Decisão ArbitraL
I. RELATÓRIO:
A..., S.A., anteriormente designada B..., S.A., sociedade com sede na Rua Dr. ..., n.º..., ...-... Lisboa, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva ..., doravante designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por RJAT), peticionando a revogação da decisão de indeferimento parcial do recurso hierárquico apresentado e consequente declaração de ilegalidade e anulação de 20 (vinte) actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) e juros compensatórios, relativos aos anos de 2009 e 2010, referentes a 15 (quinze) veículos automóveis, no valor global de € 5.484,52, bem como a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) na devolução à Requerente do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:
a) A Requerente é a distribuidora oficial em Portugal da marca de automóveis “...”;
b) No âmbito da sua actividade, a Requerente importa os automóveis da referida marca e procede à sua posterior alienação;
c) Para o efeito, a Requerente requer junto dos serviços competentes a atribuição das respectivas matrículas;
d) Sempre que a Requerente requer a atribuição de matrícula, é obrigada a efectuar o registo inicial da propriedade do veículo em seu nome, pelo facto de a Declaração Aduaneira de Veículo se encontrar emitida a seu favor;
e) Nos anos de 2012 e 2013, a Requerente foi notificada de que se encontrava em falta o pagamento de IUC relativo a vários veículos;
f) Os veículos em relação aos quais se encontrava em falta o pagamento de IUC tinham sido alienados pela Requerente há mais de 10 anos;
g) A AT considerou que, à data da exigibilidade do imposto, a Requerente era a proprietária dos veículos em causa, por se encontrarem matriculados e registados em seu nome;
h) A Requerente não é sujeito passivo de imposto único de circulação, porquanto, à data em que o imposto se tornou exigível, não era proprietária dos respectivos veículos, que havia alienado há mais de 10 anos;
i) Em causa nos presentes autos estão veículos da Categoria C, matriculados entre os anos de 1964 e 1978;
j) A Requerente requereu o cancelamento das respectivas matrículas, o que aconteceu no ano de 2010;
k) O registo de propriedade do veículo não é constitutivo, limitando-se a fazer presumir a existência do facto registado;
l) O n.º 1 do artigo 3º do CIUC prevê uma presunção de propriedade ilidível;
m) Os veículos sobre os quais incidiu o IUC objecto das liquidações impugnadas não estão sujeitos a IUC, quer por via do regime do cancelamento oficioso de matrículas previsto no DL 78/2008, de 06 de Maio, quer por não se destinarem a nenhum dos fins a que alude o artigo 2º nº 1 c) do CIUC;
n) Os artigos 5º nº 3 do DL 78/2008, de 06 de Maio e 2º nº 1 c) e d) do CIUC, na interpretação defendida pela Requerida, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade.
A Requerente juntou 6 documentos, não tendo arrolado testemunhas.
No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.
O tribunal arbitral foi constituído em 26 de Maio de 2015.
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, apresentando defesa por excepção e por impugnação.
Por excepção, invocou, em síntese:
a) a apreciação de questões referentes ao cancelamento oficioso de matrículas encontra-se fora da esfera da arbitragem tributária;
b) a Requerida é uma entidade estranha ao procedimento de cancelamento oficioso de matrículas, pelo que é parte ilegítima na presente demanda.
Por impugnação, alega em síntese o seguinte:
a) O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que são sujeitos passivos do IUC os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;
b) À data do facto gerador do imposto, a Requerente era a proprietária dos veículos sobre os quais incidiram as liquidações impugnadas;
c) O artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção de propriedade, mas uma verdadeira ficção de propriedade;
d) Embora a Requerente alegue que não era proprietária dos veículos à data dos factos tributários a que se referem as liquidações controvertidas, a verdade é que a prova por si apresentada não é apta a permitir tal conclusão;
e) O facto de já não ter em seu poder os documentos comprovativos da invocada alienação da propriedade dos referidos veículos, por a tal não se encontrar legalmente obrigada, não permite concluir não se encontrar esta obrigada a provar a alegada alienação de propriedade;
f) O DL 78/2008, de 06 de Maio apenas se aplica aos veículos matriculados entre 01/01/1980 e 31/12/2000 que não tenham sido submetidos a inspecção periódica obrigatória após 01/01/2003;
g) A Requerente não logrou provar que os veículos sobre os quais incidiram as liquidações impugnadas não foram submetidos a inspecção periódica obrigatória;
h) Os artigos 5º nº 3 do DL 78/2008, de 06 de Maio e 2º nº 1 c) e d) não violam o princípio da igualdade, não sendo por isso inconstitucionais;
i) Os veículos automóveis de mercadorias e automóveis de utilização mista com peso bruto superior a 2500 Kg encontram-se sempre sujeitos a IUC, apenas diferindo a categoria em que se inserem em face da natureza particular ou pública da actividade a que são afectos;
j) A Requerente não logrou provar que não exerce nenhuma das actividades a que alude o artigo 2º nº 1 c) do CIUC.
Conclui, peticionando a procedência das excepções invocadas e, em consequência, a sua absolvição da instância ou, caso assim se não entenda, a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
A Requerida juntou cópia do processo administrativo, não tendo arrolado nenhuma testemunha.
A Requerente respondeu às excepções invocadas pela Requerida, pugnando pela sua improcedência.
Atenta a posição assumida pelas partes e não existindo necessidade de produção adicional de prova, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, bem como a apresentação de alegações.
