Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 655/2014-T
Data da decisão: 2015-06-16   
Valor do pedido: € 83.750,15
Tema: IVA – Correções; impedimento no procedimento relativo ao ato de revogação
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Acórdão Arbitral

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo n.º 655/2014 – T

Tema: IVA; correções; impedimento no procedimento relativo ao ato de revogação

 

Os árbitros José Pedro Carvalho (árbitro-presidente), Arlindo José Francisco e João Menezes Leitão (árbitros-vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 14.11.2014, acordam no seguinte:

 

I. Relatório[1]

 

1. A…,  Lda, pessoa coletiva n.º …, com sede na …, n.º …, …, … (a seguir a Requerente), apresentou em 01.09.2014, ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações posteriores (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a seguir RJAT), pedido de pronúncia arbitral, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (a seguir, Requerida ou AT), relativamente às liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.ºs …, …, …, …, …, …, …, …, …, … e demonstrações de acerto de contas ID Documento 2013 … - liquidação n.º 2013 …, e ID Documento 2013 … - liquidação n.º 2013 …, no montante global de €78.749,98, e às respectivas liquidações de juros compensatórios n.ºs …, …, …, …, …, …, …, …,… e …, no montante global de €4.820,17, emitidas em 26.11.2013, relativas ao ano de 2011 (períodos de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro), no total de €83.750,15.

 

2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a) e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo o Dr. José Pedro Carvalho, como árbitro-presidente, e os Drs. Arlindo José Francisco e João Menezes Leitão, como árbitros-vogais, que aceitaram o encargo.

As partes foram notificadas dessa designação, tendo a Requerente apresentado um pedido de recusa da designação como árbitro do Dr. Arlindo José Francisco, que foi indeferido por despacho de 6.11.2014 do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 14.11.2014.

 

3. No seu requerimento de pronúncia arbitral (a seguir petição inicial ou PI), a Requerente pretende a declaração de ilegalidade das liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios acima identificadas com fundamento em insuficiência e ininteligibilidade da fundamentação constante do relatório de inspeção, fundada dúvida acerca da quantificação dos factos tributários, ilegal prorrogação do procedimento de inspeção tributária, ilegalidade das correções relativas às deduções de IVA efectuadas e às isenções de IVA aplicadas.

Na sua PI, a Requerente, em atenção ao facto de estar em causa a aplicação das normas da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, suscita também a questão da formulação de pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do art. 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), para o esclarecimento das matérias que indica (n.ºs 287 e 288 da PI).

A Requerente conclui a sua PI pedindo:

“i) A anulação das liquidações de IVA e JC (...) impugnadas, com a consequente devolução dos tributos indevidamente pagos;

 ii) O reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios, a liquidar nos termos legais, por erro de facto e de Direito da AT na emissão das liquidações (...) impugnadas; e

iii) A condenação da Requerida no pagamento das despesas da presente lide”.

 

4. Por despacho de 14.10.2014, comunicado ao CAAD em 16.10.2014, o Diretor-Geral da AT, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 13.º do RJAT, procedeu, no que aqui importa, à revogação parcial das liquidações adicionais de IVA respeitantes a Janeiro a Novembro de 2011, com alteração em conformidade das liquidações de juros compensatórios, tendo por base a Informação da AT n.º …/2014, de 14.10.2014.

Nos termos desta revogação parcial mantiveram-se, no que concerne ao ano de 2011, que se encontra em causa neste processo, as correções resultantes do quadro que a seguir se reproduz:

 

 5. A AT apresentou resposta, na qual, depois de se reportar ao facto de ter sido efectuada “em conformidade com a informação dos serviços”, “no prazo estipulado no art. 13.º do RJAT”, a “revogação parcial dos atos tributários impugnados”, “alterando-se” “as liquidações de Janeiro a Novembro de 2011” (n.º 12), referiu que “não são ainda conhecidas (...) as liquidações que substituíram ou substituirão as revogadas” (n.º 15), e que “ressalvando-se que todas as liquidações originalmente impugnadas se encontram revogadas, resta discutir os fundamentos das correções que não foram revogadas em sede administrativa e, portanto, darão origem a liquidações substitutivas” (n.º 16). Neste âmbito, peticiona a AT a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, com consequente absolvição dos pedidos formulados.

Nesta sua resposta, a AT sustenta também, relativamente ao valor da ação, que “o valor total impugnado não poderá ser o indicado inicialmente pela Requerente, de €83.750,15, mas, tão somente, o valor correspondente à soma das correções contestadas e mantidas, isto é, €52.844,55, para o exercício de 2011, em causa nos presentes autos”, valor este que deve ser “o valor do processo a ser considerado para efeitos de custas, por corresponder ao valor do ato tributário não revogado, uma vez que ocorreu revogação parcial” (n.ºs 17 e 18 da resposta).

 

6. Por requerimento de 16.1.2015, a Requerente:

i) invocando que “a AT operou uma revogação parcial das liquidações, continuando contudo a Requerente sem saber quais os concretos factos tributários a que se reporta essa revogação, tão pouco quais as razões de facto e de Direito para essa mesma revogação - para que o processo e a prova passe a incidir, fundadamente, apenas sobre a matéria factual relativamente à qual as liquidações ainda não foram anuladas” (n.º 4), 

ii) bem como que “compulsado o PA verifica-se que dele consta uma Informação datada de 06.10.2014, da Divisão de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do …, sancionada por despacho de 07.10.2014 (...) do respectivo Chefe de Divisão”, na qual “é feita referência, por várias vezes, a uma alegada “informação prestada à Divisão de Justiça e Contencioso da DF ...” – que supostamente terá sido decisiva e da qual presumivelmente constarão as operações cujo IVA ainda estará em aberto, bem como os fundamentos de facto e de Direito para a revogação parcial das liquidações, bem como o procedimento administrativo concretamente seguido”, sendo que “essa alegada “informação prestada à Divisão de Justiça e Contencioso da DF ...” não consta do PA – nem de qualquer outro documento dos autos”, pelo que “o processo administrativo continua incompleto, em partes fundamentais para a adequada compreensão e apreciação do procedimento da AT” (n.ºs 6 a 9);

- requereu a notificação da Requerida “para juntar aos autos cópia da sobredita informação que a Divisão de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do ... terá prestado à Divisão de Justiça e Contencioso da Direção de Finanças do ...”.

