Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 119/2015-T
Data da decisão: 2015-10-26  IRS  
Valor do pedido: € 190.472,62
Tema: IRS - Retenção na Fonte, Responsabilidade Solidária, Liquidação
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Decisão Arbitral

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Sérgio de Matos e Magda Feliciano, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 20 de Fevereiro de 2015, A… - …, S.A.. pessoa colectiva n.º …, sede na Rua …, n.º …., …., … ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de IRS (Retenção na fonte) n.º 2011 … e dos correspondentes Juros Compensatórios n.ºs 2011 … a 2011 …, praticados por referência ao ano de 2009, e, bem assim, contra a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, notificada por Despacho da Senhora Subdirectora Geral dos Impostos, de 24 de Outubro de 2014.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que os referidos actos tributários enfermam dos seguintes vícios:

                                                              i.      Vício de forma por falta de fundamentação;

                                                            ii.      Preterição de formalidades legais por omissão do exercício do direito de audição prévia à emissão das liquidações;

                                                          iii.      A inexistência do facto tributário;

                                                          iv.      A violação de diversos princípios constitucionais, a saber:

a.       da capacidade contributiva;

b.      da igualdade fiscal;

c.       da proporcionalidade em sentido amplo;

d.      da coerência do sistema fiscal;

                                                            v.      A ilegalidade do procedimento inspectivo;

                                                          vi.      A ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios;

                                                        vii.      A indemnização por prestação de garantia indevida;

                                                      viii.      A ilegalidade do despacho de indeferimento do recurso hierárquico.

 

  1. No dia 23-02-2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 15-04-2015, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 04-05-2015.

 

  1. No dia 03-06-2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por impugnação.

 

  1. Por requerimento apresentado a 06-08-2015, a Requerente pediu o aproveitamento, nos presentes autos, do depoimento prestado pela testemunha B, no processo 118/2015T do CAAD.

 

  1. Notificada para se pronunciar a esse propósito, a AT nada opôs ao referido aproveitamento.

 

  1. Ao abrigo do disposto no artigo 421.º do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 29.º/1/e) do RJAT, deferiu-se o requerido aproveitamento do depoimento da testemunha supra-referida, prestado no processo 118/2015T do CAAD.

 

  1. Atendendo a que não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, ao abrigo do disposto nos art.ºs 16.º/c), 19.º e 29.º/2 do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis, dispensou-se a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      A Requerente é uma sociedade anónima que se dedica à actividade de cedência temporária a favor de empresas utilizadoras de trabalhadores que, para esse efeito, a Requerente, contrata e remunera.

2-      Neste âmbito, existe uma relação de trabalho de carácter triangular, entre a Requerente, na qualidade de empresa de trabalho temporário, o trabalhador temporário com quem a Requerente celebra o contrato de trabalho temporário, e a empresa utilizadora que, mediante um contrato de utilização do trabalhador temporário que celebra com a REQUERENTE, ocupa o trabalhador temporário sob a respectiva autoridade e direcção.

3-      No âmbito do exercício da sua actividade, a Requerente celebrou diversos contratos de trabalho temporário com trabalhadores temporários, nos quais foi estipulado o local onde os trabalhadores em causa iriam desempenhar as respectivas funções, sendo também aí expressamente previsto o pagamento de, para além da remuneração mensal base, determinadas importâncias a título de ajudas de custo.

4-      Em l de Julho de 2011, teve início uma acção inspectiva nos termos constantes da Ordem de Serviço n.º … 2011…, de âmbito geral, abrangendo os exercícios de 2008 e de 2009.

5-      A acção inspectiva teve origem no facto de os custos com pessoal patentes no Anexo A da IES, serem significativamente superiores aos valores constantes no Anexo J, entregues pelo sujeito passivo, adicionados do valor da contribuição para a Segurança Social, encargo do contribuinte, e consequentemente aos valores totais declarados pelos diversos funcionários com rendimentos da Categoria A de IRS, pagos nos anos de 2008 e 2009.

6-      No âmbito do procedimento inspectivo em causa, e conforme resulta do relatório de inspecção, a Administração tributária entendeu requalificar os montantes atribuídos aos trabalhadores temporários da Requerente a título de ajudas de custo como rendimento do trabalho dependente, Categoria A de IRS.

7-      Assim, constatou e considerou a Inspecção Tributária que:

a.       Foram contabilizadas na subconta POC 64 - Custos com pessoal, verbas pagas a título de ajudas de custo aos funcionários, no valor de € 1.023.589,98 (2008), e de € 1.291.025,04 (2009), excluindo as que foram consideradas rendimentos da Categoria A de IRS;

b.      Relativamente aos rendimentos do trabalho dependente (Categoria A de IRS), foram declarados valores de €1.235.549,68 (2008), e de €1.863.780,49 (2009);

c.       O total das ajudas de custo não consideradas como rendimentos da Categoria A de IRS, representava 83% em 2008, e 69% em 2009, do total dos rendimentos que a «A» considerou como rendimentos da Categoria A;

d.      Os contratos de trabalho celebrados pela «A» com os trabalhadores temporários estabeleciam qual o local de trabalho do trabalhador temporário, local este que corresponderá ao local de trabalho necessário previsto no DL. n.º 106/98, de 24 de Abril, e DL. n.º 192/95, de 28 de Julho, diplomas que regiam o abono de quantias a título de ajudas de custo aplicado ao pessoal da Administração Pública;