II. APRECIAÇÃO DAS EXCEPÇÕES INVOCADAS:
A Requerida deduziu excepções que, por poderem obstar ao conhecimento do mérito do pedido, importa conhecer previamente.
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Da incompetência material do tribunal arbitral:
Invoca a AT que a apreciação de quaisquer questões referentes ao cancelamento oficioso de matrículas bem como a apreciação da constitucionalidade do artigo 5º nº 3 do DL 78/2008, de 06 de Maio e do artigo 2º nº 1 c) e d) do CIUC se encontra fora da esfera da competência da arbitragem tributária.
Para tanto invoca, em síntese, que a competência dos tribunais arbitrais está circunscrita às matérias elencadas no artigo 2º do RJAT, entre as quais não se incluem as questões referentes ao cancelamento oficioso de matrículas nem a apreciação da constitucionalidade de quaisquer normas.
A Requerente, por seu turno, defende que nos autos não é peticionado o cancelamento de quaisquer matrículas mas antes e apenas a apreciação da legalidade das liquidações de IUC impugnadas.
Vejamos:
Quanto à competência dos tribunais arbitrais, prescreve a alínea a) do nº 1 do artigo 2º do RJAT que os tribunais arbitrais são competentes para apreciar as pretensões de declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.
Por seu turno, quanto à vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais, dispõe o nº 1 do artigo 4º do citado regime que esta depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça.
Nos termos do disposto nos artigos 1º e 2º dessa portaria – Portaria 112-A/2011 de 22 de Março – resulta que a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (a que a AT sucedeu) ficam vinculadas à jurisdição dos tribunais arbitrais constituídos nos termos do RJAT que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida.
No caso dos autos, dúvidas não restam de que a administração do imposto em causa – IUC – está cometida à Requerida, cabendo-lhe não só a competência para o liquidar e cobrar, mas também para exercer as inerentes funções inspectivas, para exercer a acção de justiça tributária e representar a Fazenda Pública junto dos órgãos judiciais.
Isto posto,
Analisado o pedido de pronúncia arbitral apresentado, verifica-se não ser em momento algum peticionado pela Requerente o cancelamento das matrículas dos veículos sobre os quais incidiram as liquidações impugnadas ou a declaração de inconstitucionalidade de qualquer norma.
Bem ao invés, como salienta a Requerente, esta limita-se a peticionar a apreciação da legalidade das indicadas liquidações, fundamentando a invocada ilegalidade na pretensa violação do disposto nos artigos 5º nº 3 do DL 78/2008, de 06 de Maio e 2º nº 1 c) e d) do CIUC e na sua inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.
Ora, a apreciação da legalidade das liquidações impugnadas envolve um trabalho de análise do ordenamento jurídico e do respectivo regime aplicável aos veículos sobre os quais incidiram as liquidações.
É, pois, nessa sede que a Requerente suscita a questão de o disposto no artigo 5º nº 3 do DL 78/2008, de 06 de Maio dever ser aplicável também aos veículos matriculados em data anterior a 1 de Janeiro de 1980 e a sua eventual inconstitucionalidade, quando interpretado em sentido contrário. No mesmo sentido e com os mesmos fundamentos, defende a inconstitucionalidade do artigo 2º nº 1 c) e d) do CIUC.
É certo não se inserir nos poderes deste tribunal o cancelamento de matrículas.
Já a interpretação da norma que prevê o cancelamento oficioso de matrículas, com vista a determinar o seu sentido e alcance, insere-se nos poderes deste tribunal, consubstanciando procedimento necessário à apreciação da legalidade dos actos tributários impugnados.
A não ser assim, não se vislumbra quais as matérias que, no entender da Requerida, se inseriam nos poderes deste tribunal, já que, insiste-se, a apreciação da legalidade de actos tributários envolve necessariamente a prévia apreciação e interpretação do respectivo regime jurídico que lhe está subjacente.
No que diz respeito à invocada inconstitucionalidade, também não é peticionado pela Requerente a declaração de inconstitucionalidade das indicadas normas, mas apenas e só a recusa da sua aplicação por este tribunal, em virtude da invocada inconstitucionalidade.
O que, diga-se, não está nem se vislumbra como pudesse estar vedado a este tribunal, já que a recusa da aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade é sempre admissível, constituindo inclusive esta recusa fundamento de recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 280º da Constituição da República Portuguesa.
Naturalmente que não poderia este tribunal – nem qualquer outro, excepto o tribunal constitucional -, declarar a inconstitucionalidade das indicadas normas.
Mas tal não o impede de recusar a sua aplicação por entender serem as mesmas inconstitucionais.
Assim, não sendo peticionado pela Requerente nem o cancelamento de matrículas, nem a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas, não se verifica a invocada excepção de incompetência deste tribunal, inserindo-se a apreciação das questões suscitadas pela Requerente na necessária actividade de interpretação da lei, com vista à apreciação da legalidade dos actos tributários sindicados.
Em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações, julga-se improcedente a excepção de incompetência do presente tribunal.
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Da ilegitimidade passiva da Requerida:
Invoca ainda a AT ser entidade estranha ao procedimento de cancelamento oficioso de matrículas, pelo que não tem legitimidade para estar em juízo como única demandada.
Isto porque, no seu entendimento, a competência para efectivar o cancelamento oficioso das matrículas se insere nas competências do Instituto da Mobilidade Terrestre (IMT). Por seu turno, constituindo a matrícula um elemento essencial para o registo da propriedade automóvel, da competência do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), então têm estas duas entidades – IMT e IRN – interesse em agir nos presentes autos.