Por despacho do Tribunal de 19.1.2015, determinou-se a notificação da AT para junção aos autos dos elementos do PA que se encontrassem em falta, bem como para, querendo, se pronunciar sobre o requerimento apresentado pela Requerente.

Por requerimento de 28.1.2015, a Requerida veio juntar aos autos a Informação da Direção de Finanças do ..., Divisão de Inspeção Tributária-II, de 1.10.2014, epigrafada “Análise dos processos de reclamação graciosa n.ºs … 2014 …, … 2014 … e … 2014 … – IVA, 2010, 2011 e 2012”. Neste mesmo requerimento, a Requerida, invocando o dever de colaboração processual, informou também “que, na sequência da revogação de parte das correções impugnadas, nos termos do art. 13º do RJAT, e em vista de se encontrarem pagas as liquidações, os serviços competentes não procederam à emissão de novas liquidações, antes foi efectuada a restituição das quantias correspondentes às correções objecto de revogação”, pelo que, “relativamente ao exercício de 2011, segundo informaram os serviços, foram restituídas as quantias de € 23.326,60, respeitantes a imposto, e de € 2.605,10, respeitantes a juros compensatórios” (n.ºs 4 e 5 do referido requerimento).

Por requerimento de 9.2.2015, a Requerente pronunciou-se sobre o requerimento e os documentos assim apresentados pela Requerida, invocando que: “a inspeção e relatório da Divisão de Inspeção Tributária da DF do ... que conduziu ao apuramento dos valores de IVA alegadamente ainda em dívida, é da autoria precisamente do mesmo inspetor tributário que fez o relatório inspectivo inicial (cfr. doc. B junto ao RI) que esteve na base das liquidações aqui impugnadas – B…”, o que implica que “o mesmo inspetor que fez a inspeção e correções iniciais fez ele próprio depois uma “auto-inspeção” à inspeção que o próprio anteriormente havia realizado, na sequência dos pedidos arbitrais do contribuinte – o que, para além de inusitado, é manifestamente ilegal”, pois “estamos ostensivamente perante uma incompatibilidade específica do inspetor, nos termos do artigo 20º nº 1 f) do RCPIT” e “perante um caso de impedimento, nos termos do artigo 44º nº 1 g) do CPA”, “sendo que a falta de autodenúncia desta situação constitui inclusivamente falta grave para efeitos disciplinares, nos termos dos artigos 45º nº 1 e 51º nº 2 do CPA”, pelo que “também por isso, os valores de IVA e JC ainda em dívida devem ser anulados” (n.ºs 4 a 10).

 

7. Em 19.2.2015, conforme consta da competente ata, procedeu-se à prestação de declarações de parte do sócio-gerente da Requerente, C…, e à produção de prova testemunhal, com inquirição das testemunhas, arroladas pela Requerente, D…., Técnico oficial de contas da Requerente até 2013, E…, funcionária administrativa e atualmente Técnica oficial de contas da Requerente, e F…, igualmente funcionário da Requerente.

Por despacho proferido na mesma altura, foi deferido, ao abrigo da al. c) do art. 16.º do RJAT, o pedido da Requerente, a que a AT não se opôs, de aproveitamento, para efeitos da instrução do presente processo, do depoimento, objecto de gravação no proc. 656/2014-T, da testemunha G…, relativo a matéria idêntica à que se encontra em apreciação nestes autos.

Por fim, o Tribunal admitiu a apresentação de alegações escritas sucessivas e determinou, em cumprimento do disposto no art. 18.º, n.º 2 do RJAT, que a decisão seria proferida no prazo de um mês após a apresentação das alegações da Requerida, prazo este que veio a ser prorrogado, nos termos do art. 21.º, n.º 2 do RJAT, por despacho de 2.6.2015.

 

8. Por requerimento de 2.3.2015, bem como com as suas alegações, a Requerente apresentou documentos adicionais, cuja junção aos autos foi admitida por despacho de 16.3.2015, com base no disposto nas als. c), d) e f) do art.º 16.º do RJAT, tendo-se determinado igualmente a junção de tradução dos documentos, em língua estrangeira, que a Requerente pretendesse ver considerados nos autos, o que veio a ser efectuado em 16.4.2015.

 

9. O Tribunal arbitral é competente para julgar o pedido de pronúncia arbitral (art. 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março), e mostram-se devidamente representadas.

Encontram-se, pois, reunidas as condições para ser proferida decisão final.

 

II. Questões a decidir

 

10. Tendo em conta o objecto do litígio tal como este ficou configurado na sequência da decisão de revogação parcial efectuada pela AT das liquidações adicionais de IVA impugnadas (vd. supra n.º 4), as questões concretas suscitadas no âmbito do presente processo, conforme resulta do peticionado pela Requerente na PI e do referido pela Requerida na sua resposta, bem como do invocado nos requerimentos e alegações subsequentes, são as seguintes:

i) ilegalidade das liquidações de IVA e de juros compensatórios controvertidas no segmento em que não foram revogadas pela AT, dada a presença de incompatibilidade específica, nos termos do art. 20.º, n.º 1, al. f) do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPIT), e de impedimento, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, al. g) do Código do Procedimento Administrativo (CPA), na decisão administrativa do meio de reação do contribuinte;

ii) insuficiência e inteligibilidade da fundamentação, por falta de explicitação e discriminação, bem como de relação com as correções realizadas, dos anexos ao relatório inspectivo que estão na base do cômputo e quantificação das correções em apreço, com consequente violação do disposto nos arts. 77.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Geral Tributária (LGT) e 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP);

iii) ocorrência de fundada dúvida acerca da quantificação dos factos tributários e correções operadas pela AT no relatório inspectivo, com consequente aplicação do art. 100.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT);

iv) ilegal prorrogação do procedimento de inspeção tributária externa, em infracção ao disposto no art. 36.º, n.ºs 2 e 3 do RCPIT;

v) erro nos pressupostos de facto e errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 78.º n.º 5 do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA) na correção respeitante à dedução de IVA no valor de € 3.001,83 relativa a notas de crédito emitidas à FNAC Portugal;

