Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 577/2014-T
Data da decisão: 2015-02-20  Selo  
Valor do pedido: € 12.149,00
Tema: Verba 28.1 da TGIS – Propriedade total
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Decisão Arbitral

Processo n.º 577/2014-T

 

I. Relatório[1]

 

1. A…-PROJECTOS IMOBILIÁRIOS, SA, pessoa colectiva n.º …, com sede na .. (a seguir designada por Requerente), apresentou em 29.07.2014, nos termos do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação da liquidação referente a Imposto do Selo (IS) respeitante a 2013 com o n.º 2014..., com valor a pagar relativo à primeira prestação de €4.049,68 e valor total de colecta de €12.149,00, sendo demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (a seguir, Requerida ou AT).

 

a) Constituição do Tribunal Arbitral

 

2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo.

 

3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 01.10.2014.

 

b) História processual

 

4. No pedido de pronúncia arbitral (a seguir petição inicial ou PI), a Requerente peticiona, em relação à liquidação de Imposto do Selo n.º 20104... relativa a 2013 no valor global de €12.149,00, “a anulação da liquidação contestada, por ter sido emitida nos termos da verba 28.1 da TGIS, que deverá ser julgada inconstitucional, com todas as consequências legais”, bem como “a condenação da AT no reembolso da quantia indevidamente paga relativamente à primeira prestação desta liquidação, acrescida dos juros indemnizatórios e, sendo esse o caso, no reembolso das quantias indevidamente pagas relativamente à segunda e terceira prestações da liquidação” “ou dos custos decorrentes da prestação de garantias no âmbito dos processos de execução fiscal que venham a ser instaurados para cobrança deste valor”.

 

5. A AT apresentou resposta em que peticiona a improcedência do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, por considerar que “o ato tributário em causa não violou qualquer preceito legal ou constitucional, devendo, assim, ser mantido no ordenamento jurídico”.

 

6. Por despacho de 7.11.2014, o Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto na al. c) do art. 16.º do RJAT, decidiu, com a concordância das partes, que não se mostrava necessário promover a reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT, por não estarem presentes as circunstâncias previstas nas diversas alíneas do n.º 1 deste dispositivo. Mais decidiu, em conformidade com o n.º 2 do art. 18.º do RJAT, dispensar a produção de alegações orais, por estarem perfeitamente expostas as posições das partes nos respectivos articulados.

Foi, por último, designada como data para a prolação da decisão arbitral o dia 20.2.2015.

 

7. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente para apreciar a matéria acima indicada (art. 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e encontram-se devidamente representadas.

 

8. O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que obstem à apreciação do mérito da causa, pelo que se mostram reunidas as condições para ser proferida decisão final.

 

c) Questões a decidir

 

9. Atento o pedido formulado pela Requerente na sua PI e a resposta apresentada pela Requerida, a matéria a decidir prende-se com a invocada ilegalidade da indicada liquidação emitida nos termos da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) por dever ser julgada inconstitucional esta disposição normativa pelos seguintes fundamentos: i) violação do princípio da igualdade previsto nos arts. 13.º e 104.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP); ii) violação da proibição da dupla tributação jurídica, decorrente do princípio da igualdade e do princípio da capacidade contributiva; iii) violação do princípio da neutralidade, decorrente do princípio da igualdade e do direito fundamental de livre iniciativa económica, previsto nos arts. 61.º, 80.º, al. c) e 86.º da CRP.

 

10. Deste modo, o âmago do litígio que este Tribunal está vinculado a resolver prende-se com determinar se a norma objecto da verba 28.1 da TGIS, ao estabelecer a tributação em IS de prédios urbanos, de valor patrimonial tributário constante da matriz igual ou superior a €1.000.000,00, com afectação habitacional, à taxa de 1% sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI, deve ser objecto de recusa de aplicação com fundamento na sua desconformidade com a Constituição, atento o estatuído no art. 204.º da CRP (segundo o qual: “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”; cfr. aliás 25.º, n.º 1 do RJAT), e se, consequentemente, deve ser invalidada a liquidação impugnada que se baseou naquela norma.

 

 

II. Decisão da matéria de facto e sua motivação

 

11. Examinada a prova documental produzida, o Tribunal julga provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

 

I. A Requerente é uma sociedade comercial anónima que tem por objecto social a “aquisição, gestão e alienação de bens imóveis, o desenvolvimento de projetos imobiliários, a construção de imóveis para venda, a revenda e o arrendamento de imóveis adquiridos pela sociedade e a prestação de serviços conexos” (cfr. certidão comercial junta como doc. n.º 2 à PI).

II. A Requerente é proprietária do prédio urbano “em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente” sito na …, com afectação a “habitação”, com o valor patrimonial de €1.214.900,00, inscrito na matriz predial da freguesia de …, concelho de Cascais, sob o artigo … (cfr. a caderneta predial urbana junta como doc. n.º 3 - lcralmenteeo valor patrimnonial de cada uma das ditas divisnetes aos andafes ou disià PI).

