      Em 16 de Outubro de 2015 a Requerida apresentou as suas alegações de direito.

8.      Pretende o Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade da liquidação de Imposto  Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) n.º …., no valor de €6.089,98, datada de 06.01.2011.

 

I.A. O Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:

 

1.      Por escritura pública de compra e venda, lavrada no dia 30 de Agosto de 2004, no … Cartório Notarial de ..., a fls. … …, do livro de notas n.º…H, o requerente adquiriu a título oneroso o prédio urbano, inscrito na matriz urbana da freguesia da … sob o artigo …, pelo preço de €75.000,00.

2.      Conforme se verifica da citada escritura de compra e venda, na data da celebração da escritura foi exibida fotocópia em substituição da caderneta predial urbana conferida em 4 de Março de 2004, pelo Serviço de Finanças de ... –… .

3.      E, conforme declarações do Requerente na referida escritura, este sempre pretendeu a aquisição do imóvel para habitação própria e permanente do seu agregado familiar.

4.      Tendo o notário reconhecido a isenção e IMT, ao abrigo do disposto no art.º 9º do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis.

5.      Posteriormente, em finais de 2010, o serviço de Finanças de ... -… veio a liquidar oficiosamente IMT, no montante de €4.875,00, relativo a tal transmissão, invocando caducidade da isenção, nos termos do disposto no n.º7 do art. 11º do CIMT,

6.      Por, alegadamente, ter dado destino diverso daquele em que assentou o benefício, sendo que o prédio já estava parcialmente afecto a armazém e actividade industrial em 30/8/2004.

7.      O mencionado Serviço de Finanças aplicou a taxa a que se refere a alínea d) do n.º1 do art. 17º do CIMT,

8.      Considerou que o imposto deveria ter sido pago até 29/09/2004, nos termos do n.º6 do art. 36º do CIMT,

9.      E liquidou juros compensatórios no montante de €1.214,88 com referência ao período de 30/09/2004 a 21 de Dezembro de 2010.

10.  Após o que notificou o ora requerente para pagamento de tais importâncias.

11.  A transmissão em causa está sujeita a IMT conforme determina o n.º1 do art. 2º do CIMT,

12.  Devendo a liquidação preceder o acto ou facto translativo dos bens, conforme determina o n.º1 do art. 22º do CIMT.

13.  Uma vez que, conforme argumento da AT, o prédio não era um prédio em propriedade total, destinado exclusivamente a habitação, mas um prédio com andares ou fracções susceptíveis de arrendamento em separado, destinando-se o rés-do-chão a armazém e o primeiro andar a habitação.

14.  O contribuinte sempre pensou utilizar, como real e efectivamente utilizou, o imóvel para habitação e arrumos seu e do seu agregado familiar.

15.  Dai que haja outorgado a escritura de aquisição do identificado imóvel com a finalidade única de que o mesmo se destinava a habitação própria e permanente.

16.   O Notário, oficial público à data, reconheceu-lhe a isenção de IMT a que se refere o art.º 9º do respectivo Código.

17.  Isenção que abrangia as aquisições de prédio urbano ou de fracção autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação.

18.  Tendo a isenção sido reconhecida por entidade competente para tal, conforme determina a alínea a) do nº 2 do art.º10º do CIMT.

19.  Sendo tal isenção um benefício fiscal, face ao disposto no nº 2 do art.º2 do Estatuto de Benefícios Fiscais.

20.  Acresce que, sendo o art.º 9º do CIMT um benefício fiscal, a sua extinção está sujeita às regras do art.º 14 do Estatuto dos Benefícios Fiscais.

21.  Determina o nº 4 do mesmo artigo que “o acto administrativo que conceda um benefício fiscal não é revogável, nem pode rescindir o respectivo acordo de concessão, ou ainda diminuir-se, por acto unilateral da administração tributária, os direitos adquiridos, salvo se houver inobservância imputável ao beneficiário das obrigações impostas, ou se o benefício tiver sido indevidamente concedido, caso em que aquele acto pode ser revogado”.

22.  Até à presente data, nunca o requerente foi notificado de qualquer decisão da AT, revogando-lhe o benefício fiscal que lhe foi concedido.