e.       Nos contratos de prestação de serviços celebrados com os seus clientes, não se identificavam os trabalhadores cedidos, ficando estabelecido o salário de referência para cada categoria de trabalhador (tudo incluído), bem como o valor hora a facturar pela «A» por categoria por cada trabalhador cedido;

f.       Nas facturas emitidas aos seus clientes, a «A» não mencionava o número de trabalhadores cedidos, não identificava os mesmos, não discriminava os valores facturados a título de prestação de serviços e a título de ajudas de custo para cada uma delas, constando das suas faturas apenas uma única rubrica "Cedência de pessoal para trabalhos na vossa obra n. º ---", com a indicação do período a que respeitava a facturação, sendo que na zona inferior das suas facturas surge um carimbo com o título "Declaração" seguido do seguinte texto "Para efeitos do dispositivo na alínea f) do artigo 42° do CIRC, nova redação dada pelo n.º 1 do art. 30º da Lei n.º 87-8/98, de 31 de Dezembro, declaramos que a presente fatura inclui de forma expressa Ajudas de Custo no montante de", surgindo aposto manualmente, num espaço para o efeito o valor de ajudas de custo tidas como incluídas no total faturado;

g.      A «A» possuía boletins itinerários mensais elaborados pela própria empresa e sem a assinatura dos funcionários a que respeitam, identificando o trabalhador (nome e categoria profissional) e demonstrando os dias, tipo de serviço, o local e compensação diária que originaram a sua atribuição;

h.      Grande parte das referidas ajudas de custo visavam compensar os trabalhadores por deslocações por estes efetuadas aos seus domicílios necessários, localidades nas quais aceitaram contratualmente exercer a sua actividade laboral, pelo que foi considerado que as mesmas consubstanciam remunerações efetivas nos termos da al. d) do n.º 3 do art. 2º do CIRS, conjugada com o DL. n.º 106/98, de 24 de Abril, que deveriam ter sido, aquando da sua atribuição, alvo de retenção na fonte, sendo a «A», nos termos do n.º 4 do artigo 103º do CIRS;

i.        A compensação por deslocação em serviço só se verifica se determinado trabalhador, de determinada empresa, possuindo um determinado local de trabalho, tiver que se deslocar ao serviço da empresa a outro local, não contratualmente fixado, para ai, excepcionalmente, realizar, qualquer tarefa ou função, e regressar depois ao seu local de trabalho contratualmente fixado, o que não é manifestamente o caso;

j.        Dado que a «A» e os trabalhadores sabiam que o local de trabalho iria ser num local distinto da residência do trabalhador ou até mesmo num país estrangeiro, ao assinarem os contratos de trabalho tiveram a oportunidade de ajustar o salário em função dessa condicionante, não relevando para o efeito a residência do trabalhador, a sede da empresa de trabalho temporário ou a sede da empresa utilizadora de trabalho temporário, pelo que não foram despesas efectuadas ao serviço e em favor da entidade patronal;

k.      As referidas verbas não eram susceptíveis de serem consideradas ajudas de custo, mas antes configuravam efectivas remunerações de trabalho sujeitas a IRS;

l.        Foram analisados os contratos de trabalho celebrados nos exercício de 2008 e 2009, e retirados dos mesmos o local de trabalho estabelecido em cada um deles, local este, que corresponderia ao local de trabalho habitual conforme o DL. n.º 106/98, de 24 de Abril, e DL. n.º 192/95, de 28 de Julho, depois foram analisados os boletins itinerários de todos os trabalhadores que auferiram verbas a titulo de "ajudas de custo", verificando-se quais os que correspondiam a dias de deslocações ao local de trabalho estabelecidos nos contratos de trabalho, e os que correspondiam a dias de deslocações a locais distintos do local estabelecido nos contratos de trabalho, análise que foi realizada com a diretora técnica da «A»;

m.    Foram ainda considerados, por subtracção ao valor das ajudas de custo tributáveis, resultantes desta análise, os dias de subsídio de alimentação correspondentes aos dias em que nos termos legais as compensações pagas a título de "ajudas de custo" foram considerados rendimentos da Categoria A, pelo que resultaram correções no valor total de € 112.868,00 (2008), e de € 173.420,00 (2009).

8-      Em consequência, e no que respeita ao ano de 2009, a Administração tributária considerou que se encontrava em falta IRS, não retido na fonte pela Requerente, no montante de €173.420,00.

9-      A 13-12-2011, Requerente exerceu o Direito de Audição no âmbito do procedimento inspectivo.

10-  A Requerente foi notificada, em 3 de Janeiro de 2012, dos actos de liquidação de IRS (Retenção na fonte) n.º 2011 … e dos correspondentes Juros Compensatórios n.ºs 2011 … a 2011 …, praticados por referência ao ano de 2009.

11-  A Requerente deduziu reclamação graciosa e, perante o indeferimento desta, o correspondente recurso hierárquico, peticionando a anulação dos referidos actos tributários.

12-  Por Ofício n.º …, datado de 24 de Novembro de 2014, remetido via fax recepcionado no dia 25 de Novembro de 2014, a Requerente foi notificada do Despacho da Senhora Subdirectora-Geral dos Impostos, de 24 de Outubro de 2014, que determinou o indeferimento do recurso hierárquico interposto.

