Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 248/2015-T
Data da decisão: 2016-01-12  IRS  
Valor do pedido: € 6.770.549,16
Tema: IRS – Qualificação dos rendimentos tributáveis; anulação judicial da liquidação; novo ato tributário; artigo 24º-4, do RJAT
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Decisão Arbitral

 

I. Relatório

1.                A..., contribuinte fiscal nº..., residente na Avenida..., nº..., em Cascais, de ora em diante denominado por Requerente, apresentou em 13 de abril de 2015, um requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos números 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), constante do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro.

 

2.                No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente declarou não pretender proceder à designação de árbitro, pelo que a constituição do Tribunal Arbitral se processou em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 6º e no nº 1 do artigo 11º do RJAT, tendo sido designados os árbitros José Poças Falcão, José Nunes Barata e Paulo Lourenço.

Em 9 de junho de 2015 foram as partes notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, considerando-se por isso o Tribunal Arbitral constituído em 25 de junho de 2015, nos termos da alínea c) do nº1 do artigo 11º do RJAT.

Por despacho de 5 de outubro de 2015, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT, considerando que se trata de processo não passível de trâmites processuais específicos, que foi cumprido o princípio do contraditório e apresentada resposta escrita pelo Requerente e não há a necessidade aparente de correção das peças processuais.

De igual modo, dispensou-se a prova testemunhal, tendo em conta que a prova será essencialmente de base documental.

3.                A pretensão objeto do pedido de pronúncia arbitral consiste na declaração de ilegalidade da Liquidação de IRS e Juros Compensatórios nº 2014 ..., de 12 de dezembro de 2014, relativa ao ano de 2010, no valor de € 6.770.549,16, com a sua consequente anulação.

 

4.                Sustenta o Requerente, em síntese a sua pretensão no seguinte:

 

4.1.         B...e a sua mãe, C..., eram donos do prédio misto denominado Quinta..., composto por armazéns, logradouro e parte rústica.

 

4.2.         O Estado Português iniciou, em 1983, a construção da denominada Escola..., incluindo um pavilhão gimnodesportivo e um campo de jogos, sem ter pago qualquer importância aos respetivos proprietários.

 

4.3.         Por sucessão hereditária de sua mãe, C..., o B...passou a ser o único titular do referido prédio a partir de 2001.

 

4.4.         Em 15 de outubro de 2002, B... e mulher, D..., instauraram ação de reivindicação contra o Estado Português, solicitando a restituição do imóvel da sua propriedade, uma indemnização pelos danos decorrentes da sua ocupação a partir de 1983, os juros vencidos e vincendos referentes ao preço da venda, as despesas judiciais e as despesas extrajudiciais.

 

4.5.         Em 24 de abril de 2007 o Requerente celebrou com os referidos B... e mulher um contrato de cessão de créditos litigiosos, pelo qual adquiriu todos os direitos que vierem a ser declarados e reconhecidos no referido processo, incluindo quaisquer indemnizações que vierem a ser liquidadas.

 

4.6.         Mais tarde, em 26 de abril de 2007, o Requerente solicitou a habilitação na ação respetiva e ampliou o pedido, o que foi deferido pelo Tribunal.

 

4.7.      Na sentença da ... Vara Mista de Sintra, de 30 de maio de 2008 foi decidido reconhecer o B... como dono do prédio denominado "Quinta ...", reconhecer ao Estado o direito de acessão da parte ocupada pela Escola ..., condenando-o a pagar ao habilitado, ora Requerente, as quantias de € 8.625.000 por essa aquisição, de € 3.819.812,50, pela desvalorização da área sobrante do prédio e juros de mora sobre esses valores, à taxa legal vigente, desde a data da sentença até integral pagamento.

 

4.8.      Foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que alterou a decisão, deixando de se reconhecer ao B...a propriedade da parcela do terreno ocupado pela Escola Secundária ..., incluindo o campo de jogos e o pavilhão desportivo, declarando-se que a mesma seria do Estado após o pagamento da indemnização correspondente a € 8.625.000.

 

4.9.           Foi interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que confirmou por inteiro da Relação, tendo o Requerente interposto ação executiva contra o Estado Português em 10 de fevereiro de 2010.

