DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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A... (“Requerente”), contribuinte n.º ..., residente na Rua ..., n.º ..., ..., Lisboa, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto nos artigos 5.º, n.º 2 e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.
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É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT).
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A Requerente pretende a pronúncia do Tribunal Arbitral tendo em vista a anulação do indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ... 2014 ... (que junta como Doc. 1) bem como da respetiva liquidação correspondente ao documento n.º ..., relativa a Imposto Municipal Sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (“IMT”), no valor global de € 15.640,68 (que junta como Doc. 2), e o reembolso dos montantes indevidamente pagos, acrescidos de juros compensatórios e demais consequências legais.
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Alega a Requerente, em síntese, o seguinte:
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No âmbito do processo de insolvência n.º .../..., que correu termos no Segundo Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, o Requerente adquiriu o prédio urbano, destinado a habitação, sito na ..., número ..., tornejado para a Rua ..., número ...., freguesia do ..., Concelho de Lisboa, inscrito na matriz sob o número ... e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número .../...;
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O Prédio fazia parte do ativo da sociedade insolvente B..., Lda, (“B...”), representada no ato de venda pelo Administrador de Insolvência, Senhor C....
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Embora o Prédio tenha sido adquirido no âmbito do processo de liquidação da massa insolvente, foi indevidamente liquidado Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis ao Requerente, no valor de € 15.640,68.
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Faziam parte da massa insolvente diversos prédios urbanos, os quais foram alienados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
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Todos os prédios foram adquiridos pela insolvente, pelo valor de €.1000.100,00, conforme escritura de 14 de Junho de 2011.
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Discordando de tal liquidação, o Requerente apresentou reclamação graciosa, tendo sido notificado, a 7 de janeiro de 2015, do seu indeferimento.
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Aquando da liquidação do IMT em causa, foi igualmente liquidado Imposto do Selo que, após apresentação de reclamação graciosa, deferida pelo Serviço de Finanças de Lisboa, será devidamente restituído, por se considerar aplicável o disposto no artigo 269.º, alínea e) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”).
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O indeferimento da reclamação de IMT foi motivado pelo entendimento da Direção de Finanças de Lisboa, segundo o qual somente a transmissão onerosa de imóveis integrados na universalidade do estabelecimento ou empresa está abrangida pela isenção de IMT prevista no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE.
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O entendimento da Requerida é contrário à jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) sobre esta matéria.
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É entendimento do Requerente que tal liquidação é ilegal uma vez que a aquisição do Prédio beneficia de isenção de IMT considerando, por isso, ter direito a ser restituído dos montantes indevidamente liquidados e pagos, acrescidos dos competentes juros.
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A Requerente optou pela não designação de árbitro.
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Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou o árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação no prazo aplicável.
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As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
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Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 28-04-2015.
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A AT apresentou resposta, na qual suscitou as exceções de impropriedade do meio processual empregue e de incompetência material do Tribunal Arbitral e, sem prescindir, impugnou os fundamentos do pedido de pronúncia arbitral.
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A AT alega, no essencial, o seguinte:
A – Exceção de impropriedade do meio processual empregue
a) O Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral visando atacar a supra identificada liquidação de IMT, porém o thema decidendum prende-se com a concessão de um benefício fiscal previsto no artigo 270.º/2 do CIRE;
b) Ou seja, o Requerente pretende que o Tribunal Arbitral Singular profira decisão no sentido do reconhecimento da isenção de IMT;
c) À luz desta pretensão é a Ação Administrativa Especial que configura o meio processual adequado para efetuar a apreciação da matéria (pois que aquela constitui o meio de reação destinado a apreciar atos em matéria tributária – artigo 97.º/2 do CPPT), e não o pedido de pronúncia arbitral (pois que este constitui um dos meios de reação destinados a apreciar atos tributários – artigo 2.º/1 do RJAT);
d) O Requerente pretende enxertar uma Ação Administrativa Especial no presente pedido de pronúncia arbitral;
e) Porém, tal não é legalmente possível, pelo que o Tribunal Arbitral Singular deve abster-se de conhecer do pedido, uma vez que o meio processual utilizado pelo Requerente não comporta a apreciação daquele;
f) A impropriedade do meio processual consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 577.º e 278.º/1 ambos do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT.
B – Exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral
a) A apreciação de tal matéria atinente ao reconhecimento de benefícios fiscais extravasa as competências legais do Tribunal Arbitral Singular;
b) Com efeito, a competência dos tribunais arbitrais está circunscrita às matérias elencadas no artigo 2.º/1 do RJAT, a saber: «(…) a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais»;
c) À luz daquele artigo resulta claramente que se encontra fora da jurisdição da arbitragem tributária a apreciação de quaisquer questões referentes ao reconhecimento de isenções fiscais, sob pena de violação da lei;
d) A questão do reconhecimento de isenções fiscais é matéria reservada à jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais;
e) A incompetência material do Tribunal Arbitral Singular para a apreciação da questão da isenção fiscal consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto no artigo 576.º/1 e 2 e no artigo 577.º-a) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT;
f) Suscita-se, ainda, a incompetência do Tribunal Arbitral Singular para a apreciação do reconhecimento de uma isenção fiscal relacionada com a transmissão de bens imóveis integrados em processo de insolvência;
g) A isenção fiscal prevista no artigo 270.º/2 do CIRE assenta na verificação de dois pressupostos: 1.º - Que a transmissão dos imóveis opere por (i) venda, (ii) permuta ou (iii) cessão da empresa ou de estabelecimentos desta; e 2.º - Que a (i) transmissão dos imóveis esteja integrada num plano de insolvência ou num plano de pagamentos ou (ii) a transmissão seja praticada no âmbito da liquidação da massa insolvente;
h) Contudo, a verificação daqueles pressupostos legais recai exclusivamente sobre o órgão judicial onde correu o processo de insolvência;
i) E isto porque apenas o juiz titular do processo de insolvência está em condições de proceder à verificação dos pressupostos legais exigidos no artigo 270.º/2 do CIRE;
j) Ora, o presente Tribunal Arbitral Singular não foi o órgão judicial onde correu o processo de insolvência;
k) Acresce que o presente Tribunal Arbitral Singular não detém sequer os elementos mínimos para aferir da verificação dos pressupostos legais exigidos no artigo 270.º/2 do CIRE;
l) Significa isto que, quer à luz do artigo 270.º/2 do CIRE quer por força dos elementos (não) carreados no pedido de pronúncia arbitral, resulta claramente que se encontra fora da esfera do Tribunal Arbitral Singular a apreciação de quaisquer questões referentes ao reconhecimento de uma isenção fiscal relacionada com a transmissão de bens imóveis integradas em processo de insolvência;
m) A incompetência material do Tribunal Arbitral Singular para a apreciação da questão da isenção fiscal consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto no artigo 576.º/1 e 2 e no artigo 577.º-a) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT.
C – Defesa por impugnação
a) O Requerente faz uma errada interpretação e aplicação das normas legais subsumíveis ao caso sub judice notoriamente errada;
b) A isenção de IMT constante do artigo 270.º/2 do CIRE abrange os atos de venda, permuta ou cessão integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos, de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, porém (agora) com uma reserva face àquilo que o (então) artigo 121.º/2-c) do CPEREF dispunha: que o objeto da transmissão seja a empresa ou estabelecimento(s) desta última, e não somente elementos do ativo da empresa;
c) Quanto ao argumento/circunstância do preâmbulo do CIRE indicar que se manteve, no essencial, os benefícios fiscais previstos no CPEREF, o mesmo não é, por si só, elemento decisivo a favor do Requerente;
d) Aquilo que o legislador quis dizer foi que a maioria dos benefícios fiscais consagrados no CPEREF foi mantida pelo CIRE e não que todos os benefícios fiscais do CPEREF foram mantidos pelo CIRE;
e) Quanto ao argumento da violação do princípio da legalidade, designadamente da Lei 39/2003, de 22 de agosto, pela qual o Governo foi autorizado a legislar sobre a insolvência das pessoas singulares e coletivas, também não é correto o entendimento veiculado pelo Requerente;
f) O Decreto-Lei autorizado que aprovou o CIRE respeitou o sentido que lhe foi conferido (i.e., a atribuição de benefícios fiscais no âmbito do processo de insolvência), mas numa extensão inferior àquela que lhe foi atribuída pelo legislador ordinário;
g) Ou seja, o Governo ficou aquém daquilo que estava legalmente autorizado a fazer;
h) Assim, nenhuma inconstitucionalidade existe, pois nenhum limite foi excedido pelo Governo no uso da autorização legislativa que lhe foi concedida;
i) Mas mais: a vinculação do legislador ordinário à autorização legislativa concedida pela Assembleia das República não é absoluta, no sentido de coartar ao legislador ordinário qualquer liberdade de transposição;
j) A vinculação do legislador ordinário à autorização legislativa abrange apenas o seu limite temporal de duração, não podendo consequentemente o Governo proceder à utilização da autorização legislativa após a sua caducidade, e o sentido e alcance da norma legal autorizante, que o Governo não pode respetivamente adulterar ou ultrapassar;
k) O legislador pode optar por utilizar ou não a autorização legislativa;