13-  Como não foi efectuado o pagamento do montante subjacente às liquidações notificadas, no prazo de pagamento voluntário fixado para o efeito, o Serviço de Finanças de ... - … instaurou o competente processo de execução fiscal n.º …2012…, tendo em vista a cobrança coerciva da dívida de imposto e juros compensatórios, no valor total de €190.472,62.

14-  Na sequência da notificação do valor da garantia idónea a prestar para efeitos de suspensão do referido processo de execução fiscal, a Requerente prestou a garantia bancária n.º …, emitida pelo Banco Espírito Santo, no dia 29 de Março de 2012, no montante de €241.139,00.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não foram dados como provados ou não provados quaisquer factos relacionados com os pontos 59, 85, 87, 89, 90, 101 e 102 do Requerimento Inicial da Requerente, porquanto contém estritamente matéria conclusiva, a validar, ou não, perante a interpretação do quadro legal aplicável, na medida em que tenha relevância para a decisão da causa.

 

 

B. DO DIREITO

 

            Conforme já atrás referido, suscita a Requerente a seguinte ordem de questões:

                                                              i.      Vício de forma por falta de fundamentação;

                                                            ii.      Preterição de formalidades legais por omissão do exercício do direito de audição prévia à emissão das liquidações;

                                                          iii.      A inexistência do facto tributário;

                                                          iv.      A violação de diversos princípios constitucionais, a saber:

a.       da capacidade contributiva;

b.      da igualdade fiscal;

c.       da proporcionalidade em sentido amplo;

d.      da coerência do sistema fiscal;

                                                            v.      A ilegalidade do procedimento inspectivo;

                                                          vi.      A ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios;

                                                        vii.      A indemnização por prestação de garantia indevida;

                                                      viii.      A ilegalidade do despacho de indeferimento do recurso hierárquico.

Não tendo sido arguidos vícios que conduzam à nulidade ou inexistência dos actos impugnados, o Tribunal seguirá ordem indicada pela Requerente, nos termos do artigo 124.º/2/b) do CPPT.

Vejamos então.

 

*

i. Da falta de fundamentação

            A este respeito, alega a Requerente, em suma, que “do acto tributário objecto do presente pedido de pronúncia arbitral não consta qualquer referência, expressa ou implícita, a Relatório da Inspecção Tributária, ou a outro qualquer documento concreto para que remeta clara e expressamente, pelo que, não constando do próprio acto a fundamentação legalmente exigida - ou seja, a demonstração dos pressupostos de que depende a liquidação-, também não se pode entender, no caso vertente, que esta se tem por cumprida por remissão para um outro qualquer documento, que não vem aí identificado”.

            Assim, conclui a Requerente, “que os actos de liquidação de imposto e de juros compensatórios ora contestados foram praticados com ofensa das normas e princípios jurídicos aplicáveis, designadamente o artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e o artigo 77.º da Lei Geral Tributária, devendo ser anulados em conformidade.

Como é sabido, e ambas as partes o reconhecem, a fundamentação é uma exigência dos actos tributários em geral, sendo uma imposição constitucional (268º da CRP) e legal (art.º 77º da LGT).

            Resumidamente, pode dizer-se que é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência nacionais que a fundamentação exigível tem de reunir as seguintes características:

1.                            Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;

2.                            Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do acto, não podendo haver fundamentações diferidas;

3.                            Clareza: deve ser compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos;

4.                            Plenitude: deve conter todos os elementos essenciais e que foram determinantes da decisão tomada. Esta característica desdobra-se em duas exigências, a saber: o dever de justificação (normas legais e factualidade – domínio da legalidade) e de motivação (domínio da discricionariedade ou oportunidade, quando é preciso uma valoração).

Ora, se a fundamentação é, nos termos referidos, necessária e obrigatória, tal não pode nem deve ser entendido de uma forma abstracta e/ou absoluta, ou seja, a fundamentação exigível a um acto tributário concreto, deve ser aquela que funcionalmente é necessária para que aquele não se apresente perante o contribuinte como uma pura demonstração de arbítrio. Esta será – julga-se – a pedra de toque do cumprimento do dever de fundamentação: quanto, perante um destinatário médio colocado na posição do destinatário real, o acto tributário se apresente, sob um ponto de vista de razoabilidade, como um produto do puro arbítrio da Administração, por não serem discerníveis os motivos de facto e/ou de direito em que assenta, o acto padecerá de falta de fundamentação.

            O artigo 77.º/1 da LGT refere, assim, que: “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.”.

            Paralelamente, artigo 66.º/2 do CIRS dispõe que “A fundamentação deve ser expressa através de exposição, ainda que sucinta, das razões de facto e de direito da decisão, equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a sua motivação.”.

            Descendo ao caso concreto, verifica-se que os actos de liquidação em questão ocorreram na sequência de acto inspectivo e em conformidade com o relatório de inspecção tributária homologado por despacho, relatório esse onde constam os fundamentos das liquidações em causa, que a Requerente, desde a reclamação graciosa, demonstrou compreender, tomando, de maneira fundada, a decisão de não aceitar.

            De resto, a própria Requerente acaba por conceder nisso mesmo – pelo menos de forma implícita – ao sustentar, também desde a reclamação graciosa, que a remissão para o relatório de inspecção deveria ser explícita.