 

4.10.       Em 23 de agosto de 2010, o Estado Português pagou ao Requerente a quantia de € 13.483.166,74€.

 

4.11.       Nos processos judiciais foram pagos pelo Requerente as quantias de € 726.000, de honorários de Advogado, de € 310.533,79, de custas e outras despesas judiciais, de € 183.624,06, de imposto retido, de € 695.546, de sanção pecuniária compulsória que reverteu para o Estado e de € 834.654,75 €, de devolução ao Estado Português.

 

4.12.       Em 30 de julho de 2011, o Requerente entregou a sua declaração de IRS nº ...-... -..., relativa ao ano de 2010, a qual deu origem à liquidação de IRS nº 2011..., de 14 de julho de 2011, com o valor a pagar de € 5.771,15.

 

4.13.       Em 21 de novembro de 2011, o Serviço local de Finanças efetuou nova liquidação de IRS, a que corresponde o nº 2011..., relativa ao mesmo ano de 2010, com o valor a pagar de € 327.986,50.

 

4.14.       Em 28 de novembro de 2011, o Requerente procedeu à entrega da declaração de substituição de IRS nº ...-..., relativa ao ano de 2010, o que determinou que em 5 de dezembro de 2011, o Serviço de Finanças de Lisboa ..., procedesse a nova liquidação de IRS, com o nº 2011..., de da qual resultou imposto a pagar no montante de € 339.223,32.

 

4.15.        Através da ordem de serviço nº OI 2011..., dos Serviços de Inspeção da Direção de Finanças de Lisboa, foi realizado um procedimento de inspeção externa ao Requerente.

 

4.16.       Em 28 de novembro de 2011 foi apresentada uma nova declaração de substituição, que teve na sua base um documento emitido pela Secretaria Geral do Ministério das Finanças e da Administração Pública, da qual consta com o rendimento do ano de 2010 a importância de € 1 112 873,10.

 

4.17.       Foi efetuada uma nova liquidação de IRS em relação ao ano de 2010, a que corresponde o nº 2012... , da qual resultou imposto a pagar no montante € 5.882.782,02.

 

4.18.       Não se conformando com o ato tributário em causa, o Requerente apresentou no CAAD, em 1 de julho de 2013, um pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade.

 

4.19.       Por decisão de 17 de junho de 2013, o Tribunal Arbitral declarou a liquidação do IRS do ano de 2010 ilegal, por erro de qualificação e quantificação, decisão esta que já transitou em julgado.

 

4.20.       Através do ofício nº..., de 4 de novembro de 2014, repetido em 19 de novembro de 2014, pelo ofício..., da Divisão de Liquidação do Imposto sobre o Rendimento e Despesa, da Direção de Finanças de Lisboa, o Requerente foi notificado para se pronunciar sobre o projeto de decisão relativo ao IRS de 2010, nos termos do disposto no artigo 60º da Lei Geral Tributária.

 

4.21.       As notificações em causa davam a conhecer ao Requerente que os rendimentos pagos pelo Estado português, no montante de € 13 666 790,81, estão sujeitos a tributação, a título de rendimentos de capitais (categoria E).

 

4.22.       Em 23 de dezembro de 2014, o ora Requerente foi notificado da liquidação de IRS nº 2014..., de 12 de dezembro de 2014, referente ao ano de 2010, no montante de € 6 778 549,16.

 

4.23.       Não tendo sido efetuado o pagamento dentro do prazo de pagamento voluntário foi efetuada a citação do Requerente, em 8 de fevereiro de 2015, tendo em vista o pagamento, a dação em pagamento ou a apresentação de oposição à execução.

 

4.24.       A douta decisão arbitral, segundo o Requerente, transitou em julgado em 24 de julho de 2013 e vincula a Autoridade Tributária.

 

4.25.       A Autoridade Tributária não pode reeditar o ato de liquidação, uma vez que ocorreu a preclusão ou extinção do pretenso direito, tendo em conta que estamos perante o mesmo sujeito passivo, os mesmos factos e o mesmo período de tributação.

 

4.26.        Para além do mais, entende o Requerente que o eventual aumento patrimonial resultante do contrato de cessão de créditos sempre seria imputável ao ano de 2007, pelo que não poderá ser exigido qualquer imposto, já que o artigo 45º da Lei Geral Tributária exige que a notificação da liquidação seja validamente efetuada no prazo de 4 anos, que já haviam decorrido.

