Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 199/2015-T
Data da decisão: 2015-11-18  IRS  
Valor do pedido: € 73.805,30
Tema: IRS – Procedimento Inspectivo; Caducidade do direito à liquidação
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Jorge Bacelar Gouveia e Maria Forte Vaz, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 18 de Março de 2015, A…, contribuinte n.º …, com domicílio fiscal na Av. …, n.º …, …, em Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação de IRS e Juros Compensatórios referentes ao ano de 2006, consubstanciados na liquidação de imposto n.º 2012 …, com data de 10/09/2012, e na liquidação de juros compensatórios n.º 2012 …, dos quais resulta um valor total a pagar de € 66.319,54.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, a verificação de:

 

                                                              i.      Vício de violação de forma por incumprimento das regras do procedimento inspectivo previstas nos artigos 36º, nº 2, 3 e 4 do RCPIT, artigo 63º nº 3 da LGT, artigo 55º da LGT e artigo 266º da CRP;

                                                            ii.      Caducidade do direito à liquidação por decurso do prazo previsto no nº 1 do 45º da LGT, e início do procedimento inspectivo após o termo daquele prazo, em violação do nº 1 do artigo 63º da LGT;

                                                          iii.      Ilegalidade da liquidação de juros compensatórios.

 

  1. No dia 20-03-2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 13-05-2015, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 28-05-2015.

 

  1. No dia 02-07-2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

  1. Após junção de documentação oficiosamente determinada, atendendo a que não existia necessidade de produção de prova adicional, para lá da prova documental já incorporada nos autos, que não existia matéria de excepção sobre as quais as partes carecessem de se pronunciar e que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º do RJAT, dispensou-se a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT.

 

  1. Não tendo sido possível cumprir tal prazo, foi o mesmo prorrogado por mais 30 dias.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      Por determinação dos despachos nº DI2007… e nº DI2007…, do Director da Direcção de Serviços de Investigação da Fraude e de Acções Especiais (DSIFAE), houve lugar a uma inspecção para consulta, recolha e cruzamento de elementos através do acesso a informação bancária da Requerente.

2-      No âmbito daquela inspecção, foi a Requerente visitada por técnicos da DSIFAE em 25 de Junho de 2008, tendo sido notificada para comparecer nas instalações daquela Direcção de Serviços no dia 30/06/2008, para, ao abrigo do princípio da colaboração prevista no artigo 59.º da Lei Geral Tributária, e do n.º 4 do artigo 34.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, prestar esclarecimentos relacionados com a referida conta bancária.

3-      A Requerente prestou os esclarecimentos solicitados, e conferiu autorização aos serviços para levantamento do sigilo bancário.

4-      Em 25 de Julho de 2008, foi a Requerente notificada do encerramento do procedimento inspectivo à data de 23 de Julho.

5-      A decisão de encerramento do procedimento foi tomada depois de solicitados os extractos de contas bancárias solicitados ao Banco de Portugal.

6-      A 15/05/2009 registado no DCIAP o processo de inquérito nº .../09....TELSB, destinado a averiguar a prática de crimes em matéria tributária, o qual foi remetido ao DIAP a 02/04/2013 e objecto de despacho de arquivamento a 24/04/2013.

7-      No decurso daquele processo de inquérito, foi aberta a ordem de serviço OI2010…, de 14/04/2010, da Direcção de Finanças de Lisboa, para a realização de acção inspectiva externa de âmbito parcial, em sede de IRS e IVA de 2006.

8-      A carta aviso foi remetida 21/04/2010, e os actos inspectivos decorreram no período compreendido entre 02/06/2010 e 06/09/2010.

9-      A 13/10/2010 a ora Requerente foi constituída arguida no âmbito do processo de inquérito supra referido, onde se investigava a eventual prática de crime de fraude fiscal, previsto e punível pelo nº 1 do artigo 103º do RGIT, em virtude de lhe ter sido imputada a ocultação de rendimentos nas declarações mod. 3 de IRS de 2005 a 2006.

10-  A 29/11/2010 concluiu-se a acção inspectiva com a notificação à ora Requerente do Relatório Final, sancionado por despacho de 23/11/2010 do Director de Finanças de Lisboa, apurando-se rendimento tributável com recurso a métodos indirectos no montante de €155.049,72, com enquadramento na al. f) do nº 1 do artigo 87º e nº 5 do artigo 89º-A da LGT, e nº 3 do artigo 9º do CIRS.

11-  Do relatório final desta acção inspectiva consta, para além do mais, o seguinte:

“Em cumprimentos dos Despachos n.º …2007… e n.0 …2007…, exarados pelo Senhor Director da DSIFAE (Direcção de Serviços de Investigação da Fraude e Acções Especiais), procederam aqueles Serviços a uma acção de inspecção externa de consulta, recolha e cruzamento de elementos, relativamente aos anos de 2005 a 2007, junto do sujeito passivo A….”