A Requerente respondeu à excepção invocada, defendendo que, tendo sido peticionada a apreciação da legalidade das liquidações de IUC e sendo a Requerida a entidade competente para proceder à sua liquidação, tem esta interesse em agir.
Conforme já se deixou esclarecido aquando da apreciação da excepção de incompetência material do tribunal, a Requerente não peticiona o cancelamento de quaisquer matrículas, mas antes a não sujeição a IUC dos veículos em causa, por entender que as matrículas deveriam considerar-se canceladas, por via da aplicação do disposto no artigo 5º nº 3 do DL 78/2008, de 06 de Maio.
Ora, nos termos do disposto no artigo 30º nº 1 2ª parte do CPC, o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, aferindo-se este interesse em contradizer pelo prejuízo que para o réu possa advir da procedência da acção – cfr. 30º nº 2 2ª parte.
Ora, no caso dos autos, parece evidente que a eventual procedência do pedido formulado pela Requerente apenas poderá causar prejuízo à própria Requerida e não às indicadas entidades.
Com efeito, atento o concreto pedido formulado pela Requerente – declaração de ilegalidade dos actos tributários de indeferimento do recurso hierárquico e de liquidação de IUC e consequente reembolso dos valores pagos, acrescido de juros indemnizatórios -, sendo este julgado procedente, será a Requerida e não qualquer uma das indicadas entidades que se verá forçada a reembolsar à Requerente o valor por esta pago e a pagar-lhe os correspondentes juros indemnizatórios.
Não sendo formulado qualquer pedido contra as entidades referidas pela AT como sendo parte legítima na presente demanda, nunca estas sofrerão qualquer prejuízo da eventual procedência da acção, não podendo nenhuma destas entidades ser condenada a reembolsar à Requerente o que quer que seja.
Ao invés, a única entidade que sofrerá prejuízo com a procedência da acção é a própria Requerida.
Parece, pois, evidente que a única entidade com interesse em agir nos presentes autos é a própria Requerida e não o IMT ou o IRN, pelo que é a Requerida a única parte legítima na presente demanda.
Improcede, desta forma, a invocada excepção de ilegitimidade passiva da Requerida.
III. SANEAMENTO:
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
Não existem nulidades que invalidem o processado.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.
Não existem outras nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.
IV. QUESTÕES A DECIDIR:
Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre:
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determinar se a norma de incidência subjectiva prevista no artigo 3º nº 1 do CIUC prevê uma presunção ilidível ou, ao invés, uma ficção legal;
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determinar se, em face do regime previsto no DL 78/2008, de 06 de Maio, os veículos estão sujeitos a IUC;
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apreciar da incidência objectiva dos veículos ao IUC.
V. MATÉRIA DE FACTO:
a. Factos provados
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:
1. A Requerente é a distribuidora oficial em Portugal da marca de automóveis ...;
2. No âmbito da sua actividade, a Requerente importa automóveis da referida marca e procede, posteriormente, à sua alienação;
3. A Requerente procede à introdução dos veículos que importa no consumo através da apresentação da respectiva Declaração Aduaneira de Veículo (DAV), que é emitida em seu nome;
4. Para efeitos da venda dos automóveis importados, a Requerente solicita a emissão do certificado de matrícula, mediante a apresentação da DAV;
5. Em 10/04/2013, foram emitidas liquidações de IUC e respectivos juros compensatórios relativos aos anos de 2009 e 2010, respeitantes aos veículos de matrículas ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -...; ...-... -... e ...-... -..., no valor global de € 5.484,52;
6. Em 18/04/2013, a Requerente procedeu ao pagamento do IUC e respectivos juros compensatórios respeitante às liquidações a que se alude em 5) anterior, no valor global de € 5.484,52;
7. Os veículos referidos em 5) anterior pertencem todos à categoria C) a que alude o artigo 4.º do CIUC;
8. Os veículos a que se alude em 5) anterior foram todos matriculados entre os anos de 1964 e 1978;
9. As matrículas a que se alude em 5) anterior encontram-se todas canceladas;
10. A Requerente reclamou graciosamente das liquidações de IUC e juros compensatórios ora impugnadas;
11. Por ofício datado de 21/10/2013, foi a Requerente notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada;
12. A Requerente recorreu hierarquicamente da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada;
13. Por ofício datado de 12/12/2014, foi a Requerente notificada da decisão de indeferimento parcial do recurso hierárquico apresentado;
14. O pedido de constituição do tribunal arbitral em matéria tributária e de pronúncia arbitral foi apresentado em 16/03/2015.
b. Factos não provados:
Com interesse para os autos, não resultou provado:
- Que à data do facto gerador do imposto os veículos sobre os quais incidiram as liquidações impugnadas já tivessem sido alienados pela Requerente há mais de dez anos;
- Que a Requerente apenas se dedique à actividade de comercialização de automóveis;
- Que a Requerente não esteja autorizada a exercer qualquer outro tipo de actividade para além da comercialização de automóveis.
c. Fundamentação da matéria de facto:
A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pela Requerente, indicada relativamente a cada um dos pontos, e cuja adesão à realidade não foi questionada, bem como a matéria alegada e não impugnada.
No que diz respeito à matéria de facto não provada, esta ficou a dever-se à total ausência de prova nesse sentido efectuada.
VI. DO DIREITO:
Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o direito aplicável.