 

4.27.       O artigo 24º do RJAT, interpretado com o alcance que agora lhe foi atribuído pela Autoridade Tributária, no sentido de permitir inovatória e irrestrita reapreciação e alteração dos pressupostos tributários de facto e de direito aplicáveis, desconsiderando-se a autoridade, obrigatoriedade e intangibilidade do caso julgado, que integra valor constitucionalmente tutelado, seria sempre inconstitucional e inaplicável ao caso concreto.

 

4.28.       Os valores recebidos pelo Requerente correspondem à reintegração no património do lesado do valor correspondente ao imóvel reivindicado, menos-valias que foi obrigado a suportar e prejuízos que lhe foram causados por atrasos do Estado português no cumprimento de decisões judiciais, pelo que a imposição de tributação em IRS sobre tal compensação viola os princípios constitucionais enunciados nos artigos 2º, 9º, 18º, 62º e 266º da Constituição da República.

 

4.29.       A interpretação da Autoridade Tributária viola ainda o princípio da igualdade, pois a perda patrimonial afeta apenas o Requerente e não a generalidade dos cidadãos em que se verifica uma restituição in natura dos prédios ilicitamente ocupados, criando uma discriminação negativa arbitrária.

 

4.30.       O ato de liquidação viola os princípios da legalidade, da justiça e da proporcionalidade, pois impuseram o pagamento de um tributo que não era legalmente devido, relativamente a quantias que visavam simplesmente a reparação de danos judicialmente comprovados e menos-valias, em conformidade com o disposto no artigo 55º e seguintes da Lei Geral Tributária.

 

4.31.       O ato de liquidação padece de erros de facto e de direito, pois sendo inquestionável a inexistência de facto tributário, não foram considerados os encargos e as despesas suportadas no âmbito dos processos judiciais, violando-se assim o artigo 74º da Lei Geral Tributária e o artigo 100º do Código de Procedimento e do Processo Tributário.

 

4.32.       A Autoridade Tributária não ouviu o Requerente antes da prolação dos atos de liquidação, situação que viola frontalmente o estatuído 60º da Lei Geral Tributária.

 

4.33.       O ato de liquidação padece de falta de fundamentação de facto e de direito.

 

4.34.       A Autoridade Tributária, na resposta, sustenta, por exceção, que o Requerente deduziu, em 8 de fevereiro de 2015, uma oposição à execução, pretendendo, não só através da impugnação judicial, mas também através deste meio processual, sindicar a liquidação do imposto.

 

4.35.       É manifesta a utilização dos vários meios processuais judiciais tendo em vista a anulação, situação que faz surgir uma situação de litispendência.

 

4.36.       Ainda que não se verifique a litispendência, a verdade é que estamos perante uma questão prejudicial, já que a eventual procedência da oposição à execução fiscal pode tornar impossível a cobrança do imposto liquidado.

 

4.37.       A Autoridade Tributária procedeu à anulação a primeira liquidação em concretização da decisão judicial, pelo que, com o trânsito em julgado, esgotou-se o dever de execução espontânea.

 

4.38.       O caso julgado impede a repetição da causa quando há identidade de sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir.

 

4.39.       O propósito maior da figura do caso julgado é o de evitar a contradição de julgados, o que significa que será sempre em função do teor da decisão que se mede a respetiva extensão objetiva.

 

4.40.       A Autoridade Tributária não podia, em face dos princípios da legalidade, da indisponibilidade dos créditos tributários e da verdade material, deixar de liquidar, porque em tempo, o imposto sobre o rendimento obtido pelo Requerente.

 

4.41.       Resultando dos autos que está em causa um imposto periódico (IRS) e respeitando o mesmo ao ano de 2010, o prazo de caducidade iniciou-se no dia 31 de dezembro de 2010, pelo que, não se verificando qualquer facto interruptivo ou suspensivo, o prazo só caducaria em 31 de dezembro de 2014.

 

4.42.       A liquidação foi efetuada em 12 de dezembro de 2014 e a notificação realizada no dia 23 de dezembro de 2014, por conseguinte dentro do prazo de caducidade, razão pela qual não se afigura legítimo invocar a extinção dos poderes tributários por preclusão e caducidade no caso em apreço.

 

4.43.       O princípio da segurança jurídica advém da proibição constitucional da retroatividade das normas fiscais, questão não discutida nos autos, pelo que a controvérsia da sucessão das leis no tempo revela-se despicienda colocar em crise no procedimento tributário de liquidação.