12-  A Requerente reagiu contra aquela decisão interpondo recurso para o Tribunal Tributário de Lisboa, processo nº …/10….BELRS, que correu termos pela 4º UO daquele Tribunal.

13-  Em Maio de 2012, foi a Requerente notificada da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, na qual, considerando não se estar em presença de qualquer incremento no património daquela que habilitasse a AF a fixar-lhe o rendimento tributável por avaliação indirecta, julgou aquele Tribunal totalmente procedente o recurso judicial apresentado pela Requerente, anulando a decisão de fixação do rendimento tributável.

14-  A sentença proferida em 1ª instância foi revogada, em sede de recurso interposto pela AT para o TCA Sul, o qual, por acórdão de 23/07/2012, transitado em julgado, julgou extemporânea a petição de recurso, declarando extinto o direito de recorrer contra aquela decisão de fixação da matéria colectável com recurso a métodos indirectos.

15-  A 10/09/2012 foi emitida a liquidação de IRS de 2005 nº 2012 …, ora controvertida.

16-  A 16/11/2012 foi deduzida reclamação graciosa, a qual foi indeferida por despacho de 22/06/2013.

17-  Posteriormente, foi deduzido recurso hierárquico, o qual manteve o anteriormente decidido em sede de reclamação graciosa.

18-  O inquérito nº .../09....TELSB foi arquivado por despacho datado de 24-04-2013.

19-  A Requerente foi notificada da referida decisão de indeferimento do referido recurso por Ofício da Direcção de Finanças recepcionado no dia 18 de Dezembro de 2014.

20-  No âmbito do Processo de Execução Fiscal n.º …2012…, instaurado para cobrança coerciva daqueles montantes, a Requerente procedeu ao pagamento da totalidade da dívida exequenda.

 

A.2. Factos dados como não provados

1- Que a ordem de serviço OI 2010 …, de 14/04/2010, da Direcção de Finanças de Lisboa, para a realização de acção inspectiva externa de âmbito parcial, em sede de IRS e IVA de 2006, foi aberta para instrução do processo de inquérito nº .../09....TELSB.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

O facto dado como não provado deriva da ausência de prova que o confirme, sendo que a experiência comum das coisas aponta, justamente, no sentido da não prova do facto em questão, já que a instrução do processo crime se faz – por lei – no seu próprio âmbito, podendo aí ser conduzida pela própria AT, nos termos do artigo 40.º/2 do RGIT, e não à parte, no âmbito de um procedimento de inspecção, tanto mais que as prerrogativas investigatórias do processo crime são, naturalmente, mais amplas do que as do procedimento de inspecção.

 

 

B. DO DIREITO

 

a. da matéria de excepção

            i.

            Começa a Requerida por deduzir a excepção da incompetência material absoluta do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido que vem deduzido, por considerar que “os vícios que a Requerente invoca são vícios susceptíveis de afectar a legalidade da decisão do Director de Finanças de Lisboa que fixou a matéria colectável referente a IRS de 2005 com recurso a métodos indirectos”.

            Assim, e como “o Tribunal Arbitral não pode conhecer de “pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão”, conforme dispõe a al. b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03”, entende a AT, em suma, que “deve abster-se o tribunal de apreciar quaisquer questões relativas à apreciação da ilegalidade do acto de avaliação indirecta da matéria tributável, absolvendo a entidade Requerida do pedido.”.

            Por sua vez, o Requerente dá conta que “nunca, em nenhum momento a Requerente

coloca em causa o teor da decisão de correcção da matéria colectável por métodos indirectos que obviamente se consolidou na ordem jurídica no seguimento do trânsito em julgado do acórdão do TCA Sul de 23 de Julho de 2012.”, e que “O que a Requerente pretende ver reconhecidos, única e exclusivamente, são vícios formais próprios do acto de liquidação que nele se subsumiram e o inquinam de ilegalidade”.

            Como bem nota a AT, “a decisão de avaliação da matéria colectável por métodos indirectos constitui acto destacável do procedimento tributário, susceptível de reacção por parte dos sujeitos passivos apenas através de meio próprio”.

            E como, também bem, nota o Requerente, e já acima, no ponto 1 do Relatório se apontou, o objecto do presente processo arbitral é o acto tributário de liquidação em sede de Imposto Sobre Rendimento das Pessoas Singulares e Juros Compensatórios referentes ao ano de 2006, consubstanciados na liquidação de imposto n.º 2012 …, com data de 10/09/2012, e na liquidação de juros compensatórios n.º 2012 …, dos quais resulta um valor total a pagar de € 66.319,54.

            Ora, um (o acto de avaliação da matéria colectável por métodos indirectos) e outro (o acto de liquidação) não se confundem. E sendo o objecto da presente acção arbitral este último acto, e não aquele, dever-se-á o Tribunal julgar competente, nos termos do artigo 2.º/1/a) do RJAT, e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março.

            Assim, e como se escreveu já no âmbito do processo 694/2004-T do CAAD[1]:

“É certo que, em sede arbitral, o Tribunal não pode conhecer de “Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão.”, conforme decorre da al. b) do referido artigo 2.º da Portaria.