A primeira das questões a analisar prende-se com a interpretação da norma contida no n.º 1 do artigo 3º do CIUC e, mais concretamente, em saber se aquela contém ou não uma presunção legal.
A este propósito, invoca a Requerente que, relativamente às liquidações de IUC em crise, não se encontram preenchidos os pressupostos de incidência subjectiva previstos no artigo 3º do CIUC, não sendo, por isso, sujeito passivo de IUC.
Para o efeito alega, em síntese, que o artigo 3º do CIUC estabelece uma presunção implícita de propriedade dos veículos a favor de quem os mesmos se encontrem registados, presunção essa que, por força da aplicação da regra geral prevista no artigo 73º da Lei Geral Tributária, é ilidível mediante prova em contrário.
Por seu turno, a Requerida defende que o artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção implícita, mas uma verdadeira ficção legal, inilidível, portanto, mediante prova em contrário.
Atenta a posição das partes, vejamos aquela que deverá ser, de acordo com as regras de hermenêutica jurídica consagradas, a interpretação do artigo 3º nº 1 do CIUC.
Dispõe o número 1 do artigo 3º do CIUC:
“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”
Da simples leitura do número um do indicado preceito verifica-se, sem grandes dificuldades, que a pedra de toque está na expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador.
Atenta a terminologia utilizada, deverá entender-se que o legislador pretendeu estabelecer uma presunção implícita ou uma verdadeira ficção legal?
Para a apreciação desta questão, importa, antes de mais, trazer aqui à colação alguns conceitos jurídicos e definições legais.
Assim,
Nos termos do disposto no artigo 349º do Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
Relativamente às presunções legais, prescreve o número 2 do artigo 350º do mesmo Código que estas podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.
Já no que diz respeito, em concreto, às presunções de incidência tributária, estabelece o artigo 73º da Lei Geral Tributária que estas admitem sempre prova em contrário.
Para além de presunções, o legislador recorre também às chamadas “ficções legais”, as quais se traduzem “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas”[1].
De acordo com a tese avançada pela Requerida, o facto de o artigo 3º nº 1 do CIUC estabelecer que se “consideram” como proprietários, ao invés de “presumem-se” como proprietários, revela que o legislador, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, pretendeu expressamente determinar que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados se consideram, sem admissibilidade de qualquer prova em contrário, proprietários dos mesmos.
Ainda de acordo com a Requerida, se o legislador pretendesse criar uma presunção e não uma ficção legal, teria escrito, como faz em diversos outros diplomas, que se presumem proprietários e não que se consideram proprietários.
Desde já poderemos adiantar não sufragar este tribunal do entendimento defendido pela Requerida.
Isto porque, pela análise dos elementos histórico e teleológico, para além, naturalmente, do elemento literal, de interpretação legislativa, chegaremos, inevitavelmente, à conclusão de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária.
Senão vejamos:
Quanto ao elemento histórico, importa referir que o actual IUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos.
Este imposto sobre veículos, que se manteve em vigor até à criação do actual IUC, consagrava expressamente que o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados – vd. artigo 3º do Regulamento do Imposto sobre Veículos, anexo ao indicado DL 599/72, de 30 de Dezembro.
Aquando da aprovação do novo CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se como tais” pela expressão “considerando-se como tais”, mas nem por isso se poderá defender que tal alteração signifique uma verdadeira substituição de uma presunção (ilidível) por uma ficção legal (inilidível).
É que, conforme nos ensina JORGE LOPES DE SOUSA[2], em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante. A título de exemplo, avança o autor que no artigo 40º nº 1 do CIRS se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46º nº 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.
O mesmo se passou com o CIUC em que, não obstante ter sido alterada, em relação à redacção original, a expressão “presume-se” pela expressão “considera-se”, nenhuma alteração de fundo se produziu, tendo as diferentes expressões exactamente o mesmo significado.
À mesmíssima conclusão chegamos pela análise do elemento teleológico.
De facto, importa ter presente a exposição de motivos da Proposta de Lei nº 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho.
Analisada esta exposição de motivos, verifica-se que o que se pretendeu foi empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” a qual resulta da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.
Continuando, explica a referida exposição de motivos que “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.”
O que levou, inclusive, à consagração do princípio da equivalência, inscrito no artigo 1º do CIUC, “deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.
O IUC, enquanto verdadeiro imposto ambiental, tem, pois, por sujeito passivo o poluidor, mais não passando, afinal, da consagração do princípio do poluidor-pagador.
Por onde se verifica que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente a incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1º do CIUC.
De tudo quanto ficou exposto resulta que os elementos literal, histórico e teleológico de interpretação da lei conduzem necessariamente à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exactamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3º nº 1 do CIUC consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível.
Nos termos do disposto no número 1 do artigo 3º do CIUC, sujeito passivo do imposto é, em princípio, o proprietário, já que a lei presume que é este quem utiliza o bem. Mas se se provar que, afinal, não é o proprietário quem faz uso do veículo, mas um terceiro, então será este, fatalmente, o sujeito passivo do imposto.
É esta, salvo melhor, a interpretação que está em sintonia, por um lado, com o princípio enunciado no artigo 11º nº 3 da Lei Geral Tributária, segundo o qual, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias “deve atender-se à substância económica dos factos tributários” e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários[3].