            Contudo, este entendimento é, desde logo, contrariado pelo Acórdão do STA de 19-05-2004, proferido no processo 0228/03[1], citado pela própria Requerente, onde se lê que “Não vale como fundamentação a motivação apresentada posteriormente à prática do acto, nem a constante de peças instrutórias anteriores para as quais não tenha sido feita remissão, expressa ou implícita.”, admitindo-se, assim, que a remissão possa ser implícita, ou seja, decorrente do próprio contexto do acto tributário, ou do qual este emerge.

            Neste mesmo sentido, se orienta a jurisprudência do STA que considera que “Apesar da não indicação expressa do preceito legal aplicável, a exigível fundamentação de direito do acto tributário será suficiente com a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado, desde que, em qualquer caso, se possa concluir que aqueles eram conhecidos ou cognoscíveis por um destinatário normal colocado na posição em concreto do real destinatário.”[2].

            Deste modo, entende-se que, considerado o contexto concreto em que foram produzidos os actos de liquidação em questão nos presentes autos, será perceptível, para um destinatário médio colocado na posição do destinatário real, que os fundamentos daqueles são os constantes do relatório de inspecção que os precedeu, sendo certo que mais se afigura evidente que a Requerente compreendeu isso mesmo.

            Este, de resto, tem sido o juízo dos nossos tribunais superiores em casos análogos, podendo a esse respeito conferir-se os Acórdãos do STA de 10-09-2014, proferido no processo 01226/13[3], do TCA-Norte de 13-09-2012, proferido no processo 00334/05.8BEBRG[4], e do TCA-Sul de 23-05-2006, proferido no processo 01156/06[5] (citado pela AT).

            Assim, e deste modo, nada haverá a censurar, na perspectiva do dever de fundamentação, aos actos tributários objecto do presente processo.

 

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ii. Do dever de audição prévia

 

            Quanto a esta matéria, alega a Requerente, em suma, que não foi “notificada nos termos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º. da Lei Geral Tributária”.

            Contudo, e como se constata dos factos dados como provados, o certo é que a Requerente foi notificada para exercer o seu direito de audiência prévia, o que fez, no âmbito do procedimento inspectivo do qual resultaram as liquidações contra as quais se insurge.

            Deste modo, e tendo em conta o disposto no artigo 60.º/3 da LGT, estava dispensada a audição da Requerente antes da liquidação, pelo que deve, também, este vício se dar por não verificado.

 

*

iii. Da inexistência do facto tributário

 

            Alega a Requerente, a este respeito, que “a Administração tributária sustentou a emissão da liquidação supra identificada, referindo que o substituído - enquanto único titular e beneficiário do rendimento em causa -, não deve ser tributado na sua esfera tributária pessoal, através de liquidação oficiosa nesse sentido”, e que “tendo a liquidação sido emitida e notificada à REQUERENTE, como sucedeu no caso em apreço, a Administração tributária pretendeu converter o substituto em substituído, como se fosse o primeiro o efectivo titular ou beneficiário do rendimento que pretendeu tributar adicionalmente”.

            Conclui a Requerente que “a liquidação ora contestada deveria ter sido notificada não à REQUERENTE (substituto), como sucedeu efectivamente, mas a cada um dos trabalhadores (substituído), na sua qualidade de sujeito passivo do imposto e responsável originário pelo pagamento do imposto não retido.”, e que “Sendo o substituído o verdadeiro titular do rendimento sujeito a tributação, mais especificamente das verbas agora requalificadas pela Administração tributária como rendimento do trabalho dependente, é a sua situação tributária que carece de correcção, devendo a liquidação do imposto em falta ser-lhe dirigida”, pelo que, ao “Emitir e notificar a liquidação de imposto à REQUERENTE, como sucedeu no caso em apreço, significa converter o substituto em substituído, como se fosse titular ou beneficiário do rendimento que se pretende tributar.

            Como se refere no parecer junto ao processo pela Requerente, a “solidariedade tributária é uma instituto “importado” do direito privado, mais especificamente do direito civil, cujas especificidades no direito fiscal estão pouco estudadas pela doutrina e não têm por suporte um regime legal próprio”, sendo também escasso o tratamento jurisprudencial do instituto em questão.

            Neste quadro, o intérprete terá que, à luz dos critérios legais que o guiam, fazer um especial esforço de concatenação dos vários normativos relevantes, em ordem a poder sustentar conclusões susceptíveis de clarificar os contornos jurídicos do regime legal em causa.

            Nos termos da LGT podemos distinguir dois tipos de solidariedade tributária, com especificidades próprias suficientes para justificar tratamentos distintos entre ambas.

            Assim, e por um lado, temos a solidariedade que ocorre “quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, denominada, pelo artigo 21.º da LGT, como “solidariedade passiva”, e que se poderá designar, igualmente, como “originária”, na medida em que existe uma ligação directa dos obrigados solidários, ao facto gerador da obrigação de imposto.

            Por outro lado, detecta-se na LGT um outro tipo de solidariedade, que se poderá, à luz da sistemática desta, qualificar como “não originária”, e que se reporta à responsabilização de terceiros pela dívida tributária do sujeito passivo originário, conforme genericamente previsto no artigo 22.º/2 daquela Lei. Aqui, ao contrário da solidariedade originária a que se reporta o artigo 21.º, “os pressupostos do facto tributário” não se verificam em relação ao responsável solidário, uma vez que este não é – por definição – sujeito passivo originário.