vi) errónea qualificação jurídica, em atenção ao disposto na al. a) do n.º 2 do art. 19.º  do CIVA, da correção, com fundamento em lapsos de contabilização e erros de soma, respeitante à dedução de IVA no valor de € 5,849,07;

vii) erro nos pressupostos de facto e violação do disposto no art. 14.º, al. a) do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias (RITI) e dos princípios da justiça e da proporcionalidade objecto dos arts. 55.º da LGT, 266.º, n.º 2 da CRP, 5.º e 6.º do CPA e 5.º do Tratado da União Europeia (TUE), bem como falta de fundamentação, quanto à correção de €3.609,26 respeitante a alegadas irregularidades dos clientes comunitários;

viii) erro nos pressupostos de facto e violação das normas e princípios objecto dos arts. 14.º, a) do RITI, 6.º, n.º 6, al. a) do CIVA, 29.º, n.º 8 do CIVA, 6.º-A do CPA e 266.º, n.º 2 da CRP,  68.º-A, n.º 1 da LGT e 55.º do CPPT, 59.º da LGT, 5.º e 9.º do RCPIT, 7.º do RCPIT, 5.º e 6.º do CPA, no que concerne à correção de €49.469,61 por alegada falta de elementos comprovativos da saída das mercadorias de Portugal para outros países comunitários;

ix) erro nos pressupostos de facto e errónea interpretação e aplicação dos arts. 14.º, n.º 1, al. a) e 29.º, n.º 8 do CIVA no que concerne à correção de IVA de €19.696,73 respeitante às exportações;

x) ilegalidade das liquidações impugnadas por violação do art. 87.º, n.º 1 do CIVA, em atenção ao facto de a Requerente, nos termos das declarações periódicas mensais de IVA apresentadas relativamente a 2011, ter autoliquidado IVA a receber (créditos de IVA), pelo que, a admitir, por mera hipótese, as correções em causa, apenas ocorreria diminuição dos créditos de IVA autoliquidados nesses meses, sem se verificar qualquer imposto em falta;

xi) ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios por falta dos pressupostos previstos nos arts. 96.º, n.º 1 do CIVA e 35.º da LGT;

xii) direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º da LGT.

 

11. A ordenação acima efectuada das questões controvertidas nestes autos corresponde à ordem de prioridade pela qual devem ser conhecidos por este Tribunal os vícios imputados às liquidações impugnadas.

Na verdade, por força do disposto no art. 124.º, n.º 2, al. b) do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. c) do RJAT, a apreciação dos vícios invocados é feita pela ordem indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade.

Ora, verifica-se que nas alegações apresentadas, mediante a utilização da expressão “Sem prescindir” (cfr. as frases subsequentes aos n.ºs 32, 43, 69 e 254 das alegações; cfr. também na PI a frase subsequente ao n.º 258), a Requerente estabeleceu, em relação à pluralidade de vícios alegada, uma relação de subsidiariedade na ordem do respectivo conhecimento (cfr. artigo 101.° do CPPT), pelo que o Tribunal deve apreciar os vícios invocados pela ordem pré-determinada pela Requerente. Naturalmente, tem-se aqui presente que o n.º 5 do art. 91.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi art. 29.º, al. c) do RJAT, admite que nas alegações o autor invoque novos fundamentos do pedido, de conhecimento superveniente, o que se mostra verificado no caso em atenção ao acima descrito no n.º 6 do Relatório.

Cabe, em consequência, principiar pelo vício invocado pela Requerente que respeita à presença de incompatibilidade específica, nos termos do art. 20.º, n.º 1, al. f) do RCPIT, e de impedimento, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, al. g) do CPA, na decisão de revogação parcial proferida nos termos do art. 13.º, n.º 1 do RJAT, o que se passa a efetuar.

 

III. Fundamentação de facto

 

12. Assinale-se, previamente, que a seleção dos factos pertinentes para o julgamento da causa é função da sua relevância jurídica em atenção aos termos do litígio, pelo que se efetiva, na formulação consagrada, em razão das várias soluções plausíveis das questões de Direito em apreciação.

Dado que, como se referiu, o problema jurídico concreto prioritário que este Tribunal é chamado a resolver no quadro do presente processo se prende com a ilegalidade do ato proferido pelo Diretor-Geral da AT ao abrigo do art. 13.º, n.º 1 do RJAT e com a conformação daí resultante das liquidações impugnadas, questão que é decisiva para a configuração do próprio objecto do processo e para a apreciação das demais questões suscitadas, é relevante começar por dar prioridade à fixação da matéria fáctica especificamente pertinente para o efeito.

 

13. Assim, examinada a prova documental produzida e o processo administrativo tributário junto (a seguir, PA), consideram-se provados, com interesse para o conhecimento da questão da validade da decisão proferida ao abrigo do art. 13.º, n.º 1 do RJAT quanto à manutenção das correções de IVA em apreço, para além da factualidade relativa à dinâmica processual acima especificada no Relatório, os factos que a seguir se enunciam:

 

I. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas que tem como objecto social a “importação, exportação, compra, venda e distribuição de material fonográfico; compra, venda, distribuição e edição de discos, cd's, cassete de vídeo e outro material fonográfico e de reprodução áudio e vídeo; comércio por grosso e a retalho de material fonográfico; promoção, realização e divulgação de eventos e espetáculos musicais e de entretenimento que exerce a atividade de compra e venda de cds, dvds, discos de vinil, merchandising e outros artigos relacionados com música e audiovisuais”, encontrando-se registada para o exercício da atividade “Outro comércio por grosso de bens de consumo, n. e”, CAE 46494 (cfr. publicação no Portal da Justiça e Relatório de Inspeção Tributária (a seguir RIT), respectiva pág. 1, junto como doc. B à PI e constante igualmente a fls. 1774 a 1785 do PA, doc. denominado “Páginas de RG15.parte1”).

II. No ano de 2011, em causa neste processo, a Requerente encontrava-se enquadrada no regime normal de IVA, com periodicidade mensal (cfr. RIT, p. 1).