Contudo, não tendo a presente acção por objecto “a decisão de avaliação da matéria colectável por métodos indirectos”, não poderia em caso algum, mesmo que a presente acção corresse num Tribunal Tributário, conhecer-se das pretensões relativas àquele acto, uma vez que aquele “constitui acto destacável do procedimento tributário”, não podendo, por isso ser abrangido pela faculdade consagrada no artigo 54.º do CPPT.

Com efeito, o acto de fixação da matéria colectável por métodos indirectos precedente do acto impugnado nos presentes autos de processo arbitral, é directamente impugnável, nos termos dos n.ºs 7 e 8 do artigo 89.º-A da LGT.

Assim sendo, são directamente transponíveis para o presente caso as considerações tecidas pelo Exm.º Conselheiro Jorge Lopes de Sousa[2], a propósito dos actos destacáveis de avaliação directa, quando refere que “os vícios que afectem o acto de avaliação” (no caso, indirecta) “quer os existentes no próprio acto final de avaliação, quer os que se reportem ao respectivo procedimento de avaliação, apenas podem ser invocados na respectiva impugnação e não na impugnação dos actos de liquidação que venha a ser praticado com base no acto de avaliação”. “Por outro lado, para atacar o acto de liquidação, na respectiva impugnação, o interessado não poderá servir-se dos fundamentos que tiver para atacar o acto de avaliação” (no caso, indirecta) “e, designadamente, não poderá sustentar que a matéria tributável a considerar não é a que foi utilizada para efectuar a liquidação.

Ou seja, e em suma: uma coisa é a impugnação do acto de avaliação indirecta e, outra, a impugnação do acto de liquidação praticado com base naquele outro acto.

O presente processo, reporta-se ao segundo daqueles casos, sendo que, pelo atrás exposto, não se poderão conhecer  “os vícios que afectem o acto de avaliação” “quer os existentes no próprio acto final de avaliação, quer os que se reportem ao respectivo procedimento de avaliação”, já que esses apenas poderiam “ser invocados na respectiva impugnação”.

Deste modo clarificado o objecto do presente processo, dúvidas não restarão, julga-se, da competência do presente Tribunal arbitral para o conhecer.

Não mudará o que vem de se dizer, a circunstância, verificada ou hipotética, de na impugnação do acto de liquidação o interessado suscitar questões relativas a vícios que afectem o acto de avaliação. Com efeito, o Tribunal apenas tem que aferir se tais questões se repercutem, ou não, na legalidade do acto de liquidação, juízo para o qual é competente, sendo que se, erradamente, considerar como tendo tal repercussão um vício do acto de avaliação autonomamente impugnável, enquanto tal, estará, não a extravazar as suas competências (o que apenas ocorreria se se pronunciasse sobre a validade do acto de avaliação[3]), mas, simplesmente, a aplicar erradamente a lei, a uma questão (a validade ou não do acto de liquidação) cuja decisão cai no âmbito daquelas.”

Assim, e face a todo o exposto, improcede a primeira excepção suscitada pela AT.

 

*

            ii.

            Mais deduz a Requerida, ainda, a excepção do caso julgado.

            No entender daquela, “a decisão de avaliação da matéria colectável com recurso a métodos indirectos consolidou-se na ordem jurídica, não podendo ser atacada a liquidação dela decorrente com fundamento em vícios do procedimento inspectivo que culminou com a aquela decisão, sob pena de violação do caso julgado.”.

            Serão aqui aplicáveis, todavia, mutatis mutandis, as considerações supra-expostas.

            Assim, os vícios suscitados pela Requerente são atendíveis no presente processo, sem qualquer violação do caso julgado na medida em que não coloquem em causa o acto de avaliação indirecta da matéria colectável, sendo que, se o fizerem, deverão, nessa medida, obviamente improceder.

            Deste modo, e pelo exposto, improcede também a segunda das excepções arguida pela AT.

 

*

b. do fundo da causa

            i. da violação do artigo 63.º/3 da LGT

            Começa a Requerente, no presente processo arbitral, por arguir a violação do artigo 63.º/3 da LGT, porquanto, no seu entender, terá sido alvo de 2 procedimentos de inspecção externa, um em 2008 e outro em 2010.

            No entendimento da Requerente, “ao proceder à «reanálise» dos mesmos elementos fornecidos pela Requerente, depois de o primeiro procedimento inspectivo se encontrar findo, concluindo em sentido diametralmente oposto ao que resultava da primeira análise, incorreram os serviços da Administração Tributária numa clara e grosseira violação dos referidos artigos 36.º, n.ºs 2, 3 e 4, do RCPIT e do 63.º, n.º 3 da LGT, entendidos não só com o seu alcance procedimental, mas também do direito à segurança jurídica que da conjugação dos respectivos regimes emana.”, entendendo, ainda, aquela que a “violação destas normas constitui vício de violação de lei, que se repercute necessariamente nos consequentes actos de fixação do rendimento tributável e de liquidação de IRS, e juros compensatórios, que têm como pressuposto e fundamento aquela actuação ilegal, que devem por isso ser anulados.”.