            Que este tipo de casos – do artigo 22.º/2 da LGT – é distintos do primeiro – a que alude o artigo 21.º da mesma Lei, não restarão dúvidas, já que nesta última situação, em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, todos os obrigados serão sujeitos passivos originários do imposto, na medida em que, justamente, os pressupostos do facto tributário se verificam em relação a todos eles, enquanto que na hipótese a que alude o artigo 22.º/2 da LGT, confessadamente, estão em causa terceiros, que não o sujeito passivo originário do imposto.

            Ou seja: nos casos em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, como, por exemplo, na tributação do agregado familiar em sede de IRS, teremos uma situação de solidariedade tributária originária; nos casos em que “os pressupostos do facto tributário” não se verificam em relação ao responsável solidário, mas que, por força da lei, aquele é solidariamente responsável pela dívida tributária, e eventuais acessórios, do devedor originário – como acontece no caso dos gestores de bens ou direitos de não residentes – teremos uma situação de solidariedade tributária não originária.

            A análise da distinção entre aqueles dois tipos de solidariedade tributária que resultam da LGT, não carece de ser iniciado do zero, já que a doutrina civilística, estudiosa da matéria de longa data, detectou já a comunhão de fim das obrigações solidárias, como um dado incontornável a ter em conta na matéria, sendo tido, inclusivamente, como um pressuposto da genuína solidariedade[6].

            Trata-se de casos que têm por objecto a mesma prestação e em que ao credor é reconhecida a faculdade de exigir de qualquer dos devedores a prestação integral, mas que escapam ao regime regra da solidariedade.

            Exemplos deste tipo de situações, são o caso do operário atropelado em serviço, que poderá exigir a indemnização quer ao atropelante, quer à entidade patronal; o caso do comerciante furtado, que poderá exigir a reparação do prejuízo quer ao ladrão, quer ao vigilante que, negligenciou os seus deveres de vigia; ou o caso da vítima de incêndio, que poderá exigir a reparação do prejuízo quer ao incendiário, quer à seguradora que previamente contratou para cobrir esse risco.

            Nota característica destas situações, é que o cumprimento da obrigação perante o credor por um dos devedores, em certos casos extingue a responsabilidade dos restantes, enquanto que noutros não. Assim, se, nos exemplos supra, o atropelante, o ladrão ou o incendiário reparem os danos, a entidade patronal, o vigilante ou a seguradora, respectivamente, ver-se-ão exonerados de qualquer obrigação; já se forem estes últimos a satisfazerem, perante o credor, a obrigação que lhes cabe, a obrigação dos restantes permanecerá, respondendo eles pela totalidade da obrigação, perante o devedor que cumpriu perante o credor[7].

            Como conclui o Ilustre Mestre Antunes Varela[8], “quando, na intenção das partes ou no espírito da lei, exista comunhão de fim a unir as obrigações, ou seja, colaboração dos devedores ao serviço do mesmo interesse do credor, há solidariedade; quando, pelo contrário, não há comunhão de fim, mas simples coincidência de fins das prestações, assente uma disjunção ou num escalonamento sucessivo das obrigações, falta a solidariedade (havendo apenas uma pluralidade de obrigações independentes, destinadas à satisfação do mesmo interesse do credor), embora alguns preceitos das obrigações solidárias possam ser aplicados, por analogia, ao tratamento jurídico de tais situações.”

            Retornando ao domínio do direito fiscal, e aplicando aqui a doutrina que se vem de referir, concluir-se-á que nas situações que acima se designaram como de solidariedade originária, estaremos perante casos de verdadeira comunhão de fim, fundada na comunhão do próprio facto tributário, justificativa da aplicação directa dos preceitos civis relativos à solidariedade.

            Já nas situações que acima se designaram como de solidariedade não-originária, o que verificará é a referida coincidência de fins, como, retornando ao exemplo dos gestores de bens ou direitos de não residentes, decorre da circunstância de o cumprimento da obrigação pelo sujeito passivo originário (não residente, no exemplo) exonerar o responsável solidário (gestor, no mesmo exemplo), enquanto que o cumprimento pelo responsável solidário (gestor), não exonerará o sujeito passivo originário da sua obrigação (que persistirá, agora, perante aquele, por via do direito de regresso), o que poderá justificar a aplicação, por via da analogia, das partes do regime geral da solidariedade, na medida em que tal se justifique.

            Pode-se concluir, assim, face ao quadro legal positivo, com suficiente segurança, que as diferenças entre os dois tipos de solidariedade tributária detectada, relacionados essencialmente com as circunstâncias de:

-                          num deles (artigo 21.º da LGT) haver uma comunhão no facto tributário entre os devedores (que, como tal, assumirão a qualidade de sujeitos passivos originários do imposto), com a consequente existência de um nexo relacional entre eles, em termos de o cumprimento da obrigação tributária por qualquer deles, gerar o direito de regresso do cumpridor sobre os restantes;

-                          enquanto noutro (artigo 22.º/2 da LGT), o facto tributário se verifica apenas quanto a um devedor (ou, academicamente, a um grupo de devedores), que se assume como sujeito passivo originário, pelo que, cumprindo este a obrigação tributária, nenhum direito lhe caberá contra os restantes, que, por seu lado, cumprindo, poderão exigir do(s) devedore(s) originário(s) o pagamento de quanto lhes foi imposto pagar.

são justificativas de um tratamento distinto, na medida em que as diferenças verificadas o justifiquem.

