Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 799/2014-T
Data da decisão: 2015-05-04  IVA  
Valor do pedido: € 196.074,96
Tema: Competência do material Tribunal Arbitral; Ofertas de pequeno valor
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Processo n.º 799/2014-T

 

 

Os árbitros Dr. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Ricardo Rodrigues Pereira e Dr. Emanuel Augusto Vidal Lima, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 13-02-2015, acordam no seguinte:

 

 

1. Relatório

 

A... (PORTUGAL), ARTIGOS DOMÉSTICOS, LDA, NIPC ..., com sede na Avenida …, … Lisboa, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro (doravante RJAT), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

A Requerente pretende:

 

(i) Que seja declarada a ilegalidade e anulação do Despacho de Indeferimento do Recurso Hierárquico, de 08-08-2014;

(ii) Que seja declarada a ilegalidade e anulação dos Despachos de 30-10-2013 e de 22-09-2014, que indeferiram o pedido de revisão oficiosa;

(iii) Que seja determinada a aceitação da correcção da autoliquidação do IVA referente a Novembro e Dezembro de 2008, no valor de € 9.370,80, já reconhecido pela Requerida na resposta ao pedido de Revisão Oficiosa;

(iv) Que seja determinada a aceitação da correcção da autoliquidação do IVA referente a Janeiro a Dezembro de 2009, Janeiro a Dezembro de 2010 e de Janeiro a Novembro de 2011, no valor global de € 186.704,16;

(v) Devendo, ainda, a Autoridade Tributária ser condenada a pagar juros indemnizatórios, sobre a quantia de € 9.370,80, contados, desde 28-12-2012, às sucessivas taxas legais que vigorarem até integral reembolso; e

(vi) Condenada, igualmente, a pagar juros indemnizatórios, sobre a quantia de €186.704,16, contados, desde 30-12-2013, às taxas legais que vigorarem até integral reembolso; e

 (vii) Por fim, também, condenada a reembolsar a requerente das despesas, designadamente do montante da taxa de arbitragem inicial.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 04-12-2014.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 28-01-2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 13-02-2015.

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, suscitando a excepção da incompetência da jurisdição arbitral em razão da matéria e a excepção da extemporaneidade e defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 18-03-2015, decidiu-se dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse com alegações.

As partes não apresentaram alegações.

O Tribunal é competente e foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

São suscitadas excepções que importa apreciar prioritariamente [artigo 608.º, n.º 1, do CPC subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

 

2. Excepção da incompetência material

 

2.1. Questão da incompetência para apreciar decisões proferidas em processos de revisão oficiosa.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, que o artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 exclui, literalmente, do âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral, “(…) as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação (…) que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos dos artigos 131º a 133º do CPPT”, aí não se referindo à revisão oficiosa prevista no artigo 78.º da LGT.

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária foi vinculada àquela jurisdição pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.

            Na alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se expressamente do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles arts. 131.º a 133.º do CPPT, para que cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do art. 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efectuada.

No caso em apreço, é pedida a anulação do despacho de 30-10-2013 que indeferiu pedido de revisão oficiosa relativo a autoliquidações de IVA referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 2008 (documento n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido) e a anulação do despacho de 22-09-2014, que indeferiu pedido de revisão oficiosa relativo a autoliquidações de IVA referentes aos meses de Janeiro a Dezembro de 2009, Janeiro a Dezembro de 2010 e Janeiro a Novembro de 2011.

Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.

            Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de actos tributários» e «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação».

            No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.

A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.

Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.

Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o acto de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efectuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa. ( [1] )

A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação.

Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».

Quanto a correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) o que só impedirá que se adoptem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.

Por isso, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disse menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer, isto é, quando disse imperfeitamente o que pretendia dizer. Na interpretação extensiva «é a própria valoração da norma (o seu “espírito”) que leva a descobrir a necessidade de estender o texto desta à hipótese que ela não abrange», «a força expansiva da própria valoração legal é capaz de levar o dispositivo da norma a cobrir hipóteses do mesmo tipo não cobertas pelo texto».( [2] )

A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.

É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de actos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de actos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.

Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de actos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os actos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos actos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.

Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3 do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º». Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.

Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adoptadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa. ( [3] )

Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de actos de autoliquidação, pois estes são expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT.

Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.

Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência ao artigo 131.º do CPPT relativamente a pedidos de declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de actos de autoliquidação, acabaram por incluir referência ao artigo 131.º que não esgota as possibilidades de apreciação administrativa desses actos.

Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, por serem evidentes as suas imperfeições: uma, é associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do acto tributário) à «expressão nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa; outra é utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».

Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto de a redacção daquela norma ser manifestamente defeituosa.

Para além disso, assegurando a revisão do acto tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.

E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adoptada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adopção da interpretação que consagre a solução mais acertada.

É de concluir, assim, que o artigo 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjectivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.

 

2.2. Questão da incompetência material decorrente da circunstância de as decisões dos procedimentos de revisão oficiosa e do recurso hierárquico não terem apreciado a legalidade dos actos de autoliquidação

 

No art. 2.º do RJAT, em que se define a «Competência dos tribunais arbitrais», não se inclui expressamente a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos tributários, pois, na redacção introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, apenas se indica a competência dos tribunais arbitrais para «a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta» e «a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais».

Porém, o facto de a alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do art. 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de actos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de actos passíveis de serem impugnados através do processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objecto um acto de um dos tipos indicados naquele art. 2.º do RJAT.

Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de que o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).

Mas, este mesmo argumento que se extrai da autorização legislativa conduz à conclusão de que estará afastada a possibilidade de utilização do processo arbitral quando, no processo judicial tributário, não for utilizável a impugnação judicial ou a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

Na verdade, sendo este o sentido da referida lei de autorização legislativa e inserindo-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre o «sistema fiscal», inclusivamente as «garantias dos contribuintes» [arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] ( [4] ), e sobre a «organização e competência dos tribunais» [art. 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP], não pode o referido art. 2.º do RJAT, sob pena de inconstitucionalidade, por falta de cobertura na lei de autorização legislativa que limita o poder do Governo (art. 112.º, n.º 2, da CRP), ser interpretado como atribuindo aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competência para a apreciação da legalidade de outros tipos de actos, para cuja impugnação não são adequados o processo de impugnação judicial e a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

Assim, para resolver a questão da competência deste Tribunal Arbitral torna-se necessário apurar se a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa podia ou não ser apreciada, num tribunal tributário, através de processo de impugnação judicial ou acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

O acto de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa do acto tributário constitui um acto administrativo, à face da definição fornecida pelo art. 120.º do CPA de 1991 [subsidiariamente aplicável em matéria tributária, por força do disposto no art. 2.º, alínea d), da LGT, 2.º, alínea d), do CPPT, e 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT e vigente à data em que foi apresentado o pedido de pronúncia arbitral], pois constitui uma decisão de um órgão da Administração que ao abrigo de normas de direito público visou produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.

Por outro lado, é também inquestionável que se trata de um acto em matéria tributária pois é feita nele a aplicação de normas de direito tributário.

Assim, aquele acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa constitui um «acto administrativo em matéria tributária».

Das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de actos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou acção administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conforme esses actos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de actos administrativos de liquidação. ( [5] )

Eventualmente, como excepção a esta regra poderão considerar-se os casos de impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, pelo facto de haver uma norma especial, que é o n.º 2 do art. 102.º do CPPT, de que se pode depreender que a impugnação judicial é sempre utilizável. ( [6] ) Outras excepções àquela regra poderão encontrar-se em normas especiais, posteriores ao CPPT, que expressamente prevejam o processo de impugnação judicial como meio para impugnar determinado tipo de actos. ( [7] )

Mas, nos casos em que não há normas especiais, é de aplicar aquele critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial.

À face deste critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial, os actos proferidos em procedimentos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação apenas poderão ser impugnados através de processo de impugnação judicial quando comportem a apreciação da legalidade destes actos de autoliquidação. Se o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação não comporta a apreciação da legalidade deste será aplicável a acção administrativa especial. Trata-se de um critério de distinção dos campos de aplicação dos referidos meios processuais de duvidosa justificação, mas o certo é que é o que resulta do teor das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e tem vindo a ser uniformemente adoptado pelo Supremo Tribunal Administrativo. ( [8] )

Esta constatação de que há sempre um meio impugnatório processual adequado para impugnar contenciosamente o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação, conduz, desde logo, à conclusão de que não se está perante uma situação em que no processo judicial tributário pudesse ser utilizada a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois a sua aplicação no contencioso tributário tem natureza residual, uma vez que essas acções «apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido» (art. 145.º, n.º 3, do CPPT).

Uma outra conclusão que permite a referida delimitação dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial é a de que, restringindo-se a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD ao campo de aplicação do processo de impugnação judicial, apenas se inserem nesta competência os pedidos de declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos autoliquidação que comportem a apreciação da legalidade destes actos.

A preocupação legislativa em afastar das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a apreciação da legalidade de actos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, para além de resultar, desde logo, da directriz genérica de criação de um meio alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, resulta com clareza da alínea a) do n.º 4 do art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se indicam entre os objectos possíveis do processo arbitral tributário «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação», pois esta especificação apenas se pode justificar por uma intenção legislativa no sentido de excluir dos objectos possíveis do processo arbitral a apreciação da legalidade dos actos que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação.

Por isso, a solução da questão da competência deste Tribunal Arbitral conexionada com o conteúdo dos actos de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa e do recurso hierárquico, depende da análise destes actos e do juízo que se fizer sobre comportarem ou não a apreciação da legalidade de actos de autoliquidação.

 

2.2.1. Conteúdo do despacho de 30-10-2013 que indeferiu o pedido de revisão oficiosa n.º RO … 2013 …, relativa a «liquidação e pagamento do IVA efetuado em excesso nos períodos de Novembro e Dezembro de 2008 no valor de € 9.370,80» (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido)

 

            O despacho do Senhor Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira de 30-10-2013, limitou-se a manifestar concordância com a proposta formulada na Informação n.º 2302, que consta do processo administrativo e do documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos.

Dessa Informação consta, além do mais o seguinte:

 

De harmonia com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 78.º da LGT, a revisão dos atos tributários por iniciativa da administração tributária pode ter lugar no prazo de quatro anos a contar da liquidação ou a todo o tempo, se o imposto ainda não estiver pago e pode ocorrer quando houver erro imputável aos serviços, considerando-se como talo erro na autoliquidação, ao passo que, por iniciativa dos sujeitos passivos só o pode ser dentro do prazo de reclamação graciosa.

No n.º 7 do mesmo artigo, refere-se que "interrompe o prazo da revisão oficiosa do acto tributário ou da matéria tributável o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para a sua realização".

De acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA, "quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.ºda lei geral tributária".

Estes preceitos legais devem ser interpretados no sentido de que não podem prejudicar a aplicabilidade efetiva das normas do Código do IVA que regulam, de modo especial, a correção de erros materiais ou de cálculo evidenciados nos registos ou nas declarações periódicas.

De outro modo, esses preceitos legais perderiam toda a sua eficácia e razão de existir. Os sujeitos passivos poderiam, ainda que não estivessem reunidos os pressupostos neles previstos, nomeadamente a tempestividade, obter o mesmo fim que deles resultaria através do recurso ao mecanismo de revisão dos atos tributários.

Admitir essa possibilidade significaria que normas de carácter geral da LGT prevaleceriam sobre normas especiais consignadas nos códigos fiscais, o que não é aceitável, mais ainda no caso do IVA, que se trata de imposto de matriz comunitária.

Neste contexto, tem-se entendido que a revisão oficiosa da autoliquidação do IVA não pode fazer-se pondo em causa os pressupostos legais de que depende o exercício do direito à dedução, sob pena de os mesmos ficarem desprovidos de efetividade.

Quanto ao momento e modalidades do exercício do direito à dedução, há, assim, que observar as disposições do artigo 22.º, nomeadamente as seguintes:

"1 - O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, de acordo com o estabelecido pelos artigos 7.º e 8.º, efectuando-se mediante subtracção ao montante global do imposto devido pelas operações tributáveis do sujeito passivo, durante um período de declaração, do montante do imposto dedutível, exigível durante o mesmo período.

2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 78.º, a dedução deve ser efetuada na declaração do período ou de período posterior àquele em que se tiver verificado a receção das faturas ou de recibo de pagamento do IVA que fizer parte das declarações de importação".

Depreende-se dessas disposições legais que o sujeito passivo não dispõe de liberdade absoluta quanto ao momento de dedução do imposto.

Essa liberdade também não resulta do preceituado no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, uma vez que, pelo seu caracter geral, se trata de norma apenas aplicável a situações que não estejam abrangidas pela previsão do artigo 78.º do mesmo Código, ou em qualquer outra norma legal que estabeleça um prazo especial para o mesmo efeito.

A não ser assim, as normas que estabelecessem um prazo mais curto que o de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou do pagamento em excesso do imposto, consoante o caso, a que alude o citado n.º 2 do artigo 98.º, não leriam qualquer efeito útil.

Conforme doutamente escreveu o Supremo Tribunal Administrativo (STA), no Acórdão de 2011-05-18, no processo 0966/10, que passamos a transcrever:

"I -Em regra, estabelecida no art. 22.º, nº 1, do CIVA, a dedução de imposto deverá ser efectuada na declaração do período em que se tiver verificado a recepção das facturas, documentos equivalentes ou recibo de pagamento de IVA que fizer parte das declarações de importação, admitindo-se, no entanto, a possibilidade de correcções previstas no art. 71 .º.

II -Assim, a dedução do imposto não pode ser efectuada em qualquer momento, à escolha do sujeito passivo, sendo o alcance útil das normas referidas que indicam os momentos adequados para a dedução precisamente o de excluir que esta se possa fazer em momentos diferentes, quando tal não esteja especialmente previsto.

III -O n.º 2 do art. 92.º do CIVA, ao estabelecer que o direito à dedução só poderá ser exercido até ao limite de quatro anos após o nascimento do direito à dedução, não tem o alcance de atribuir ao sujeito passivo a liberdade de escolher qualquer momento dentro desse período para efectuar a dedução, mas sim de fixar um limite máximo que não pode ser excedido, mesmo nos casos em que a dedução pode efectuar em momentos diferentes dos indicados naquele art. 22.º.

IV -Para além do art 71.º, n.º 6, do CIVA, não existe qualquer disposição legal que se possa interpretar como permitindo ao sujeito passivo o exercício do direito à dedução em momento posterior aos que resultam deste art. 22.º indicados, nos casos em que, por lapso efectuado na sua contabilidade, só detecte que tinha direito à dedução em momento posterior àquele em que devia efectuar".

Esta jurisprudência, ainda que firmada relativamente ao direito à dedução, deve considerar-se extensiva aos demais casos para os quais são estabelecidos prazos especiais no artigo 78.º do Código do IVA.

A dedução de imposto, total ou parcial, é objeto de registo na contabilidade dos sujeitos passivos, servindo tal registo de base ao preenchimento da respetiva declaração periódica.

Considerando que a dedução de IVA é efetuada pelo sujeito passivo na sua contabilidade (internamente), tem vindo a ser firmado o entendimento de que a autoliquidação do IVA sem essa dedução consubstancia, em regra, um erro de cálculo no apuramento do imposto e que esse erro está sujeito à disciplina do n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA.

Numa situação em que não é obrigatória a repercussão do IVA, nos termos do n.º 3 do artigo 37.º do Código do IVA, o sujeito passivo deve proceder à liquidação de imposto na sua contabilidade (internamente).

Eventuais erros que ocorram nessa liquidação interna de IVA são imputáveis exclusivamente ao sujeito passivo e não têm interferência na esfera de outras entidades, sendo, portanto, também de qualificar corno erros de cálculo no apuramento do imposto, com enquadramento no regime do n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA.

O dito n.º 6 do artigo 78.º diz-nos que "a correcção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efectuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respectivo direito nos lermos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado".

Segundo orientações administrativas veiculadas pelo Ofício-Circulado n.º 30082/2005, de 17 de novembro, da Direção de Serviços do IVA, trata-se da "(...) correcção de erros materiais ou de cálculo efectuados nos registos ou nas declarações periódicas", sendo de considerar " (. .. ) erros materiais ou de cálculo aqueles que resultam de erros internos da empresa e não têm qualquer interferência na esfera de terceiros".

Por força do disposto no artigo 12.º da Lei n.º 39-Al2005, de 29 de julho, que veio dar nova redação a norma do n.º 6 do artigo 78.º em referência, foi alargado para dois anos o prazo que os sujeitos passivos dispõem para poderem regularizar, a seu favor, o imposto resultante da correção de erros materiais ou de cálculo evidenciados nos registos ou nas declarações periódicas.

Em contrapartida, foi eliminado o número 7 do mesmo artigo, que permitia aos sujeitos passivos solicitar à administração fiscal autorização para regularizar O imposto, a seu favor, em casos devidamente justificados, no prazo de quatro anos.

Essa possibilidade assentava num poder discricionário da administração fiscal, que criava o risco de haver tratamentos diferenciados. Por outro lado, alguns sujeitos passivos apresentavam o pedido quase no final do prazo da caducidade do direito à liquidação, o que gerava significativas dificuldades de controlo. Sendo ambas as situações indesejáveis, entendeu-se que o mais adequado seria eliminar essa possibilidade (cfr. ponto 11.5 do Ofício-Circulado n.º 30082/2005).

O prazo para a regularização de erros materiais ou de cálculo de dois anos é considerado suficiente, na perspetiva das garantias dos sujeitos passivos, sendo de realçar a aproximação

desse prazo ao previsto, no n.º 1 do artigo 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), para a reclamação graciosa em caso de autoliquidação (º).

Tal prazo é também compatível com a jurisprudência comunitária que garante aos sujeitos passivos a possibilidade de regularizarem o IVA a seu favor, em virtude de erros nos registos ou nas declarações periódicas.

Considerando que os Estados-membros não estão obrigados a autorizar os sujeitos passivos a proceder à correção de tais erros a todo o tempo ou no próprio prazo de caducidade do direito à liquidação, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) admite a fixação de prazos especiais mais curtos, que se mostrem razoáveis para o efeito.

Quanto é questão de saber o que se deve entender por prazo «razoável», o mesmo Tribunal já decidiu que um prazo perentório de dois anos não inviabiliza, à partida, o exercício do direito a dedução. Tal prazo é, portanto, admissível.

No caso vertente, alega a Requerente que, com referência aos produtos "KIT RECRUTA", entregues às "Demonstradoras", com vista à experimentação de futuros clientes, como fase prévia e necessária à aquisição dos produtos que comercializa, está excluída a tributação, nos termos da allnea f) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do IVA, pelo que terá liquidado e pago imposto indevidamente ao Estado, no valor total de €8.937,94.

Por outro lado, entende que, ao abrigo do disposto no artigo 21º do Código do IVA, pode recuperar 50% do IVA incorrido nas despesas de alojamento, alimentação e bebidas das participantes, bem como do aluguer de salas, quando da realização dos eventos "Rally Sul", "Rally Norte" e "Reuniões de Demonstradoras", que organizou no ano de 2008, e 100% do IVA suportado nas restantes aquisições de bens e serviços, para a organização desses eventos, no montante global de €432,86.

Em qualquer dos casos, estão em causa alegados erros de que resultou a entrega em excesso de IVA, pelo que a sua eventual regularização só podia fazer-se nos termos e nos prazos previstos no artigo 78.º, n.º 6, do Código do IVA.

Verifica-se, no entanto, que o prazo de dois anos legalmente estabelecido já havia terminado quando o presente pedido de revisão, respeitante aos períodos de imposto de novembro e dezembro do ano de 2008, foi apresentado (em 2012-12-28).

Face ao que antecede, propõe-se o indeferimento do presente pedido de revisão dos atos tributários.

3. DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA

Em conformidade com as instruções veiculadas no ponto 3 da Circular n.º 13/99, de 1999-07-08, da Direção de Serviços de Justiça Tributária, a audiência dos interessados pode ser dispensada, nomeadamente quando a administração tributaria apenas aprecie os factos que lhe são dados pelo contribuinte, limitando-se, na sua decisão, a fazer a interpretação das normas legais aplicáveis ao caso Assim sendo, somos de parecer que, no caso vertente, é de dispensar a audição prévia da Requerente.

4. CONCLUSÃO

Face ao exposto, propõe-se o indeferimento do presente pedido de revisão dos atos tributários.

 

Examinando esta fundamentação, não se encontra nela qualquer juízo, mesmo que sumário, sobre a legalidade dos actos de autoliquidação de IVA.

            Na verdade, a Autoridade Tributária e Aduaneira, depois de explanar o regime legal que entende aplicável, limita-se, em suma, a manifestar o entendimento de que «estão em causa alegados erros de que resultou a entrega em excesso de IVA, pelo que a sua eventual regularização só podia fazer-se nos termos e nos prazos previstos no artigo 78.º, n.º 6, do Código do IVA».

            Sendo assim, o despacho de indeferimento de 30-10-2013 não comporta a apreciação da legalidade de qualquer acto de liquidação ou autoliquidação.