            Já a Requerida AT considera que “a acção inspectiva efectuada pela DSIFAE, ao abrigo dos despachos DI2007… e DI2007…, teve como objectivo a mera consulta, recolha e cruzamento de elementos, conforme dispõe a alínea a) do nº 4 do art. 46º do RCPIT, (...d)estinando-se à preparação prévia do procedimento inspectivo a efectuar em momento posterior, nos termos do preconizado no nº 2 do art. 44º do RCPIT.”, pelo que “o procedimento inspectivo efectuado ao abrigo da ordem de serviço 2010…, de 14/04/2010, da Direcção de Finanças de Lisboa, não constituiu uma qualquer repetição de actos inspectivos para efeitos do nº 3 do art. 63º nº da LGT, inexistindo qualquer violação deste normativo legal, ou do disposto no previsto nos nº 2, 3 e 4 do art. 36º do RCPITA, do art. 55º da LGT ou art. 266º da CRP.”.

            Antes de prosseguir na análise do vício ora em questão, convém ter presente que a alegação da Requerente, nesta matéria, se desdobra em dois pontos, a saber:

i.                    A realização de dois procedimentos inspectivos; e

ii.                  A duplicação dos mesmos, com a reanálise dos mesmos elementos, para chegar a conclusões opostas.

É na cumulação destas duas circunstâncias que a Requerente assenta a sua pretensão, ancorando-se no decidido no processo 14/2012-T do CAAD.

Cumprirá, então, verificar se, de facto, ocorreram dois procedimentos inspectivos ou se, pelo contrário e como pugna a AT, apenas um.

            Compulsada a matéria de facto dada como provada, a conclusão a tirar terá de ser a de que tudo indica que terão ocorrido duas acções de inspecção externa.

Com efeito, e no que diz respeito à segunda acção de inspecção levada a cabo, é pacífico que se tratou de uma acção externa.

No que diz respeito a acção encetada em cumprimento dos despachos n.º DI2007… e n.º DI2007…, do Director da Direcção de Serviços de Investigação da Fraude e de Acções Especiais (DSIFAE), verifica-se, desde logo, que a mesma foi objecto, precisamente, de tais despachos, que foi, igualmente, objecto de despacho de encerramento, notificado à Requerente, e que no decurso da mesma foi realizada uma deslocação ao domicílio da Requerente (que foi convocada para prestar declarações ao abrigo do RCPIT), para além da recolha de elementos externos à AT (extratos bancários).

Ora, dispõe o artigo 2.º do RCPIT, no seu n.º 1, que “O procedimento de inspeção tributária visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infracções tributárias”.

            Concretizando esta previsão, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo que:

“Para efeitos do número anterior, a inspeção tributária compreende as seguintes atuações da administração tributária:

a) A confirmação dos elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;

b) A indagação de factos tributários não declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;

c) A inventariação e avaliação de bens, móveis ou imóveis, para fins de controlo do cumprimento das obrigações tributárias;

d) A prestação de informações oficiais, em matéria de facto, nos processos de reclamação e impugnação judicial dos actos tributários ou de recurso contencioso de actos administrativos em questões tributárias;

e) O esclarecimento e a orientação dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários sobre o cumprimento dos seus deveres perante a administração tributária;

f) A realização de estudos individuais, sectoriais ou territoriais sobre o comportamento dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários e a evolução dos sectores económicos em que se insere a sua actividade;

g) A realização de perícias ou exames técnicos de qualquer natureza tendo em conta os fins referidos no n.º 1;

h) A informação sobre os pressupostos de facto dos benefícios fiscais que dependam de concessão ou reconhecimento da administração tributária ou de direitos que o sujeito passivo, outros obrigados tributários e demais interessados invoquem perante aquela;

i) A promoção, nos termos da lei, do sancionamento das infracções tributárias;

j) A cooperação, nos termos das convenções internacionais ou regulamentos comunitários, no âmbito da prevenção e repressão da evasão e fraude;

l) Quaisquer outras ações de averiguação ou investigação de que a administração tributária seja legalmente incumbida.”

            Relativamente aos fins do procedimento de inspeção tributária, o artigo 12.º do RCPIT refere que aquele poderá ter uma de duas finalidades, a saber:

“a) Procedimento de comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;

b) Procedimento de informação, visando o cumprimento dos deveres legais de informação ou de parecer dos quais a inspeção tributária seja legalmente incumbida.”.

            No que diz respeito ao lugar da realização, o artigo 13.º do RCPIT esclarece que:

“Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:

a) Interno, quando os actos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos;

b) Externo, quando os actos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”.