            Descendo, então à situação concreta em questão nos autos, verifica-se que está em causa a aplicação do artigo 103.º/4 do CIRS vigente à data do facto tributário (ano de 2009), que dispunha que:

“Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido.”.

            Como decorrerá pacificamente, julga-se, da hipótese a que se aplica o normativo em questão, em causa estará um daqueles casos que se reconduz à previsão do artigo 22.º/2 da LGT, ou seja, em que, por um lado, os pressupostos do facto tributário não se verificam em relação ao substituto (responsável solidário), e em que, por outro, o pagamento do imposto pelo sujeito passivo originário, exonerará o responsável solidário de qualquer responsabilidade quanto a este.

            Estamos aqui, portanto, perante um caso em que o titular do rendimento sujeito a IRS, e substituído, é o responsável originário (em consonância com a primeira parte do artigo 28.º, n.º 2, da LGT) e em que a responsabilidade tributária (cfr. artigo 22.º, n.ºs 1 e 2 da LGT) do substituto é, não subsidiária, conforme regra do artigo 22.º/4 da LGT, reafirmada na segunda parte do n.º 2 do artigo 28.º da LGT, mas solidária.

            Aplicando ao caso concreto o quanto acima se expôs, entende-se que, no caso concreto, desde logo, o procedimento de liquidação e, sobretudo, o consequente acto de liquidação, deveriam ter sido dirigidos (pelo menos também) contra o responsável originário – os substituídos, titulares dos rendimentos sujeitos a imposto – e não unicamente contra o responsável solidário. Com efeito, não estando aqui em causa uma situação abrangida pelo artigo 21.º/1 da LGT, ou seja, em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação” ao responsável solidário, inexiste, na esfera deste, facto tributário, pelo que a liquidação terá de ser feita na esfera do sujeito passivo originário, de acordo com as normas próprias do imposto em causa (no caso, o IRS), e ainda que com a participação no procedimento respectivo (de liquidação) do responsável solidário, ao abrigo do disposto no artigo 9.º/2 do CPPT.

            Assim, e como resulta da leitura da norma do artigo 103.º/4 do CIRS, em causa, o substituto é responsabilizado solidariamente pelo imposto não retido e não pelas importâncias não retidas. Com efeito, não se poderá – e o legislador não o faz[9] – confundir imposto com importâncias retidas por conta daquele.

            Com efeito, como se escreveu ainda no recente Acórdão do STA de 23-09-2015, proferido no processo 0997/15:

O imposto sobre o rendimento de pessoas singulares é um imposto que, como a sua denominação indica é devido por pessoas singulares, incidindo sobre o valor anual dos rendimentos por estas auferidos ao longo do ano, artº 1º do Código de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares.

A retenção na fonte não é um imposto, mas um mecanismo de cobrança, instituído pelo sistema fiscal português com o objectivo de aumentar a eficácia na cobrança do imposto (IRS). Pela utilização de tal mecanismo, o Estado recebe, mensalmente, por conta do imposto que será devido no final de cada ano pelos trabalhadores por conta de outrem ou trabalhadores que prestem serviços e que não estejam abrangidos pelo regime de isenção uma parte do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares que a estas compete pagar.

Para o sujeito passivo de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares trata-se de um pagamento antecipado do imposto que é devido no final de cada ano. Para a entidade que procede à sua retenção trata-se de uma dívida tributária e não do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares. Esta apenas procede ao desconto no vencimento do trabalhador da quantia que o estado tem a receber em sede de tributação de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares desse trabalhador, incumbindo-lhe a entrega desse valor ao estado. O mesmo ocorre quando a entidade a quem foi prestado um serviço retém do custo do serviço que deveria pagar ao prestador, e, para este seria rendimento tributável em sede de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares, o valor correspondente ao imposto sobre o rendimento de pessoas singulares.

Mas a empresa que procede à retenção na fonte não passa, por isso a ser tributada em sede de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares. Arrecada os valores de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares que são devidos pelos trabalhadores/ prestadores de serviço que deve entregar nos cofres do estado.

Assim, na presente situação não restarão dúvidas que o substituto pode ser responsabilizado solidariamente pelo imposto, que é aquilo que a lei refere, e não já pelas importâncias não retidas.

            Ora, o imposto, in casu, só é definido (só se torna líquido, certo e exigível) após a liquidação realizada, nos termos do CIRS, aos respectivos sujeitos passivos. Só aí é que vai ser determinado, nos termos legais, o quantum de imposto legitimamente exigível pelo credor tributário, e só aí, justamente, será determinável a extensão da responsabilidade solidária do substituto relapso, confrontando o valor dos montantes cuja retenção foi ilegalmente omitida, com o valor do imposto devido, havendo-o, restringindo-se a responsabilidade em questão, ao menor dos dois valores.

            Ou seja: entende-se que a responsabilidade decorrente da norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, devidamente interpretada no contexto sistemático em que se insere, consagra a responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido (e não pelas importâncias não retidas), daí decorrendo que se torna necessário, em primeiro lugar, determinar o quantum daquele, e só depois o valor da retenção devida.