Por isso, o meio adequado para o impugnar nos tribunais tributários é a acção administrativa especial e não o processo de impugnação judicial.

Sendo assim, pelo que se referiu sobre o âmbito de competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a apreciação da legalidade daquele despacho de 30-10-2013 não se insere nessa competência.

Procede, assim a excepção da incompetência material quanto a este pedido.

 

2.2.1. Conteúdo do despacho de indeferimento proferido em 19-09-2014 notificado à Requerente por ofício de 22-09-2014 ( [9] ) que indeferiu a Revisão Oficiosa n.º RO 29 2014 000 027, relativa à «liquidação e pagamento do IVA efetuado em excesso nos períodos de Janeiro de 2009 a Dezembro de 2011 no valor de € 186.704,16» (documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido)

 

O despacho de indeferimento da revisão oficiosa n.º R0… 2014 … foi proferido em 19-09-2014, manifestando concordância com a Informação n.º ..., de 07-07-2014 da DSIVA.

Nessa Informação n.º ..., que consta da parte 4 do processo administrativo, refere-se, além do mais, o seguinte:

 

2. APRECIAÇÃO DO PEDIDO, FUNDAMENTAÇÃO e TEMPESTIVIDADE

A Requerente vem solicitar que o presente pedido de revisão oficiosa [ou da forma para a qual este vier a ser convolado], apresentado ao abrigo do número 1 do artigo 78.º da LGT, seja deferido no sentido de autorizar a regularização de IVA a seu favor, no valor de €186.704,16, por via da Inclusão deste valor numa próxima declaração periódica.

De acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA, "quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos lermos do artigo 78.º da lei geral tributária".

A revisão dos atos tributários por iniciativa da administração tributária pode ter lugar no prazo de quatro anos a contar da liquidação ou a todo o tempo, se o imposto ainda não estiver pago, com fundamento em erro imputável aos serviços, considerando-se como tal o erro na (auto)liquidação, ao passo que, por iniciativa dos sujeitos passivos, só o pode ser dentro do prazo de reclamação administrativa, com fundamento em qualquer ilegalidade (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 78.º da LGT).

Essa norma, porém, deve ser Interpretada no sentido de que não pode prejudicar a aplicabilidade efetiva dos demais preceitos do Código do IVA, nomeadamente os que regulam, de modo especial, a correção de erros materiais ou de cálculo evidenciados nos registos ou nas declarações periódicas.

De outro modo, esses preceitos legais perderiam a sua eficácia e razão de existir, pois, os sujeitos passivos poderiam, ainda que não estivessem reunidos os pressupostos neles previstos, nomeadamente a tempestividade, obter o mesmo fim que deles resultaria através do recurso ao mecanismo de revisão dos atos tributários.

Por outro lado, a admitir-se essa possibilidade, significaria que normas de caracter geral da LGT prevaleceriam sobre normas especiais consignadas nos códigos fiscais, o que não é aceitável, mais ainda no caso do IVA, que se trata de um imposto de matriz comunitária.

Como escreve Clotilde Celorico Palma (º), "0 IVA é um imposto de matriz comunitária, ou seja, temos, a nível comunitário, um sistema comum do IVA que faz parte do "adquirido comunitário" ("acquis communautaire”)".

Neste sentido, o princípio comunitário da interpretação uniforme impõe que a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) seja acolhida pelos Estados-membros, no âmbito da interpretação das normas do Código do IVA (º).

É jurisprudência assente do TJUE que "compete aos Estados-Membros definir o processo para regularização do Imposto sobre o valor acrescentado indevidamente facturado, desde que esta regularização não dependa do poder de apreciação discricionário da administração fiscal.

No caso português, as situações genéricas de retificação ou de regularização do IVA estão previstas no artigo 78.° do Código do IVA, nomeadamente na norma do n.º 6 desse artigo

Segundo orientações administrativas veiculadas pelo Ofício-Circulado n.º 30082/2005, de 17 de novembro, da Direção de Serviços do IVA, essa norma refere-se a "(.. ) correcção de erros materiais 011 de cálculo efectuados nos registos ou nas declarações periódicas", sendo de considerar "(... ) erros materiais ou de cálculo aqueles que resultam de erros internos da empresa e não têm qualquer interferência na esfera de terceiros".

Por força do disposto no artigo 12.° da Lei n° 39-A/2005, de 29 de julho, que veio dar nova redação à norma do n.º 6 do artigo 78.° do Código do IVA, foi alargado para dois anos o prazo que os sujeitos passivos dispõem para poderem regularizar, a seu favor, o imposto resultante da correção de erros materiais ou de cálculo evidenciados nos registos ou nas declarações periódicas.

Em contrapartida, foi eliminado o número 7 do mesmo artigo, que permita aos sujeitos passivos solicitar à administração fiscal autorização para regularizar o imposto, a seu favor, em casos devidamente justificados, no prazo de quatro anos.

Essa possibilidade assentava num poder discricionário da administração fiscal, que criava o risco de haver tratamentos diferenciados. Além disso, alguns sujeitos passivos apresentavam o pedido quase no final do prazo da caducidade do direito à liquidação, o que gerava significativas dificuldades de controlo. Sendo ambas as situações indesejáveis, entendeu-se que o mais adequado seria eliminar essa possibilidade (cfr. ponto 11.5 do Oficio-Circulado n.º 30082/2005)

O prazo de dois anos para a regularização de erros materiais ou de cálculo é considerado suficiente, na perspetiva das garantias dos sujeitos passivos, sendo de realçar a aproximação desse prazo ao previsto, no n.º 1 do artigo 131.° do CPPT, para a reclamação graciosa em caso de autoliquidação .

Tal prazo é também compatível com a jurisprudência comunitária que garante aos sujeitos passivos a possibilidade de regularizarem o IVA a seu favor, em virtude de erros nos registos ou nas declarações periódicas.

Considerando que os Estados-membros não estão obrigados a autorizar os sujeitos passivos a proceder à correção de tais erros a todo o tempo ou no próprio prazo de caducidade do direito à liquidação, o Tribunal de Justiça admite a fixação de prazos especiais mais curtos, que se mostrem razoáveis para o efeito.

Quanto à questão de saber o que se deve entender por prazo «razoável», o mesmo Tribunal Já decidiu que um prazo perentório de dois anos não inviabiliza, à partida, o exercício do direito a dedução. O mesmo que dizer que tal prazo é admissível.

Tem sido firmado o entendimento de que, sendo a dedução de IVA efetuada pelo sujeito passivo na sua contabilidade (internamente), a (auto)liquidação do IVA sem essa dedução consubstancia, em regra, um erro de cálculo no apuramento do imposto.

Encontra-se também esclarecido que esse erro está sujeito a disciplina do n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA.

Trata-se, portanto, de um erro de cálculo no apuramento do Imposto, cuja regularização a favor do sujeito passivo é facultativa o não depende de poder de apreciação discricionário da administração fiscal, só podendo ser efetuada no prazo de dois anos.

Quando opta por não repercutir o IVA aos adquirentes dos bens ou serviços, nos termos do n.º 3 do artigo 37.º do Código do IVA, o sujeito passivo deve proceder à liquidação de imposto na sua contabilidade (internamente)

Eventuais erros internos que ocorram nessa liquidação de IVA são imputáveis exclusivamente ao sujeito passivo e não têm interferência na esfera de outras entidades, sendo tais erros de qualificar como erros de cálculo no apuramento do imposto, com enquadramento no regime do n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA

A Requerente vem defender que se trata, em qualquer dos casos, de um erro de direito e que este não se subsume no conceito de erro de cálculo do imposto, tal como ele tem Sido entendido pela Administração Fiscal. No entanto, socorre-se, para tal, de conceitos do direito processual tributária e do direito privado.

Tratando-se do um imposto de base comunitária, como já o dissemos, os conceitos previstos no Código do IVA não devem ser entendidos à luz do direito interno, sob pena de se colocar em causa a neutralidade do imposto, a nível internacional.

Face ao exposto, conclui-se que o prazo de dois anos, que se encontra estabelecido no n.º 6 do artigo 78º do Código do IVA, é aplicável relativamente a qualquer das situações expostas pela Requerente, seja de (auto)liquidação de IVA aquando da entrega do "KIT RECRUTA" seja de não dedução de imposto suportado na organização de eventos.

Esse prazo, no caso do exercício do direito a dedução, é contado a partir do nascimento do respectivo direito, nos termos do n.º 1 do artigo 22.º do Código do IVA, e nos demais casos, contar-se-á a partir do momento em que se procedeu à liquidação do imposto.

Segundo as listagens relativas a aquisições de bens/serviços relativas a organização de eventos, para os anos de 2009 a 2011, que se juntam a fls. 26-30 do presente processo tais aquisições ocorreram até 2011-11-23, pelo que a correção de erros relativos a dedução do correspondente imposto suportado já não se mostra possível, em 2013-12-30 (data da entrega do presente pedido de revisão).

Nessa data, haviam decorrido mais de dois anos, a partir do momento em que nasceu o correspondente direito à dedução, que coincide com a data da exigibilidade do imposto suportado, nos termos do artigo 7.º e 8.º do Código do IVA (em regra, a data de emissão da correspondente fatura).

Relativamente à liquidação do IVA na atribuição do "KIT RECRUTA", nenhuns dados em concreto são fornecidos, mas também se afigura ter precludido o prazo legal de dois anos, a que se refere o n° 6 do artigo 78° do Código do IVA.

Se estivesse ainda em curso tal prazo, não seria admissível o pedido de revisão dos atos tributários, pois, de acordo com o estabelecido no n.º 2 do artigo 97.º do Código do IVA, "Os recursos hierárquicos, as reclamações e as Impugnações não são admitidos se as liquidações forem ainda susceptíveis de correcção nos termos do artigo 78º do mesmo Código.

Conforme anotações do Núcleo do IVA, da então Direção-Geral das Contribuições e Impostos, "a possibiIidade de reclamação ou impugnação não é concedida quando as liquidações ou deduções (que por sua vez influenciam o montante do imposto a pagar) sejam ainda susceptíveis de correcção, nos termos do artigo 71.º”) Não seria compreensível que o contribuinte pudesse accionar meios de defesa administrativos ou judiciais, quando a lei lhe concede um processo directo e simples, contabilístico, de correcção".

Quanto à alegação de que a Direção de Serviços do IVA ter-se·- já pronunciado no sentido de admissibilidade de um pedido, nos termos do artigo 78.º da LGT, para a regularização do IVA a favor do sujeito passivo que haja sido (auto)liquidado em excesso há mais de dois anos, afigura-se-nos que a mesma não pode ser atendida.