l) Por outro lado, a utilização da autorização legislativa pode ser integral ou parcial;
m) Desde que a autorização parcial não colida com o sentido da lei de autorização, ela é totalmente admissível;
n) Caso a autorização legislativa conceda ao Governo habilitação para aprovar um conjunto de benefícios fiscais, o Governo pode optar pela aprovação de apenas uma parte deles e não da totalidade, sem que, pelo facto, viole o sentido e alcance da autorização legislativa;
o) A Assembleia da República limitou-se a enunciar os benefícios fiscais que o Governo pode conceder no âmbito dos planos de insolvência ou pagamentos ou da liquidação da empresa insolvente, sem impor ao Governo a obrigação de aprovação da totalidade desses benefícios, alternativamente à pura e simples não utilização da autorização legislativa;
p) Em face dos escassos elementos carreados para os autos, os quais apontam para que o Requerente apenas tenha adquirido elementos do ativo da empresa insolvente, e não a própria insolvente ou sequer estabelecimentos desta última, forçoso se torna concluir que não está em condições de usufruir da isenção fiscal estabelecida no artigo 270.º/2 do CIMT, nada havendo por isso a apontar à liquidação colocada em crise por sai do pedido de pronúncia arbitral deduzido por aquela.
9. Por despacho de 25-09-2015, o Tribunal decidiu dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, conceder à Requerente o prazo de 10 dias para, querendo, se pronunciar por escrito sobre a defesa por exceção apresentada pela Requerida e dispensar a produção de alegações finais.
10. O Requerente apresentou resposta escrita às exceções suscitadas pela AT, onde sustenta a sua improcedência, com os seguintes argumentos:
a) Uma liquidação de imposto que parta da desconsideração de uma isenção continua a ser um ato tributário de liquidação, pelo que a apreciação da sua legalidade se enquadra no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária;
b) O recurso a uma ação administrativa especial tendo em vista o reconhecimento de uma isenção só pode ocorrer em situações em que o reconhecimento da isenção não é automático, estando antes dependente de um ato administrativo suscetível de impugnação autónoma;
c) A isenção em causa é de reconhecimento automático, conforme decorre do disposto nos artigos 10.º, n.º 8, alínea d) do Código do IMT e artigo 5.º, n.º 1 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, competindo somente ao serviço de finanças a sua verificação e declaração;
d) Sendo o ato de liquidação em crise o único ato praticado pela administração tributária, lesivo dos direitos da Requerente, a sua impugnabilidade contenciosa tem de ser assegurada, em homenagem ao princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa);
e) É, igualmente, improcedente a exceção de incompetência arguida pela Requerente com fundamento em que é competente para reconhecer a isenção o tribunal onde corre o processo de insolvência;
f) Efetivamente, e fazendo a Requerente um esforço para ignorar que a jurisprudência citada pela Requerida já nem sequer se aplicaria à redação do artigo 8.º do Código do IMT em vigor à data dos factos,
g) A verdade é que, por um lado, repete-se, o benefício em causa é de reconhecimento automático, ao contrário das situações referidas pela jurisprudência citada pela Requerida a propósito da aplicação do artigo 8.º co Código do IMT;
h) E, em segundo lugar, não há qualquer norma no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que atribua competência aos tribunais judiciais para reconhecerem a isenção de IMT no caso sub judice;
i) É, pois, no momento da liquidação que a Administração fiscal decide se considera ou não verificados os pressupostos para a aplicação do benefício fiscal, podendo e devendo levar a cabo os atos instrutórios necessários à obtenção dos elementos que atestem a verificação dos requisitos materiais para a aplicação da isenção;
j) Não se percebe, pois, que a alegação de que a Administração fiscal não está em condições de decidir sobre a isenção em causa quando (i) tomou uma decisão quanto à aplicação da isenção relativa ao Imposto do Selo e (ii) dispõe de todos os meios para obter os elementos necessários à correta identificação dos factos geradores do benefício fiscal em causa;
k) Acrescente-se que, mesmo nos casos em que o reconhecimento não é automático, compete à Administração fiscal o seu reconhecimento (artigo 5.º, n.º 2 e 3 do Estatuto dos Benefícios Fiscais e 54.º, n.1, alínea d) da Lei Geral Tributária e 65.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário);
l) Finalmente, a matéria relativa ao reconhecimento de benefícios fiscais está reservada aos tribunais tributários, de acordo co o disposto nos artigos 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, 144.º, n.º 1 da LOSJ, 29.º, n.º 1, alínea c) do ETAF, 101.º, alínea b) da LGT e 97.º, n.º 1, alínea h) e 145.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
m) A questão em análise foi já decidida no processo arbitral n.º 123/2015-T, de 1 de setembro de 2015, (oportunamente junta aos autos pela Requerente) onde se decidiu que o tribunal arbitral tem competência para anular liquidações de IMT onde se desconsidera o benefício fiscal previsto no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE.