            Assim, e concretizando, se estiver em falta uma retenção de 100, e, liquidado o imposto nos termos do CIRS, resultar, por exemplo:

-                          a existência de um imposto a pagar de 120, o substituto será solidariamente responsável por 100;

-                          a existência de um imposto a pagar de 60, o substituto será solidariamente responsável por 60, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100;

-                          a inexistência de imposto a pagar (ou mesmo um reembolso), a responsabilidade solidária do substituto será nula, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100.

A única – e fundamental – diferença introduzida pela norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, ora em causa, é a alteração do tipo de responsabilidade tributária do substituto, do regime regra da responsabilidade subsidiária (decorre da regra geral do artigo 22.º/4 da LGT, e específica do artigo 28.º/2 da mesma Lei), para o regime excepcional da responsabilidade solidária, e não uma alteração do objecto daquela mesma responsabilidade tributária.

Ou seja: o artigo 103.º/4 do CIRS, em questão, altera o tipo de responsabilidade tributária, mas não o seu objecto, que não deixa de ser o imposto, para passar a ser a importância não retida.

Por isso, e em suma, no caso do artigo 103.º/4 do CIRS, em análise, o substituto não se torna responsável por nada diferente do que já o era, nos termos do artigo 28.º/2 da LGT, apenas variando o grau de responsabilidade, pelo mesmo, por assim dizer, objecto.

Tudo isto, bem se compreenderá, se se atender às regras próprias do cálculo do imposto devido em sede de IRS, e à circunstância de o respectivo funcionamento normal poder, com facilidade, gerar situações em que o imposto devido pelo sujeito passivo originário, seja nulo ou, não o sendo, inferior à retenção devida. Daí que, apenas liquidado, devidamente, o IRS devido pelo(s) sujeito(s) passivo(s) originários, e contrastado com este o montante das importâncias cuja retenção foi devida, seja possível determinar a extensão da responsabilidade solidária do substituto, sob pena de se poderem gerar situações de enriquecimento injustificado para a Fazenda Pública[10].

Conclui-se, assim, com a Requerente, que a AT, nos actos tributários em crise, converteu “o substituto em substituído, como se fosse titular ou beneficiário do rendimento que se pretende tributar.”.

Efectivamente, relativamente à Requerente não se verificou qualquer facto tributário sujeito a IRS. A mesma é responsável, a título solidário, pelo imposto devido pelos seus trabalhadores, a quem terá omitido, ilegalmente, retenções na fonte, até ao valor das retenções omitidas. Mas não foi esse (o IRS dos sujeitos passivos originários) o imposto liquidado nos actos tributários em crise.

Deste modo, atenta a arguida inexistência de facto tributário subjacente às liquidações objecto da presente acção arbitral, e tendo em conta que “como vem afirmando a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, inexistindo facto tributário (...), não se verifica o pressuposto do imposto[11] (no caso, o artigo 1.º do CIRS).

Tratando-se o vício em questão, de um vício de violação de lei, e inexistindo qualquer norma legal que o fulmine com nulidade, deverão as liquidações objecto da presente acção arbitral, então, ser anuladas.

            Não contende, em nada, o que se decide, com as várias objecções suscitadas pela AT na sua resposta.

            Com efeito, alega a AT que “Tratando-se, pois, de obrigações solidárias, o credor pode exigir o pagamento da totalidade da dívida a apenas um dos devedores” (artigo 67.º da resposta), que “não existe nenhuma norma que estabeleça, nos casos de obrigações solidárias, a ordem pela qual deve o credor exigir o montante em dívida.” (artigo 69.º da resposta), e que “o responsável solidário é um co-devedor solidário que, por força da lei, está em igualdade de circunstâncias com o responsável originário, o que implica que possam ser demandados ambos simultaneamente, ou qualquer um deles indistintamente, quanto ao cumprimento da prestação tributária”.

            Sendo tudo o que a Requerida afirma verdade, o certo é que se está aqui num momento prévio, que é a da determinação (liquidação) da própria obrigação. Ora, como se disse, a Requerente será solidariamente responsável, sim, podendo ser demandada em primeira linha, mas pelas dívidas de imposto de cada um dos trabalhadores, que ilegalmente não reteve, e não pelas importâncias que ela própria não reteve, que servirão, unicamente, como limite àquela responsabilidade, e que foi aquilo (o facto) sobre que foi, ilegalmente, julga-se, como se viu, liquidado imposto, nos actos tributários em crise.

            Ou seja, a AT poderia, efectivamente demandar a Requerente sem demandar os sujeitos passivos originários, mas desde que, previamente, estivesse determinado o quantum da sua responsabilidade, liquidando, devidamente, o imposto devido por aqueles, o que não ocorreu.

            Assim, e face a todo o exposto, deverá o pedido arbitral proceder, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas.

 

*

A Requerente formula, ainda, um pedido de indemnização por garantia indevida.

Esta matéria foi objecto já de várias decisões no âmbito da jurisdição arbitral, podendo ver-se, entre outras, a do processo arbitral do CAAD, n.º 1/2013T[12], em termos que ora se transcrevem

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito».

Na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, proclama-se, como diretriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos atos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências.

Apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

Na verdade, apesar de não existir qualquer norma expressa nesse sentido, tem-se vindo pacificamente a entender nos tribunais tributários, desde a entrada em vigor dos códigos da reforma fiscal de 1958-1965, que pode ser cumulado em processo de impugnação judicial pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do ato, por nesses códigos se referir que o direito a juros indemnizatórios surge quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, a administração seja convencida de que houve erro de facto imputável aos serviços. Este regime foi, posteriormente, generalizado no Código de Processo Tributário, que estabeleceu no n.º 1 do seu artigo 24.º que «haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços», a seguir, na LGT, em cujo artigo 43.º, n.º 1, se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e, finalmente, no CPPT em que se estabeleceu, no n.º 2 do artigo 61.º (a que corresponde o n.º 4 na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, o artigo 171.º do CPPT, estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do ato de liquidação.

O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

Aliás, a cumulação de pedidos relativos ao mesmo ato tributário está implicitamente pressuposta no artigo 3.º do RJAT, ao falar em «cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes atos», o que deixa perceber que a cumulação de pedidos também é possível relativamente ao mesmo ato tributário e os pedidos de indemnização por juros indemnizatórios e de condenação por garantia indevida são suscetíveis de ser abrangidos por aquela fórmula, pelo que uma interpretação neste sentido tem, pelo menos, o mínimo de correspondência verbal exigido pelo n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 52.º da LGT, que estabelece o seguinte:

Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

              1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.

              2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

              3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

              4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”

No caso em apreço, é manifesto que o erro do acto de liquidação consubstanciado nas liquidações praticadas sem suporte num facto tributário pressuposto do imposto, é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois a inspeção tributária e a liquidação foram da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esse erro fosse praticado.

Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada.

No entanto, não foram alegados e provados os encargos que os Requerentes suportaram para prestar a garantia bancária, pelo que é inviável fixar aqui a indemnização a que os Requerentes têm direito, o que só poderá ser efectuado em execução deste acórdão.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,

a)      Anular os actos tributários objecto do presente processo;

b)      Condenar a Autoridade Tributária a pagar à Requerente indemnização por garantia indevida, no montante que se vier a liquidar em execução de sentença; e

c)      Condenar a Autoridade Tributária nas custas do processo, no montante de €3.672,00.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 190.472,62, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa

 

26 de Outubro de 2015

 

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Sérgio de Matos)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Magda Feliciano)

 



[1] Disponível para consulta em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] Cfr., p. ex., Ac. do STA de 08-06-2011, proferido no processo 068/11.

[3]os actos de liquidação em questão ocorreram na sequência de acto inspectivo e em conformidade com o relatório de inspecção tributária homologado por despacho. Relatório onde consta que esses actos derivam de correcções aritméticas introduzidas por via da desconsideração das regularizações de IVA levadas a efeito pelo contribuinte (ora recorrente) em diversas declarações periódicas devidamente identificadas, e que decorrem de várias notas de crédito que ela produziu nos anos de 2002 e 2003.”

[4]Com efeito, de atentarmos no relatório de inspecção que está subjacente à liquidação adicional impugnada, cujo teor foi dado por reproduzido no probatório fixado, podemos concluir que a AT deu a conhecer ao visado, a aqui Recorrente, as razões que a levaram a proceder à liquidação adicional impugnada.

[5]resulta claro que se o impugnante analisar o conteúdo da liquidação em conjunto com o relatório da inspecção tributária, do qual também tem conhecimento, a fundamentação do acto tributário resulta cristalina, sem ambiguidades, obscuridades, ou qualquer contradição.

[6] A este propósito, cfr. João de Matos Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 7.ª Ed., Almedina, 1991, pp. 758 e ss., que se segue de muito perto, em citação livre.

[7] Não se confundem este tipo de situação, com outras, também identificadas pelo mesmo A. (op. cit., p. 778), nas quais pode “suceder que quem cumprir tenha o direito de cobrar-se por inteiro junto de um ou de alguns dos condevedores”. Com efeito, e sem alongar excessivamente a discussão, por ser matéria doutrinária, lateral à matéria em questão nos autos, nas situações apontadas, a total responsabilização interna de um (ou de um grupo) devedor em relação aos restantes, existe à partida e em abstracto, não sendo eventual ou condicionada (geralmente, na medida de culpas). Daí que neste tipo de situações, o mesmo A. (op. cit., p. 777, nota 2), fale, não em direito de regresso, mas em direito de compensação.

[8] Op. cit., p. 761.

[9] Sendo suficientemente elucidativo, a este respeito, o artigo 28.º da LGT, onde se refere, no n.º 1 que “a entidade obrigada à retenção é responsável pelas importâncias retidas e não entregues nos cofres do Estado”, e não, justamente, pelo imposto retido e não entregue, enquanto que no n.º 2, se fala já em “imposto não retido”.

[10] O que é facilmente configurável: figure-se uma situação em que, caso as importâncias tivessem sido retidas devidamente pelo substituto, o sujeito passivo originário teria direito a um reembolso, por as retenções excederem o imposto devido. Liquidando e cobrando as importâncias não retidas (e não o imposto), como fez a AT no caso, subtrai-se esta ao reembolso ao sujeito passivo originário, em prejuízo substituto.

[11] Cfr. Ac. do STA de 22-04-2015, p. 0826/13.

[12] Disponível em www.caad.org.pt.