Aliás, qualquer outra interpretação violaria, desde logo, o já falado princípio da equivalência consagrado no artigo 1º do CIUC, nos termos do qual se estabelece que o IUC procura “onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
Assente que fica a natureza jurídica da norma contida no n.º 1 do artigo 3º do CIUC, cumpre agora clarificar a questão da incidência subjectiva do imposto quando o veículo, à data do facto gerador do imposto, já tiver sido alienado.
Celebrado o contrato de compra e venda, o adquirente será instituído, ex contratu, na posição de proprietário, consequentemente passando a ser-lhe aplicável o n.º 1 do artigo 3º do CIUC; i.e., o novo proprietário passa a deter, para efeitos de IUC, a posição de sujeito passivo do imposto.
E tal solução impõe-se desde o momento da perfeição do contrato de compra e venda não apenas porque o CIUC o determina – ao afirmar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários” –, mas também pelo facto de entre nós vigorar o princípio da consensualidade, que importa que a transmissão da propriedade ocorra por mero efeito do contrato; como resulta em primeira linha do n.º 1 do artigo 408º do Código Civil.
E o que se vem de dizer releva para sustentar a nossa posição no que tange ao valor jurídico do registo automóvel. Recorde-se, porém, que de acordo com a regra geral acima vista a transferência do direito se produz ex contratu, sem necessidade de qualquer acto material ou de publicidade[4].
Como pacificamente aceite pela doutrina e pela jurisprudência, perante o silêncio do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, quanto à questão do valor jurídico do registo automóvel, torna-se necessário lançar mão da disciplina do registo predial; operação ademais autorizada pelo artigo 29º daquele Decreto-Lei.
Ora, atendendo ao Código do Registo Predial – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 125/13, de 30 de Agosto –, maxime ao seu artigo 7º, e conjugando esta norma com o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 54/75, rapidamente se infere a função primacial do registo (automóvel): dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor.
Pode então afirmar-se que o registo não tem natureza constitutiva, antes meramente declarativa, permitindo apenas presumir a existência do direito e a sua titularidade. Note-se: presumir e não ficcionar, podendo assim ser ilidida mediante prova em contrário.
E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408º do Código Civil, e salvas as excepções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente de qualquer acto subsequente, e.g., inscrição no registo.
Desta feita, não prevendo a lei qualquer excepção para o contrato de compra e venda de veículo automóvel, a eficácia real produz normalmente os seus efeitos, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo.
Ora, se independentemente do registo o adquirente passa a ser o proprietário, o titular inscrito deixa concomitantemente de o ser, pese embora no registo figure como tal.
In casu, e não obstante a falta de inscrição no registo, as alegadas transmissões efectuadas poderão ser oponíveis à Requerida, atento o facto de esta não poder ser considerada como terceiro para efeitos de registo, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 5º do Código do Registo Predial.
Ora, pese embora à data das liquidações de imposto a Requerente ainda figurar no registo como proprietária dos veículos, a verdade é que alega não ser, à data do facto gerador do imposto, a sua proprietária, por já os haver alienado.
Assim, e uma vez que a presunção resultante do registo é, como vimos, ilidível, vejamos se a prova efectuada pela Requerente é apta a cumprir tal desiderato.
A este propósito, invoca a Requerente que as viaturas em causa nos presentes autos foram por si alienadas há mais de dez anos, para tanto alegando que as mesmas não constam dos seus inventários dos últimos dez exercícios.
Como tal, continua, não impende sobre si a obrigação de produzir mais prova, já que, nos termos do disposto nos artigos 40º do Código Comercial e 123º do CIRC, apenas se encontra obrigada a conservar os livros, registos contabilísticos e respectivos documentos de suporte pelo prazo de 10 anos.
A Requerida, por seu turno, impugna o documento junto pela Requerente com vista à prova de que os veículos em causa nos presentes autos não constam dos inventários da Requerente dos últimos dez exercícios.
Quanto à não obrigatoriedade de a Requerente manter na sua posse a documentação mercantil e contabilística por mais de dez anos, a Requerida aceita, não retirando, no entanto, dessa não obrigatoriedade a conclusão pretendida pela Requerente.
Vejamos.
É certo que, por via da aplicação do disposto nos artigos 40º do Código Comercial e 123º do CIRC, não impende sobre a Requerente a obrigatoriedade de manter na sua posse os livros, registos contabilísticos e respectivos documentos de suporte por período superior a dez anos.
Certo ainda que, como invoca a Requerente, não se encontrando esta obrigada a possuir a documentação referente à venda dos veículos em causa nos presentes autos, por sobre a mesma já haverem decorrido mais de 10 anos, não pode extrair-se da falta dessa documentação a conclusão de que a Requerente era proprietária dos aludidos veículos.
Porém, tal não determina que a inversa seja verdadeira, isto é, que não impendendo sobre a Requerente a obrigação de possuir a documentação relativa à venda dos indicados veículos, se possa concluir não ser esta a proprietária dos mesmos.
À falta de documentação comprovativa da venda, esta terá de ser provada através de qualquer outro meio de prova.
Com vista eventualmente a produzir esta prova, juntou a Requerente sob o número 4, um documento por si elaborado, alegadamente contendo informação relativa ao stock das viaturas automóveis propriedade da Requerente nos últimos dez exercícios, entre os quais não se encontram os veículos em causa nos presentes autos.
O documento junto pela Requerente é um documento particular, sem força probatória plena, que foi expressamente impugnado pela Requerida.
Tendo a Requerida impugnado este documento e o seu respectivo valor probatório, incumbia à Requerente provar os factos constantes do mesmo, prova essa que poderia ser efectuada por qualquer meio.