23.  Limitando-se a AT a proceder à liquidação do IMT, com o argumento de que tinha caducado a isenção concedida, com base no nº 7 do art.º11 do CIMT,

24.  nos termos do qual deixam de beneficiar de isenção e de redução de taxas previstas nas alíneas a) e b) do nº 1 do art.º17º as seguintes situações:

a)Quando aos bens foi dado destino diferente daquele em que assentou o benefício, no prazo de seis anos a contar da aquisição, salvo no caso de venda;

b)Quando os imóveis não forem afectos à habitação própria e permanente no prazo de seis meses a contar da aquisição.

Ora,

25.  Nenhuma destas situações se verificou, conforme atrás foi demonstrado, uma vez que foi fixada a residência no imóvel e o prédio foi destinado na totalidade a residência própria e permanente, destinando-se tão só a tal finalidade e não a outra ou outras.

26.  O que pode ter havido foi a concessão indevida de um benefício fiscal.

27.  Benefício esse cuja revogabilidade está prevista no nº do art.º 14º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.

28.  A qual terá de ser feita dentro do prazo de revogabilidade dos actos administrativos, previsto no art.º141º do já revogado Código de Procedimento Administrativo, em vigor à data.

29.  O que não aconteceu no presente caso, em que os serviços, sem que, alguma vez tenham revogado tal acto, procederam à liquidação do IMT mais de 6 anos depois.

30.  Invocando para tanto, não a concessão indevida do benefício fiscal, mas o destino diferente dos pressupostos em que assentou a sua concessão.

31.  Tendo aplicado o disposto na alínea a) do nº 7 do art.º11º do IMT, o qual, a querer aplicar-se, sempre deveria ter sido aplicado até 30-08-2010, e não já em Dezembro de 2010, como veio a acontecer.

 

I.B Na sua Resposta a AT, invocou, o seguinte:

 

1.      A questão que se coloca é a de saber se o imóvel é no seu todo destinado a habitação ou se o 1º andar efectivamente se destina a habitação e o R/C tem destino diverso.

2.      Estipula o art.º 1 do código do IMI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, que o I.M.I. incide sobre o valor patrimonial tributário dos prédios rústicos e urbanos situados no território português.

3.      No tocante à isenção, em discussão no âmbito do presente pedido arbitral, o artigo 9º apresenta a seguinte redacção, à data dos factos:

 

Isenção pela aquisição de prédios destinados a habitação

 

São isentos do IMT as aquisições de prédio urbano ou fracção autónoma de prédio urbano destinando exclusivamente a habitação, cujo valor que servia de base à liquidação, não exceda (euros) 81600. (Red. Lei 55/-B/2004, de 30 de Dezembro)

 

4.      Esta isenção comporta um elemento objectivo (prédio urbano ou fracção autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação).

5.      Dos elementos exibidos no acto de celebração da escritura, foi possível ao notário verificar que a Câmara Municipal de ... atribuiu o “alvará de licença de utilização nº …, passado em 31-12-97” ao primeiro andar do imóvel, e atribuiu o “alvará de licença de ocupação nº …, passado em 13-09-77 ao R/c.

6.      Por sua vez, da análise da memória descritiva e justificativa referente ao imóvel, constata-se que a Câmara Municipal de ..., em 29-09-75, refere que estava em causa um projecto de construção de “ um prédio composto de rés-do-chão e andar destinado a uma habitação própria”

7.      O Requerente foi notificado através do ofício nº …, de 2010-07-29 para proceder à apresentação da declaração modelo 1 de IMI, que à data se encontrava em falta, observando-se assim a disciplina do art.º 13º, nº 1, al. l do CIMI.

8.      Porém não tendo o Requerente apresentado a referida declaração modelo 1 de IMI, foi a mesma inserida oficiosamente, em 2010-10-06.

9.      Na sequência deste procedimento, verificaram os serviços da Requerente que do detalhe do prédio urbano, o artigo matricial em tratamento apresentava um 1º andar afecto a habitação e um R/c afecto a armazém e actividade industrial.

10.  A ficha de avaliação que resultou da declaração oficiosa modelo 1 de IMI, foi notificada ao Requerente, e da referida ficha de avaliação não apresentou o Requerente nenhum meio de reacção contra os elementos que lhe foram notificados.

11.  Ora, se a Câmara Municipal de ... atribuiu o “alvará de licença de utilização nº …, passado em 31-12-97” ao primeiro andar do imóvel, e atribuiu o “alvará de licença de ocupação nº .., passado em 13-09-77” ao R/c, e

12.  Nem o R/c nem o primeiro andar possuem inscrição matricial autónoma, é evidente que o imóvel não se destina exclusivamente a habitação.

