Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 253/2015-T
Data da decisão: 2015-12-15  Selo  
Valor do pedido: € 15.086,00
Tema: IS - Verba 28.1 da TGIS; Propriedade total
Versão em PDF

Decisão Arbitral

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 253/2015-T

Tema: Imposto do Selo; propriedade total; verba 28.1 TGIS

 

 

  1. RELATÓRIO

A…, pessoa colectiva n.º …, administrado por B… – …, S.A. titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, ambos com sede na Av. …, …, … piso, Lisboa, doravante simplesmente designado Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a revogação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de imposto do selo números 2013…, 2013…, 2013…, 2013… e 2013… e respectivas notas de cobrança (2014…, 2014…, 2014…, 2014… e 2014…), respeitantes ao ano de 2013 e relativo ao imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ..., concelho e distrito de Lisboa, sob o art. ….

 

Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:

       a) O Requerente foi notificado das notas de cobrança respeitantes ao imposto do selo relativo ao ano de 2013 e ao prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ..., concelho e distrito de Lisboa sob o art. …;

            b) O referido imposto do selo foi liquidado nos termos da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), tendo em consideração o valor global de cada uma das divisões com afectação habitacional do edifício, resultante da avaliação realizada em Março de 2013, que a AT fez retroagir a 31/12/2012, data da recepção da declaração Modelo 1 do IMI;

  1. As notas de cobrança enviadas não identificam o autor do acto, pelo que são nulas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 39º nº 12 do CPPT;
  2. Não identificam ao abrigo de que competência foi praticado o acto, pelo que são ilegais, por inexistência do autor dos actos;
  3. E não se encontram fundamentadas, pelo que são as mesmas inválidas, ineficazes e anuláveis, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 77º da LGT;
  4. Nenhuma das divisões do imóvel objecto das liquidações aqui em crise tem afectação habitacional, pelo que não poderá sobre as mesmas incidir imposto do selo nos termos da verba 28.1 da TGIS;
  5. O prédio encontra-se arrendado ao Estado Português desde 23/12/2010, sendo que aí se encontra instalado o ...;
  6. Cada uma das divisões do imóvel em causa foi objecto de avaliação individual para os efeitos do disposto no CIMI, sendo que nenhuma destas divisões detém valor patrimonial tributário superior a um milhão de euros;
  7. Para efeitos de sujeição ou não a Imposto do Selo, não pode a Administração Tributária considerar como valor de referência o valor total do prédio constituído em propriedade vertical, procedendo à soma dos valores das divisões com utilização independente;
  8. O legislador estabeleceu expressamente que o Imposto do Selo incidiria apenas sobre os prédios cujo valor patrimonial tributário fosse igual ou superior a 1 milhão de euros, o que não é o caso de nenhuma das divisões com utilização independente detidas pelo Requerente no prédio a que se alude em a) anterior;
  9. As liquidações impugnadas violam o princípio da igualdade;
  10.  O Requerente está isento do pagamento do imposto em causa, por via da aplicação do artigo 49º do EBF, em vigor à data dos factos;
  11.   O Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações efectuadas, a qual foi objecto de indeferimento.

 

O Requerente juntou 25 e arrolou duas testemunhas.

No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

O tribunal arbitral foi constituído em 26 de Junho de 2015.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, alegando, em síntese, o seguinte:

  1. A sujeição a imposto do selo do prédio em causa nos presentes autos resulta não só da sua afectação habitacional como do facto de ter um valor patrimonial tributário superior a um milhão de euros;
  2. Nos termos do disposto no artigo 113º nº 1 do CIMI, aplicável ex vi do artigo 23º do CIS, o imposto é tributado anualmente de acordo com os valores patrimoniais tributários dos prédios constantes das matrizes em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeita;
  3. O imposto em causa nos presentes autos respeita ao ano de 2013, pelo que não se verifica qualquer retroactividade;
  4. O prédio em causa nos presentes autos encontra-se em regime de propriedade total, não possuindo quaisquer fracções autónomas;
  5. A lei distingue entre o regime da propriedade total e da propriedade horizontal, não podendo este regime ser aplicado quando em causa não estão fracções autónomas;
  6. Para efeitos de IMI e de imposto do selo, o Requerente não é proprietário de 15 fracções autónomas mas sim de um único prédio;
  7.  O valor patrimonial relevante para efeitos de incidência do imposto do selo é o valor patrimonial total do prédio e não o valor patrimonial de cada uma das partes que o compõem;
  8. A isenção prevista no artigo 49º do EBF não se aplica ao imposto do selo;
  9. Não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade.