II – SANEADOR
Decidindo as exceções
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Contrariamente ao que alega a AT, o objeto dos autos não é uma questão de reconhecimento de uma isenção (art. 10.º da Resposta), mas sim um ato de liquidação de imposto decorrente da desconsideração de uma isenção, pelo que a apreciação da sua legalidade se enquadra no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
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Na verdade, a isenção em causa é de reconhecimento automático, conforme decorre do disposto nos artigos 10.º, n.º 8, alínea d) do Código do IMT e artigo 5.º, n.º 1 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, competindo somente ao serviço de finanças a sua verificação e declaração.
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Tal como é afirmado no processo arbitral n.º 123/2015-T, de 1 de setembro de 2015, no qual se decidiu que o tribunal arbitral tem competência para anular liquidações de IMT onde seja desconsiderado o benefício fiscal previsto no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE, «está-se perante uma isenção de reconhecimento automático, como resulta da alínea d) do n.º 8 do artigo 10.º do CIMT, pelo que nem tinha de haver qualquer acto autónomo de reconhecimento da isenção, sendo no momento apropriado para a prática de um acto de liquidação a Autoridade Tributária e Aduaneira terá de apreciar se o interessado usufrui de benefício fiscal. Por isso, sendo o acto de liquidação lesivo dos interesses da Requerente e sendo o único acto praticado pela administração tributária sobre a situação, tem de ser assegurada a sua impugnabilidade contenciosa com fundamento em qualquer ilegalidade, como decorre do princípio da tutela judicial efectiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP. Por outro lado, a questão de saber se o acto de liquidação é legal, quando não há qualquer acto destacável trata-se a questão de saber se tem ou não de haver um reconhecimento da isenção (pelo Tribunal Judicial ou pela Autoridade Tributária e Aduaneira) são questões que têm a ver com a legalidade da liquidação, que devem ser apreciadas nos tribunais tributários em processo de impugnação judicial, como decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT».
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É também de rejeitar a tese sustentada pela AT de que apenas o juiz titular do processo de insolvência está em condições de proceder à verificação dos pressupostos legais exigidos no artigo 270.º/2 do CIRE.
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Subscreve-se o que foi dito acerca deste argumento na decisão arbitral do processo arbitral n.º 123/2015-T:
«No que concerne à tese defendida pela Autoridade Tributária e Aduaneira de que seria exclusivamente competente o Tribunal Judicial onde correu termos o processo de insolvência, é manifesto que ela não tem qualquer fundamento legal. Na verdade, não há qualquer norma especial do processo de insolvência que atribua competência aos tribunais judiciais para reconhecerem isenções fiscais e o regime geral dos benefícios fiscais contraria inequivocamente essa hipótese.»
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Assim sendo, não só o presente tribunal tem competência material para conhecer do pedido, como o meio processual utilizado pelo Requerente revela ser adequado à impugnação do ato de liquidação em causa
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Improcedem totalmente, portanto, as exceções suscitadas pela AT.
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O Tribunal encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, nº 1, alínea a), 5.º e 6.º, nº 1, do RJAT.
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As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4º e 10º do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.
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Cumpre apreciar e decidir do mérito do pedido.
III – DOS FACTOS
Factos provados
Considera o Tribunal como provados os seguintes factos:
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No âmbito do processo de insolvência n.º .../..., que correu termos no Segundo Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, o Requerente adquiriu o prédio urbano, destinado a habitação, sito na ..., número ..., tornejado para a Rua ..., número 2, freguesia do ..., Concelho de Lisboa, inscrito na matriz sob o número ... e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número .../... (Doc. 3).