III. A Requerente, nas declarações periódicas apresentadas em relação ao ano de 2011, conforme cópias juntas em termos agregados como doc. M à PI, que aqui se dão por reproduzidas, auto-liquidou os seguintes valores de IVA a receber (créditos de IVA) nas sucessivas declarações mensais: Janeiro-10.446,84; Fevereiro-12.475,54; Março-45.601,59; Abril-55.634,47; Maio-38.390,19; Junho-34.462,93; Julho-27.890,22; Agosto-19.868,22; Setembro-12.777,64; Outubro-8.969,74; Novembro-34.701,28; Dezembro-22.154,27.

IV. Em 2013 os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do ... realizaram uma ação de inspeção à Requerente, com base na Ordem de Serviço n.º OI2013 …, com âmbito parcial relativo a IVA e incidência temporal nos exercícios de 2010, 2011 e 2012 (vd. RIT, p. 1).

V. A ação inspectiva iniciou-se no dia 18.1.2013 e terminou em 2.8.2013, tendo a empresa sido notificada, pelo ofício n.º …/0505, de 11.7.2013, conforme doc. F junto à PI, da ampliação, por um período de 3 meses, do prazo de procedimento de inspeção, com data previsível do termo do procedimento em 18.10.2013 (cfr. RIT, p. 1; vd. igualmente fls. 7 a 9 do PA [doc. denominado “Páginas de RG2.Parte2”]).

VI. Notificada para o efeito pelo Ofício …/0505, de 13.9.2013, a Requerente exerceu por escrito em 7.10.2013 o seu direito de audição prévia em relação ao Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (constante a fls. 14 a 22 do PA, que aqui se dá por reproduzido), contestando as respectivas conclusões e juntando diversos documentos, conforme doc. C junto à PI e fls. 120 a 1773 do PA ([docs. denominados “Páginas de RG3.Parte1”, “Páginas de RG3.Parte2”, “Páginas de RG4.Parte1”, “Páginas de RG4.Parte2”, “RG5” a “RG14”).

VII. Na sequência da ação inspectiva, foi elaborado o RIT (junto como doc. B à PI e constante igualmente a fls. 1774 e segs. do PA [doc. denominado “Páginas de RG15.parte1]”), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual se identificaram como situações determinativas de correções técnicas relativamente ao ano de 2011 as seguintes: i) dedução indevida de IVA no montante de €8.850,90; ii) transmissões intracomunitárias sem comprovativos adequados no montante de €49.469,61; iii) exportações sem comprovativos adequados no montante de €19.696,73; iv) transmissões intracomunitárias para sujeitos passivos com NIF inválido no montante de €3.609,26, as quais se encontram sumariadas no quadro seguinte:

VIII. O Relatório da Inspeção Tributária foi elaborado pelo Inspetor Tributário B… (cfr. as indicações constantes do RIT, designadamente p. 19).

IX. Na sequência das correções resultantes do mencionado RIT, a Requerente foi objeto das liquidações adicionais de IVA n.ºs …, no valor de €1.624,00, …, no valor de €2.146,93, …, no valor de €11.666,49, …, no valor de €7.267,30, …, no valor de €6.420,60,00, …, no valor de €5.782,60, …, no valor de €3.232,13, …, no valor de €6.433,95, …, no valor de €5.549,80, …, no valor de €7.215,97 e demonstrações de acerto de contas ID Documento 2013 .. - liquidação n.º 2013 …, com saldo apurado de €17.607,03 e ID Documento 2013 … - liquidação n.º 2013 …, com saldo apurado de €3.803,18, no montante global de €78.749,98, bem como das correspondentes liquidações de juros compensatórios n.ºs …, no valor de €162,84, …, no valor de €207,75, …, no valor de €1.091,86, …, no valor de €653,06, …, no valor de €557,27, …, no valor de €482,89, …, no valor de €258,22, …, no valor de €494,27, …, no valor de €407,49, e …, no valor de €504,52, no montante global de €4.820,17, todas emitidas em 26.11.2013, relativas ao ano de 2011 (períodos de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro), no total de € 83.750,15, conforme documentos juntos como doc. A à PI.

X. A Requerente procedeu ao pagamento das liquidações referidas no número antecedente nos dias 31.1.2014 e 17.1.2014 nos termos que resultam dos comprovativos de pagamento juntos como doc. E à PI.

XI. A Requerente apresentou em 17.1.2014 reclamação graciosa relativamente às identificadas liquidações adicionais, requerendo que as mesmas sejam dadas sem efeito “por comprovadamente não terem razão de ser”, no âmbito da qual apresentou diversa documentação (conforme doc. D junto à PI que se dá aqui por reproduzido).

XII. No âmbito desse procedimento de reclamação graciosa foi emitida, em 01.10.2014, a Informação da Direção de Finanças do ..., Divisão de Inspeção Tributária-II, epigrafada “Análise dos processos de reclamação graciosa n.ºs … 2014 …, … 2014 … e … 2014 … – IVA, 2010, 2011 e 2012”, da autoria do Inspetor Tributário B…, conforme documento junto aos autos pelo requerimento de 28.1.2015 da Requerida (vd. supra n.º 6 do Relatório), informação essa em que foi proposta, no que respeita ao ano de 2011, a redução dos valores das correções de acordo com o seguinte quadro:

XIII. A reclamação graciosa não foi decidida no prazo de 4 meses após a data da sua apresentação (factualidade reconhecida nos n.ºs 10 da resposta e 6 da PI).

XIV. Em 01.09.2014, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo, conforme informação do sistema de gestão processual do CAAD.

XV. Em 6.10.2014, foi emitida a Informação da Direção de Finanças do ..., Divisão de Inspeção Tributária-II, epigrafada “Pronúncia sobre a manutenção das liquidações, face ao pedido de constituição do tribunal arbitral – artigo 13.º, n.º 1 do RJAT”, da autoria do Inspetor Tributário B…, confirmada por despacho do Chefe de Divisão, em subdelegação do D.F. Adjunto (conforme consta a fls. não paginadas do PA [doc. denominado “Páginas de RG1.parte1”], da qual releva destacar, pelo seu interesse imediato para os autos, as seguintes considerações:

“1. Por e-mail da Direção de Serviços de Consultadoria Jurídica e Contencioso (DSCJC), foi informada esta Direção de Finanças de que o contribuinte A…, Lda, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), relativamente às liquidações em epígrafe, resultantes de procedimento inspectivo levado a efeito pelos Serviços de Inspeção desta Direção de Finanças, solicitando a remessa dos relatórios de inspeção tributária, bem como de outros elementos considerados relevantes para a defesa da AT.