No entanto, a Requerente não juntou qualquer prova nem requereu qualquer diligência com vista à prova dos factos constantes daquele documento particular, expressamente impugnado pela Requerida.
Aliás, a Requerente foi expressamente notificada para juntar prova de todos os factos por si alegados, tendo optado por nada juntar.
Assim, em face da ausência de prova nesse sentido efectuada pela Requerente, sobre quem impendia o respectivo ónus, em face da impugnação expressa do dito documento por parte da Requerida, não pode este Tribunal atribuir a força probatória pretendida pela Requerente a este documento.
Pelo que, em face da ausência de qualquer prova em sentido contrário, sempre terá de se considerar ser a Requerente a proprietária dos veículos à data do facto gerador do imposto.
Analisemos agora a segunda questão suscitada pela Requerente, respeitante à aplicação aos veículos em causa nos presentes autos do disposto no DL 78/2008, de 06 de Maio.
A este respeito alega a Requerente que os veículos em causa nos presentes autos não estão sujeitos a IUC, por se presumir, atentas as datas das respectivas matrículas, que os mesmos já não seriam utilizados.
Isto porque, segundo defende a Requerente, pese embora o indicado regime apenas preveja o cancelamento oficioso das matrículas dos veículos matriculados entre 01 de Janeiro de 1980 e 31 de Dezembro de 2000, terá necessariamente de se considerar aplicável às matrículas anteriores, sob pena de os automóveis das categorias “C” e “D”, sujeitos a imposto independentemente do ano da matrícula, ficarem em situação desigual face aos automóveis de outras categorias, sem qualquer motivo justificado.
Quanto a esta questão, alega a Requerida, em síntese, que o legislador tomou a opção de prever um regime de cancelamento oficioso das matrículas referentes a veículos matriculados entre 01/01/1980 e 31/12/2000, excluindo desse cancelamento as matrículas anteriores. Mais alega a Requerida que o DL 78/2008 instituiu um regime transitório e excepcional, que apenas vigoraria até 31/12/2008 e que a Requerente não alegou nem provou os requisitos de que depende o cancelamento oficioso de matrículas previsto no indicado DL.
Vejamos:
Com vista à actualização das bases de dados de veículos e de propriedade automóvel, delas se expurgando os veículos que já não se encontrassem em circulação, foi instituído o regime previsto no DL 78/2008, de 06 de Maio, regime este transitório e excepcional, que vigoraria até ao dia 31/12/2008.
Cumpre, desde logo, notar que, o facto de este regime apenas vigorar até 31/12/2008 não significa que, acaso este tribunal considere ser de aplicar aos veículos em causa nos presentes autos o regime previsto no indicado DL, se encontre impossibilitado de o fazer, em virtude de já ter sido ultrapassado o período de vigência do referido regime.
Isto porque, o que o falado DL prevê é que o cancelamento das matrículas, quer seja este oficioso ou a requerimento, tenha de ser efectuado dentro daquele período. Ora, como é evidente, nunca poderia este tribunal, em virtude dos poderes que por lei lhe foram conferidos, cancelar ou ordenar o cancelamento de matrículas, ainda que dentro daquele período. Mas o facto de não poder cancelar ou ordenar o cancelamento de matrículas, não significa que lhe esteja vedada a possibilidade de declarar verificados os requisitos do cancelamento para daí extrair as necessárias consequências.
Posto isto, prescreve o artigo 5º nº 3 do DL 78/2008, de 06 de Maio, a propósito do cancelamento oficioso:
“São ainda canceladas oficiosamente as matrículas de veículos matriculados entre 1 de Janeiro de 1980 e 31 de Dezembro de 2000, que não tenham sido submetidos a inspecção periódica obrigatória após 1 de Janeiro de 2003”.
Verifica-se, assim, que o cancelamento oficioso das matrículas apenas se encontra previsto para:
a) veículos matriculados entre 1 de Janeiro de 1980 e 31 de Dezembro de 2000,
b) que não tenham sido submetidos a inspecção periódica obrigatória após 1 de Janeiro de 2003.
Quanto aos veículos matriculados em data anterior a 1 de Janeiro de 1980, a lei nada prevê, pelo que se impõe interpretar a norma contida no n.º 3 do artigo 5.º do DL 78/2008, de 06 de Maio, por forma a averiguar se, como defende a Requerente, este regime se aplica também a estes veículos.
Ora, dissipar as dúvidas sobre o sentido e o alcance a atribuir a determinada norma jurídica implica levar a cabo uma tarefa interpretativa que permita retirar do enunciado linguístico um concreto sentido ou “conteúdo de pensamento”[5].
Tal tarefa apenas se pode cumprir – assim se logrando apreender a vis ac potestas legis – através da utilização de um concreto método, que se estriba na interpretação literal, por um lado, e na interpretação lógica ou racional, por outro.
Recorde-se, ainda, que de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, as normas tributárias se interpretam de acordo com os princípios de hermenêutica jurídica comummente aceites, maxime os fixados, entre nós, no artigo 9.º do Código Civil.
A interpretação literal apresenta-se, então, como o primeiro estádio da actividade interpretativa. Como refere FERRARA, “o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete”[6].
Na verdade, uma vez que a lei se encontra expressa em palavras, deve, então, delas ser extraída a significância verbal que contêm, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais. Porém, sendo as palavras empregues pelo legislador equívocas ou indeterminadas, será forçoso recorrer à interpretação lógica, que atende ao espírito da disposição a interpretar.