13.  O prédio, ora em análise, consta da matriz como R/c como andar/divisão de utilização independente cuja afectação é de armazém e actividade industrial, e 1º andar afecto a habitação, com avaliação de 2010-10-19.

14.  O Chefe do Serviço de Finanças e muito bem, procedeu à liquidação oficiosa do IMT e respectivos juros compensatórios.

15.  E não se diga como o Requerente quer fazer crer que a Requerida não respeitou o prazo de referido no art.º11º, que no entendimento da Requerente, ao ser aplicado o regime do art.º11º n.º7, al. a) do CIMT, apenas o poderia ter sido até 2010.08-30.

16.  Como sempre se referiu, a redacção do n.º7 do art.º 11 do CIMT em vigor à data dos factos era a que transcrevemos:

 

7-Deixarão de beneficiar igualmente de isenção e de redução de taxas previstas no artigo 9º e na alínea a) do nº 1 do artigo 17º, quando aos bens for dado destino diferente daquele em que assentou o benefício, no prazo de seis anos a contar da data da aquisição, salvo no caso de venda

 

17.  Por sua vez, o limite temporal de seis anos a contar da data da aquisição, corresponde ao prazo que o Requerente deveria ter observado na afectação exclusiva do imóvel a habitação.

18.  Nos termos do art.º 13º do CIMI, o proprietário do imóvel deveria ter comunicado à AT qualquer evento susceptível de determinar uma alteração da classificação do prédio, o que não fez, e a Requerida desconhece que em algum momento o Requerente tenha solicitado alguma alteração à respectiva licença, junto dos serviços competentes.

19.  Tudo visto, temos, necessariamente, de concluir que os actos tributários em causa, em termos de substância, não violam, assim, qualquer preceito legal ou constitucional, devendo, assim, ser mantidos.

 

II. SANEAMENTO

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

O processo é o próprio.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias.

As partes são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

Inexistem outras questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.

Impõe-se agora, pois, apreciar o mérito do pedido.

 

III. THEMA DECIDENDUM

 

A questão a apreciar é a seguinte:

a)      Tendo o Requerente beneficiado de uma isenção de IMT, de forma indevida, pode a AT em data posterior proceder à liquidação do imposto devido?

 

IV. – MATÉRIA DE FACTO   

IV.1. Factos provados

 

Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respectiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental, o processo administrativo tributário junto e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

1.      Por escritura pública de compra e venda, lavrada no dia 30 de Agosto de 2004, no … Cartório Notarial de ..., a fls. … V, do livro de notas n.º…H, o requerente adquiriu a título oneroso o prédio urbano, inscrito na matriz urbana da freguesia da Sé sob o artigo …, pelo preço de €75.000,00.

2.      Na data da celebração da escritura foi exibida fotocópia em substituição da caderneta predial urbana conferida em 4 de Março de 2004, pelo Serviço de Finanças de ... –… Serviço.

3.      O Requerente declarou na referida escritura que a aquisição do imóvel era para habitação própria e permanente do seu agregado familiar.

4.      O notário reconheceu a isenção de IMT.

5.      O prédio estava parcialmente afecto a armazém e actividade industrial em 30/8/2004.

6.      O prédio não era um prédio em propriedade total, destinado exclusivamente a habitação, mas um prédio com andares ou fracções susceptíveis de arrendamento em separado, destinando-se o rés-do-chão a armazém e o primeiro andar a habitação.

7.      Em finais de 2010, o … Serviço de Finanças de ... veio a liquidar oficiosamente IMT, no montante de €4.875,00, relativo a tal transmissão.

8.      O mencionado Serviço de Finanças aplicou a taxa a que se refere a alínea d) do n.º1 do art. 17º do CIMT,

9.      O Serviço de Finanças considerou que o imposto deveria ter sido pago até 29/09/2004,

10.  tendo liquidado juros compensatórios no montante de €1.214,88 com referência ao período de 30/09/2004 a 21 de Dezembro de 2010.

11.  O contribuinte foi notificado das liquidações.

12.  Inconformado, o contribuinte apresentou em 06.01.2011 uma reclamação graciosa, a qual foi indeferida.

13.  Notificado do indeferimento, o contribuinte apresentou em 29.03.2011 um recurso hierárquico, o qual foi igualmente indeferido.

 

IV.2. Factos dados como não provados

 

Não existem factos dados como não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados. 