III. Foi efetuada em 17.03.2014, relativamente ao imóvel acima identificado em II e com referência ao ano de 2013, a liquidação de Imposto do Selo da verba 28.1 da TGIS com o n.º 2014..., com base no valor patrimonial de €1.214.900,00, à taxa de 1%, de que resultou a colecta de €12.149,00, conforme documento de cobrança relativo à 1.ª prestação no montante de €4.049,68 junto como doc. n.º 1 à PI.

IV. A Requerente procedeu em 28.4.2014 ao pagamento da 1.º prestação do imposto resultante da liquidação objecto do indicado documento de cobrança, no montante total de €4.049,68, conforme doc. n.º 4 junto à PI.

 

12. Não existe qualquer outra factualidade relevante para a decisão de mérito em atenção às possíveis soluções de Direito que caiba considerar como não provada.

 

13. A convicção do Tribunal sobre a factualidade dada como provada resultou do exame dos documentos não impugnados que constam dos autos, conforme se especifica em cada um dos pontos do probatório acima enunciados, não sendo, aliás, a matéria de facto articulada objecto de qualquer controvérsia entre as partes.

 

III. Do Direito

 

A. Posição da Requerente

 

14. Para fundamentar o seu pedido de declaração de ilegalidade da liquidação impugnada por ter sido emitida nos termos da verba 28.1 da TGIS cuja inconstitucionalidade invoca, a Requerente alega, no essencial, o seguinte na sua PI:

a) O princípio da igualdade, genericamente previsto no art. 13.º da CRP, “encerra não só uma dimensão formal de proibição do arbítrio - impedindo que sejam adotadas soluções diferenciadoras com base em critérios puramente discriminatórios, como os enunciados no n.º 2 do artigo 13.° da CRP - mas também uma dimensão material, que impõe ao legislador - e aos demais poderes públicos - que atenda às diferenças existentes na realidade, de modo a tratar por igual o que é igual e de modo diferente o que é diferente, e ainda que promova a igualdade de oportunidades”, pelo que “é indiscutível que o princípio da igualdade não veda a consagração de soluções diferenciadas, não podendo, contudo, tais diferenciações deixar de se fundar em valores constitucionalmente atendíveis” (arts. 9.º e 10.º).

b) “Em matéria tributária, o princípio da igualdade concretiza-se através do princípio da capacidade contributiva, de acordo com o qual todos devem ser chamados a financiar o Estado através do pagamento de impostos na medida da sua capacidade económica para suportar esse encargo”, pelo que “um contribuinte só poderá ser chamado a suportar o encargo de um imposto quando, através dos rendimentos que aufere, das despesas que efetua ou do património de que é titular, revele capacidade económica para lhe fazer face” e “sempre que dois contribuintes revelem a mesma capacidade contributiva, deve-lhes ser exigido o mesmo imposto sob pena de se considerar violado o princípio da igualdade” (arts. 12.º, 15.º e 16.º).

c) “A verba 28.1 da TGIS trata de maneira desigual - tributando - os titulares de um direito real de gozo (de propriedade ou menor) de prédios com um VPT igual ou superior a €1.000.000 que tenham afetação habitacional” (art. 22.º), pois “ficam desde logo excluídas de tributação as situações em que: i) Um contribuinte seja titular de um património imobiliário afeto a habitação cujo VPT seja igual ou superior a €1.000.000, mas disperso por vários prédios que isoladamente não atingem esse valor; ii) Um contribuinte seja titular de um só prédio, com um VPT igual ou superior a €1.000.000, mas afeto a outra finalidade que não habitação” (art. 23.º). “Para que tal solução legal fosse admissível à luz dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, tal como acima enunciados, seria necessário admitir que os titulares de um direito real de gozo sobre um prédio com afetação habitacional e com um VPT igual ou superior a €1.000.000 demonstram uma capacidade económica superior à dos contribuintes referidos em i) e ii)” (art. 24.º), pelo que “não é (...) possível afirmar que as distinções feitas pelo legislador na verba 28.1 da TGIS assentam na diferente capacidade contributiva – que (...) deve ser o pressuposto e o critério da tributação - daqueles que ficam sujeitos à tributação aí prevista e dos que dela ficam excluídos” (art. 31.º).

d) Se se equacionar “o facto de se pretender obedecer a uma tributação de acordo com o princípio do benefício, enquanto princípio conformador do IMI e, por remissão da Lei n.° 55.°-A/2012, do IS previsto na verba 28.1 da TGIS”, “considerando que não existe qualquer motivo justificativo para que os benefícios atribuídos aos prédios destinados a habitação sejam superiores aos benefícios atribuídos/custos suportados com quaisquer outros prédios (designadamente com os prédios que requerem custos significativos por parte do Estado, tais como os prédios destinados a indústria), não se vislumbra como poderia o princípio do benefício subjazer a tal desigualdade” (arts. 34.º e 35.º).