No caso dos autos, da leitura da letra da lei, nenhuma dúvida resta de que o cancelamento oficioso das matrículas se encontra reservado para os veículos matriculados entre 1 de Janeiro de 1980 e 31 de Dezembro de 2000, que não tenham sido submetidos a inspecção periódica obrigatória após 1 de Janeiro de 2003.
Note-se que, conforme decorre do disposto no artigo 9º nº 3 do Código Civil, na fixação do sentido e alcance da lei deve o intérprete presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Deve então presumir-se que a lei pretendeu efectivamente restringir o cancelamento oficioso aos veículos matriculados após 1 de Janeiro de 1980, não sendo, assim, abrangidos por este cancelamento os veículos matriculados em data anterior.
Mas, ainda que se entendesse que a letra da lei suscitava algum tipo de dúvida sobre o seu sentido e alcance, devendo assim recorrer-se aos demais elementos de interpretação jurídica - o que não defendemos -, sempre se avançará não ter o tribunal elementos para surpreender na lei qualquer outro sentido que não aquele expressamente consagrado.
Com efeito, da análise dos elementos racional, sistemático e histórico, não é possível ao tribunal determinar com qualquer tipo de certeza que na redacção do citado artigo 5º nº 3 o legislador disse, como defende a Requerente, menos do que pretendia.
Bem ao invés, interpretada a lei de acordo com estes elementos, parece poder concluir-se que a lei pretendeu efectivamente excluir do cancelamento oficioso os veículos matriculados antes de 1 de Janeiro de 1980, o qual, ademais, parece ser entendido como uma represália para as condutas omissivas dos proprietários.
Em face do exposto e, sobretudo, em face da clareza da lei, não pode o tribunal entender, como pretende a Requerente, que o cancelamento oficioso se aplicaria também aos veículos matriculados em data anterior a 1 de Janeiro de 1980.
Aliás, ainda que assim não fosse e que se pudesse defender ser o referido preceito aplicável também a veículos matriculados em data anterior a 1 de Janeiro de 1980, sempre se dirá que a pretensão da Requerente nunca poderia proceder pelo facto de não se encontrar demonstrado nos autos o preenchimento do segundo requisito previsto no artigo 5º nº 3 do DL 78/2008, de 06 de Maio para o cancelamento oficioso de matrículas, isto é, a inexistência de inspecção periódica obrigatória após 1 de Janeiro de 2003.
De facto, relativamente a este segundo requisito, nada foi alegado pela Requerente e, em consequência, não integrou o mesmo o rol dos factos provados.
Pelo que, ainda que o citado artigo 5º nº 3 se aplicasse a matrículas anteriores a 1980, nunca poderiam as matrículas dos veículos em causa nos presentes autos considerar-se canceladas por não se encontrar demonstrada a inexistência de inspecção periódica obrigatória após 1 de Janeiro de 2003.
Invoca ainda a Requerente, em defesa da sua tese, que, a entender-se apenas ser de aplicar o artigo 5º nº 3 do DL 78/2008 a veículos matriculados após 01 de Janeiro de 1980 e já não aos veículos matriculados em data anterior, sempre seria o indicado preceito inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
A percepção da existência de uma qualquer violação do princípio da igualdade por parte do legislador implica a completa e profunda compreensão dos fins visados pelo legislador com a solução adoptada.
No caso dos autos, conforme já exposto, não é possível a este tribunal determinar com a necessária certeza o fim visado pelo legislador com a solução adoptada.
E, não sendo possível determinar o objectivo do legislador ao excluir do cancelamento oficioso as matrículas anteriores a 1980, não pode este tribunal defender ser a solução encontrada pelo legislador inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
Com efeito, conforme é sabido, o princípio da igualdade impõe tratamento igual para situações factuais iguais e tratamento diferenciado para situações de facto diferentes.
Pese embora seja evidente a existência, in casu, de um tratamento diferenciado entre veículos matriculados anteriormente e posteriormente a 1 de Janeiro de 1980, tal não é suficiente para qualificar como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma constante do artigo 5º nº 3 do DL 78/2008. Isto porque, como está bom de ver, este tratamento diferenciado pode ser determinado pela diferença de facto existente entre os veículos com matrícula anterior ou posterior a 1 de Janeiro de 1980, caso em que o tratamento diferenciado não determina qualquer violação do princípio da igualdade, sendo pelo contrário justamente imposto por tal princípio.
Alega ainda a Requerente que do mesmo vício de inconstitucionalidade padece o artigo 2º nº 1 c) e d) do CIUC, ao distinguir entre os automóveis ligeiros de passageiros e os automóveis de mercadorias, tributando estes últimos e excluindo de tributação os automóveis ligeiros de passageiros matriculados antes de 1 de Janeiro de 1981.
Mais uma vez, não se vislumbra no indicado preceito qualquer violação do princípio da igualdade.
É que, nesta situação, existe de facto e de forma notória uma diferença entre as situações abrangidas pela norma: automóveis ligeiros de passageiros e automóveis de mercadorias.
E, para situações diferentes, tratamentos diferentes, como imposto pelo princípio constitucional da igualdade.
Não se vislumbra assim, qualquer inconstitucionalidade nem do artigo 5º nº 3 do DL 78/2008, de 06 de Maio, nem do artigo 2º nº 1 c) e d) do CIUC.