 

A Requerida não juntou documentos, não arrolou testemunhas e não juntou o processo administrativo.

Atenta a posição assumida pelas partes, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, bem como a inquirição das testemunhas arroladas pelo Requerente, tendo sido ainda dispensada a apresentação de alegações.

 

  1. SANEAMENTO:

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas.

O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade.

 

  1. QUESTÕES A DECIDIR:

Nos presentes autos as questões a decidir são:

  1. aferir da nulidade da notificação das notas de cobrança, por falta de elementos essenciais da notificação;
  2. aferir da anulabilidade das liquidações e notas de cobrança por falta de fundamentação;
  3. aferir da afectação do prédio;
  4. determinar qual o valor patrimonial tributário relevante para efeitos de incidência do Imposto de Selo no caso de prédios constituídos em regime de propriedade total, compostos por andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, com afectação habitacional;
  5. aferir da alegada isenção subjectiva do imposto do selo;
  6. aferir da invocada ilegalidade de aplicação retroactiva do imposto do selo.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO:
  1. Factos provados:

Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:

  1. Encontra-se inscrito a favor do Requerente o prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia da ..., concelho e distrito de Lisboa sob o artigo …;
  2. O prédio a que se alude em 1) anterior foi objecto de contrato de arrendamento, celebrado entre o Requerente e o Estado Português, em 23 de Dezembro de 2010, destinando-se à instalação de serviços públicos;
  3. O Requerente foi notificado da avaliação do prédio urbano a que se alude em 1) anterior e da afectação habitacional atribuída às divisões susceptíveis de utilização independente localizadas nos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º andares;
  4. O Requerente não solicitou segunda avaliação nos termos do disposto no artigo 15º-F do DL 287/2003, de 12 de Novembro;
  5. O prédio a que se alude em 1 anterior é composto 15 divisões susceptíveis de utilização independente;
  6. Das 15 divisões susceptíveis de utilização independente, 5 foram classificadas como afectas à habitação e 10 como afectas ao comércio;
  7. Cada uma das 15 divisões foram objecto de avaliação separada, para efeitos de IMI;
  8. Nenhuma das indicadas divisões susceptíveis de utilização independente tem um valor patrimonial tributário igual ou superior a um milhão de euros;
  9. Com referência ao ano de 2013 e às divisões susceptíveis de utilização independente afectas à habitação, a Requerida liquidou Imposto do Selo correspondente à Verba 28.1 da TGIS, no valor total de € 15.086,00,.
  10. O Requerente foi notificado das primeiras prestações do IS liquidado, relativo ao ano de 2013, correspondentes aos documentos de cobrança n.ºs 2014…, 2014…, 2014…, 2014… e 2014…, no valor, respectivamente, de € 1.111,54, € 1.069,74, € 1.069,74, € 990,94 e € 786,74, cuja data limite de pagamento era Abril de 2014;
  11. O Requerente foi notificado da segunda prestação do IS liquidado, relativo ao ano de 2013, correspondente ao documento de cobrança n.ºs 2014…, no valor de € 768,73, cuja data limite de pagamento era Julho de 2014;
  12. Notificado das notas de cobrança a que se alude em 10) anterior, o Requerente apresentou, em 05/08/2014, reclamação graciosa, à qual veio a ser atribuída o número …2014…;
  13. Por ofício datado de 04/12/2014, foi o Requerente notificado do projecto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada e para exercer, querendo, no prazo de 15 dias, o direito de audição prévia;
  14. Por carta registada datada de 22/12/2014, o Requerente exerceu direito de audição prévia;
  15. Por ofício recebido pelo Requerente em 15/01/2015, foi este notificado do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada;
  16. No dia 15/04/2015 o Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral.

 

  1. Factos não provados:

Com interesse para os autos, não existe qualquer factualidade não provada.