e) “[A]tendendo àquela que parece ter sido a preocupação do legislador, enunciada na exposição de motivos da Proposta de Lei n.° 96/XII/2, que esteve na origem da Lei 55-A/20125, de - “reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento” - vemos que a mesma também não se manifesta às escolhas feitas na verba 28.1 da TGIS”, pois “não ficou demonstrado que os proprietários (ou usufrutuários ou superficiários) de prédios afetos a habitação com um VPT igual ou superior a €1.000.000 tenham sido efetivamente mais poupados àquelas medidas de austeridade do que aqueles que ficaram excluídos da tributação prevista na verba 28.1 da TGIS” (arts. 38.º e 39.º).

f) A verba 28.1 da TGIS ignora a dimensão proporcional do princípio da igualdade, pois “se a capacidade contributiva que se pretende atingir é aquela que se manifesta através da titularidade de um imóvel com um VPT igual ou superior a €1.000.000 - por se tratar de uma capacidade contributiva efetivamente superior à dos demais titulares de património imobiliário então o imposto devido deveria incidir apenas sobre a diferença entre €999.999 e o VPT do prédio em causa, porque é nessa diferença que reside a capacidade contributiva mais elevada que fundamenta a tributação”; “Até àquele valor, a capacidade económica dos detentores de património imobiliário é exatamente a mesma, não sendo, por isso, lícita qualquer distinção com aquele fundamento” (arts. 50.º a 57.º).

g) “Embora na CRP não se encontre consagrada de forma expressa uma proibição de dupla tributação jurídica, ela é uma decorrência lógica e necessária da consagração dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade”, pois se “essa mesma capacidade - já diminuída pelo encargo do primeiro imposto - é depois especificamente visada por outro tributo, é indiscutível que estamos perante uma violação do princípio da capacidade contributiva” e “sempre que essa dupla tributação se direcione apenas a uma categoria de contribuintes, ela não só viola o princípio da capacidade contributiva, como coloca em causa o princípio da igualdade de uma forma especialmente gritante” – ora, é “evidente que a tributação introduzida pela verba 28.1 da TGIS incide sobre uma riqueza ou capacidade económica que já foi sujeita a tributação em sede de IMI, mediante a aplicação de uma taxa à totalidade do VPT dos prédios”, “Sendo que essa duplicação de tributação se dirige única e exclusivamente a uma categoria de sujeitos passivos, sem que tal distinção tenha, como vimos, qualquer apoio no princípio da capacidade contributiva (ou sequer noutro fundamento que pudesse ser admissível), comprometendo-se, por isso, de forma irremediável o direito à igualdade desses contribuintes” (arts. 60.º a 76.º).

h) O princípio da neutralidade fiscal “decorrente do princípio da igualdade e do direito fundamental de livre iniciativa económica, previsto nos art.°s 61.°, 80.°, al. c), e 86.° da CRP, pretende assegurar que as regras de natureza fiscal não tenham uma influência significativa nas decisões económicas dos contribuintes” – ora, “a tributação introduzida pela verba 28.1 da TGIS por recair exclusivamente sobre o património imobiliário habitacional penaliza injustificadamente as empresas que, como a Requerente, optaram por atuar no sector imobiliário”, a que “Acresce que, ao tributar exclusivamente os prédios habitacionais, o condicionamento feito pelo legislador é ainda mais significativo e injustificado, já que, assim, se induz as empresas a investir menos no parque habitacional e mais em imóveis com outras afetações, única e exclusivamente por razões fiscais”, “Influenciando, desta forma, uma decisão que deveria ser determinada apenas pelas estratégias comerciais das empresas e pela sua percepção do mercado, no exercício do seu direito de livre iniciativa económica” (arts. 78.º a 87.º).

 

B. Posição da Requerida

 

15. Em resposta, sustenta a Requerida, no essencial, o seguinte no seu articulado:

a) “[A] previsão da verba 28.1 da TGIS não consubstancia qualquer violação ao princípio da igualdade”: “Trata-se de uma norma geral e abstracta, aplicável de forma indistinta a todos os casos em que se verifiquem os respectivos pressupostos de facto e de direito”; que “foi criada num contexto de fortes restrições orçamentais, conhecidas e reconhecidas internacionalmente, onde os cidadãos nacionais foram chamados a verdadeiros sacrifícios, impostos pela assinatura do memorando da Troika”; “a capacidade contributiva dos cidadãos nacionais foi, por força de todo o contexto conhecido, atingida nas suas mais variadas formas, desde logo com um aumento dos impostos sobre o rendimento, com um aumento dos impostos sobre o consumo e com um aumento dos impostos sobre o património”; “A escolha das realidades económicas que foram atingidas foi política, e se, por um lado, algumas das opções possam ser de algum modo questionáveis, não são, por isso, inconstitucionais, não havendo qualquer fundamento para a “falta de fundamentação da desigualdade prevista na verba 28.1 da TGIS”, alegada pela Requerente” (arts. 10.º a 16.º).

b) “Obedecendo a tributação de IS ao critério de adequação, na exata medida em que visa a tributação da riqueza consubstanciada na propriedade de imóveis de elevado valor”, “a medida implementada procura buscar um máximo de eficácia, quanto ao objectivo a atingir, com o mínimo de lesão para outros interesses públicos, que não se consubstanciam em qualquer “arbitrariedade” da distinção feita pela verba 28.1 da TGIS em função da afectação habitacional dos prédios, mas sim de uma opção legítima do legislador” (arts. 17.º e 18.º).