A Requerente refere-se a anterior entendimento da Direção de Serviços do IVA, que consta da informação n.º 1568, de 2010·04-19, da Direção de Serviços do IVA, mas que foi alterado, por se ter considerado não corresponder a uma adequada interpretação da legislação fiscal aplicável

Em conformidade com Jurisprudência assente do STA, no Acórdão de 1999-02-03, in recurso n º 023137, "o princípio constitucional da protecção da confiança impõe aos órgãos da Administração a observância do principio da legalidade (art. 266, n.º 2), mas não confere aos cidadãos qualquer direito à manutenção de uma prática da Administração que esta reputa como ilegalº (ponto VIII do sumário)

O princípio da igualdade "(... ) exige que a administração tributária não leve a cabo uma actuação discriminatória e não que mantenha indefinidamente uma mesma interpretação das normas tributárias. Por isso, se, depois de ter mantido uniformemente, durante um certo período de tempo, uma mesma interpretação da lei, na sua aplicação aos casos concretos, a administração tributária se convence que é correcta uma outra Interpretação, o princípio da igualdade não é obstáculo a que a passe a adoptar na sua prática, exigindo apenas, para não existir discriminação, que a nova interpretação seja aplicada generalizadamente“

Não obstante o disposto no artigo 78.º da LGT, tem sido firmado o entendimento de que, na generalidade das correções à autoliquidação do IVA que sejam imputáveis exclusivamente ao sujeito passivo e que não tenham interferência na esfera de outras entidades, estamos perante a existência de erros materiais ou de cálculo no apuramento do imposto e, assim sendo, tais correções estão sujeitas ao mecanismo de regularização previsto no n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA

À luz do princípio da neutralidade, que caracteriza o sistema comum do IVA, não se pode conceder um tratamento mais favorável ao sujeito passivo que evidencia desconhecimento da lei, por exemplo, porque liquidou IVA em excesso, ou deduziu um montante inferior ao que teria direito a deduzir, concedendo a autorização para regularizar o IVA entregue em excesso para além dos dois anos (dentro, porém, do prazo de quatro anos), do que aquele que é conferido ao sujeito passivo que, embora conhecedor da lei e zeloso no seu cumprimento, cometeu um mero lapso de escrita na sua contabilidade ou nas declarações periódicas entregues.

Não pode ignorar-se um amplo direito à informação que é conferido aos sujeitos passivos, sobretudo quando se trata de uma sociedade por quotas, que deve possuir contabilidade organizada e um Técnico Oficial de Contas.

Na sequência de uma revisão de procedimentos, a Requerente detetou a existência de erros no cálculo do imposto, em resultado da (auto) liquidação de IVA que considera não ser devido e do não exercício do direito à dedução de imposto suportado a montante, pelo que se nos afigura que estamos perante erros com enquadramento no disposto no n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA

Com a eliminação do prazo de quatro anos que, anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 39-A/2005, de 29 de Julho, constava do n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA, deveria a ora Requerente ter procedido à aludida revisão de procedimentos em tempo que lhe permitisse regularizar a seu favor o alegado imposto entregue em excesso dentro do prazo de dois anos.

Não tendo assim procedido, não se pode permitir, a pretexto de alegados "erros de direito", o alargamento do atual prazo de dois anos, quando o que se pretende mais não é do que" correção de supostos erros no apuramento do IVA a entregar ao Estado.

Sem conceder, ainda que se considerasse que qualquer das situações em análise não teria enquadramento nas normas do artigo 78.º do Código do IVA, mas antes que lhes seria aplicável o prazo geral e supletivo a que se refere o n.º 2 do artigo 98.º do mesmo Código, sempre se haveria de concluir pela intempestividade do presente pedido de revisão, relativamente aos meses de janeiro a novembro do ano de 2009, por haverem decorrido mais de quatro anos, após o nascimento do direito a dedução ou a (auto)liquidação em excesso do imposto, consoante o caso, dado que esse pedido só foi apresentado em 2013-12-30.

Em tal hipótese, e relativamente aos meses de dezembro de 2009 a dezembro de 2011, ainda se teriam de analisar e verificar os factos alegados, nomeadamente se foi efetivamente (auto)liquidado IVA em excesso, se havia efetivamente o direito à dedução de IVA incorrido nos eventos e qual o imposto entregue em excesso dai resultante.

3. CONCLUSÃO

Tendo em consideração o exposto, propõe-se o indeferimento do presente pedido de revisão dos atos tributários, devendo proceder-se à notificação da Requerente para, querendo, vir exercer o direito de audição, nos termos e para efeitos do artigo 60.º da LGT.

 

Como se vê por esta fundamentação, também neste caso não houve qualquer apreciação da legalidade dos actos de autoliquidação, ma apenas tomada de posição sobre a tempestividade da pretensão da Requerente.

Por isso, o despacho de indeferimento da revisão oficiosa n.º RO… 2014 …, de 19-09-2014, notificado por ofício de 22-09-2014, também não comporta a apreciação da legalidade de qualquer dos actos autoliquidação referidos pela Requerente.

Assim, como decorre do artigo 97.º, n.ºs 1, alíneas d) e p), e 2, do CPPT, e 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o meio adequado para o impugnar nos tribunais tributários é a acção administrativa especial e não o processo de impugnação judicial.

Consequentemente, pelo que se referiu sobre o âmbito de competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a apreciação da legalidade daquele despacho de 19-09-2014, que inferiu o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente relativamente ao IVA dos meses de Janeiro de 2009 a Dezembro de 2011, não cabe na competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

Procede, assim a excepção da incompetência material quanto a este pedido de anulação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º RO 29… 2014 ….

2.3. Despacho de 08-08-2014, que indeferiu o recurso hierárquico n.º .../2013-...

 

Com o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente juntou o documento n.º 4, relativo à decisão de indeferimento do recurso hierárquico n.º .../2013-..., que é um despacho de 08-08-2014, proferido pela Senhora Directora de Serviços do IVA, por subdelegação.

O recurso hierárquico foi interposto da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º …/2013-….

A decisão de indeferimento limita-se a manifestar concordância com a informação n.º 2157, de 08-08-2014, que consta daquele documento n.º 4, cujo teor se dá como reproduzido, de que consta, além do mais, o seguinte:

De harmonia com o despacho exarado na informação n.º ..., de 2014-06-12, da Direção de Serviços do IVA, o sujeito passivo A... PORTUGAL ARTIGOS DOMÉSTICOS LDA, NIF ..., com sede na Avenida …, … Lisboa, foi notificado] para, no prazo de 15 (quinze) dias, e em cumprimento do disposto no artigo 60.° d)a Lei Geral Tributária (LGT), exercer, se assim o entendesse, o direito de audição prévia relativamente ao projeto de decisão constante da referida informação, elaborada na sequência do recurso hierárquico interposto pelo citado sujeito passivo.

 

Na Informação n.º ..., que consta da parte 2 do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se, além do mais, o seguinte:

 

5.2.2. ANÁLISE

Em conformidade com os elementos constantes do presente processo, estão em causa as liquidações adicionais de IVA, promovidas pelos SIT, no montante global de €9.957,97, e respetivos juros compensatórios, no valor de €1.475,42, relativos ao ano de 2008.

Os SIT apuraram IVA em falta, com base num "Mapa Auxiliar", cedido pela ora Recorrente, que permitiu apurar que a mesma procedeu à liquidação de IVA sobre o valor de €182.873,50, quando, na sua contabilidade, as "Vendas Não ..." e as "Vendas ..." ("KIT RECRUTA") ascendem ao montante global de €232.663,34, evidenciando uma diferença não tributada em IVA, de €49.789,84.

Questionada a ora Recorrente, a mesma informou que essa diferença não foi tributada por se ter considerado que respeitava a ofertas de pequeno valor.

Constatando que o valor de ofertas não tributadas legalmente permitido já havia sido ultrapassado, com as rubricas de "Vendas Incentive", "Vendas Atividade" e "Ofertas", os SIT concluíram que o montante de €49.789,84 estava sujeito a lVA, à taxa normal, apurando imposto em falta, na quantia de € 9.957,97 (€49.789,84 * 20%), relativamente ao período 200812.

Por seu turno, a Recorrente, embora confirme que o imposto em causa está relacionado com os produtos enviados às "Demonstradoras", a título de "vendas KIT RECRUTA", vem alegar que tais produtos não se destinam a posterior comercialização, mas antes a ser utilizados para promover os produtos comercializados junto de potenciais clientes.

Segundo a Recorrente, os produtos que compõem o "KIT RECRUTA" não têm um tamanho ou formato diferente do que constitui a unidade de venda, nem poderiam ter, porque não permitiriam uma correta divulgação dos produtos comercializados.

Não obstante, entende que esses "KIT RECRUTA", face à sua utilização, preenchem os requisitos para se qualificarem como amostras, na medida em que se destinam única e exclusivamente a apresentar e a promover os produtos comercializados.

Nesse sentido, defende que não há razão para qualificar as entregas de bens em apreço como ofertas, nem para que seja liquidado IVA sobre o excedente, no valor de €9.957,97, o que cumpre analisar.

De harmonia com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do Código do IVA, estão sujeitas a IVA "as transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal".

O conceito de transmissão de bens, para efeitos de IVA, vem previsto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IVA, como sendo, em regra, "( ... ) a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade".

Porém, a alínea f) do n.º 3 do artigo 3° do Código do IVA estabelece que se considera ainda transmissão de bens, ''(...) a afectação permanente de bens da empresa, a uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral a fins alheios à mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando, relativamente a esses bens ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto".

Não obstante, em conformidade com o disposto n.º 7 do mesmo artigo, "excluem-se do regime estabelecido na alínea f) do n.º 3, nos termos definidos por portaria do Ministro das Finanças, os bens não destinados a posterior comercialização que, pelas suas características, ou pelo tamanho ou formato diferentes do produto que constitua a unidade de venda, visem, sob a forma de amostra, apresentar ou promover bens produzidos ou comercializados pelo próprio sujeito passivo, assim como as ofertas de valor unitário igual ou inferior a (euro) 50 e cujo valor global anual não exceda cinco por mil do volume de negócios do sujeito passivo no ano Civil anterior, em conformidade com os usos comerciais".

A regulamentação dos termos e condições em que a exclusão da tributação de amostras e de ofertas de pequeno valor ocorre é, assim, remetida para portaria.

Nesse sentido, a Portaria n.º 497/2008, de 24 de junho, veio regulamentar as condições delimitadoras do conceito de amostra e de ofertas de pequeno valor e definir os procedimentos e obrigações contabilísticas a cumprir pelos sujeitos passivos do imposto, para efeitos de aplicação do disposto no n.º 7 do artigo 3.º do Código do IVA

Nos termos do n.º 1 do artigo 2.° dessa portaria, "consideram-se amostras os bens, não destinados a posterior comercialização, de formato ou tamanho diferentes do produto que constitua a unidade de venda ou apresentados em quantidade, capacidade, peso ou medida substancialmente inferiores aos que constituem a unidade de venda que se destinem a apresentar ou promover produtos produzidos ou comercializados pejo sujeito passivo".