 

IV.3. Motivação da matéria de facto

 

Os factos dados como provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos.

Os factos que constam dos números 1 a 13º são dados como assentes por acordo das partes, pela análise do processo administrativo e pelos documentos juntos pela Requerente (docs. 1 a 3 do pedido de constituição do Tribunal Arbitral).

 

V. Aplicação do direito aos factos

 

Matéria de direito

 

Face à factualidade em análise nos presentes autos e aos articulados das partes, a questão que se impõe conhecer é a seguinte:

“Tendo o Requerente beneficiado de uma isenção de IMT, de forma indevida, pode a AT em data posterior proceder à liquidação do imposto devido?”

 

No presente litígio está em causa um benefício fiscal do qual o requerente beneficiou em 30.08.2004.

De acordo com a lei, os benefícios fiscais devem considerar-se medidas de carácter excepcional, instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes e que sejam superiores aos da tributação que impedem (Cfr. art. 2º, nº.1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo D.L. n.º215/89, de 1/7 - E.B.F.).

Do ponto de vista jurídico, e na óptica da relação jurídica de imposto, os benefícios fiscais consubstanciam, antes de mais, factos que estando sujeitos a tributação, são impeditivos do nascimento da obrigação tributária ou, pelo menos, de que a mesma surja em plenitude. Na verdade, enquanto facto impeditivo, o benefício fiscal traduz-se sempre em situações que estão sujeitas a tributação, isto é, que são subsumíveis às regras jurídicas que definem a incidência objectiva e subjectiva do imposto. E, precisamente porque o benefício fiscal constitui um facto impeditivo da tributação-regra, a sua extinção ou falta de pressupostos de aplicação tem por efeito imediato a reposição automática dessa mesma tributação, como estabelece o art. 14º, n.º1, do E.B.F. (antigo artigo 12.º, n.º1, na redacção do E.B.F. que se encontrava em vigor previamente à republicação do mesmo pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26/06, mas com a mesma redacção) (Cfr. Ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 11/12/2012, proc.5810/12; Ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/07/2013, proc.6629/13; Nuno Sá Gomes, Teoria Geral dos Benefícios Fiscais, C.T.F. 359, pág.75 e seg.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, I, 1996, Editora Rei dos Livros, pág.323 e seg.).

É hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (Cfr. art. 9º, do C.Civil, art.11º, da LGT; José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Editorial Verbo, 4ª. edição, 1987, pág.335 e seg.; J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, pág.181 e seg.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II, Cadernos de C.T.Fiscal, nº.174, 1996, pág.363 e seg.).

Especificamente, as normas que consagram benefícios fiscais não são susceptíveis de integração analógica, embora admitam a interpretação extensiva (Cfr. art. 10º, do E.B.F. - Corresponde ao artigo 9.º, na redacção do E.B.F. que se encontrava em vigor previamente à republicação do mesmo pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26/06 - ; Ac. T.C.A.Sul-2ª.Secção, 25/6/2013, proc.6588/13; Ac. T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/07/2013, proc.6629/13; J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3ª.edição, Coimbra Editora, 2007, pág.463 e seg.; Nuno Sá Gomes, Teoria Geral dos Benefícios Fiscais, Cadernos C.T.F., nº.165, 1991, pág.253 e seg.).

À data dos factos em análise, ou seja, à data de 30.08.2004, o art. 9º do CIMT tinha a seguinte redação:

 

São isentas do IMT as aquisições de prédio urbano ou de fracção autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação, cujo valor que serviria de base à liquidação não exceda (euro) 80000.

 

Tendo em conta a factualidade dada como provada, o prédio em causa não se destinava exclusivamente à habitação, mas também a armazém (Cfr. art. 5º e 6º dos factos provados).

Nos termos do disposto no artigo 12.º do EBF, “[o] direito aos benefícios fiscais deve reportar-se à data da verificação dos respectivos pressupostos (…)”.

É pacífico entre as partes, que o contribuinte não deveria ter beneficiado da isenção fiscal, uma vez que os pressupostos de facto não ser verificavam (o prédio não se destina, nem se destinava, exclusivamente à habitação) à data de 30.08.2004.