c) “[E]ncontra-se legitimada a opção por este mecanismo de obtenção da receita, o qual apenas seria censurável, face ao princípio da proporcionalidade, se resultasse manifestamente indefensável”, o que não se verifica “porquanto tal medida é aplicável de forma indistinta a todos os titulares de imóveis com afectação habitacional de valor superior a €1.000.000,00” (arts. 19.º e 20.º).

d) A verba 28.1 da TGIS não viola o princípio da igualdade proporcional, sendo que “a argumentação da Requerente nos artigos 50.º a 59.º da petição arbitral, assenta num mecanismo que, em respeito pelos princípios constitucionais, foi criado para os impostos sobre o rendimento das pessoas (...), aplicando taxas de imposto progressivamente mais elevadas”, o que não se passa com “os impostos sobre o património, que nos termos do art.º 104.º n.º 3 da CRP, devem contribuir para a igualdade entre os cidadãos, que sendo desejável, nem sempre é alcançável, pelo que nunca poderia ser violado tal princípio” e “no contexto de crise, foi uma clara opção legislativa a sujeição a IS da verba 28.1 de todos os prédios, com afectação habitacional de valor superior a €1.000.000,00, o que se justifica constitucionalmente nos termos do art.º 103.º n.º 1 da CRP, face aos superiores interesses subjacentes à existência de um Estado de direito democrático” (arts. 22.º a 25.º).

e) Não se verifica “dupla tributação jurídica”, pois “o IMI incide sobre o valor patrimonial do imóvel, enquanto o IS incide sobre a “propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000”, sendo que “Objecto e direito não se confundem, sendo uma opção do legislador tributar em IS os titulares de imóveis, com afectação habitacional de valor superior a €1.000.000,00” (arts. 27.º e 28.º).

f) “Estando constitucionalmente justificada a opção legislativa de tributar em IS os titulares de imóveis com afectação habitacional de valor superior a €1.000.000,00, nos termos supra expostos, também não colhem os argumentos da Requerente, no que respeita à violação do princípio da neutralidade fiscal, que sempre se justificaria face aos superiores interesses do sistema fiscal, que num contexto de crise económica não pode proteger igualmente os que revelam uma capacidade contributiva acima de um determinado limite” e não se penaliza injustificadamente as empresas que, como a Requerente, optaram por atuar no sector imobiliário, “uma vez que todos os titulares de imóveis com afectação habitacional de valor superior a €1.000.000,00, pessoas singulares ou colectivas, são tributados na exata medida em que a tributação da riqueza é consubstanciada na propriedade de imóveis de elevado valor” (arts. 31.º e 32.º).

 

C. Apreciação do Tribunal

 

a) Quadro jurídico

 

16. A norma cuja inconstitucionalidade é arguida nestes autos consta da verba n.º 28.1 da TGIS, que foi introduzida pelo art. 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29.10, cujo teor, na redação aplicável ratione temporis (anterior à alteração promovida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31.12), é o seguinte:

“28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:      

28.1 - Por prédio com afectação habitacional - 1%”.

Nos termos desta disposição, os prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz seja igual ou superior a €1.000.000 com afectação habitacional são objecto de uma tributação específica em Imposto do Selo, à taxa de 1% incidente sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI, tributação esta que não ocorre em relação a outras espécies de prédios, a prédios com outras afectações ou a conjuntos de prédios do mesmo titular que somem idêntico valor patrimonial.

Efectivamente, de acordo com a norma de incidência da verba 28.1 da TGIS, dois critérios distintivos básicos têm que se verificar para ocorrer a sujeição tributária: a qualificação do prédio em atenção à sua afectação habitacional e o seu valor patrimonial tributário igual ou superior a €1.000.000.

Segundo a Requerente, esta solução normativa é desconforme com a Constituição, para o que invoca os seguintes parâmetros constitucionais que entende serem infringidos:

- o princípio da igualdade consagrado no art. 13.º e no art. 104.º, n.º 3 da CRP, que se concretiza, no campo fiscal, no princípio da capacidade contributiva, e de que decorreria, como corolário, a proibição da dupla tributação jurídica;

- o direito fundamental de livre iniciativa económica, previsto nos arts. 61.º, 80.º, al. c) e 86.º da CRP, que implicaria, juntamente com o princípio da igualdade, um princípio da neutralidade, que visa que as regras de natureza fiscal não tenham uma influência significativa nas decisões económicas dos contribuintes.

Proceda-se, então, à resolução da questão de constitucionalidade que é suscitada nestes autos, apreciando se a norma constante da verba 28.1 da TGIS contraria os “princípios constitucionais” (cfr. art. 277.º, n.º 1 da CRP) que a Requerente invoca.

 

b) Sobre a “violação do princípio da igualdade”

 

17. O princípio da igualdade, tal como emerge do art. 13.º da CRP, implica que: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” (n.º 1) e que: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (n.º 2).