Esta exigência quanto ao formato e/ou tamanho dos bens visa obstar a que os produtos que são utilizados como amostras venham a ser comercializados e/ou a entrar no consumo, violando os fins da Diretiva IVA, nomeadamente o da neutralidade fiscal.

Embora se exija que as amostras apresentem um formato que não seja suscetível de substituir os produtos destinados a consumo final, a natureza dos produtos ou as suas características podem não permitir ter amostras distintas dos produtos comercializados, como sucede no caso dos compact disc (CD), digital video disc (DVD), discos, cassetes, filmes, vídeos e outros registos de som ou de imagem transmitidos gratuitamente pelos editores ou produtores a determinados operadores económicos (vide Portaria n.º 497/2008).

A Recorrente alega que não lhe é possível alterar o seu processo produtivo apenas para obter produtos em consonância com o conceito de amostra, previsto na referida Portaria, e que os produtos integrados no "KIT RECRUTA", não obstante serem do mesmo formato do produto final destinam-se exclusivamente à promoção e demonstração dos produtos comercializados, devendo ser qualificados como amostras.

Essa questão já foi objeto de análise e esclarecimento por parte da Direção de Serviços do IVA, em resposta ao pedido de Informação vinculativa n.º 5677, submetido pela ora Recorrente em 2013-08-27, da qual se extraem as seguintes conclusões:

"[...]

41. (...) Muito embora os produtos utilizados como amostras e que compõem os "Kit recruta" não estejam em consonância com o conceito de amostra estabelecido no n.º 1 do artigo 2° da Portaria n.º 497/2008, de 24 de junho, atendendo ao declarado pela requerente e ao estabelecido no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 30 de setembro de 2010, proferido no âmbito do Processo C-581/08, afigura-se que os mesmos podem ser considerados abrangidos pela exclusão da tributação em IVA, nos termos do n.º 7 do artigo 3° do CIVA.

42. Deve, contudo, a requerente observar as condições estabelecidas na Portaria n.º 497/2008, designadamente, contabilizar as amostras em contas apropriadas, registar separadamente os bens que constituam existências próprias e aqueles que sejam adquiridos a terceiros, bem como, dispor de um registo extracontabilístico que permita conhecer a identificação fiscal dos beneficiários das amostras e o número de exemplares transmitidos.

43. No que respeita a entrega dos "Kit recruta" as "Demonstradoras" a requerente refere que o mesmo não é faturado. De facto, e embora mencione que quando a "Demonstradora" efetua a sua primeira encomenda lhe acresce uma majoração ao valor dos produtos encomendados, declara que tal majoração não constitui uma contrapartida pela atribuição do citado Kit.

44. Deste modo, e atendendo a que a requerente no presente pedido de informação não menciona se os "Kit recruta" atribuídos às "Demonstradoras" permanecem, ou não, sua propriedade, importa esclarecer que caso se verifique a transferência de propriedade daqueles bens da requerente para as "Demonstradoras", a mesma configura uma transmissão de bens, nos termos do artigo 3.º do CIVA, sujeita a tributação à taxa normal prevista no artigo 18.º do mesmo diploma"

No presente processo, designadamente a fls. 49-51, a Recorrente junta cópias das faturas n.ºs 8036007, 8062317 e 8053626, com datas de, respetivamente, 2008-05-02, 2008-08-01 e 2008-07-02, a fim de comprovar a atribuição a título gratuito dos designados "KIT RECRUTA",

Com efeito, consta de tais documentos a atribuição de "KIT DEMONSTRAÇÃO GRATIS", "a ser entregue pela Coordenadora", o que significa também que tais KIT deixam de ser propriedade da empresa.

Por conseguinte, tais documentos permitem, confirmar que estamos perante transmissões de bens, para efeitos de IVA, nos termos legais supra referidos, havendo lugar à liquidação de imposto.

Se a Recorrente procedeu à liquidação de IVA sobre o valor de €182.813,50, quando, na sua contabilidade, as "Vendas Não ..." e as "Vendas ..." ("KIT RECRUTA") registavam um montante global de €232,663,34, evidenciando uma diferença não tributada em IVA de €49,789,84, mostra-se devida a liquidação de imposto, no valor de €9 957,97, promovida pelos SIT.

Por outro Indo, estabelecendo o n.º 1 do artigo 96.º do Código do IVA que, "sempre que, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação ou tenha sido recebido reembolso superior ao devido, acrescem ao montante do imposto juros compensatórios nos termos do artigo 35º da lei geral tributária”, tem de haver-se como igualmente devidos os juros compensatórios, que aqui se reclamam, no valor de €1,475,42.

Face ao que antecede, verifica-se que as alegações da Recorrente não podem ser atendidas, razão pela qual se propõe o indeferimento do presente recurso hierárquico.

 

Como se vê pela fundamentação que antecede, a decisão do recurso hierárquico comporta a apreciação da legalidade dos actos de liquidação relativos ao ano de 2008, no valor de € 9.957,97, e respectivos juros compensatórios, na quantia de €1.475,42.

Por isso, pelo que se disse sobre o critério de definição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial, o pedido formulado no presente processo de apreciação da legalidade da decisão do recurso hierárquico, proferida em 08-08-2014, insere-se nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

Assim, improcede a excepção suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, quanto a esta decisão do recurso hierárquico.

 

3. Excepção da extemporaneidade do pedido de pronúncia arbitral, na parte relativa à impugnação do despacho de 08-08-2014, que indeferiu o recurso hierárquico n.º RHQ .../2013-...

 

 A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita ainda a excepção da extemporaneidade do pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de anulação do despacho de 08-08-2014, que indeferiu o recurso hierárquico n.º RHQ .../2013-....

A Requerente respondeu a esta excepção nas suas alegações dizendo, em suma, que foi notificada da decisão por ofício de 04-09-2014, o que se comprova pelo documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido.

O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 03-12-2014, como se constata pela aplicação informática do CAAD.

Sendo de 90 dias contados da notificação da decisão o prazo para impugnação de decisões de indeferimento de recursos hierárquicos [artigos 10.º, n.º1, do RJAT e 76.º, n.º 1, 102.º, n.º 1, alínea e), do CPPT], é manifesto que o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado tempestivamente, em face da decisão que é impugnada.

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que o recurso hierárquico n.º RHQ .../2013-... não teve por objecto uma decisão de indeferimento de pedido de revisão oficiosa, mas sim de indeferimento de uma reclamação graciosa, tendo a decisão do recurso hierárquico interposto do indeferimento do pedido de revisão oficiosa sido notificada em 13-05-2014.

No entanto, no que concerne a recurso hierárquico, é a decisão que foi notificada em 08-08-2014 que é impugnada e, em relação a ela, o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado tempestivamente.

Improcede, assim, a excepção da extemporaneidade suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 4. Matéria de facto relevante para apreciação do pedido de pronúncia arbitral na parte relativa à decisão do recurso hierárquico notificada em 08-08-2014

           

Pelo que se referiu, apenas pode ser objecto de apreciação por este Tribunal Arbitral a decisão do recurso hierárquico que foi notificada em 08-08-2014.

 

4.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos, com relevo para a decisão:

 

a)     Na sequência da ação de inspecção externa efectuada à Requerente relativa ao ano de 2008, foram efectuadas correcções que levaram a ser emitida a liquidação de IVA n.º … e a liquidação de juros compensatórios n.º … (parte 2 do processo administrativo, páginas 26 e 52);

b)     No Relatório da Inspecção Tributária efectuada à Requerente refere-se o seguinte sobre a sua actividade:

A actividade da Requerente consiste na comercialização de artigos domésticos, essencialmente artigos de plástico, da marca "A...", ao abrigo de um contrato de comissão celebrado com a entidade A... Products, SA, com sede na Suiça;

Com base no referido contrato de comissionista a A... Portugal recebe uma comissão (62%) por todos os produtos vendidos de conta da A... Products, SA, proprietária dos produtos até à entrega dos mesmos às revendedoras;

A venda dos produtos A... é realizada a revendedoras externas, denominadas "Demonstradoras", as quais vendem os produtos a clientes privados, actuando em seu nome e por conta própria perante os clientes;

As Demonstradoras efectuam a venda e promoção dos produtos em reuniões domiciliárias designadas por "Party A..." que realizam em casa de pessoas convidadas para o efeito, denominadas "Hospedeiras";

Existem situações em que a "Demonstradora" poderá efectuar a venda dos produtos em Pontos de Venda através de exposição "Show cases" nima área comercial.

Os produtos A... constam de Catálogo de venda ao público subordinados a tabelas de preços de venda ao público recomendado (PVPR).

Os ganhos das Demonstradoras, consistem na diferença entre o preço de venda ao público recomendado e o preço de venda efectuado pelo contribuinte às mesmas;

As revendedoras encontram-se organizadas numa estrutura hierárquica - Demonstradoras, Chefes de Grupo e Coordenadoras, sendo estas responsáveis por efectuar reuniões semanais de vendas, assim como recrutar, treinar, motivar e informar as Demonstradoras dos novos produtos, dos programas de promoções e quaisquer outras actividades relacionadas com vendas, bem como respeitar e vigiar o cumprimento do sistema-de vendas seguido pela A..., zelando pela imagem da qualidade e prestígio dos seus produtos, segundo informação cedida pela A... Portugal.

As Chefes de Grupo, além de serem remuneradas pelas vendas por si efectuadas, podem agregar a este montante um valor de 3,5% decorrente da comissão recebida sobre os recebimentos efectivos das notas de encomenda efectuadas pelas Demonstradoras pertencentes à sua equipa.