Tendo em conta a data dos factos, o art. 10º, n.º6 do CIMT tinha a seguinte redação:

 

6 - As isenções são reconhecidas:

a) As previstas na alínea a) do artigo 6.º e nos artigos 7.º e 9.º são de reconhecimento automático, competindo a sua verificação e declaração à entidade que intervier na celebração do acto ou do contrato, sem prejuízo do disposto na alínea e);

 

Face ao estatuído na norma citada, a isenção em causa trata-se de um benefício fiscal de reconhecimento automático.

O actual artigo 5.° do EBF (Corresponde ao artigo 4.º, na redacção do EBF que se encontrava em vigor previamente à republicação do mesmo pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26/06) esclarece que:


1. Os benefícios fiscais são automáticos ou dependentes de reconhecimento; os primeiros resultam directa e imediatamente da lei, os segundos pressupõem um ou mais actos posteriores de reconhecimento.

2. O reconhecimento dos benefícios fiscais pode ter lugar por acto administrativo ou por acordo entre a Administração e os interessados, tendo, em ambos os casos, efeito meramente declarativo, salvo quando a lei dispuser em contrário.

3. O procedimento de reconhecimento dos benefícios fiscais regula-se pelo disposto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.


Assim, benefícios fiscais automáticos são os que resultam da lei, ou seja, aqueles não pressupõem qualquer acto de reconhecimento.

“Conforme dispõe o n.° 1 do art. 5.° do EBF, os benefícios fiscais podem ser automáticos ou dependentes de reconhecimento. Os benefícios automáticos resultam directa e imediatamente da lei, bastando que se verifiquem os pressupostos nela fixados. Os benefícios dependentes de reconhecimento pressupõem, para além da verificação dos pressupostos objectivos e subjectivos definidos na lei, a prática, pela administração tributária, de um ou mais actos posteriores de reconhecimento.” In JONATAS E. M. MACHADO e PAULO NOGUEIRA DA COSTA, in CURSO DE DIREITO TRIBUTÁRIO, Coimbra Editora, 2009, pág. 333.

“Nestes casos, verificados os pressupostos legais do benefício fiscal considerado, este surge, automaticamente, “ope lege” sem necessidade de qualquer iniciativa da entidade beneficiada ou intervenção da Administração Fiscal. Portanto, nestas situações, os benefícios fiscais não são concedidos pela administração fiscal, mas estabelecidos directamente na lei, nascendo o direito subjectivo ao benefício correspondente, da simples verificação histórica dos respectivos pressupostos. E esta circunstância tem também naturais reflexos na análise económico — financeira dos benefícios fiscais, pois, tratando-se de medidas automáticas, não há actualmente, e é difícil, se não impossível, estabelecer, no futuro, modos de controlo de despesa ou gasto fiscal inerentes, que sejam e totalmente eficazes. E, por isso mesmo, a parte final do n.° 4, do art. 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, tratando-se de benefícios fiscais genéricos e automáticos dispensa os contribuintes da declaração dos rendimentos isentos, para efeito do controlo da respectiva despesa fiscal, cometendo tal encargo aos serviços fiscais.

E note-se: parece que o automatismo dos benefícios fiscais, quando tem lugar, não tem por fundamento, necessariamente, uma especial intensidade do interesse público com eles tutelado, que determina a dispensa de reconhecimento oficial, mas antes uma particular conformação legal, pelo que, nesses casos, tendo em vista uma certa economia processual, a lei julga aconselhável dispensar a respectiva apreciação casuística e correspondente reconhecimento pela Administração Fiscal, concedendo, assim, automática e genericamente os benefícios nas hipóteses previstas, sem necessidade de controlo da respectiva despesa fiscal, daí resultante” — NUNO DE SÁ GOMES, TEORIA GERAL DOS BENEFÍCIOS FISCAIS, Ciência e Técnica Fiscal, n.° 359, pág. 136-138.

Sendo a lei a fonte imediata do benefício, sem necessidade de nenhum acto de intermediação autónomo ao nível tributário que expressamente o reconheça, tem forçosamente a isenção em apreço de qualificar-se como sendo de natureza automática, nos termos do disposto no art° 5.° do EBF

À data dos factos, apenas cabia à entidade que interveio na escritura pública de compra e venda, ou seja ao notário, verificar e declarar o reconhecimento da isenção (art. 10º, n.º6, al. a) do CIMT). Essa verificação não pressupôs a realização de qualquer acto administrativo da AT a conceder a isenção, isto porque estamos perante um benefício fiscal automático. Não existe qualquer acto expresso, nem tácito.