Pelo seu lado, o art. 104.º, n.º 3 da CRP prescreve que: “A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos”.

Não obstante estes enunciados constitucionais autónomos, entende-se que cabe operar aqui com o princípio da igualdade em termos unitários. A expressa referência à necessidade de contribuir para a igualdade entre os cidadãos que consta do citado n.º 3 do art. 104.º não parece envolver um particular e autónomo conteúdo jurídico do princípio da igualdade no âmbito da tributação sobre o património. Pelo contrário, vozes da doutrina consideram mesmo que: “como não se concretiza o instrumento a usar para prosseguir tal igualdade, nem a igualdade tributária é sempre sinónimo de aplicação de progressividade ou de outro mecanismo específico, a norma não tem utilidade” (BRÁS CARLOS, Impostos. Teoria Geral, 4ª ed., Coimbra, 2014, p. 172); “[o] n.º 3 do art. 104.º sobre tributação do património é hoje totalmente inócuo, não mais de que uma declaração de princípio, nem sequer muito sonora” (XAVIER DE BASTO, “A Constituição e o sistema fiscal” in RLJ, ano 138 (2009), p. 282). Julga-se, pois, que, no que tange à resolução do caso sub judice, há que aplicar, sem particulares especificidades que não sejam as que resultem da própria matéria em juízo, os critérios concretizadores genericamente adoptados a respeito de tal princípio fundamental.

Pois bem, ao princípio da igualdade associam-se três dimensões de proteção (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed, Vol. I, Coimbra, 2007, p. 339): “a) proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; b) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias (...); c) obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (...)”.

Para a resolução do caso em apreço, em atenção ao teor da verba 28.1 da TGIS, releva aqui a primeira dimensão, pela qual se postula com o princípio constitucional da igualdade que se atribua tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diferente, na medida da diferença, para as situações de facto diferentes, o que, porém, não implica a proibição de quaisquer diferenciações, mas unicamente veda aquelas que se afigurem destituídas de fundamento razoável – e daí se jogar assim a proibição do arbítrio.

Nesta sequência, cabe referir que as refracções no domínio fiscal do princípio da igualdade prendem-se fulcralmente com o princípio da capacidade contributiva e são tradicionalmente descritas pela generalidade da tributação na medida da capacidade contributiva, pela qual o imposto deve incidir em todos os que dispõe de capacidade contributiva na medida dessa capacidade, e pela uniformidade da tributação, pela qual deve ocorrer uma igualdade de encargos tributários entre os contribuintes em situações iguais e uma diferenciação entre os contribuintes em situações diferentes, de acordo com essa diferença. Como se pode ler no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2013, de 9.4[2] (convocando anterior jurisprudência): “o princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária. Isto porque se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o tertium comparationis – leia-se, o critério – que há de servir de base à comparação. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera tanto como condição ou pressuposto quanto como critério ou parâmetro da tributação (...). Opera como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe; vale como critério ou parâmetro porque determina que a exação do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua “capacidade de gastar” (ability to pay). Ou seja, contribuintes com a mesma capacidade de gastar devem pagar os mesmos impostos (igualdade horizontal), e contribuintes com diferente capacidade de gastar devem pagar impostos diferentes (igualdade vertical)”.

 

18. Como enquadramento geral, importa igualmente ter presente a propósito do princípio da igualdade a orientação jurisprudencial do Tribunal Constitucional – de tal modo constante e reiterada que, sem necessidade de qualquer apresentação mais exaustiva de arestos, é suficiente convocar, por exemplo, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º  187/2013, de 5.4, n.ºs 33 e 35 (onde se pode encontrar, aliás, a referência à jurisprudência constitucional anterior, que se omite nas citações subsequentes) – que destaca que “só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que dela resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, perceptíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem”, bem como que “[e]ste princípio, na sua dimensão de proibição do arbítrio, constitui um critério essencialmente negativo (...) que, não eliminando a “liberdade de conformação legislativa” – entendida como a liberdade que ao legislador pertence de “definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente” –, comete aos tribunais não a faculdade de se substituírem ao legislador, “ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução razoável, justa e oportuna (do que seria a solução ideal do caso)”, mas sim a de “afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insuscetíveis de se credenciarem racionalmente””.

Atenta esta reiterada orientação jurisprudencial, que consubstancia verdadeiro direito vivente, este Tribunal entende que, na ponderação da aplicação in casu do princípio constitucional da igualdade, está fora de causa desenvolver qualquer apreciação sobre a bondade da medida legislativa e do seu alcance, pois isso significaria apenas uma ilegítima substituição ao legislador sem qualquer outra base que não as ideias e pré-compreensões próprias e subjetivas do aplicador.

Assim, numa lógica de proibição do arbítrio, o que cumpre é, numa análise de carácter negativo, “tão-somente verificar se a solução legislativa se apresenta em absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspetiva jurídico-constitucional, por para ela se não encontrar qualquer fundamento inteligível”, controlando se se estabeleceram “distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional (cita-se agora o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 528/2012, de 7.11).