Por último, invoca a Requerente que os veículos em causa nos presentes autos não estão sujeitos a IUC pelo facto de não se destinarem ao transporte particular de mercadorias, ao transporte por conta própria ou ao aluguer sem condutor que possua estas finalidades.
Para tanto alega que, tratando-se a Requerente de uma sociedade que se dedica ao comércio de automóveis, não estando autorizada à realização de outro tipo de actividade, é evidente não estarem as viaturas em causa afectas às aludidas finalidades.
A este propósito, dispõe o artigo 2º nº 1 c) do CIUC integrar-se na Categoria C os automóveis de mercadorias e automóveis de utilização mista com peso superior a 2500 Kg, afectos ao transporte particular de mercadorias, ao transporte por conta própria, ou ao aluguer sem condutor que possua essas finalidades.
Diferentemente, dispõe a alínea d) do mesmo preceito que os indicados veículos se inserem na Categoria “D” quando afectos ao transporte público de mercadorias, ao transporte por conta de outrem ou ao aluguer sem condutor que possua essas finalidades.
Por seu turno, prescreve o nº 2 do mesmo artigo que se presumem afectos ao transporte particular de mercadorias ou ao transporte por conta própria os veículos relativamente aos quais se não comprove a afectação ao transporte público de mercadorias ou ao transporte por conta de outrem.
Verifica-se, assim, que os automóveis de mercadorias e automóveis de utilização mista com peso superior a 2500 Kg se encontram sujeitos a IUC, dependendo a sua classificação como da Categoria “C” ou “D” da efectiva utilização que do mesmo seja efectuada: se afectos ao transporte particular de mercadorias ou ao transporte por conta própria, inserem-se na Categoria “C”; se afectos ao transporte público de mercadorias ou ao transporte por conta de outrem, inserem-se na Categoria “D”.
Daqui resulta nenhuma possibilidade existir de estes veículos não serem objecto de IUC: eles serão sempre objecto de IUC, dependendo a sua concreta classificação da efectiva afectação dos mesmos.
Mas será que, acaso a Requerente lograsse demonstrar não se encontrarem estes veículos afectos a nenhuma das indicadas actividades, seja de natureza particular ou pública, poder-se-ia defender, como pretende a Requerente, não se encontrarem estes veículos sujeitos a IUC, apesar da concreta Categoria em que se inserem?
Tendemos a responder negativamente, sendo sempre estes veículos sujeitos a IUC, independentemente da sua concreta afectação, que apenas poderá ter relevância para a sua inserção numa ou noutra categoria.
Como quer que seja, ainda que assim fosse, sempre se dirá não ter a Requerente logrado demonstrar, como lhe competia, não se encontrarem os indicados veículos afectos a nenhuma das indicadas actividades.
Note-se que, a este propósito, a Requerente alegou tratar-se de uma sociedade que se dedica à comercialização de automóveis e que não está autorizada à realização de outro tipo de actividade, sendo por isso evidente não se encontrarem as viaturas em causa afectas às aludidas finalidades.
A Requerente limitou-se a alegar tal facto, sem no entanto juntar ou requerer qualquer meio de prova apto à sua verificação.
Como tal, impendendo sobre a Requerente o ónus de provar que apenas se dedica à actividade de comercialização de automóveis e não a qualquer outra actividade, designadamente à actividade de transporte particular de mercadorias, transporte por conta própria ou aluguer sem condutor que possua essas finalidades, e não tendo esta logrado efectuar tal prova, não poderia este tribunal, em face dos elementos de que dispõe, dar como provado que a Requerente apenas se dedica à actividade de comercialização de veículos, com exclusão de qualquer outra.
Ademais, sempre se dirá não colher a tese avançada pela Requerente de que não está autorizada à realização de qualquer outro tipo de actividade, já que tal autorização apenas está reservada para o exercício de determinadas actividades entre as quais, consabidamente, não se inserem as actividades de transporte particular de mercadorias, transporte por conta própria ou aluguer sem condutor que possua essas finalidades.
Em face de tudo quanto ficou exposto, não se verifica qualquer ilegalidade das liquidações efectuadas que, assim, deverão manter-se na ordem jurídica, bem como a decisão de indeferimento do recurso hierárquico apresentado.
VII. DISPOSITIVO
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar improcedente o pedido de revogação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico apresentado;
b) Julgar improcedente o pedido de anulação dos actos de liquidação de IUC impugnados.
***
Fixa-se o valor do processo em € 5.484,52, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
***
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 4 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerente por ser a parte vencida.
***
Registe e notifique.
Lisboa, 08 de Janeiro de 2016.
O Árbitro,
Alberto Amorim Pereira
***
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
[1] FRANCISCO RODRIGUES PARDAL, “O uso de presunções no direito tributário”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 325-327, página 20.
[2] In “Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado”, Volume I, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 589.
[3] JORGE LOPES DE SOUSA, op. cit, pp. 590 e ss.
[4] Cfr. HEINRICH EWALD HÖRSTER, in “A Parte Geral do Código Civil Português”, 2ª Reimpressão da Edição de 1992, Almedina, p. 467
[5] JOÃO BAPTISTA MACHADO, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1982, p. 175.
[6] FRANCESCO FERRARA, in “Interpretação e Aplicação das Leis”, 1921, Roma; Tradução de MANUEL DE ANDRADE, Arménio Amado, Editor, Sucessor – Coimbra, 2.ª Edição, 1963, p. 138 e ss.