 

  1. Fundamentação da matéria de facto:

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se na prova documental junta pelo Requerente, indicada relativamente a cada um dos pontos, cuja autenticidade e adesão à realidade não foi questionada pela Requerida e nas alegações das partes não impugnadas.

 

  1. DO DIREITO:
  1. Da falta de elementos essenciais da notificação:

 

O Requerente começa por invocar que as notas de cobrança que lhe foram notificadas não contêm a indicação do autor do acto nem a competência ao abrigo da qual actuou, em violação do disposto no artigo 39.º n.º 12 do CPPT.

Mais alega que não lhe foram notificadas as liquidações de Imposto do Selo aqui impugnadas, das quais apenas teve conhecimento da respectiva data.

Conclui, peticionando a declaração de nulidade das indicadas notificações, por violação do já referido artigo 39.º n.º 12 do CPPT.

Analisadas as notas de cobrança notificadas ao Requerente, parece não poder ser-lhes imputado qualquer vício.

Com efeito, dispõe o artigo 46º nº 5 do CIS, quanto às notas de cobrança, que, havendo lugar a liquidação do imposto a que se refere a verba nº 28 da Tabela Geral, o documento de cobrança é emitido nos prazos, termos e condições definidos no artigo 119º do CIMI, com as devidas adaptações.

Já o citado artigo 119º do CIMI dispõe que “os Serviços da Direcção-Geral dos Impostos enviam a cada sujeito passivo, até ao fim do mês anterior ao do pagamento, o competente documento de cobrança, com discriminação dos prédios, suas partes susceptíveis de utilização independente, respectivo valor patrimonial tributário e da colecta imputada a cada município da localização dos prédios.”

Confrontadas as notas de cobrança notificadas ao Requerente verifica-se que, estas contêm, por referência ao citado artigo 119º do CIMI, os seguintes elementos:

  1. discriminação do prédio;
  2. suas partes susceptíveis de utilização independente;
  3. respectivo valor patrimonial tributário.

 

Cumprem assim, as notas de cobrança notificadas ao Requerente todos os requisitos previstos no citado artigo 119º do CIMI, exceptuado, naturalmente, por não ser aplicável ao Imposto do Selo, o relativo à colecta imputada a cada município da localização dos prédios.

Verificados todos estes requisitos, conclui-se que nenhum vício poderá ser imputado às notas de cobrança em causa nos presentes autos.

Não procede, por isso, o vício formal invocado pelo Requerente de nulidade da notificação das notas de cobrança.

 

  1. Da falta de fundamentação das liquidações e das notas de cobrança:

 

Alega ainda o Requerente que as liquidações e notas de cobrança em causa nos presentes autos padecem de vício de falta de fundamentação, sendo por via disso inválidas, ineficazes e anuláveis.

Não tendo sido juntas aos autos as liquidações que deram origem às notas de cobrança, apenas nos poderemos debruçar sobre os invocados vícios quanto às notas de cobrança.

Mais uma vez, parece que o Requerente confunde o conceito de nota de cobrança com o conceito de liquidação.

Com efeito, dispõe o artigo 77º da LGT:

 “1 – A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.

2 – A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.”.

Pela simples leitura do citado preceito, verifica-se que o dever de fundamentação nele previsto se reporta à decisão de procedimento e aos actos tributários, não sendo, pois, aplicável às simples notas de cobrança.

Quanto a estas, conforme já exposto, a lei apenas impõe o cumprimento dos requisitos previstos no artigo 119º do CIMI os quais, como já vimos, se consideram verificados.

Ora, entre estes requisitos não se inclui a fundamentação das notas de cobrança, o que, aliás, se percebe, já que estas mais não passam do corolário lógico da liquidação previamente efectuada.

É, pois, relativamente às liquidações, enquanto actos tributários, que a lei impõe o dever de fundamentação, enquanto direito consagrado e constitucionalmente garantido dos cidadãos (artigo 268º nº 3, da Constituição da República Portuguesa) e acto definidor da posição da Administração Tributária perante os particulares, do qual se consegue inferir o raciocínio lógico seguido por esta para decidir no sentido em que decidiu e não noutro.