Nestes termos, segue-se, pois, averiguar a existência de um fundamento material para a opção normativa diferenciadora subjacente à verba 28.1 da TGIS, portanto, da presença de “um critério ponderativo racionalmente credenciável”, tarefa indispensável para se poder ajuizar de uma ofensa à regra da uniformidade dos impostos, que impõe que a subordinação ao tributo tenha na base a mesma espécie de critério.

 

19. Para apreciar o fundamento material de uma medida legislativa, de cuja existência depende a rejeição do arbítrio e a exclusão da discriminação ou diferenciação infundada, é necessário ter em atenção a ratio da regulação em causa.

 Para o efeito, vale a pena confrontar os trabalhos preparatórios, de modo a procurar apurar os objectivos visados pelo legislador histórico com a regulação instituída.

A Lei n.º 55-A/2012, de 20 de outubro, teve na sua base a Proposta de Lei n.º 96/XII/2ª (vd. Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 3/XII/2, de 21.9.2012, pp. 44-52). Na respectiva Exposição de Motivos, depois de se referir que: “A prossecução do interesse público, em face da situação económico-financeira do País, exige um esforço de consolidação que requererá, além de um permanente ativismo na redução da despesa pública, a introdução de medidas fiscais inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental”, bem como que: “Estas medidas são fundamentais para reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento. O Governo está fortemente empenhado em garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho”, declara-se simplesmente, no que aqui importa, que: “é criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre os prédios urbanos de afetação habitacional cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a um milhão de euros”.

Em sede de discussão na generalidade desta proposta de lei na Assembleia da República (vd. DAR, I S, nº 9/XII/2, de 11.10.2012, pp. 31-32), vale a pena atender às seguintes declarações do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (Paulo Núncio), em representação do órgão proponente Governo:

- “O Governo elegeu como princípio prioritário da sua política fiscal a equidade social. Esta é ainda mais importante em tempos de rigor como forma de garantir a justa repartição do esforço fiscal.

No período exigente que o País atravessa, durante o qual se encontra vinculado a cumprir o programa de assistência económica e financeira, torna-se ainda mais premente afirmar o princípio da equidade. Não podem ser sempre os mesmos, os trabalhadores por conta de outrem e os pensionistas, a suportar os encargos fiscais”.

- “Para que o sistema fiscal promova mais igualdade é fundamental que o esforço de consolidação orçamental seja repartido por todos os contribuintes e incida sobre todos os tipos de rendimento, abrangendo com especial ênfase os rendimentos de capital e as propriedades de elevado valor”.

- “(...) o Governo apresenta, hoje, um conjunto de medidas que reforçam efetivamente uma justa e equitativa distribuição do esforço de ajustamento por um conjunto alargado e abrangente de sectores da sociedade portuguesa.

Esta proposta tem três pilares essenciais: a criação de uma tributação especial sobre prédios urbanos de valor superior a 1 milhão de euros; o agravamento da tributação sobre os rendimentos do capital e sobre as mais-valias mobiliárias; e o reforço das regras de combate à fraude e à evasão fiscais.

Em primeiro lugar o Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012, e de 1%, em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros. Com a criação desta taxa adicional o esforço fiscal exigido a estes proprietários será significativamente aumentado em 2012 e 2013”.

Assume também interesse, para apreciar os objectivos subjacentes a esta tributação em IS, citar o Relatório que acompanhou a Proposta do Orçamento do Estado para 2013[3]. Escreve-se aí o seguinte: “(...) foi necessário encontrar um conjunto de medidas substitutivas das consideradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional. A solução do Governo nesta matéria assenta numa abordagem abrangente que tem em conta as implicações do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos. Neste contexto, será reposto 1 subsídio aos funcionários públicos e 1,1 subsídios aos aposentados e reformados. O aumento de despesa para o Estado que resulta destas reposições será compensado por medidas de carácter fiscal. Estas medidas visam deliberadamente uma distribuição mais equitativa no esforço de consolidação orçamental entre i) sector público e sector privado, por um lado; e entre ii) rendimentos do trabalho e rendimentos de capital, por outro. A repartição do esforço entre o sector público e o sector privado será alcançada por via dos impostos diretos, com particular incidência no IRS, enquanto a repartição do esforço entre rendimentos do trabalho e do capital será garantida pela introdução de elementos adicionais de tributação sobre o capital e o património” (p. 46), assinalando-se, seguidamente, como medida do lado do aumento da receita, a “Tributação Agravada sobre Imóveis de Valor Igual ou Superior a 1 milhão de Euros”, sobre a qual se refere que: “No seguimento das medidas adicionais aprovadas em 2012, os proprietários de prédios urbanos de elevado valor afetos à habitação (valor patrimonial tributário igual ou superior a 1 milhão de euros a 31 de dezembro de 2012) serão sujeitos a uma tributação agravada de 1%, através de uma nova taxa em sede de Imposto do Selo, à acrescer à taxa de IMI aplicável” (p. 69).