 

4.44.       Por seu turno, a tutela constitucional da confiança emana do princípio do Estado de direito e visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra atuações injustificadamente imprevisíveis, o que não se verificou no caso concreto em apreço, já que não pode ser assacada à Autoridade Tributária a arbitrariedade quer do enquadramento jurídico-legal do facto tributário quer do ato tributário de liquidação que lhe sucedeu pois ele não afetou posições jurídicas já constituídas nem foi desproporcional.

 

4.45.       À Autoridade Tributária não pode ser imputada a violação do princípio da boa-fé, já que a liquidação de um tributo devido não se revela inidónea e tributar um rendimento de acordo com a capacidade contributiva não traduz um ato discricionário ou desnecessário.

 

4.46.       Não se logra justificar que um sujeito passivo que obteve um rendimento de € 13 666 790,81 não seja obrigado a pagar um imposto concordante com esse rendimento, pois isso é claramente atentatório do princípio da capacidade contributiva e, por maioria de razão, do princípio da igualdade.

 

4.47.       Qualquer interpretação do artigo 24º, nº 4 do RJAT que venha restringir o prazo de caducidade estabelecido no artigo 45º, nº 1 da Lei Geral Tributária, padecerá de inconstitucionalidade orgânica.

 

4.48.       Não se afigura, no caso concreto em apreço, que tenha resultado restringida qualquer garantia do Requerente pois, apesar da fundamentação constante da liquidação ter sido sumária, como é legalmente admissível ela resulta da aderência à matéria de facto e de direito apreciada pelo CAAD em processo anterior, tendo sido de resto comunicada ao Requerente esse circunstancialismo na informação que lhe foi remetida pela Divisão de Liquidação do IRS da Direção de Finanças de Lisboa, para efeitos de direito de audição.

 

4.49.       Tem sido entendimento uniforme que o direito de audição dos interessados pode ser dispensado quando a Autoridade Tributária pratique um ato com base em factos já submetidos noutra fase do procedimento a audiência dos interessados.

 

II. Fundamentação fáctica

5. Sendo as questões puramente de Direito, consideram-se definitivamente fixados, atenta a ausência de controvérsia das partes e os documentos de suporte incorporados nos autos e o processo administrativo instrutor,  os factos referidos nas peças processuais apresentadas, para onde se remete e, concretamente, que os factos que deram origem ao ato tributário sob impugnação são os mesmos que originaram a liquidação objeto do processo nº 7/2013-T, publicado em www.caad.org.pt., surpreendendo-se apenas divergência na qualificação jurídica dos mesmos, fundando-se a anterior liquidação no disposto no artigo 3º-1/a), do CIRS (Categoria B - Rendimentos profissionais e empresariais) e a atual tem por fundamento o disposto no artigo 5º-1 e 2, do CIRS (categoria E – Rendimento de aplicação de capitais).

 

III. Fundamentação de Direito

1. Da litispendência e da questão prejudicial

6. De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 580º do Código de Processo Civil, as exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência.

O nº 2 do mesmo artigo, por seu lado, dispõe que tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

O nº 1 do artigo 581º do Código de Processo Civil estipula que a causa se repete quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

No caso concreto em apreço, a Autoridade Tributária entende que se verifica a litispendência pelo facto de, a par do presente processo, o Requerente ter deduzido em 8 de fevereiro de 2015 uma oposição à execução, pretendendo-se, num caso e noutro, anular a liquidação do imposto.

Não assiste, porém, com o devido respeito, razão à Autoridade Tributária, já que, conforme resulta da conjugação dos artigos 99º e 203º, ambos do Código de Procedimento e do Processo Tributária, não se verifica nem a identidade do pedido nem da causa de pedir, tendo em conta que os fundamentos são diferentes.

Com efeito, a causa de pedir no processo de impugnação diz respeito à legalidade do ato de liquidação, nomeadamente a errónea quantificação e qualificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outras factos tributários, bem como a incompetência, a falta de fundamentação e a preterição de formalidades legais, enquanto que na oposição à execução a causa de pedir assenta na inexistência do imposto, na ilegitimidade das pessoas citadas, na falsidade dos títulos, na prescrição da dívida, na falta de notificação, no pagamento e na duplicação de coleta, para além de outras ilegalidades que não sejam suscetíveis de discussão no âmbito do processo de impugnação.