É precisamente por tal razão que o artigo 77.º nº 2 da Lei Geral Tributária impõe que a decisão do procedimento contenha “as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”, pois que apenas desta forma pode o sujeito passivo do imposto apreender a razão de ser do acto tributário de que é alvo e defender-se do mesmo..

Se estes pressupostos e razões correspondem ou não à realidade é questão que tem a ver com o mérito e já não com a forma e que, portanto, se coloca numa outra dimensão de que não cumpre, neste ponto, conhecer.

Sem prejuízo do exposto, a verdade é que, não impondo a lei às notas de cobrança qualquer outro requisito para além dos previstos no artigo 119º do CIMI, designadamente o dever de fundamentação, parece evidente não poder ser imputável a estas notas de cobrança qualquer vício de falta de fundamentação.

Improcede, assim, o vício de falta de fundamentação invocado pelo Requerente.

 

  1. Da afectação do prédio:

 

Invoca o Requerente que o prédio em causa não tem efectiva afectação habitacional, pelo facto de se encontrar arrendado ao Estado Português, que aí tem instalado o ....

Em sentido contrário, alega a Requerida que na caderneta predial do prédio em causa, a sua afectação é habitacional, e como tal deve ser tributado.

Quanto à incidência objectiva, dispõe o número 1 do artigo 1.º do CIS que o imposto do selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral.

O artigo 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro aditou à TGIS, anexa ao CIS, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, a verba n.º 28, com a seguinte redacção:

28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 - Por prédio com afectação habitacional - 1%;

28.2 - Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças - 7,5 %.”

 

Dito isto,

Na verba 28.1 da TGIS aditada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, utilizou-se um conceito inovador, que não é utilizado por mais nenhuma legislação tributária: o conceito de prédio com afectação habitacional.

Nem no CIMI, indicado pela referida Lei n.º 55-A/2012 como diploma de aplicação subsidiária relativamente ao tributo introduzido pelo aditamento da verba 28 à TGIS, é utilizado qualquer conceito assim definido.

Com efeito, o CIMI define o conceito de prédio, define os vários tipos de prédios e identifica as espécies dos prédios urbanos.

 

Assim,

Nos termos do artigo 2.º do CIMI, “prédio é toda a fracção de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou colectiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico.”

Os prédios dividem-se em rústicos (artigo 3.º), urbanos (artigo 4.º) ou mistos (artigo 5.º), subdividindo-se os prédios urbanos em 4 espécies: habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços; terrenos para construção e outros (artigo 6.º).

Assim, prédio com “afectação habitacional” será aquele que se destina a habitação.

Aliás, a tal conclusão se chega igualmente através da reconstituição do pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada tal como imposto pelo indicado artigo 9.º do Código Civil.

Antes de mais, importa ter em consideração que a introdução desta verba 28 na TGIS aconteceu numa altura em que, havendo absoluta necessidade de fazer face à crise instalada, se impunha arrecadar o máximo de receita possível, o que se pretendia alcançar, designadamente, através da tributação dos imóveis ditos de “luxo”.

Pretendeu-se, pois, com a introdução da tributação prevista na verba 28 da TGIS, tributar a riqueza, exteriorizada na propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos “de luxo”, com afectação habitacional.

Que apenas se incluem nesta nova tributação os prédios com afectação habitacional resulta de forma expressa da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 96/XII, na qual se refere que, com vista a reforçar o “princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efectiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento”, o diploma legal a aprovar “alarga a tributação dos rendimentos do capital e da propriedade, abrangendo equitativamente um conjunto alargado de sectores da sociedade portuguesa”.

Assim, pode ler-se ainda na referida Exposição de Motivos que é “criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre os prédios urbanos de afetação habitacional cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a um milhão de euros” (sublinhado nosso).

Já no âmbito da discussão na generalidade da indicada proposta de Lei, pode ler-se:

Em primeiro lugar, o Governo propõe a criação de uma taxa especial para tributar prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8%, em 2012, e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros” (sublinhado nosso).

 

Dúvidas não restam, pois, que a intenção do legislador foi tributar casas, prédios urbanos habitacionais, propriedades destinadas à habitação, isto é, prédios que já se encontrem efectivamente destinados a fim habitacional.