            Do acervo normativo que se vem de expor, resulta não só que o procedimento de inspeção tributária é finalisticamente vinculado (ou seja, só poderá ser instaurado tendo em vista a prossecução de determinadas finalidades), como também que o carácter interno ou externo do mesmo não poderá ser arbitrariamente fixado pela Administração Tributária, resultando antes da necessidade ou não de realizar atos de inspeção “em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”.

            Como se escreveu no processo arbitral 14-2012-T:

“5 – O critério de distinção entre procedimentos de inspecção internos e externos extrai-se do art. 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, em que se esclarece que o procedimento é interno «quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos» e é externo «quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso».

O critério de distinção entre procedimentos de inspecção internos e externos assenta, assim, na existência ou não de actos praticados fora dos serviços da Administração Tributária para obtenção dos elementos relevantes: se os actos se praticaram exclusivamente nesses serviços, está-se perante um procedimento interno; se algum ou alguns actos necessários para apurar os factos tributários foram praticados fora desses serviços, «total ou parcialmente», está-se perante um procedimento externo.”.

            E mais adiante, na mesma decisão:

“A inspecção só será qualificável como interna quando foi efectuada com base em documentos não obtidos através de actos inspectivos exteriores aos serviços.”.

            Ora, tendo em conta os critérios expostos, ter-se-á de considerar que, contrariamente ao que sustenta a AT, em 2008 ocorreu uma acção de inspecção externa, visando a Requerente e os mesmos exercícios a que se reportam os actos tributários objecto do presente processo arbitral, o que, de resto, foi assumido no próprio relatório da acção inspectiva operada em 2010, conforme resulta do ponto 12 dos factos provados.

Conclui-se, deste modo, que ocorreram duas acções inspectivas respeitantes ao mesmo sujeito passivo (a Requerente), imposto e período de tributação, verificando-se a inexistência de decisão do dirigente máximo do serviço a determinar a segunda, fundamentada com base em factos novos, em violação do disposto no artigo 63.º/3 da LGT (na redacção vigente à data; actual n.º 4).

Aqui chegados cumpre determinar quais as consequências de tal violação.

Como se escreveu já no processo arbitral 164/2013-T:

“tem-se por bom que, tal como expressamente se refere no preâmbulo do RCPIT, a regulamentação do procedimento de inspeção tributária visa “essencialmente a organização do sistema, e consequentemente a garantia da proporcionalidade aos fins a atingir, da segurança dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários e a própria participação destes na formação das decisões.”.

Ou seja, a regulamentação do procedimento de inspeção tributária, tem, em primeira linha, uma finalidade essencialmente organizatória (ordenatória) e, na perspetiva dos sujeitos passivos, visará essencialmente definir quais as condições em que os efeitos jurídicos próprios de tal procedimento se refletirão, eficazmente, na sua esfera jurídica, para além de assegurar a sua participação nas decisões que venham a ser tomadas.

Relativamente a este último aspecto, diga-se desde já que, atento princípio geral da participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, consagrado no artigo 60.º da LGT, sempre estaria o essencial dos interesses juridicamente relevantes daqueles, na matéria, devidamente salvaguardados, independentemente da concreta regulamentação do procedimento de inspeção tributária. Acresce, ainda a este propósito, que o procedimento de inspeção tributária não tem, primacialmente, uma natureza decisória (daí que, por exemplo, o respectivo ato final – o relatório – não seja diretamente impugnável, na medida em que não é, em si mesmo, lesivo), mas meramente preparatória ou acessória[4], pelo que a necessidade de salvaguarda da participação dos contribuintes “na formação das decisões”, no seu âmbito, será altamente diminuta.

Deste modo, a principal finalidade, sempre na perspectiva dos sujeitos passivos, da regulamentação do procedimento de inspeção tributária, e da respetiva observação pela Administração Tributária, residirá na fixação dos condicionalismos legalmente necessários para que se reflitam eficazmente na esfera jurídica dos contribuintes, os efeitos jurídicos próprios do procedimento em questão, maxime a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação dos tributos pela Administração, nos termos do artigo 46.º/1 da LGT, bem como a sujeição dos visados às garantias e prerrogativas da inspeção tributária (artigos 28.º e 29.º do RCPIT), e à aplicação de medidas cautelares (artigos 30.º e 31.º do RCPIT).

Assim, e no seguimento do que se vem de expor, entende-se que a violação de normas reguladoras do procedimento de inspeção tributária, terá, essencialmente, a consequência de obstar a que ocorram determinados efeitos próprios daquele procedimento, como a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação de tributos, ou a obrigação de abertura das instalações dos visados à inspeção tributária.

Em suma, entende-se que o procedimento de inspeção tributária não visa tutelar a participação do contribuinte no processo de recolha de informações e elementos pela Administração Tributária, nem, muito menos, obrigar a que esta instaure tal procedimento, para proceder à recolha de informações e elementos que lhe seja lícito obter, nos termos gerais do ordenamento jurídico, fora daquele procedimento. De igual modo, o procedimento de inspeção tributária não visará, em primeira linha[5], pelo menos, assegurar, pela sua observância, a fidedignidade ou idoneidade da informação ou elementos recolhidos.