2. Mais solicita que esta Direção de Finanças, atendendo que nos termos do n.° 1 do artigo 13.º do RJAT pode proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, se pronuncie sobre os pedidos do requerente. (...)

Ano de 2011:

121. No que concerne às notas de crédito emitidas pela Requerente a favor da H…, com os n.°s …/2011, …/2011 AT e …/2011, não parece possível relacionar os valores indicados nas listagens constantes das faturas n.°s A0 … e A0 …, ambas emitidas pela referida empresa em 2011/03/28, em nome do sujeito passivo, onde se encontram relacionados registos de devoluções, com a indicação de que as devoluções dela constantes no montante de €4.492,10, €2.839,68 e de €692,85, respetivamente, acrescida de IVA à taxa normal, reporta-se às referidas notas de crédito, com as notas de crédito em questão, pelo que é de manter a correção proposta, uma vez que o IVA constante das notas de crédito relacionadas é considerado indevidamente deduzido por força do disposto no n.º 5 do artigo 78 ° do CIVA (...).

122. Quanto às correções propostas, resultantes de lapsos de contabilização e erros de soma, o IVA deduzido em excesso em resultado desses factos não se encontra suportado em qualquer documento, pelo que é considerado indevidamente deduzido, por contrariar o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 19.° do CIVA (...).

126. Falta de liquidação de IVA nas transmissões intracomunitárias de bens não comprovadas (...)

133. A empresa veio à posteriori, no âmbito dos processos de reclamação graciosa, apresentar documentos que pretenderam fazer prova da saída dos bens a partir do território nacional para outro Estado Membro, com destino ao adquirente.

134. Analisados e apreciados esses elementos, concluiu-se que do valor inicialmente não justificado, continua a não estar comprovada parte das transmissões intracomunitárias de bens faturadas, contabilizadas e declaradas para efeitos de IVA, pelos motivos elencados na informação prestada para a Divisão de Justiça e Contencioso da DF....

136. Falta de liquidação de IVA nas exportações não comprovadas (...)

138. A empresa veio à posteriori, no âmbito dos processos de reclamação graciosa, apresentar documentos que pretenderam fazer prova da saída dos bens a partir do território nacional para países terceiros, com destino ao adquirente.

139. Analisados e apreciados esses elementos, concluiu-se que do valor inicialmente não justificado, continua a não estar comprovada parte das exportações faturadas e contabilizadas, mas não declaradas para efeitos de IVA, pelos motivos elencados na informação prestada para a Divisão de Justiça e Contencioso da DF..., e nos casos em que não são obrigatórios documentos alfandegários, por não se tratarem de casos pontuais, e não estarem devidamente justificados (...).

 

V - CONCLUSÃO

141. IVA indevidamente deduzido

142. Face ao exposto, deverão manter-se inalteradas as correções propostas relativamente ao IVA indevidamente deduzido, com a exceção da correção relativa à guia de remessa (“…") n.° … (...).

143. Falta de liquidação de IVA

144. Falta de liquidação de IVA resultante da validação dos NIPCs dos clientes intracomunitários:

145. Face ao exposto, são de manter as correções constantes do Quadro 2.

146. Falta de liquidação de IVA nas transmissões intracomunitárias de bens não comprovadas:

147. Face ao exposto, e no que se refere às transmissões intracomunitárias de bens declaradas, as correções constantes do Quadro 3, deverão assumir os seguintes valores:

(...)

148. Falta de liquidação de IVA nas exportações não comprovadas:

149. Face ao exposto, e no que se refere às exportações registadas, as correções constantes do Quadro 4, deverão a assumir os seguintes valores:

(...)

151. Resumo das correções de natureza meramente aritméticas propostas que deverão manter-se: (...)

Concluindo, as correções de natureza meramente aritmética, resumem-se no Quadro 9:

pelo que as liquidações objecto de impugnação deverão ser parcialmente reformuladas”.

XVI. Por despacho de 14.10.2014, o Diretor-Geral da AT determinou a revogação parcial dos atos tributários aqui controvertidos “conforme vem proposto” (cfr. o indicado despacho emitido sobre a Informação n.º …/2014, de 14.10.2014 constante da plataforma electrónica do CAAD).

XVII. A proposta de decisão constante da Informação n.º …/2014, de 14.10.2014, na base do despacho de revogação parcial do Diretor-Geral da AT mencionado no número anterior, refere o seguinte “tendo em consideração as informações prestadas pela DF do ..., e no uso da prerrogativa constante do art. 13.º do RJAT, propõe-se que seja determinado o deferimento parcial da pretensão da Requerente, mantendo-se,  em conformidade, as correções pelos valores constantes do quadro seguinte, devendo os juros compensatórios ser reformulados em conformidade” (cfr. a indicada Informação constante da plataforma electrónica do CAAD que aqui se dá por integralmente reproduzida, sendo que o quadro mencionado, na parte aqui relevante, já foi acima reproduzido no n.º 4).

 

14. A convicção do Tribunal sobre os factos dados como provados resultou dos documentos juntos aos autos e constantes do PA, bem como do reconhecimento de factos assumido nas peças processuais pelas partes, conforme se especifica em cada um dos pontos da matéria de facto acima enunciada.

 

15. Não existe factualidade dada como não provada que seja relevante para a decisão da questão específica em apreciação.

 

IV. Do Direito

 

a) Impedimento no procedimento relativo ao ato de revogação

 

16. Cabe agora enfrentar, em termos de Direito, a questão respeitante ao vício invocado pela Requerente em relação à decisão proferida ao abrigo do art. 13.º, n.º 1 do RJAT quanto à presença de incompatibilidade específica, nos termos do art. 20.º, n.º 1, al. f) do RCPIT, e de impedimento, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, al. g) do CPA.