Os ganhos das Coordenadoras, dado estas não praticarem vendas, consiste numa comissão que pode variar entre 3,5% e 5,5% sobre os recebimentos efectivos decorrentes das notas de encomenda efectuadas pelas pessoas sujeitas à sua supervisão (Chefes de Grupo + Demonstradoras).

c)     A Requerente aceitou parte das correcções, discordando apenas de uma correcção no montante de € 9.957,97 relativa a ofertas de "KIT RECRUTA";

d)     Em 21-01-2013, a Requerente apresentou uma reclamação graciosa que foi tramitada na Direcção de Finanças de Lisboa, com o n.º ...-2013-..., tendo por objecto a anulação parcial das liquidações referidas no que concerne ao montante de e 9.954,97 de IVA e € 1.475,42 de juros compensatórios (parte 2 do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido);

e)     A reclamação graciosa referida foi indeferida por despacho datado de 30-04-2013, que foi notificado à Requerente por carta registada com aviso de recepção que foi recebida em 07-05-2013 (parte 2 do processo administrativo, páginas 3 a 10);

f)      Esse despacho de indeferimento da reclamação graciosa manifestou concordância com Informação Final emitida nesse processo com a data de 29-04-2013, que consta das páginas 89, 90 e 91 da 2.ª parte do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

Foi efetuada pelos serviços de inspeção tributária desta direção de finanças, inspeção externa à Reclamante relativa ao ano de 2008 da qual resultaram as liquidações ora reclamadas. Resulta do relatório que por ter sido ultrapassado o valor limite permitido para registo de ofertas sem liquidação de IVA foi corrigido IVA no montante de € 16.925,71. Relativamente ao kit recruta, compostos por artigos A... e não A... que são entregues às futuras demonstradoras, verificou-se uma desconformidade entre o valor sujeito a tribulação (€ 182.873,50) e o registado contabilisticamente (€ 39.780,18 + € 192.883,16) sendo este superior àquele em € 49.789,84. Nesta medida, pese embora o sujeito passivo alegar que o valor eslava isento por se tratar de ofertas, dado que o valor das ofertas não tributadas permitido pelo art. 3.º do CIVA tinha já sido ultrapassado nas rubricas de vendas incentive, vendas atividade e ofertas, foi efetuada a correção no montante de € 9.957,97 (49.789,84·20%).

Em sede de direito de audição vem a Reclamante alegar que se trata de amostras e não de ofertas pelo que não tinha de ser liquidado IVA e que o IVA liquidado o foi indevidamente. Vejamos. Adquiridos os bens pela Reclamante no âmbito do contrato de comissão, são distribuídos às “demonstradoras" os referidos kits para utilização nas "party A...". Do alegado resulta que estes kits não são faturados às demonstradoras sendo porém efetuada uma majoração aos produtos encomendados pelo kit entregue no momento do registo.

A aI. f) do n.º 3 do art. 3.º do CIVA determina que a transmissão gratuita de bens relativamente aos quais haja havido dedução total ou parcial do imposto é considerada transmissão de bens para efeito do disposto no n.º 1 do mesmo artigo. Por sua vez, o n.º 7 daquele art. 3° exclui do regime estabelecido naquela alínea os bens não destinados a posterior comercialização e cujo valor global anual não exceda cinco por mil do volume dc negócios do sujeito passivo no ano civil anterior. Ora, do relatório de inspeção resulta, e a Reclamante não contesta, que o volume de negócios foi de e 14.833.555,97 pelo que o limite estabelecido na lei ascendia a € 74.167,78. Por outro lado, também não contesta a Reclamante que esse valor tenha sido ultrapassado com as ofertas relativas as vendas incentive, vendas de produtos atividade e vendas de ofertas (atente-se que a reclamante reconhece a legitimidade da correção de € 16.925,71, conforme melhor resulta do art. 3.º do seu articulado).

Assim, no que concerne aos kits recruta que originaram a liquidação reclamada, não releva o facto de se tratar de uma oferta ou de uma amostra dado que o limite dos cinco por mil estipulado pela lei estava já ultrapassado, pelo que sempre teria de ser liquidado o respetivo IVA.

Pela conformidade exposta, estando provado que o limite legal de cinco por mil do volume de negócios até ao qual não é liquidado IVA pelas transmissões gratuitas de bens foi ultrapassado, verificando-se que houve transmissões relativamente às quais não foi liquidado IVA, facto também não contestado, forçoso é concluir pela correção da liquidação adicional efctuada, Improcedendo toda a argumentação da Reclamante.

(...)

Por não se conformar com o projeto de decisão notificado vem a Reclamante apresentar direito de audição alegando que a AT não se pronunciou sobre a qualificação do Kit Recruta como amostra para efeito de IVA. Por outro lado, a Reclamante não concorda com a fundamentação utilizada pela AT considerando que o limite de cinco por mil do volume de negócios do sujeito passivo no ano civil anterior apenas tem aplicabilidade na atribuição de ofertas cuja valor unitário seja igual ou inferior a € 50, não tendo qualquer relevância quando se está perante a atribuição de amostras. Também a Portaria 497/2008, de 24 de junho não estabelece qualquer limite quantitativo para as amostras que cada sujeito passivo pode atribuir ao longo de determinado ano civil, indexado ao volume de negócios.

No ano em causa a Reclamante ultrapassou o limite legal estabelecido para as ofertas pelo que foi liquidado IVA pelas transmissões gratuitas de bens que excederam aquele montante.

A Portaria 497/2008 regulamenta as condições delimitadoras do çonceito de amostras e de ofertas de pequeno valor. Na art. 2.° deste diploma delimita-se o conceito de amostras considerando-se como tais aquelas de formato ou tamanho diferente do produto que constitua a unidade de venda ou apresentada em quantidade, capacidade, peso ou medida substancialmente inferiores aos que constituem a unidade de venda. O n.º 2 deste artigo estabelece que são ainda amostras as livros, e outras publicações transmitidas gratuitamente pelos editores, bem como os cd. dvd, discos, cassetes filmes, vídeos e outros registos de som ou imagem distribuídos gratuitamente. No n.º 3 estabelece-se um limite relativamente ao número de exemplares distribuídos a que se refere o n.º 2.

Ora, uma vez que os bens em causa não têm um formato ou tamanho diferente, não preenchem o conceito de amostras. Ainda que se entendesse que poderiam aqueles ser qualificados como amostras, o que por mera ou hipótese de raciocínio se concede, numa interpretação extensiva do disposto no n.º do art. 2.° da Portaria, sempre teria este regime de ser afastado pelo facto dos destinatários das amostras não receberem os bens a titulo gratuito, tal como ali se impõe. Atente-se que, pelo kit entregue no momento do registo, é efetuada uma majoração ao valor dos produtos encomendados. Nesta medida, uma vez que foi ultrapassado o limite de cinco por mil do volume da negócios estabelecido no n,.º 7 do art. 3.° do CIVA, terão estas transmissões de bens de estar sujeitas a IVA pelo que será de manter a correção efetuada e respetivos juros compensatórios.

 

g)     Na sequência do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...-2013-..., a Requerente interpôs recurso hierárquico que veio a ter o n.º …-2013/… e foi instaurado em 05-06-2013 (parte 2 do processo administrativo, páginas 81 e 135);

h)     Neste recurso hierárquico foi emitida a informação n.º ..., cuja cópia consta das páginas 142 e seguintes da 2.ª parte do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere o que já foi transcrito no ponto 2.3 deste acórdão;

i)      A informação referida foi notificada à Requerente para exercício do direito de audição, na sequência de despacho da Senhora Directora de Serviços do IVA (parte 2 do processo administrativo, página 141);

j)      A Requerente não exerceu o direito de audição, na sequência da notificação referida na alínea anterior (parte 2 do processo administrativo, página 152);

k)     Na sequência do decurso do prazo para exercício do direito de audição, foi emitida a informação 2157, cujo teor se dá como reproduzido, parcialmente transcrita no ponto 2.3. deste acórdão;

l)      Em 08-08-2014, a Senhora Directora de Serviços do IVA, por subdelegação, proferiu o despacho que consta da página 152 da 2.ª parte do processo administrativo, indeferindo o recurso hierárquico e manifestando concordância com a informação n.º ...;

m)    A decisão de indeferimento do recurso hierárquico foi notificada à Requerente por carta enviada com o ofício datado de 04-09-2014, cuja cópia consta do documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral;

n)     O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 03-12-2014.

 

4.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

4.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

A matéria de facto foi fixada com base no processo administrativo e nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral.

 

5. Matéria de direito

 

A questão que é objecto do presente processo relativa à qual não procedem as excepções referidas é a de saber se é ilegal ou não o enquadramento fiscal dado pela Administração Tributária, em sede de IVA e quanto aos meses de Novembro e Dezembro de 2008, à entrega dos denominados “Kit Recruta” efectuada pela Requerente às suas «demonstradoras».

Mas, tendo sido praticados vários actos relativamente a tal matéria (Relatório da Inspecção Tributária, liquidação, reclamação graciosa e recurso hierárquico), importa precisar qual o conteúdo do acto que deve ser objecto da análise do Tribunal Arbitral.

 Por outro lado tratando-se de actos em que se divisa uma pluralidade de fundamentos, justifica-se também que se esclareça o ónus de alegação que recai sobre o interessado em impugná-los.

 

5.1. Objecto dos processos arbitrais tributários e ónus de alegação de vícios

 

Os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD decidem segundo o direito constituído (artigo 2.º, n.º 2, do RJAT), estando a sua actividade limitada à declaração da ilegalidade de actos dos tipos referidos no artigo 2.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Está-se, assim, no âmbito de um contencioso de mera legalidade, em que se tem de apreciar a legalidade ou ilegalidade do acto impugnado tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo arbitral.

Assim, não pode o Tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a actuação da Administração Tributária poderia basear-se noutros fundamentos e deixar de declarar a ilegalidade do concreto acto praticado por, eventualmente, existir a possibilidade abstracta de um hipotético acto com conteúdo decisório total ou parcialmente idêntico, com outra fundamentação, que seria legal, mas não foi praticado. ( [10] )

No entanto, nos casos de impugnação administrativa (nomeadamente de reclamação graciosa e recurso hierárquico de actos de liquidação), se a respectiva decisão mantém o acto impugnado com diferente fundamentação, deverá entender-se que se opera revogação por substituição daquele acto (que será ratificação se a fundamentação inicial era ilegal), passando a subsistir na ordem jurídica um novo acto que, apesar de manter o mesmo conteúdo decisório, terá a nova fundamentação. Naturalmente que, se o acto que decide a impugnação administrativa alterar o conteúdo decisório do acto impugnado, nomeadamente revogando-o parcialmente, estar-se-á também perante revogação por substituição, só permanecendo na ordem jurídica o acto inicial na parte não revogada, com a fundamentação que resultar do acto que aprecia a impugnação.

Pelo facto de o acto impugnado ser o objecto da apreciação do Tribunal e esta visar apurar se existem ilegalidades, os impugnantes têm o ónus de as identificar, quando os vícios são geradores de anulabilidade, imputando aos actos os vícios que entendem que os afectam. Este ónus de alegação de vícios é dispensado nos casos de o acto impugnado enfermar de vício ou vícios geradores de nulidade ou se estar perante uma situação de inexistência jurídica, pois nestas situações há possibilidade de conhecimento oficioso das ilegalidades, como decorre do preceituado no artigo 134.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo de 1991.