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O Prédio fazia parte do ativo da sociedade insolvente B..., Lda, (“B...”), representada no ato de venda pelo Administrador de Insolvência, Senhor C....
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Embora o Prédio tenha sido adquirido no âmbito do processo de liquidação da massa insolvente (Doca. 4 e 5), foi liquidado Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis ao Requerente, no valor de € 15.640,68.
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Discordando de tal liquidação, o Requerente apresentou reclamação graciosa (Doc. 6), tendo sido notificado, a 7 de janeiro de 2015, do seu indeferimento (Doc. 1).
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Em 17 de julho de 2014 foi feito o pagamento do imposto liquidado, no montante de € 15.640,68 (Doc. 3).
Factos não provados
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Com relevo para a decisão, não existem factos essenciais não provados.
Fundamentação da decisão da matéria de facto
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Os factos foram dados como provados com base na prova documental
IV – DO DIREITO
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Está em causa apurar se a liquidação enferma de ilegalidade por violação do disposto no artigo 270º, n.º 2, do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresa aprovado pelo Dec. Lei nº 53/2004 e sucessivas alterações), o qual dispõe o seguinte:
«Estão igualmente isentas de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os actos de venda, permuta ou cessão de empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente».
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O elemento literal do artigo 270.º, n.º 2 do CIRE determina que a isenção de IMT é aplicável quer à venda, quer à permuta, quer à cessão, sendo que apenas quanto a esta última se exige a transmissão de empresa ou universalidade.
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Conforme é afirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 17 de dezembro de 2014 (Processo n.º 01085/13; Relator: Ana Paula Lobo):
«Cremos que o nº 2 do artº 270º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas deverá ser interpretado, tendo em conta o que acaba de expor-se, sem necessidade de qualquer interpretação extensiva, respeitando o seu texto, o fim que visa alcançar, as diversas variantes do processo de insolvência constantes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e a lógica sistemática deste diploma, como conferindo isenção de IMT, aos seguintes actos:
1. Venda
2. Permuta
3. Cessão
. da empresa
. ou de estabelecimentos dessa empresa».
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O preceito do CIRE em causa sucede ao artigo 121º-2/c), do CPEREF e, tal como acontecia à luz desse regime, também no vigente a citada isenção é concedida atendendo aos atos considerados em si mesmos, independentemente da qualidade da pessoa ou entidade sujeita ao pagamento do imposto (Cfr. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código dos Processos de Recuperação de Empresa e de Falência Anotado, 3ª Edição, pg. 329).
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De acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de março, que aprovou o CIRE, “mantêm-se, no essencial, os regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais, bem como à indiciação de infracção penal” (§49).
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Nos termos do diploma que aprovou o CPEREF (DL nº 123/93, de 23 de abril), “além de um tratamento bastante favorecido dos dois processos abrangidos pelo diploma no domínio das custas judiciais, adopta-se ainda neste decreto-lei um conjunto de incentivos de natureza fiscal, através dos quais se procura especialmente evitar penalizações indevidas ou graves inconvenientes para as operações jurídicas, económicas ou financeiras em que pode desdobrar-se o processo de recuperação”.
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Ainda segundo este diploma,“[a]fastaram-se com essa intenção alguns encargos de carácter fiscal ou parafiscal relacionados com os negócios jurídicos susceptíveis de constituírem o meio de recuperação aprovado pelos credores, tendo nomeadamente em vista o imposto do selo, a contribuição autárquica, o imposto municipal de sisa e os próprios emolumentos devidos pelos actos”.
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Assim sendo, revela-se contrário ao fim pretendido pelo legislador – manutenção no essencial dos regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais – o entendimento de que estariam excluídas de isenção do IMT as vendas de elementos do ativo da empresa, ainda que integradas no âmbito do plano de insolvência ou de pagamentos ou praticadas no âmbito da liquidação da massa insolvente.
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Nas palavras do Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão emitido em 30 de maio de 2012 (Processo n.º 0949/11; Relator: Isabel Marques da Silva):
«Esta interpretação [seguida pela Autoridade Tributária in casu] choca, contudo - como bem observado na sentença recorrida -, com aquilo que o legislador consignou no n.º 49 do preâmbulo do CIRE no que respeita aos benefícios fiscais, onde se afirma que: “mantêm-se, no essencial, os regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais” sendo certo que a alínea c) do n.º 2 do artigo 121.º do CPEREF isentava de imposto municipal de sisa as transmissões de bens imóveis».