No caso dos autos, conforme resulta dos factos provados – ponto 2) -, o prédio em causa foi objecto de contrato de arrendamento, destinado à instalação de serviços públicos.

Assim, atenta a divisão de prédios urbanos a que alude o artigo 4º do CIMI, parece evidente que este não poderá ser classificado como prédio com afectação habitacional, nos termos expostos.

A verdade, porém, é que foi esta a afectação atribuída pela AT, sendo certo que, notificado da avaliação efectuada e da afectação atribuída, o Requerente não fez uso da prerrogativa de requerer segunda avaliação – cfr. pontos 3) e 4) dos factos provados.

Assim, em face da afectação habitacional atribuída às divisões em causa, não impugnada pelo Recorrente, não poderá defender-se, como pretende o Recorrente, que, pelo facto de o prédio se encontrar arrendado e aí se encontrarem instalados serviços públicos, possa ser alterada a afectação habitacional inicialmente atribuída.

Improcede, pois, a invocada afectação não habitacional do prédio.

 

  1. Valor patrimonial relevante:

 

Aqui chegados, facilmente se atinge que a questão de fundo reside na interpretação da norma contida na Verba 28 da TGIS (em particular da constante do ponto 1), aditada pelo artigo 4.º da Lei n.º 55-A / 2012, de 29 de Outubro, que, à data dos factos em causa nos presentes autos, estabelecia o seguinte:

28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000,00 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 – Por prédio com afectação habitacional – 1%

28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5%”.

 

Dito isto,

Atento o que já se deixou exposto aquando da apreciação da afectação do prédio, verifica-se que o CIMI não faz qualquer distinção entre prédios constituídos em regime de propriedade horizontal ou total. Com efeito, pese embora o número 4 do artigo 2º refira expressamente que as fracções autónomas dos prédios constituídos em regime de propriedade horizontal constituem, cada uma delas, um prédio, a verdade é que não exclui de tal classificação as divisões com utilização independente dos prédios constituídos em regime de propriedade total ou vertical.

E, onde a lei não distinguiu, não pode o intérprete fazê-lo.

Recorde-se que, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, as normas tributárias se interpretam de acordo com os princípios de hermenêutica jurídica comummente aceites, maxime os fixados, entre nós, no artigo 9.º do Código Civil.

A interpretação literal apresenta-se como o primeiro estádio da actividade interpretativa. Como refere FERRARA, “o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete[1]. Ora, uma vez que a lei se encontra expressa em palavras, deve, então, delas ser extraída a significância verbal que contêm, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais. Porém, sendo as palavras empregues pelo Legislador equívocas ou indeterminadas, será forçoso recorrer à interpretação lógica, que atende ao espírito da disposição a interpretar.

A interpretação lógica, tal como vem sendo pacificamente figurada pela doutrina[2], estriba-se no elemento racional, no elemento sistemático e no elemento histórico; ponderando-os e deles deduzindo o valor da norma jurídica em apreço.

Por elemento racional há-de entender-se a raison d´être da norma jurídica, i.e., a finalidade para a qual o legislador a instituiu. A descoberta da ratio legis apresenta-se, assim, como um factor de indubitável importância para a determinação do sentido da norma.

Sucede, porém, que uma determinada norma não existe isoladamente, antes convive com as demais normas e princípios jurídicos de forma sistemática e complexa. Assim, natural se torna que o sentido de uma concreta norma resulte claro da confrontação desta com as demais. Como refere BAPTISTA MACHADO, “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.[3].

Já o elemento histórico, por seu turno, há-de reportar-se e incluir os materiais conexos com a história da norma, tais como “a história evolutiva do instituto, da figura ou do regime jurídico em causa (…); as chamadas fontes da lei, ou seja os textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador na elaboração da lei (…); os trabalhos preparatório.[4].

Apliquemos o que se vem dizendo ao caso vertente, i.e., à interpretação do n.º 4 do artigo 2.º do CIMI, convocando, ainda, o disposto no artigo 1414.º do Código Civil, que determina que “as fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal”.