Este, de resto, tem sido o entendimento do STA, podendo consultar-se a este respeito o Ac. proferido no processo 0955/07, em 27-02-2008, em cujo sumário se lê:

“Os procedimentos inspectivo e de liquidação são distintos entre si, ainda que este tenha carácter meramente preparatório ou acessório, o que não significa que as ilegalidades nele cometidas se projectem, fatalmente, na liquidação, invalidando-a.”.”

            Verifica-se, assim, que a realização de uma segunda acção de inspecção externa, visando o mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, sem decisão fundamentada do dirigente máximo do serviço, baseada em factos novos, em violação do disposto no artigo 63.º/3 da LGT, na redacção aplicável, não se projecta “fatalmente, na liquidação, invalidando-a”, mas, simplesmente, preclude o segundo procedimento de produzir os efeitos que lhe seriam próprios, enquanto acção inspectiva externa, como sejam, por exemplo, a suspensão do prazo de caducidade, nos termos do artigo 46.º/1 da LGT, as garantias do exercício da função inspectiva, reguladas nos artigos 28 e ss. do RCPITA, o que será não só suficiente, mas também adequado, à salvaguarda dos interesses em causa, correctamente detectados pela Requerente, quando afirma que a norma em causa visa evitar que o “mesmo sujeito passivo seja sobrecarregado mais que um vez com os incómodos que as acções de fiscalização externas são susceptíveis de lhe provocar”.

            No entanto, e porventura por isso mesmo, a Requerente alega um outro dado, já atrás assinalado, referindo que, no fundo, para além da duplicação formal de procedimentos, terá havido uma duplicação material, com a reanálise dos mesmos elementos, para chegar a conclusões opostas, louvando-se, no que à sua pretensão de anulação das liquidações sub iudice diz respeito, no decidido no acórdão arbitral proferido no processo 14/2012-T do CAAD.

            Sucede que a situação ora em causa, não se apura idêntica à apreciada naqueles autos. De facto, ali, depois de elaborado Relatório de inspecção tributária, foi efectuada uma “reanálise dos elementos recolhidos durante o procedimento de inspecção externa e elaborado um novo relatório”, tendo sido considerado que a “«reanálise dos papéis de trabalho produzidos aquando da inspecção ao ano de 2001» não configura um novo procedimento de inspecção externa com a totalidade da tramitação prevista no RCPIT, mas, devendo qualificar-se os actos praticados como sendo de um procedimento de inspecção externa, não pode deixar de se concluir que ela implica uma reabertura do procedimento de inspecção externa relativo ao ano de 2001”, concluindo-se que não haveria “qualquer cobertura legal para” tal “reabertura do procedimento”, reconhecendo-se, por isso, à ali Requerente “razão ao invocar falta de previsão legal para «reabrir, reanalisar, modificar ou promover aditamentos a quaisquer relatórios de inspecção finalizados, concluídos, fechados (e com eles, fechado também o procedimento inspectivo em causa)» (art. 28.º do pedido de constituição do tribunal arbitral), como fundamento de ilegalidade da referida «reanálise».”.

            Ora, no presente caso, não se verifica que o primeiro procedimento de inspecção tenha culminado na elaboração de qualquer relatório final, que, analisando os elementos recolhidos deles tirasse qualquer conclusão, pelo que não se pode ratificar o afirmado pela ora Requerente, segundo a qual teria havido uma “definição jurídica da sua situação efectuada na sequência da conclusão do procedimento de inspecção externo”, pelo que o segundo procedimento inspectivo “ofende o direito da Requerente a não ver alterada a situação jurídica definida na sequência da primeira acção inspectiva”.

            Com efeito, como se escreveu no referido acórdão arbitral 14/2012-T, “A análise dos elementos recolhidos durante a acção de inspecção externa integra-se no âmbito do procedimento de inspecção, pois ele tem de culminar com um relatório em que têm de ser identificados e sistematizados os factos detectados e sua qualificação jurídico-tributária, inclusivamente a «descrição dos factos fiscalmente relevantes que alterem os valores declarados ou a declarar sujeitos a tributação, com menção e junção dos meios de prova e fundamentação legal de suporte das correcções efectuadas» [art. 63.º, n.º s 2 e 3 alínea i), do RCPIT, relativo à «conclusão do procedimento de inspecção»].”, sendo que, no caso, e como se disse, não se verifica que o referido relatório tenha sido elaborado, pelo que inexiste qualquer análise, como pressuposto pela alegação da Requerente de que no segundo procedimento inspectivo se terá concluído “em sentido diametralmente oposto ao que resultava da primeira análise”.

            Deste modo, face ao exposto, entendendo-se que a violação do artigo 63.º/3 da LGT, na redacção aplicável, só por si, não se projecta “fatalmente, na liquidação, invalidando-a”, e não se apurando, em contraciclo com o alegado pela Requerente, que no âmbito da primeira acção inspectiva se tenha efectuado qualquer relatório, retirando conclusões dos elementos recolhidos, que tenham sido contrariadas no relatório final da segunda acção inspectiva, deverá improceder o primeiro vício imputado por aquela, aos actos tributários sub iudice.