Esta questão foi suscitada pela Requerente após a apresentação da PI em requerimento de 9.2.2015 (vd. n.º 6 do Relatório) e nas respectivas alegações. A invocação deste fundamento mostra-se, porém, tempestiva, porquanto está em causa o facto superveniente da revogação operada nos termos do n.º 1 do art. 13.º do RJAT e o conhecimento do procedimento em que tal revogação se sustentou, sendo que, como acima se referiu no n.º 11, o n.º 5 do art. 91.º do CPTA, aplicável ex vi art. 29.º, al. c) do RJAT, admite que nas alegações o autor invoque novos fundamentos do pedido, de conhecimento superveniente.

 

17. A Requerente, nas suas alegações (vd. igualmente o requerimento de 9.2.2015 acima aludido), sustenta o seguinte (n.ºs 22 a 32 das alegações) sobre a questão ora em apreciação:

- “do PA resulta que a inspeção e relatório da Divisão de Inspeção Tributária da DF do ..., datado de 06.10.2014 (que sustenta o Parecer da DF do ... – Divisão de Inspeção Tributária, de 06.10.2014, e o despacho concordante de 07.10.2014, do Chefe daquela Divisão de Inspeção), e que conduziu ao apuramento dos valores de IVA alegadamente ainda em dívida (ou seja, não anulados pela AT), é da autoria precisamente do mesmo inspetor tributário que fez o relatório inspectivo que esteve na base das liquidações aqui impugnadas – B…”;

- assim, “a decisão administrativa do meio de reação do contribuinte teve por base uma inspeção feita pelo mesmíssimo inspetor que inicialmente fez a inspeção geradora das liquidações adicionais de IVA e JC aqui impugnadas”, pelo que “estamos perante uma ostensiva incompatibilidade específica do inspetor, nos termos do artigo 20º nº 1 f) do RCPIT” e “perante um caso de impedimento, nos termos do artigo 44º nº 1 g) do CPA”;

- “Por conseguinte, tendo em conta que foi precisamente esta inspeção, eivada de vício de violação de lei, que conduziu à manutenção parcial das liquidações de IVA e JC aqui impugnadas, devem estas ser anuladas também no segmento em que se mantiveram – ou seja, na parte em que não foram administrativamente revogadas”, dado que “as liquidações de IVA e JC aqui impugnadas, no segmento em que não foram revogadas pela AT, constituem atos consequentes de procedimento inspectivo que padece de vício de violação das sobreditas disposições legais – fundamentalmente porque realizado pelo mesmo inspetor que realizou a inspeção subjacente às liquidações”;

- “enquanto atos consequentes que são, de procedimento inspectivo ilegal, as liquidações de IVA e JC aqui impugnadas, no segmento em que não foram revogadas pela AT, são nulas, nos termos do artigo 133º nº 2 i) do CPA”, sendo que “nos termos do artigo 54º do CPPT, vigora o princípio da impugnação unitária do ato final do procedimento tributário (...) – in casu, as liquidações adicionais de IVA e JC na parte não revogada pela AT”.

Pelo seu lado, a AT não tomou posição específica sobre a substância desta matéria nas peças processuais apresentadas, designadamente no seu requerimento de 11.3.2015 e nas suas contra-alegações.

Cumpre então decidir.

 

18. O art. 20.º, n.º 1, al. f) do RCPIT determina que: “Os funcionários da inspeção tributária, além das incompatibilidades aplicáveis aos funcionários da Autoridade Tributária e Aduaneira em geral, estão sujeitos às seguintes incompatibilidades específicas: f) Realizar ou participar em ações de inspeção visando a prestação de informações em matéria de facto em processos de reclamação, impugnação ou recurso de quaisquer atos da administração tributária em que tenham tido intervenção”.

Por seu turno, o art. 44.º, n.º 1, al. g) do CPA 1991, aplicável à data dos factos (cfr. atualmente o art. 69.º, n.º 1, al. f) do CPA 2015), cujo teor é relevante para o procedimento tributário por força da al. c) do art. 2.º da LGT, estabelece, sob a epígrafe “Casos de impedimento”, que: “Nenhum titular de órgão ou agente da Administração Pública pode intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública nos seguintes casos: g) Quando se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção, ou proferida por qualquer das pessoas referidas na alínea b) ou com intervenção destas”.

Como se explicita no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 20.12.2006, proc. n.º 0606/02, esta disposição legal, que “visa a concretização de uma das garantias preventivas da imparcialidade, que norteiam a atividade da Administração e também o procedimento administrativo, e encontra a sua consagração no artigo 266º, nº 2 da CRP, e reafirmação no artigo 6º do CPA”, é “uma norma de proibição que visa assegurar a isenção e independência da autoridade decidente”, pois “o afastamento de quem está comprometido com um determinado ato que é objecto de impugnação, garante o distanciamento mínimo indispensável para que a decisão seja tomada sem interposição de interesses da natureza funcional ou até de simples exageros de personalidade, que poderiam conduzir o decisor a reproduzir o juízo já emitido, e salvaguarda a liberdade decisória do superior hierárquico, na medida em que lhe faculta o contacto com a realidade do procedimento administrativo de primeiro grau, tal como ela existe, à margem de toda e qualquer ulterior interferência”. Na verdade, como se observa no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17.11.2004, proc. n.º 02038/03, “[é] inevitável que quem preparou esta [decisão primária], fornecendo-lhe a motivação de suporte, tenderá, se envolvido na decisão do recurso, a manter a sua opinião e a sustentar a decisão que nela se louvou”, pelo que “a sua intervenção, para além do défice garantístico que implica, vai em desfavor de uma decisão administrativa racional, ponderada e tanto quanto possível correta”.

Note-se que o conceito de “intervenção” presente na al. g) do n.º 1 do art. 44.º do CPA 1991 abrange não apenas a atividade decisória propriamente dita, mas todas as outras atuações procedimentais relevantes (cfr. n.º 2 do art. 44.º do CPA) para a instrução e preparação da decisão (cfr. o mencionado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17.11.2004, proc. n.º 02038/03), particularmente os atos que determinem ou moldem a decisão final.