Ora, sabendo que, por regra, sobre cada edifício incorporado no solo recai, em princípio, um único direito de propriedade, pertencente a um ou mais titulares, facilmente se atinge que aquela norma [artigo 1414.º do CC] encerra uma importante derrogação a tal princípio. Na verdade, e como de resto ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[5], o que caracteriza este instituto [propriedade horizontal] “é o facto de as fracções de um mesmo edifício que constituam unidades independentes pertencerem a proprietários diversos”.

Mas, então, que dizer acerca do n.º 4 do artigo 2.º do CIMI? Deverá dizer-se que visa, congruentemente, adaptar a realidade fiscal à materialidade permitida pelo artigo 1414.º do CC, i.e., visa permitir tributar proprietários diversos na medida das suas propriedades; mas, também, visa permitir obviar eventuais dificuldades decorrentes da impossibilidade de assimilar cada fracção autónoma, no regime de propriedade horizontal, ao conceito de prédio tal como definido no n.º 1 do artigo 2.º do CIMI. E apenas isso. O legislador disse exactamente aquilo que pretendeu dizer.

Assim, analisada a definição de prédio ínsita no número 1 do artigo 2º do CIMI, não vislumbramos qualquer razão para aqui não incluir as divisões com utilização independente dos prédios constituídos em regime de propriedade total, pois que estas constituem uma fracção de território que faz parte integrante do património de uma pessoa singular ou colectiva e que tem valor económico.

Assente que está a classificação das divisões com utilização independente dos prédios constituídos em regime de propriedade total como prédios, nos termos e para os efeitos do CIMI, parece-nos evidente que cada uma destas divisões constituirá um prédio com afectação habitacional desde que se destine a ter tal uso ou desde que, como sucede nos autos, se encontre assim classificada fiscalmente.

Por outro lado, no caso dos autos, cada uma das divisões com utilização independente encontra-se individualmente classificada, sendo as 5 ora em apreciação afectas a habitação e as demais a comércio – cfr. ponto 6 dos factos provados.

Aliás, não fossem as divisões em causa nos presentes autos individualmente classificadas como um prédio e não teria qualquer sentido a elaboração de 5 notas de liquidação do Imposto do Selo e 5 notas de cobrança, uma respeitante a cada unidade independente.

Com efeito, se estas divisões não fossem classificadas, individualmente, como prédios, então deveria ser elaborada uma única nota de liquidação e uma única nota de cobrança, respeitante ao prédio.

Por outro lado, no que diz respeito ao espírito da lei, importa referir que, conforme tem vindo a ser defendido pela mais recente jurisprudência arbitral[6], a introdução da verba 28 na TGIS teve como objectivo a tributação dos prédios urbanos de elevado valor.

Conforme já exposto, a introdução da verba 28 da TGIS visou tributar a riqueza, exteriorizada na propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos “de luxo”, com afectação habitacional.

Aliás, conforme resulta da jurisprudência arbitral supra citada, a qual seguimos de perto, dir-se-á que, da análise da discussão da proposta de Lei nº 96/XII na Assembleia da República, infere-se que a fundamentação da medida designada por taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor assenta na invocação dos princípios da equidade social e da justiça fiscal, chamando a contribuir de uma forma mais intensa os titulares de propriedades de elevado valor destinadas a habitação, fazendo incidir a nova taxa especial sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros.

Ora, se o objectivo da lei foi adequar a tributação em sede de Imposto do Selo à capacidade contributiva dos contribuintes, parece não revestir qualquer relevância a distinção entre prédios constituídos em regime de propriedade horizontal ou vertical.

Com efeito, não se vislumbra como possa a propriedade de determinadas divisões num prédio em regime de propriedade total significar maior riqueza e maior capacidade contributiva do que a propriedade do mesmo número de fracções num prédio em regime de propriedade horizontal.

Manifestamente, não é por aí que se revela a maior ou menor capacidade contributiva, tanto mais que, como é sabido, a propriedade horizontal é um instituto jurídico relativamente recente, sendo certo que uma grande parte dos prédios antigos não se encontram constituídos neste regime, apesar de, na prática, funcionarem como tal.

Ora, o princípio da prevalência da substância sobre a forma impõe que a administração tributária valorize a verdade material. E, no caso dos autos, a verdade material consiste na inexistência de qualquer diferença substantiva entre as divisões com afectação habitacional propriedade do Requerente e as fracções de um prédio constituído em propriedade horizontal.