Nos casos em que o acto impugnado não enferma de vícios geradores de nulidade nem se está perante uma situação de inexistência jurídica, existe o referido ónus de imputação de vícios, pelo que, se o acto tem mais que um fundamento e cada um deles é suficiente para, por si só, justificar a decisão, o êxito da impugnação depende de serem imputadas ilegalidades a todos os fundamentos invocados no acto, pois se houver algum fundamento que não seja atacado e de que o tribunal não possa conhecer oficiosamente, terá de se concluir que o acto deverá ser mantido na ordem jurídica, por a decisão nele contida ter um fundamento cuja validade jurídica não foi destruída.

De resto, o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo sobre o ónus de impugnação de actos anuláveis que tem vindo a ser perfilhado é no sentido de que quando um acto de administrativo tem mais que um fundamento, cada um deles com potencialidade para, só por si, assegurar a legalidade de um acto tributário (ou administrativo) é irrelevante que um deles seja ilegal, pois «o tribunal, para anular ou declarar a nulidade da decisão questionada, emitida no exercício de actividade vinculada da Administração, não se pode bastar com a constatação da insubsistência de um dos fundamentos invocados, pois só após a verificação da improcedência de todos eles é que o tribunal fica habilitado a invalidar o acto». ( [11] )

No caso em apreço, não sendo imputadas às liquidações relativas ao ano de 2008 quaisquer ilegalidades formais ou procedimentais, as ilegalidades reportam-se aos fundamentos do acto praticado, pelo que é necessário, antes de mais, interpretar o acto que é objecto do processo, precisando quais são esses fundamentos.

Com efeito, no caso em apreço, para além da fundamentação que consta do Relatório da Inspecção Tributária, houve lugar a reclamação graciosa, em que o acto foi mantido com os fundamentos indicados na fundamentação em que se baseou a decisão de indeferimento, e depois houve lugar a recurso hierárquico, cuja decisão se baseou numa nova informação dos serviços, fundamentações essas que não são coincidentes.

Por isso, importa determinar qual é a fundamentação do acto de liquidação relativo ao ano de 2008 que resulta das impugnações administrativas, através de reclamação graciosa e recurso hierárquico, de que ele foi objecto.

 

5.2. Fundamentação a atender na apreciação da legalidade dos actos de liquidação de IVA e juros compensatórios relativos ao ano de 2008

 

No caso em apreço, como se refere na fundamentação da informação que serviu de base ao despacho de indeferimento do recurso hierárquico, a liquidação de IVA e juros compensatórios que foi objecto desse recurso foi motivada pelo seguinte:

Os SIT apuraram IVA em falta, com base num "Mapa Auxiliar", cedido pela ora Recorrente, que permitiu apurar que a mesma procedeu à liquidação de IVA sobre o valor de €182.873,50, quando, na sua contabilidade, as "Vendas Não ..." e as "Vendas ..." ("KIT RECRUTA") ascendem ao montante global de €232.663,34, evidenciando uma diferença não tributada em IVA, de €49.789,84.

Questionada a ora Recorrente, a mesma informou que essa diferença não foi tributada por se ter considerado que respeitava a ofertas de pequeno valor.

Constatando que o valor de ofertas não tributadas legalmente permitido já havia sido ultrapassado, com as rubricas de "Vendas Incentive", "Vendas Atividade" e "Ofertas", os SIT concluíram que o montante de €49.789,84 estava sujeito a lVA, à taxa normal, apurando imposto em falta, na quantia de € 9.957,97 (€49.789,84 * 20%), relativamente ao período 200812.

(...)

 

            Portanto, a primeira fundamentação adoptada pela Administração Tributária para praticar os actos de liquidação de IVA e juros compensatórios é o de que os bens abrangidos pelo Kit Recruta eram amostras de pequeno valor, como defendera a ora Requerente, mas havia sujeição a IVA por ter sido ultrapassado o limite de 5 por mil, que a Administração Tributária entendeu aplicável.

            Na reclamação graciosa e exercício do direito de audição nesta, a Requerente defendeu que o limite de 5 por mil do volume de negócios no ano civil anterior apenas tem aplicabilidade na atribuição de ofertas cuja valor unitário seja igual ou inferior a € 50, não tendo qualquer relevância quando se está perante a atribuição de amostras e que a Portaria 497/2008, de 24 de Junho não estabelece qualquer limite quantitativo para as amostras que cada sujeito passivo pode atribuir ao longo de determinado ano civil, indexado ao volume de negócios.

            Em face desta nova argumentação, entendeu-se na reclamação graciosa que, os bens em causa não têm um formato ou tamanho diferente dos bens vendidos pela Requerente, pelo que não preenchem o conceito de amostras e que, ainda que se entendesse que poderiam aqueles ser qualificados como amostras, numa interpretação extensiva do disposto no n.º 2 do art. 2.° da Portaria, sempre teria este regime de ser afastado pelo facto dos destinatários das amostras não receberem os bens a título gratuito, tal como ali se impõe, pois no momento da entrega do kit é efectuada uma majoração ao valor dos produtos encomendados. «Nesta medida, uma vez que foi ultrapassado o limite de cinco por mil do volume da negócios estabelecido no n.º 7 do art. 3.° do CIVA, terão estas transmissões de bens de estar sujeitas a IVA pelo que será de manter a correção efetuada e respetivos juros compensatórios.»

Há aqui, na decisão da reclamação graciosa, uma clara alteração da fundamentação: a tributação em IVA já não se justifica por serem «amostras de pequeno valor» em montante global superior ao limite legal anual que a Administração Tributária entende ser aplicável, mas sim, em primeira linha, não serem amostras de pequeno valor. E, a entender-se que lhes é aplicável a qualificação de amostras de pequeno valor, a razão para haver tributação em sede de IVA já não seria apenas o facto de excederem o limite anual global, mas também o facto de os destinatários não as receberem a título gratuito.

Na decisão do recurso hierárquico, a não qualificação como amostras é considerada irrelevante para justificar a tributação em IVA, por existir uma informação vinculativa n.º 5677, submetida pela ora Requerente em 27-08-2013, em que se entendeu que aqueles produtos do «Kit Recruta» «podem ser considerados abrangidos pela exclusão da tributação em IVA, nos termos do n.º 7 do artigo 3° do CIVA», mas, «caso se verifique a transferência de propriedade daqueles bens da requerente para as "Demonstradoras", a mesma configura uma transmissão de bens».

Aplicando o entendimento desta informação vinculativa, entendeu-se no recurso hierárquico que das facturas apresentadas pela Requerente consta «a atribuição de "KIT DEMONSTRAÇÃO GRATIS", "a ser entregue pela Coordenadora", o que significa também que tais KIT deixam de ser propriedade da empresa», pelo que «tais documentos permitem, confirmar que estamos perante transmissões de bens, para efeitos de IVA, nos termos legais supra referidos, havendo lugar à liquidação de imposto».

Como se infere deste excerto da fundamentação da decisão do recurso hierárquico, decisivo para a Administração Tributária concluir pela tributação em IVA não foi o facto de a atribuição do «Kit Recruta» às «Demonstradoras» ser grátis, já que não se põe em dúvida que se tratava de «KIT DEMONSTRAÇÃO GRATIS», mas sim, o facto de haver uma transmissão da propriedade.

Conclui-se, assim, que na decisão do recurso hierárquico foi abandonado o primeiro fundamento invocado na decisão da reclamação graciosa que foi o de não se tratar de amostras, pois considerou-se assente que eles «podem ser considerados abrangidos pela exclusão da tributação em IVA, nos termos do n.º 7 do artigo 3° do CIVA», nas condições estabelecidas na Portaria n.º 497/2008, de 24 de Junho.

A referência ao n.º 7 do artigo 3.º do CIVA, em que se estabelecia o limite global anual, permite concluir que continuou a entender-se que este limite era aplicável, mas o certo é que não se invoca o excesso como fundamento do indeferimento, referindo-se apenas que há uma transmissão de bens, por a sua propriedade ser transferida para as «Demonstradoras».

Assim, é à face desta fundamentação com que foi mantido o acto de liquidação relativo a 2008 (haver transmissão de propriedade dos bens e ser excedido o limite global anual aplicável em 2008 para «amostras») que há que apurar a sua legalidade.

 

5.3. Ilegalidades imputadas pela Requerente ao acto de liquidação de 2008

 

A Requerente defende, em suma, que os «Kit Recruta» são entregues gratuitamente às «Demonstradoras», apenas para serem utlizados na promoção dos produtos.

21. Conforme atrás referido, o modelo de vendas da Requerente assenta na quase totalidade no método de venda direta ao domicílio, efetuada pelas "Demonstradoras" que apresentam os produtos A... a potenciais clientes.

22. No momento em que as "Demonstradoras" se registam como tal junto da Requerente, é-lhes atribuído, a título gratuito, um pack denominado "KIT RECRUTA".

23. O pack "KIT RECRUTA" é composto por um conjunto representativo de todas as gamas de produto do catálogo A... e que lhes permitirá apresentar e promoveres produtos nas designadas "PartyA...".

24. O "KIT RECRUTA" entregue às "Demonstradoras" não se destina a comercialização, mas exclusivamente a ser utilizados na promoção dos produtos A....

25. O "KIT RECRUTA", apesar de composto por produtos que não têm tamanho ou formato diferente dos produtos que constitui a unidade de venda - e nem poderiam ter porque se assim fosse não permitiriam a correta demonstração dos mesmos -, preenche os requisitos para qualificar como amostra na medida em que se destinam única e exclusivamente a apresentar e a promover os produtos comercializados pela Requerente.

Não obstante o disposto na Portaria n.º 497/20081, de 24 de Junho, e na esteira da decisão do TJUE no processo C- 581/08, a AT veio já confirmar em várias ocasiões que a dimensão e o formato do produto não impede, por si só, à sua qualificação corno amostra; desde que se destinem unicamente à promoção e demonstração dos produtos por si produzidos ou comercializados e que aqueles não sejam embalados nem apresentados da forma a que se destinam a ser comercializados.

26. Para fazer face aos custos relacionados com o processo de integração de novas "Demonstradoras", designadamente a formação inicial e a atribuição do "KIT RECRUTA", o valor da primeira venda da Requerente às "Demonstradoras" é superior ao valor de tabela dos produtos venda.

27. Não obstante, e para que não se suscitem dúvidas, o "KIT RECRUTA" que é oferecido às "Demonstradoras" não lhes é vendido/faturado.

28. A entrega do "KIT RECRUTA" às "Demonstradoras" qualificando como amostra, não tem cabimento no artigo 3. n.º 7 do CIVA e, como tal, não está sujeita a IVA.