Pois bem, deve entender-se que a referência constante da mencionada al. g) do n.º 1 do art. 44.º do CPA a “recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção” abrange o procedimento de revogação dos atos tributários objecto de pedido de pronúncia arbitral previsto no n.º 1 do art. 13.º do RJAT (cfr., aliás, a enumeração constante do art. 20.º, n.º 1, al. f) do RCPIT que se reporta explicitamente a “processos de reclamação, impugnação ou recurso de quaisquer atos da administração tributária”). Com efeito, como se observa no acórdão proferido no proc. n.º 656/2014-T deste CAAD, “[o] procedimento de revogação dos atos que são objecto de pedidos de pronúncia arbitral insere-se, por mera interpretação declarativa, no conceito de «recurso», já que esta expressão é adequada a referenciar qualquer meio de impugnação de atos da Administração e no procedimento referido visa-se, à face do alegado no pedido de pronuncia arbitral, apreciar a correção do ato que deste seja objecto”.

Nos termos do art. 51.º, n.º 1 do CPA 1991, os atos em que tiverem intervindo titulares de órgão ou agentes impedidos são anuláveis nos termos gerais.

 

19. Cabe agora proceder à aplicação à situação sub judice das soluções acima expostas.

Comece-se por assinalar que a configuração da relação tributária (art. 2.º, n.º 1 da LGT) entre a Requerente e a AT em sede de IVA do ano de 2011 resulta, por último, na sequência das atuações administrativo-tributárias adoptadas, do teor da decisão emitida ao abrigo do n.º 1 do art. 13.º do RJAT, a qual revogou parcialmente as liquidações aqui sindicadas, anulando parte das correções subjacentes e mantendo as restantes correções técnicas contestadas, em conformidade com a fundamentação que resulta da Informação em relação à qual se manifesta concordância (cfr. os pontos n.ºs XVI e XVII do probatório).

Deste modo, o objecto do presente processo são as liquidações “corrigidas” (ou “reformuladas” como se refere na Informação citada no n.º XV do probatório) tal como as mesmas foram conformadas por esta decisão emitida ao abrigo do art. 13.º, n.º 1 do RJAT, o que determinou, em termos de execução, diferenças de IVA a restituir à Requerente (cfr. acima n.º 6 do Relatório), dado esta ter procedido ao pagamento integral das liquidações iniciais (cfr. n.º X do probatório).  Com a decisão proferida ao abrigo do art. 13.º do RJAT a AT procedeu, pois, a uma anulação administrativa, mediante revogação anulatória parcial, dos atos tributários que, por erro de facto ou de direito, fixaram uma prestação tributária superior à legalmente devida.

Pois bem, conforme resulta do descrito nos n.ºs XV, XVI e XVII do probatório, a decisão de revogação parcial em atenção a certas correções e de manutenção de cada uma das outras correções técnicas contestadas, e a consequente conformação das liquidações “corrigidas”  resultante dessa decisão, sustentou-se exclusivamente na motivação constante da Informação da Direção de Finanças do ..., Divisão de Inspeção Tributária-II, epigrafada “Pronúncia sobre a manutenção das liquidações, face ao pedido de constituição do tribunal arbitral – artigo 13.º, n.º 1 do RJAT”. Repare-se, com efeito, que o despacho de 14.10.2014 determina a revogação parcial dos atos tributários controvertidos “conforme vem proposto” (vd. n.º XVI do probatório) na Informação n.º …/2014, de 14.10.2014, a qual, “tendo em consideração as informações prestadas pela DF do ...”, propõe “que seja determinado o deferimento parcial da pretensão da Requerente, mantendo-se, em conformidade, as correções pelos valores constantes do quadro” aí indicado (vd. n.º XVII do probatório), sendo que as “informações prestadas pela DF do ...” se reconduzem à Informação da Direção de Finanças do ..., Divisão de Inspeção Tributária-II, epigrafada “Pronúncia sobre a manutenção das liquidações, face ao pedido de constituição do tribunal arbitral – artigo 13.º, n.º 1 do RJAT”, confirmada por despacho do Chefe de Divisão, em subdelegação do D.F. Adjunto (vd. n.º XV do probatório).

Verifica-se, assim, em face da factualidade provada, que a manutenção das correções técnicas contestadas relativas ao IVA respeitante ao ano de 2011 que se decidiu pelo despacho proferido ao abrigo do art. 13.º, n.º 1 do RJAT resultou única e exclusivamente da análise do pedido de pronúncia arbitral e da fundamentação que foram desenvolvidas na referida Informação de 6.10.2014 denominada “Pronúncia sobre a manutenção das liquidações, face ao pedido de constituição do tribunal arbitral – artigo 13.º, n.º 1 do RJAT” da autoria do mesmo Inspetor Tributário que elaborou o Relatório de Inspeção Tributária na base das correções técnicas e das consequentes liquidações adicionais de IVA aqui em causa (cfr. n.ºs VIII e XV do probatório).

Deste modo, como a posição assumida pelo referido Inspetor Tributário é o único fundamento material da decisão revogatória parcial proferida nos termos do art. 13.º, n.º 1 do RJAT, não é possível assimilar tal situação a uma pronúncia sobre o recurso como se prevê no n.º 1 do art. 172.º do CPA 1991, pronúncia essa que, como se elucida no acórdão do STA de 28.1.2003, recurso n.º 705/02, se destina ao “integral esclarecimento da situação que é objecto da atividade da Administração”, o que envolve, em nome do contraditório, que “o autor do ato recorrido possa contraditar os factos e os argumentos jurídicos expostos no requerimento do impugnante e/ou emitir opinião acerca da validade e relevância dos documentos apresentados [cfr. artigo 169º, nº 1 do CPA], ampliando o universo dos elementos importantes para o debate”. É que, para tanto, é fundamental que a “pronúncia” não tenha “o condão de moldar ou influenciar de forma decisiva a solução tomada” pela entidade decisora do recurso (cfr. o já citado acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 20.12.2006, proc. n.º …/02), pois então não se contém dentro dos parâmetros próprios da finalidade da norma em causa.

Nesta sequência, deve-se destacar que a disposição do art. 44.º, n.º 1, al. g) do CPA proíbe que o “recurso” seja decidido unicamente com fundamento em informação, parecer ou proposta da autoria do técnico que, ao serviço do órgão emitente da decisão primária, elaborou a informação ou parecer em que o mesmo se apoiou na tomada da decisão primária. Como se observa no já citado acórdão proferido no proc. n.º 656/2014-T deste CAAD: “No específico caso do impedimento de intervenção em procedimentos de natureza administrativa em que são impugnados atos, visa-se assegurar um duplo grau de apreciação, através de uma nova análise da situação sem qualquer predisposição psicológica para manter o decidido, o que legislativamente se entendeu só poder ser assegurado inibindo os funcionários que intervieram em fases anteriores de procedimentos de terem intervenção nos recursos que, direta ou indiretamente, visem apreciar a sua atuação”.