A análise dos fundamentos de oposição à execução permite que se conclua que nada têm a ver com o próprio ato de liquidação, já que este, como se referiu, apenas pode ser discutido no âmbito da impugnação judicial ou da reclamação graciosa.

Acresce que o pedido a formular no âmbito da impugnação judicial é o da anulação, por ilegalidade, da liquidação do imposto, enquanto que no processo de oposição à execução o pedido assenta na extinção da dívida de imposto que foi criada na sequência do procedimento de liquidação.

Nem sequer é relevante o facto de se pretender colocar em causa o ato de liquidação pelas duas vias supra referidas, já que a incorreta utilização de meios processuais não é suscetível de contrariar o que se encontra previsto na lei.

Tudo visto, não havendo identidade de pedidos nem sequer da causa de pedir, pode então concluir-se pela não verificação da litispendência, improcedendo, consequentemente, a exceção invocada pela Autoridade Tributária.

De igual modo, não se verifica a existência de qualquer questão prejudicial, já que, pelo facto de serem invocados vícios que possam conflituar com os fundamentos da oposição à execução, tal não significa que sejam julgados procedentes ou que venham a ser conhecidos fora da sua sede própria.

Não existe, na realidade, qualquer questão que tenha que ser discutida e julgada no âmbito do presente processo que seja essencial para a decisão que vier a ser tomada em sede de oposição à execução.

 

2. Da liquidação do IRS

7. Analisemos agora a questão de fundo que se reconduz à apreciação da ilegalidade da liquidação de IRS.

Está em causa um rendimento obtido em virtude da aquisição de um crédito litigioso, através de uma cessão de créditos, situação que a Autoridade Tributária entende agora, através de uma nova liquidação, que é suscetível de integração no âmbito de aplicação do artigo 5º do Código do IRS.

Vejamos se assim é.

Relembre-se, em primeiro lugar, que a questão em apreço foi discutida e julgada no âmbito do processo nº 7/2013, decisão na qual se concluiu que não tendo sido efetuado pela Autoridade Tributária o enquadramento jurídico correto do facto tributário, procedeu-se à anulação da liquidação, por vício de errónea qualificação e quantificação de rendimentos (artigo 99º, alínea a) do Código de Procedimento e do Processo Tributário.

A questão fundamental que se coloca no presente processo é a de saber quais os efeitos jurídicos que decorrem da anulação de um ato tributário.

A doutrina especializada já se debruçou sobre esta temática, conforme se pode verificar através do estudo do Prof. Alberto Xavier, Aspectos Fundamentais do Contencioso Tributário, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Centro de Estudos Fiscais da Direcção Geral das Contribuições e Impostos, Ministério das Finanças, Lisboa 1972.

Na obra supra citada, o autor, a páginas 85 e seguintes, refere de forma clara e inequívoca que “Se o ato tributário foi anulado com fundamento em incompetência ou vício de forma, a Administração Fiscal deve voltar a praticá-lo, desde que não reproduza no novo ato o vício determinante da anulação do anterior. Mas, se ao invés, o motivo da anulação radica numa violação de lei, à Administração Fiscal já não cabe, no conteúdo do seu dever de execução da sentença, a prática de atos positivos em substituição do ato ilegal anulado. No caso de a violação de lei se reportar à própria existência da obrigação de imposto, isto é, no caso de se tratar de uma anulação total, do ato tributário nada subsiste e a Administração deve abster-se de praticar novo ato relativamente à mesma obrigação.”

Em jeito de conclusão, sustenta o referido autor, que “…o ato tributário anulado por incompetência e vício de forma é um ato renovável; o ato tributário anulado por violação de lei, é  um ato irrenovável.”

Noutra obra do mesmo autor, Conceito e Natureza do Acto Tributário, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-económicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Livraria Almedina, Coimbra, 1972, pág. 575 e seguintes, refere-se que “Mais importante que a escolha da terminologia adequada é, porém, a questão de fundo que se encontra subjacente e que está em saber se o caso julgado é apanágio estrito dos atos jurisdicionais ou se ele respeita também aos atos administrativos, especialmente os vinculados.”

Mais à frente, o referido autor salienta que “Os atrás aludidos instrumentos de defesa da abstração gerada pelo ato tributário revestem a natureza de preclusões processuais, ou seja, de limites ao poder de reexame ou reapreciação da situação tributária que é objeto do processo.”