E a própria Requerida acaba por aceitar tal identidade substancial, quando, no artigo 63º da resposta apresentada, admite que a constituição da propriedade horizontal implica uma mera alteração jurídica do prédio, não havendo lugar a uma nova avaliação.

Ora, se a alteração operada é meramente jurídica e não factual, que razão existe para a diferença de tratamento fiscal entre uma e outra situação? Parece-nos que nenhuma.

No caso dos autos, verificada a identidade entre as divisões com afectação habitacional propriedade do Requerente e as fracções de um prédio constituído em regime de propriedade horizontal, nenhum fundamento poderá ser invocado para justificar a não aplicação do mesmo regime a ambas as situações.

E, se no caso das fracções do prédio constituído em regime de propriedade horizontal nenhuma dúvida existe de que o valor patrimonial tributário relevante para efeito de determinação da aplicação ou não do Imposto do Selo é o valor individual de cada uma das fracções, não se vislumbra porque deverá tal questão suscitar-se no caso de divisões que não façam parte de prédio constituído em propriedade horizontal.

Distinguir, para efeito de sujeição ou não a Imposto do Selo, as fracções autónomas dos prédios constituídos em regime de propriedade horizontal das divisões com utilização independente dos prédios constituídos em regime de propriedade total, representa uma clara violação dos princípios da justiça, da igualdade e proporcionalidade fiscal, da verdade material e da capacidade contributiva, não podendo, assim, ser acolhida.

Assim, não poderá colher a tese defendida pela Requerida de que o facto de o prédio não se encontrar constituído em regime de propriedade horizontal impede a aplicação do seu regime.

No caso dos autos, conforme resulta dos factos provados, nenhuma das divisões susceptíveis de utilização independente, com afectação habitacional, ou melhor, nenhum dos prédios propriedade do Requerente, tem um valor patrimonial tributário igual ou superior a um milhão de euros – cfr. ponto 8) dos factos provados -, pelo que não se encontram estes abrangidos pela norma de incidência prevista na verba 28 da TGIS.

Em face de tudo quanto ficou exposto, dúvidas não restam de que o valor patrimonial tributário relevante para efeitos de incidência do Imposto do Selo nos casos de prédios constituídos em regime de propriedade total, compostos por várias divisões com utilização independente, com afectação habitacional, é o valor patrimonial tributário de cada uma das divisões do prédio e não, como defendido pela Requerida, o valor patrimonial tributário global do prédio, correspondente à soma de todos os valores patrimoniais tributários das divisões que o compõem.

Em face de tudo quanto ficou exposto, não havendo fundamento legal para os actos de liquidação efectuados, impõe-se a sua anulação, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo Requerente.

 

  1. DISPOSITIVO:

Em face do exposto, decide-se:

  1. Julgar improcedente o pedido de declaração de nulidade da notificação das notas de cobrança;
  2. Julgar improcedente o pedido de anulação das liquidações e notas de cobrança, por falta de fundamentação;
  3. Julgar procedente o pedido de revogação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e consequente declaração de ilegalidade do acto de liquidação do Imposto do Selo no valor global de € 15.086,00, com a inerente anulação do mesmo e das notas de cobrança emitidas.

***

Fixa-se o valor do processo em € 15.086,00, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

***

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 3 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerida por ser a parte vencida.

***

Registe e notifique.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2015.

 

O Árbitro,

 

Alberto Amorim Pereira

***

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

 



[1] FERRARA, FRANCESCO, Interpretação e Aplicação das Leis, 1921, Roma; Tradução de MANUEL DE ANDRADE, Arménio Amado, Editor, Sucessor – Coimbra, 2.ª Edição, 1963, p. 138 e ss.

[2] Vide, por todos, BAPTISTA MACHADO, JOÃO, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, Coimbra, 1994, 7ª reimpressão, p. 181.

[3] BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 183.

[4] BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 184.

[5] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado – Volume III (artigos 1251.º a 1575.º), 2ª Edição Revista e Actualizada (Reimpressão), Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 391.

[6] Veja-se, entre outras, decisões proferidas no âmbito dos processos 48/2013-T, 50/2013-T e 132/2013-T, todas disponíveis em www.caad.org.pt