Nestes termos, como o despacho de revogação de 14.10.2014, proferido nos termos do n.º 1 do art. 13.º do RJAT, se restringiu a manifestar concordância com a Informação n.º …/2014, de 14.10.2014 (n.º XVI dos factos provados), a qual, por seu turno, não envolveu qualquer apreciação autónoma sobre os fundamentos da revogação parcial das liquidações iniciais e sobre a manutenção das restantes correções técnicas contestadas, mas acolheu simplesmente as “informações prestadas pela DF do ...”, reproduzindo integralmente o quadro apresentado na Informação, de 6.10.2014, relativa a “Pronúncia sobre a manutenção das liquidações, face ao pedido de constituição do tribunal arbitral – artigo 13.º, n.º 1 do RJAT” (n.ºs XV e XVII dos factos provados), da autoria do mesmo Inspetor Tributário que elaborou o RIT na base das liquidações originais (n.ºs VIII e XV do probatório), impõe-se reconhecer que se verifica na situação em apreço a ocorrência de impedimento nos termos do disposto no art. 44.º, n.º 1, al. g) do CPA 1991.

Assim, dado que a presença deste vício atinente à infracção do disposto no art. 44.º, n.º 1, al. g) do CPA 1991 contende com a formação da vontade do órgão decidente quanto à manutenção das correções técnicas controvertidas e das liquidações “corrigidas”, padecem estas de vício de violação de lei que afecta a sua validade.

Em suma, o ato de revogação parcial das liquidações originárias proferido ao abrigo do art. 13.º, n.º 1 do RJAT, na parte em que as manteve com base exclusiva nos fundamentos da Informação emitida pelo Inspetor Tributário que realizou a inspeção e elaborou o Relatório de Inspeção Tributária respectivo, enferma de vício de violação de lei, que se repercute nas correções técnicas contestadas que foram mantidas e nas correspondentes liquidações “corrigidas”, o que determina a sua anulação, nos termos do estatuído nos art. 51.°, n.º 1 e 135.° do CPA 1991, o que se decide.

 

 

 

b) Questões de conhecimento prejudicado

 

20. Em face do assim decidido quanto à procedência do vício invocado na questão ora resolvida, e tendo em conta a relação de subsidiariedade estabelecida pela Requerente (vd. supra n.º 11), fica prejudicada a apreciação das outras questões enunciadas nas alíneas ii) a x) do n.º 10, pelo que não cabe delas conhecer, nos termos do art. 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT, já que isso configuraria a prática de um ato inútil, o que não é admissível (art. 130.º do CPC).

 

c) Liquidações de juros compensatórios

 

21. As liquidações de juros compensatórios estão na dependência da legalidade do ato de liquidação do imposto a que se reportam, integrando-se na mesma dívida de imposto (artigo 35.°, n.° 8, da LGT), pelo que são atingidas pela anulação das liquidações de IVA acima decretada, o que implica, consequentemente, a respectiva invalidade.

 

d) Juros indemnizatórios

 

22. Peticiona, por fim, a Requerente a condenação da AT ao reembolso do imposto pago indevidamente bem como dos respectivos juros indemnizatórios.

Prescreve a alínea b) do art. 24.º do RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os atos e operações necessários para o efeito, o que se deve entender, em conformidade com o art. 100.º da LGT, aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT, como abrangendo o pagamento de juros indemnizatórios, em consonância, aliás, com o disposto no n.º 5 deste mesmo art. 24.º do RGAT.

Determina o art. 43.º, n.º 1, da LGT que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estabelecendo o n.º 4 do art. 61.º do CPPT, que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

Dado que, no caso em apreciação, se verifica a ilegalidade das liquidações impugnadas, imputável à Administração Tributária, tem a Requerente direito, em conformidade com os arts. 24.º, n.º 1, al. b) do RJAT e 100.º da LGT, ao reembolso das prestações tributárias pagas em excesso e aos juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º do CPPT, calculados desde as datas dos pagamentos efectuados (17.1.2014 e 31.1.2014 – cfr. factualidade provada no n.º X do probatório) à taxa resultante do n.º 4 do art. 43.º da LGT, até à data do integral reembolso do montante total pago.

 

V. Decisão

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

 

i)                  julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular, na parte subsistente após a revogação parcial operada ao abrigo do art. 13.º, n.º 1 do RJAT, os atos tributários impugnados nos autos, a saber, as liquidações adicionais de IVA n.ºs …, …, …, …, …, …, …, .., …, … e demonstrações de acerto de contas ID Documento 2013 … - liquidação n.º 2013 …, e ID Documento 2013 .. - liquidação n.º 2013 …, e as respectivas liquidações de juros compensatórios n.ºs …, …, …, …, …, …, …, …,… e …;

ii)                 julgar procedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar à Requerente o valor indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data em que os pagamentos foram efetuadas até à data do seu integral reembolso;

iii)              condenar a AT nas custas do processo.

 

VI. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, aplicáveis por força das alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), fixa-se ao processo o valor de € 83.750,15.

Não procede, assim, a pretensão da Requerida de que, em atenção à revogação parcial operada, o valor do processo corresponda ao montante das correções mantidas (€52.844,55), porquanto o art. 299.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força da alínea e) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT, estabelece que: “Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, exceto quando haja reconvenção ou intervenção principal”.

 

VII. Custas

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do RCPAT, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.754.00, nos termos da Tabela I do mencionado RCPAT, a cargo da Requerida dada a procedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

 Notifique-se.

 

 

Lisboa, 16 de junho de 2015.

 

 

Os Árbitros

 

 

José Pedro Carvalho

(Presidente)

 

Arlindo José Francisco

 

 

João Menezes Leitão



[1] Adota-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, tendo sido atualizada, em conformidade, a grafia constante das citações efetuadas.