Tal como o caso julgado, continua o mencionado autor, …”também as preclusões processuais podem respeitar aos poderes de apreciação do ato no processo em que foi praticado, como podem respeitar aos poderes de apreciação do ato em processo ulterior e distinto.”

Finalmente, conclui o autor citado, “Esses meios traduzem-se no processo de impugnação ou dizem respeito ao processo de execução; uma vez, porém, decorridos os respetivos prazos ou verificada a sua improcedência, a situação jurídica abstrata definida pelo ato tributário consolida-se definitivamente, operando-se a sua preclusão externa.”

Em sede de Arbitragem Tributária, estabelece-se o princípio da preclusão do direito à prática de novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário e período de tributação na sequência de prolação de decisão arbitral anulatória, ressalvando-se apenas o caso de fundamentação do ato em factos novos diferentes daqueles que motivaram a decisão arbitral – Cfr artigo 24º- 4, do RJAT

Certo que a Autoridade Tributária e Aduaneira, no âmbito dos seus deveres de execução de decisão arbitral a favor do sujeito passivo, até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos Tribunais judiciais tributários (sublinhado nosso), pode, designadamente, praticar o ato tributário legalmente devido em substituição do ato objeto da decisão arbitral, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, liquidar as prestações tributárias em conformidade com a decisão arbitral ou abster-se de as liquidar – Cfr artigo 24º-1/a), b) e d),  do RJAT.

Ainda que se possa entender – e não tem o Tribunal de modo nenhum por seguro tal entendimento – a interpretação do disposto no nº 4 em sintonia com as alíneas a) e b) do nº 1, ambos do citado artigo 24º, do RJAT, ou seja, que, em decorrência do dever de execução de julgado, seria lícita e legal a prática do novo ato no prazo para aquela execução, no caso concreto a prática do ato de liquidação ocorreu muito para além desse prazo.

 

Tudo visto, pode então concluir-se que no caso concreto em apreço ocorreu a preclusão processual, o que significa que ficou definitivamente vedada à Autoridade Tributária a concretização de uma nova liquidação em substituição da anterior, a não ser que tivessem surgido factos novos, o que manifestamente não se verificou, já que a única diferença que é possível detetar diz respeito ao diferente enquadramento jurídico dos rendimentos auferidos pelo Requerente.

Contrariamente ao que se verifica em relação ao caso julgado, a ocorrência da preclusão processual apenas permite que seja praticado um ato tributário em substituição do anterior se ocorrerem factos supervenientes.

Semelhante entendimento pode colher-se do acórdão do STA nº 01035/15, de 7 de outubro de 2015, na parte em que procura dar resposta à questão de clarificar que “… a eventual preclusão do direito de a executada apresentar novo pedido de dispensa de prestação de garantia…”, implica que se saiba se foram ou não invocados “…factos supervenientes que justificassem a apresentação de novo pedido nos termos do nº 2 do artigo 170º do CPPT.”.

Não havendo factos supervenientes, a liquidação do IRS levada a efeito é ilegal, devendo, por essa razão, proceder-se à respetiva anulação.

Não se justifica apreciar as outras questões suscitadas pelo Requerente, as quais ficam prejudicadas pela declaração de ilegalidade da liquidação.

 

III. Decisão

Termos em que se decide julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se, por manifesta ilegalidade, a liquidação de IRS nº 2014..., de 12 de dezembro de 2014, relativa ao ano de 2010, no valor de € 6.770.549,16, bem como os respetivos juros compensatórios.

 

Fixa-se o valor do processo em € 6.770.549,16 nos termos do artigo 97º -A, nº 1, alínea a) do Código de Procedimento e do Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº1 do artigo 29º do RJAT e do nº2 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Fixa-se o valor das custas do processo em € 84.762,00 , nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar integralmente pela Requerida, uma vez que o Requerente obteve deferimento integral do pedido, nos termos nº 2 do artigo 12º e do nº 4 do artigo 22º do RJAT e do nº3 do artigo 4º do citado Regulamento.

 

Registe e notifique

 

Lisboa, 12 de janeiro de 2016

O Tribunal Arbitral,

 

(José Poças Falcão)

 

(José Nunes Barata)

 

(Paulo Lourenço)