29. Contudo, a Requerente procedeu à autoliquidação de IVA relativamente aos produtos entregues às "Demonstradoras" a título de "KIT RECRUTA", o qual não foi repercutido às "Demonstradoras".

30. Neste contexto, entende a Requerente que não devia ter autoliquidado IVA nos "KITRECRUTA" dado que estes, para efeitos de IVA, qualificam-se como amostras.

 

Examinando estes fundamentos e toda a petição, verifica-se que a Requerente sustenta, como fundamentos da sua pretensão de anulação do acto de liquidação, que o «Kit Recruta» constitui «amostras» e é oferecido e não vendido.

No entanto, em face de posição final da Administração Tributária, assumida no despacho de indeferimento do recurso hierárquico, conclui-se que não foi por não considerar o «Kit Recruta» como «amostras» nem por ele ser oferecido e não vendido que a Administração Tributária entendeu que era devido IVA, mas sim por ter entendido que com a sua entrega às «Demonstradoras» há uma transmissão da propriedade e por ter sido excedido o valor global aplicável ao ano de 2008 para as «amostras».

Não se encontra na petição qualquer referência à possível ilegalidade do entendimento adoptado pela Administração Tributária na decisão do recurso hierárquico, ao entender que, havendo uma transmissão da propriedade de bens da Requerente para as suas colaboradoras, mesmo a título gratuito, há lugar ao pagamento de IVA. E também não se encontra na petição inicial qualquer alusão a que seja ilegal a aplicação de um limite global anual para as «amostras» nem que seja errado o entendimento da Administração Tributária de que ele foi excedido.

Na verdade, no que não se refere ao IVA relacionado com o «Kit Recruta», a Requerente limita-se a imputar ilegalidade ao entendimento adoptado quanto ao prazo para a revisão do acto tributário e âmbito dos erros a que se referem os artigos 78.º, n.º 6, e 98.º, n.º 2, do CIVA e o artigo 78.º da LGT, o que são questões que têm a ver com as decisões dos pedidos de revisão oficiosa, mas não tem qualquer relação com o caso do IVA relativo a 2008, em que houve uma reclamação graciosa e um recurso hierárquico tempestivos e é o único acto relativamente ao qual não há excepções que obstem a seu conhecimento.

A serem errados estes entendimentos da Administração Tributária, estar-se-á perante vícios geradores de mera anulabilidade, nos termos do artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo de 1991, já que não se está perante qualquer das situações previstas no seu artigo 133.º.

Sendo assim, não imputando a Requerente qualquer ilegalidade a estes fundamentos da decisão do recurso hierárquico e não tendo, consequentemente, este Tribunal Arbitral poder para apreciar se ela existe ou não, tem de se concluir que o pedido de pronúncia arbitral tem de ser julgado improcedente, pois a decisão do recurso hierárquico terá de ser mantida com base nesses fundamentos inabalados.

 

6. Juros indemnizatórios e pedido de ser determinada a aceitação da correcção da autoliquidação de IVA relativa a Novembro e Dezembro de 2008

 

De harmonia com o disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».

Assim, não sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral relativamente à questão relativa ao IVA do ano de 2008, improcede também o pedido de juros indemnizatórios que dependia da existência de um erro imputável aos serviços na respectiva liquidação efectuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Por outro lado, a improcedência do pedido de declaração da ilegalidade e anulação da decisão do recurso hierárquico, implica também a improcedência do pedido dependente que consiste em determinar a aceitação da correcção da autoliquidação de IVA relativa a Novembro e Dezembro de 2008.

 

7. Pedidos dependentes relativos às autoliquidações de IVA dos anos de 2009, 2010 e 2011

 

A Requerente formula pedidos dependentes dos pedidos de declaração de ilegalidade dos despachos de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa, relativos às autoliquidações de IVA dos anos de 2009, 2010 e 2011, designadamente de que seja determinada a aceitação das respectivas correcções da autoliquidação de IVA e de juros indemnizatórios.

Sendo o Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar os pedidos de declaração de ilegalidade dos despachos relativos ao IVA dos anos de 2009, 2010 e 2011, é também incompetente para apreciar os pedidos dependentes (artigo 82.º, n.º 3, do CPC).  

 

 

8. Pedido de reembolso de despesas

 

Improcedendo parte dos pedidos e sendo o Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar outros, a Requerente fica vencida quanto a todos os pedidos, pelo que é sobre a Requerente que recai a responsabilidade pelos encargos do processo [artigo 446.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT e do artigo 6.º, alínea a), do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária].

Por isso, improcede o pedido de reembolso de encargos apresentado pela Requerente.

 

 9. Decisão

 

Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

– julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de declaração de ilegalidade e anulação do despacho de 08-08-2014 que indeferiu o  recurso hierárquico e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira deste pedido;

– julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de juros indemnizatórios relativo ao IVA dos meses de Novembro e Dezembro de 2008 e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira deste pedido;

– julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de determinar a aceitação da correcção da autoliquidação de IVA relativa aos meses de Novembro e Dezembro de 2008, e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira deste pedido;

– julgar procedente a excepção da incompetência material deste Tribunal Arbitral no que concerne aos pedidos de declaração de ilegalidade e anulação dos despachos de 30-10-2013 e 19-09-2014  (este último erradamente identificado no pedido de pronúncia arbitral como sendo datado de 22-09-2014, data esta do ofício através do qual foi notificado), aos pedidos de determinação da aceitação de correcções de IVA relativas aos anos de 2009, 2010 e 2011, a que se reportam esses despachos e aos pedidos de juros indemnizatórios dependentes da declaração de ilegalidade e anulação destes despachos, absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância quanto a estes pedidos;

– julgar improcedente o pedido de reembolso de despesas apresentado pela Requerente e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira deste pedido.

 

10. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 305.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 196.074,96.

 

11. Custas

 

 Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente A... (PORTUGAL), ARTIGOS DOMÉSTICOS, LDA.

 

 

Lisboa, 04 de Maio de 2015

 

 

Os Árbitros,

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

                                             

 

 

(Emanuel Augusto Vidal Lima)

 



( [1] )         Como se entendeu no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-6-2006, proferido no processo n.º 402/06.

( [2] )         BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, 4.ª edição, página 100.

( [3] )         Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.

( [4] )        Embora no art. 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, em que se define a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, se faça referência à criação de impostos e sistema fiscal, esta norma deve ser integrada com o conteúdo do n.º 2 do art. 103.º da mesma, em que se refere que a lei determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, que constitui uma explicitação do âmbito das matérias incluídas naquela reserva, como vem sendo uniformemente entendido pelo Tribunal Constitucional.

A título de exemplo, indicam-se neste sentido, os seguintes acórdãos do Tribunal Constitucional:

– n.º 29/83, de 21-12-1983, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 338, página 201 (especialmente, páginas 204-205);

– n.º 290/86, de 29-10-1986, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º volume, página 421 (especialmente, páginas 423-424);

– n.º 205/87, de 17-6-1987, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º volume, página 209 (especialmente páginas 221-222);

– n.º 461/87, de 16-12-1987, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 372, página 180 (especialmente página 197);                                                                                      

– n.º 321/89, de 29-3-1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 385, página 265 (especialmente página 281).

 

               O Tribunal Constitucional tem entendido também que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República compreende tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições de direitos (neste sentido, pode ver-se o acórdão n.º 161/99, de 10-3-99. processo n.º 813/98, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 485, página 81).

( [5] )         No conceito de «liquidação», em sentido lato, englobam-se todos os actos que se reconduzem a aplicação de uma taxa a uma determinada matéria colectável e, por isso, também os actos de retenção na fonte (para além dos de autoliquidação e pagamento por conta, que não interessam para a decisão do presente processo).

( [6] )        Neste sentido, pode ver-se o acórdão do STA de 2-4-2009, processo n.º 0125/09.

( [7] )        Exemplo de uma situação deste tipo é a do art. 22.º, n.º 13, do CIVA, em que se prevê a utilização do processo de impugnação judicial para impugnar actos de indeferimento de pedidos de reembolso.

( [8] )        No sentido de o meio processual adequado para conhecer da legalidade de acto de decisão de procedimento de revisão oficiosa de acto de liquidação ser a acção administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do CPTA) se nessa decisão não foi apreciada a legalidade do acto de liquidação, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20-5-2003, processo n.º 638/03; de 8-10-2003, processo n.º 870/03; de 15-10-2003, processo n.º 1021/03; de 24-3-2004, processo n.º 1588/03, de 6-11-2008, processo n.º 357/08.

               Adoptando o entendimento de que o processo de impugnação judicial é o meio processual adequado para impugnar actos de indeferimento de reclamações graciosas que tenham apreciado a legalidade de actos de liquidação, podem ver-se os acórdãos do STA de 15-1-2003, processo n.º 1460/02; de 19-2-2003, processo n.º 1461/02; e de 29-2-2012, processo n.º 441/11.

( [9] )        A Requerente refere 22-09-2014 como sendo a data do despacho, mas pelo documento n.º 4, que juntou com o pedido de pronúncia arbitral, verifica-se que o despacho é de 19-09-2014, sendo o ofício através do qual foi comunicada a decisão datado de 22-09-2014.

( [10] )       Essencialmente neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se coloca nos processos de recurso contencioso:

–   de 10-11-98, do Pleno, proferido no recurso n.º 32702, publicado em Apêndice ao Diário da República de 12-4-2001, página 1207;

–   de 19/06/2002, processo n.º 47787, publicado em Apêndice ao Diário da República de 10-2-2004, página 4289;

–   de 09/10/2002, processo n.º 600/02;

–   de 12/03/2003, processo n.º 1661/02.

              

               Em sentido idêntico, podem ver-se:

–   MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, página 479 em que refere que é «irrelevante que a Administração venha, já na pendência do recurso contencioso, invocar como motivos determinantes outros motivos, não exarados no acto», e volume II, 9.ª edição, página 1329, em que escreve que «não pode (...) a autoridade recorrida, na resposta ao recurso, justificar a prática do acto recorrido por razões diferentes daquelas que constam da sua motivação expressa»;

–   MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Volume I, página 472, onde escreve que «as razões objectivamente existentes mas que não forem expressamente aduzidas, como fundamentos do acto, não podem ser tomadas em conta na aferição da sua legalidade».

( [11])                    Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10-5-2000, processo n.º 39073, publicado em Apêndice ao Diário da República de 09-12-2002, página 4229.

               Na mesma linha, pode ver-se o acórdão do acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 28-10-2004, processo n.º 28055, em que se entendeu que «tendo o acto contenciosamente impugnado uma pluralidade de fundamentos, a invalidade de um deles não obsta a que o tribunal conheça dos restantes e só no caso de concluir pela invalidade de todos eles pode e deve julgar o acto nulo ou anulável».

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