 

*

            ii. da caducidade do direito à liquidação

            Seguidamente, alega a Requerente que se verificará a caducidade do direito à liquidação, porquanto:

-          “Na redacção à data dos factos, dispunha o n.º 1 do artigo 45.º da LGT, que o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.”;

-          “Por seu turno, dispunha ainda o n.º 4 do mesmo artigo 45.º da LGT que o referido prazo de caducidade se conta, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário.

-          “qualquer liquidação correctiva do imposto declarado pela REQUERENTE, por parte da Administração tributária, teria, sob pena de caducidade, de ser notificada àquela até ao dia 31 de Dezembro de 2010.”;

-          Como o referido prazo “se suspendeu por efeitos da apresentação do recurso judicial - no dia 9 de Dezembro de 2010 -, faltavam 21 dias para que se completasse o prazo de caducidade que em situação normal aconteceria em 31 de Dezembro desse ano.”;

-          A “decisão do Tribunal Central Administrativo Sul que pôs termo ao processo, com trânsito em julgado (por dela não caber qualquer recurso), foi proferida em 23 de Julho de 2012.”;

-          A “notificação da liquidação do tributo só ocorreu em 10 de Setembro de 2012.”.

Contrapõe a AT que “No caso dos autos, resulta evidente que o direito à liquidação respeita a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, uma vez que ambos os processos, quer a acção inspectiva quer o processo de inquérito, visam matéria de facto referente a rendimentos obtidos em 2005 que indevidamente tenham escapado a tributação”, pelo que “o efeito suspensivo previsto no nº 5 do art. 45º da LGT, ao alargar o prazo de caducidade do direito a liquidar imposto, acautelou, por um lado, o direito da AT a liquidar imposto com base em elementos apurados em sede de processo de inquérito, dos quais não tenha tido conhecimento, e também acautelou, por outro lado, a liquidação de imposto com base em factos apurados pela inspecção tributária no mesmo prazo”.

            A este respeito, dispõe o referido artigo 45.º/5 da LGT que:

Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o no 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano.

            Como se escreveu no Acórdão do STA de 01-10-2014, proferido no processo 0178/14[6], “A contagem do prazo de caducidade do direito de liquidar tributos nos termos do art. 45º, nº 5, da LGT, só ocorre se o acto tributário de liquidação e a investigação criminal se referirem aos mesmos factos.”.

            No referido Acórdão louvou-se no parecer do Exm.º Sr. Procurador Geral Adjunto[7], que apontou, para além do mais, que “tem que haver uma correspondência entre os factos objecto de investigação no processo-crime e os factos que constituíram fundamento para as correcções que deram origem à liquidação adicional” e que é necessário “aferir se tais correcções estão relacionadas com a matéria objecto de investigação no processo-crime”.

Também no Acórdão do TCA-Norte de 18-01-2012, proferido no processo 00670/08.1BEBRG, se havia considerado que “para que se verifique esse alargamento do prazo de caducidade é imperioso que os factos tributários subjacentes à (s) liquidação (ões) em causa tenham sido objecto de uma investigação em sede criminal e quanto a eles instaurado inquérito criminal «O que se compreende, pois não havendo a exigida identidade dos factos investigados no âmbito do processo penal e aqueles que constituem pressuposto da liquidação, não se vislumbra de que forma a pendência daquele processo possa afectar o exercício do direito de liquidação dos tributos.» [cfr. Ac. do TCA Norte de 22 de Abril de 2010].”

            Também no recente Acórdão do TCA-Norte de 26-03-2015, proferido no processo 00478/12.0BEPRT, se reafirmou o entendimentos anteriores, considerando-se que “O alargamento do prazo regra de caducidade previsto no n.º5 do art.º45.º, da LGT pressupõe que as correcções que originaram a liquidação em causa assente em factualidade material investigada no âmbito de um inquérito criminal;”, salientando-se a necessidade de se “entender com (...) alcance restritivo, (...), a expressão “…respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal…”” do artigo 45.º, n.º5, da LGT.

            Não se vislumbram – nem a AT os aporta – motivos para divergir do entendimento jurisprudencial exposto.

            Considera-se assim, como referiu o STA, que será pressuposto da aplicação do artigo 45º, nº 5, da LGT, que o acto tributário de liquidação e a investigação criminal se refiram aos mesmos factos, em termos de haver uma correspondência entre os factos objecto de investigação no processo-crime e os factos que constituíram fundamento para as correcções que deram origem à liquidação adicional.

            Mais se reconhece, na senda do TCA-Norte, a necessidade de se “entender com (...) alcance restritivo, (...), a expressão “…respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal…”” do artigo 45.º, n.º5, da LGT, exigindo que os factos tributários subjacentes à liquidação tenham sido objecto de uma investigação em sede criminal, em termos de a pendência daquela afectar o exercício do direito de liquidação dos tributos.