Da conjugação de diversas normas do CIMT (arts. 49º e 54º) não é possível concluir que a não exigência pelo Notário, no momento de outorga de uma escritura notarial, da liquidação prévia do imposto, por aceitar a interpretação de que se aplicava um benefício fiscal, constitui a prática de um acto em matéria tributária em sentido amplo. O CIMT é muito claro ao qualificar a intervenção do Notário e de outras autoridades públicas como “cooperação” com a Administração Tributária – trata-se de verificar (fiscalizar) se houve pagamento de imposto ou se são invocados os pressupostos previstos nas normas de isenção. Neste sentido Cfr. Decisão Arbitral de 02.08.2015, proc. 648/2014

Não é da competência do notário reconhecer ou não o direito a um benefício fiscal de um contribuinte. Em Agosto de 2004 não resultava a atribuição ao Notário de competência para a prática de actos tributários de reconhecimento de isenção.

A interpretação mais consentânea com as restantes normas do sistema jurídico (art. 9º do Código Civil) é a de que, cabendo ao Notário a verificação dos pressupostos da aplicação da norma de isenção, deveria recolher os elementos necessários à qualificação da situação, aceitando as declarações e a caracterização feita pelos intervenientes no negócio.

Não está em causa um acto administrativo na acepção prevista no art. 120º do CPA (na versão anterior ao Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, nos termos do art. 12º, n.º1 do CC), porque o notário não externaliza qualquer decisão sobre uma situação concreta, limitando-se a uma verificação dos pressupostos da existência do benefício fiscal.

Mais, o facto de o notário ter anuído na isenção de IMT, não é oponível à Autoridade Tributária, à luz nomeadamente do art.º 36.º, n.º 4 da LGT, segundo o qual “a qualificação do negócio jurídico efetuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária”.

Acresce que, não faz sentido o aludir ao instituto da revogação. “A “revogação” é o acto administrativo que se destina a extinguir os efeitos de outro acto administrativo anterior”. In Direito Administrativo, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Vol. III, Lisboa 1989, Pág. 351. “A revogação (propriamente dita) consiste na extinção de todos ou parte dos efeitos de uma acto administrativo, provocado por um novo acto administrativo que se pratica, explicita ou implicitamente (…)” In CPA anotado, 2ª ed., Mário Esteves de Oliveira, e outros, Almedina, 1997, pág. 667.

No caso em apreço não existiu qualquer acto administrativo anterior à liquidação, sub judice. Não existindo qualquer acto administrativo anterior não podemos invocar o instituto da revogação. (No mesmo sentido Cfr. Decisão Arbitral, de 25.07.2014, proc. n.º 104/2014).

Assim não será, em qualquer caso, aplicável o regime decorrente do disposto nos artigos 141º do CPA (na versão anterior ao Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, nos termos do art. 12º, n.º1 do CC). A liquidação em causa não se trata de um acto revogatório de um acto que concedeu um benefício fiscal (em processo de reconhecimento de benefício) mas da liquidação original de um tributo que ainda não tinha sido liquidado.

Não se apercebendo, nem a autoridade interveniente, nem as partes, de uma errada caracterização jurídica, ficam os contribuintes sujeitos a uma possível detecção do indevido tratamento como isenção, sendo a situação objecto de uma posterior liquidação.

No caso dos benefícios automáticos, a lei fiscal deixava, à data de 2004, para momento posterior a possibilidade dos serviços constarem a situação tributária e liquidarem, caso fosse devido, o imposto devido.

Esse controlo impunha-se, tendo sempre como limite para a realização deste controlo o prazo de oito anos previsto no art. 35º, n.º1 do CIMT.

Tendo a AT apurado que os pressupostos de facto que gozar da isenção não existiam, impunha-se a reposição automática da tributação (art. 14º do EBF). O direito à isenção nunca se chegou a constituir.

Tendo a liquidação impugnada sido efectuada e notificada ao contribuinte em 06.01.2011 concluímos que o prazo de oito anos foi cumprido.

Tudo visto, o tribunal considera que os actos cuja legalidade é objecto de apreciação nos autos, não são violadores da legalidade, pelo que o pedido improcede.

 

VI. DECISÃO

 

Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:

Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se as liquidações impugnadas, e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.

 

Fixa-se o valor do processo em €6.089,88 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar integralmente pela Requerente, uma vez que o pedido foi integralmente indeferido, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2015

 

 

O árbitro,

 

 

 

 

(André Festas da Silva)