 

20. Em face destas considerações e justificações, deve-se observar que o legislador, para além, evidentemente, de conceber a verba 28.1 da TGIS como medida de obtenção de receita fiscal necessária para o esforço de consolidação orçamental previsto no Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) acordado entre o Governo português e o FMI, a Comissão Europeia e o BCE, viu nela, precisamente, uma medida de igualdade, que se destinava a “reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento”, sendo que a igualdade na repartição dos sacrifícios visada com a verba 28.1 da TGIS pelo “esforço fiscal exigido” aos proprietários de “prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor” comparava com  “aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho”. Assim, pois, para o legislador a verba 28.1 da TGIS visava, se assim o podemos dizer, reequilibrar a repartição dos sacrifícios, de modo a que estes não incidissem apenas sobre “aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho” (o que, evidentemente, tinha em mente as medidas concretizadas em sede de IRS quanto à alteração da estrutura de taxas e de escalões do IRS, à sobretaxa de 3,5%, e à taxa adicional de solidariedade).

Pode-se, então, concluir sobre esta regulação objecto da verba 28.1 da TGIS, como já foi feito no acórdão do STA de 9.4.2014, proc. n.º 1870/12, integralmente reiterado no acórdão do mesmo STA de 14.1.2915, proc. n.º 0541/14, que do “seu “espírito”, apreensível na exposição de motivos da proposta de lei que está na origem da Lei n.º 55-A/2012 (Proposta de Lei n.º 96/XII – 2.ª, Diário da Assembleia da República, série A, n.º 3, 21/09/2012, p. 44, disponível em www.parlamento.pt) nada mais decorre senão a preocupação de angariar novas receitas fiscais, sobre fontes de riqueza “mais poupadas” no passado à voragem do Fisco que os rendimentos do trabalho, em particular os rendimentos de capitais, mais-valias mobiliárias e a propriedade”.

 

21. Se, como se acabou de ver, o legislador assumiu a criação da tributação em IS dos prédios urbanos habitacionais de valor igual ou superior a 1 milhão de euros como meio de angariação de receita em contexto de consolidação orçamental, mas igualmente como instrumento de “equidade social na austeridade”, por se fazer assim incidir os sacrifícios, não apenas nos trabalhadores por conta de outrem (que são reconhecidamente, por força dos mecanismos de retenção na fonte, os contribuintes por excelência do IRS), mas também nos titulares de direitos reais sobre imóveis habitacionais de elevado valor, é indubitável que, prima facie, a medida possui fundamento material bastante, seja qual for a apreciação que se faça da sua bondade.

O ponto problemático, porém, que vem assacado pela Requerente em termos de infracção do princípio da igualdade prende-se com o facto desta específica tributação patrimonial incidir apenas sobre os prédios com um VPT igual ou superior a €1.000.000 que tenham afetação habitacional, excluindo-se “as situações em que: i) Um contribuinte seja titular de um património imobiliário afeto a habitação cujo VPT seja igual ou superior a €1.000.000, mas disperso por vários prédios que isoladamente não atingem esse valor; ii) Um contribuinte seja titular de um só prédio, com um VPT igual ou superior a €1.000.000, mas afeto a outra finalidade que não habitação” (vd. supra n.º 14).

Deste modo, estando implícito que a verba 28.1 da TGIS se dirige a uma manifestação de capacidade contributiva, o que se coloca sob crítica do ponto de vista da conformidade constitucional é a articulação da tributação assim introduzida em relação aos prédios urbanos com afectação habitacional cujo valor patrimonial tributário constante da matriz seja igual ou superior a €1.000.000 com outras possíveis manifestações de capacidade contributiva atinentes a prédios urbanos.

 Vejamos, pois, os elementos de comparação em que a Requerente pretende fundar a infracção ao princípio da igualdade.

 

22. Quanto ao primeiro elemento, concernente a uma diferença de situações entre a titularidade de património imobiliário “concentrado” (um só prédio com valor de €1.000.000) ou de património imobiliário “disperso” (vários prédios cujo valor total perfaz €1.000.000) tem imediatamente que se notar que a medida consagrada com a verba 28.1 da TGIS é, na sua essência própria, inteiramente alheia a qualquer ponderação ou avaliação global do património imobiliário do contribuinte. Como acima se viu (n.º 19), o objectivo precípuo do legislador foi consagrar uma tributação individualizada de “propriedades de elevado valor destinadas à habitação”, de “casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros, se se quiser, numa linguagem corrente, de imóveis ou casas de luxo. Pretendeu-se, pois, configurar uma tributação que incidisse, de modo específico, sobre componentes prediais individuais do património do contribuinte que se reputassem de luxo (não sobre o próprio património globalmente considerado), por se entender que a titularidade de tais bens imobiliários habitacionais de elevado valor refletia uma capacidade contributiva acrescida susceptível de explicar a contribuição reforçada dos respectivos titulares para o esforço comum de consolidação orçamental.