            Ou seja, e em suma, julga-se que só operará a extensão do prazo de caducidade do direito à liquidação de tributos, a que se refere o artigo 45.º/5 da LGT, caso se demonstre que aquele direito estava – efectivamente e em concreto – condicionado pelo resultado da investigação criminal, indo assim ao encontro dos trabalhos preparatórios[8], pertinentemente recordados pela Requerente, e onde se pode ler que a “alteração do regime da caducidade do direito à liquidação dos tributos [foi] no sentido de se prever que, estando o correcto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal, aquele prazo é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da respectiva sentença, acrescido de um ano”.

            Aqui chegados, cumpre notar que sendo a AT quem se pretende prevalecer da norma em causa (da previsão do n.º 5 do artigo 45.º da LGT), seria ela quem, nos termos do artigo 74.º/1 da LGT, estava onerada com a demonstração de que, efectivamente e em concreto, “o correcto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal”, demonstração essa que não só não foi feita, como se indicia o contrário, na medida em que, justamente, a liquidação foi emitida bem antes de estar finda a investigação criminal.

            Deste modo, não estando demonstrados os pressupostos da referida norma do artigo 45.º/5 da LGT, não poderá operar o alargamento do prazo de caducidade ali consagrado.

            Por isso, no caso seria apenas de equacionar a eventual suspensão do prazo de caducidade nos termos do n.º 1 do artigo 46.º da LGT, questão que, todavia, não foi sequer suscitada pela própria AT a quem, nos termos do supra-referido artigo 76.º/1 da LGT, assistia o ónus da demonstração dos respectivos pressupostos.

            Nos termos da referida norma, “O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo do seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação”.

            Ora, no caso, e no que diz respeito à primeira das acções de inspecção externa realizadas, não se apura que haja ocorrido “notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa”.

            Por outro lado, e como se viu já, a segunda acção inspectiva externa, por ilegal – designadamente por falta de “decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço,” – é insusceptível de produzir os efeitos que lhe são próprios, maxime no que diz respeito à suspensão do prazo de caducidade.

            Deste modo, e por todo o exposto, tendo a liquidação objecto do presente processo sido emitida para lá do prazo de caducidade, será a mesma ilegal, por violação do artigo 45.º/1 da LGT, devendo como tal ser anulada, ficando, deste modo, prejudicada a questão relativa aos juros compensatórios, suscitada pela Requerente.

 

*

Cumula a Requerente com o pedido anulatório do acto tributário objecto dos presentes autos, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre a quantia por si paga na sequência dos actos tributários ora anulados.

É pressuposto da atribuição de juros indemnizatórios que o erro em que laborou a AT lhe seja imputável (cfr. artigo 43.º da LGT).

No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos actos tributários objecto do presente processo, pelas razões que se apontaram anteriormente, há lugar a reembolso do imposto suportado pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

É também claro nos autos que a ilegalidade do acto de liquidação de imposto impugnado é directamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal, quando o direito para o fazer havia já caducado.

Pelo exposto, a Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.

Os juros indemnizatórios são devidos à Requerentes desde data do pagamento, até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)      Anular os actos tributários de liquidação de IRS e Juros Compensatórios referentes ao ano de 2006, consubstanciados na liquidação de imposto n.º 2012 …, com data de 10/09/2012, liquidação de juros compensatórios n.º 2012 …;

b)      Condenar a AT a restituir o valor indevidamente pago pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data daquele pagamento até à data da sua integral restituição;

c)      Condenar a AT nas custas do processo.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 73.805,30, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

18 de Novembro de 2015

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Jorge Bacelar Gouveia)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Maria Forte Vaz)

 

 

 

 



[1] Disponível em www.caad.org.pt, tal como a restante jurisprudência arbitral citada, sem outra menção.

[2]  “CPPT – Anotado e Comentado”, Áreas Editora, 2006, Vol. I, p. 425.

[3] O que, para além do mais, integraria uma pronúncia extra petitum.

[4] “O procedimento de inspecção tributária tem um carácter meramente preparatório ou acessório dos actos tributários ou em matéria tributária” (artigo 11.º do RCPIT).

[5] Embora se possa dizer, contudo, que algumas normas da regulamentação em causa tenham preocupações a esse nível, designadamente as que dizem respeito a incompatibilidades dos funcionários (artigo 20.º do RCPIT). Não se poderá, todavia, deixar de ter em conta que tais normas são elas próprias manifestações de outras mais gerais, de índole análoga (em especial o artigo 44.º do CPA).

[6] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada, sem outra menção.

[7] “Como muito bem deixou explicado o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto no douto parecer acima referido - cuja argumentação não resistimos a seguir e a transcrever em face da sua clareza, justeza e rigor”.

[8] Actualização de Dezembro de 2005 do Programa de Estabilidade e Crescimento apresentado pelo XVII Governo Constitucional.