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A coerência sistémica aponta também no sentido da admissibilidade da isenção de IMT no caso sub judice.
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Na verdade, não se compreenderia que o legislador quisesse isentar de Imposto do Selo a transmissão de um imóvel que seja parte de um ativo e, no entanto, considerasse que essa mesma transmissão está sujeita a IMT.
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Subscreve-se o entendimento expresso pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 17 de dezembro de 2014 (Processo n.º 01085/14; Relator: Ana Paula Lobo), segundo o qual:
«Tendo em conta o fim que o legislador pretende alcançar com a concessão de tal isenção, - fomentar e apoiar a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador, dando «um bónus» a quem adquirir os bens imóveis que integram a massa insolvente – compre estes bens que compra mais barato porque não tem de pagar o IMT que seria devido na aquisição de um imóvel similar fora do processo de insolvência – e que serão vendidos em fase de liquidação, o ambíguo texto do n.º 2 do artº 270º pode ser objecto de uma leitura mais clara e inequívoca sem recurso a qualquer interpretação extensiva. Basta que nos interroguemos se para alcançar o fim antes definido faz qualquer diferença que se esteja a vender globalmente a empresa com todo o seu activo e o seu passivo, que se esteja a vender um ou mais dos estabelecimentos comerciais que a integravam, que se esteja a vender bens que integravam o seu património mas não eram utilizados no seu giro comercial – por exemplo um imóvel recebido em pagamento de uma dívida de que a empresa insolvente era credora – para que se esteja perante uma venda que é praticada no âmbito da liquidação da massa insolvente? E, se nas mesmas situações se tratar não de vendas mas de permutas ou cessões – sendo que esta palavra há-de ter sido utilizada em sentido impróprio na medida em que associada ao mundo empresarial se costuma reportar a cessão de exploração, cessão do estabelecimento comercial, próximos da locação e não da alienação, e no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas se mostra utilizada também quanto à aquisição de bens pelos credores? Cremos que a resposta não pode deixar de ser negativa».
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Uma interpretação do disposto no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE em conformidade com a Constituição da República Portuguesa, aponta no mesmo sentido.
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Tal como é afirmado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 30 de maio de 2012 (Processo n.º 0949/11; Relator: Isabel Marques da Silva):
«O n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, cuja redacção não é clara no que respeita ao âmbito da isenção de IMT aí consignada, deve ser interpretado em conformidade com a alínea c) do n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, pois que entre dois sentidos da lei, ambos com apoio - pelo menos mínimo - na respectiva letra, deve o intérprete optar por aquele que o compatibilize com o texto constitucional (interpretação conforme à constituição) [assim] deve entender-se estarem isentas de IMT não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito do plano de insolvência ou de pagamentos praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente».
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Ainda no mesmo sentido pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 3 de julho de 2013 (Processo n.º 0765/13; Relator: Fernanda Maçãs) no qual decidiu que:
«O n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, cuja redacção não é clara no que respeita ao âmbito da isenção de IMT aí consignada, poderá, quando muito, interpretar-se como abrangendo não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidade de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente».
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Conclui-se, assim, pela procedência do pedido de anulação do ato de liquidação de IMT contestado, com todas as consequências legais.
Juros indemnizatórios
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A Requerente pede o reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
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A Requerente pagou a quantia liquidada, de € 15.640,68, conforme se refere na matéria de facto fixada.
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O artigo 43.º, n.º 1, da LGT prevê que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
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No caso em apreço, o erro que afeta a liquidação é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que praticou o ato de liquidação apesar de o Requerente estar isento de IMT.
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Por isso, a Requerente tem direito a ser integralmente reembolsada da quantia que pagou (artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) e a juros indemnizatórios desde a data do pagamento da quantia, 17-07-2014, até reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
V – DECISÃO
De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronuncia arbitral;
b) Anular o indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ... 2014 ..., apresentada pelo Requerente;
c) Anular a liquidação de IMT em crise;
d) Julgar procedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar a quantia paga pelo Requerente acrescida de juros, à taxa legal, desde a data do pagamento até o reembolso da quantia paga.
Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 15.640,88.
Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ficando o seu pagamento a cargo da requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 27-10-2015
O Árbitro
(Paulo Nogueira da Costa)