Ora, nesta medida, não se vê que a solução normativa, ao não dar relevo nem equiparar a titularidade de uma casa de luxo à titularidade de muitas casas mas de valor patrimonial não tido como significativo, configure uma discriminação injustificada: é que não é proprietário ou titular de direitos reais menores sobre casas de luxo quem é titular de várias casas mas de valor não reputado relevante para o efeito, ainda que, no somatório dos respectivos valores patrimoniais, tais casas perfaçam o valor de uma casa de luxo.

Por outro lado, a consideração global do património imobiliário, que se pretende envolver para a aplicação do princípio da igualdade em face da conformação da verba 28.1 da TGIS, não encontra suporte na lógica de tributação específica ou analítica de prédios urbanos em que assenta tal normativo. Com efeito, se se considerar o recorte e o conteúdo jurídicos próprios desta regulação objecto da verba 28.1 da TGIS logo se observa que se trata de uma tributação analítica sobre certos e determinados prédios urbanos cuja matéria colectável é dada pelo valor patrimonial tributário de cada prédio: isso resulta desde logo da referência dessa verba 28.1 a “por prédio com afetação habitacional”; evidencia-se ainda pelo disposto no n.º 7 do art. 23.º do Código do Imposto do Selo (CIS) que estabelece que o “imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral” “é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira”; confirma-se, por fim, com a remissão, determinada pelo n.º 2 do art. 67.º do CIS, para o disposto no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), sabido que o “imposto municipal sobre imóveis (IMI) incide sobre o valor patrimonial tributário dos prédios rústicos e urbanos situados no território português” (arts. 1.º e 2.º do CIMI) e que “o imposto é devido pelo proprietário do prédio” (art. 8.º, n.º 1 do CIMI, sem prejuízo do disposto no n.º 2 quanto ao usufrutuário e superficiário).

Em consequência, julga-se não ser normativamente adequado, em face do quadro e do conteúdo da regulação em apreço, proceder a uma comparação com o valor global do património imobiliário de outros contribuintes, pois isso é próprio de uma imposição sintética ou geral sobre o património, o que não tem justificação perante a tributação específica de prédios urbanos de afectação habitacional com valor patrimonial tributário constante da matriz igual ou superior a €1.000.000 que preside à verba 28.1 da TGIS.

Não se acolhe, assim, com o devido respeito, o argumento seguido em acórdãos deste CAAD, da iniquidade da tributação da verba 28.1 da TGIS “na medida em que deixa fora dessa tributação, inexplicada e inexplicavelmente, bens imóveis do mesmo sujeito passivo que, embora todos afetos a fins habitacionais, têm, cada um, VPT inferior a 1.000.000 mas que no seu conjunto perfazem um VPT superior (e, por vezes, até bastante superior) a €1.000.000”, pelo que “o princípio da capacidade contributiva traduzido no pagamento do imposto em função do índice dessa capacidade [o valor do património imobiliário do sujeito passivo], está posto em causa na medida em que o regime de tributação em sede de imposto de selo [e que, no caso, se traduz em tributação do património] não assegura – bem pelo contrário – uma efetiva igualdade de tributação em função da capacidade contributiva dos cidadãos sujeitos a essa incidência” (vd. as decisões proferidas nos procs. n.ºs 218/2013-T e 66/2014-T).

Se bem se pondera, esta análise, por um lado, desatende ao cariz analítico próprio da tributação em causa e, por outro lado, apela a considerações que não enformam o quadro jurídico e a estrutura da imposição em apreço e que, como tal, não moldam internamente a respectiva coerência normativa.

A realidade fáctico-jurídica selecionada pelo legislador para constituir a base da incidência do imposto é o prédio em si considerado, em atenção à sua afectação e ao seu valor patrimonial tributário, não o património predial global dos sujeitos passivos.

Nestes termos, julga-se que a não inclusão na tributação determinada pela verba 28.1 da TGIS do património predial “disperso” com afectação habitacional, cujo somatório de valores patrimoniais tributários individuais seja igual ou superior a €1.000.000, não constitui motivo para imputar à norma em causa a consubstanciação de uma diferença de tratamento injustificada.

 

23. No que concerne à opção legislativa de não incluir na incidência da verba 28.1 da TGIS os prédios urbanos destinados a outros fins que não os habitacionais, rectius, sem afectação habitacional (bem como, aliás, de não abranger os prédios rústicos) principia-se por assinalar que está aqui em jogo uma diferenciação com fundamento material amplamente reconhecido pelo legislador. Basta recordar que o CIMI, cuja disciplina é objecto de uma remissão geral pelo n.º 2 do art. 67.º do CIS, enuncia no seu art. 6.º, n.º 1 como “espécies de prédios urbanos” os prédios “a) Habitacionais; b) Comerciais, industriais ou para serviços; c) Terrenos para construção; d) Outros”, diferenciando, pois, inteiramente, como categorias autónomas, por um lado, os edifícios ou construções habitacionais e, por outro lado, os edifícios ou construções comerciais, industriais ou para serviços, bem como os terrenos para construção e a espécie indeterminada dos “outros”, diferença essa que se manifesta nas diferentes regulações objecto dos n.ºs 1, 2, 3 e 5 do art. 40.º-A e dos arts. 41.º e 45.º do CIMI.

Desta forma, há que reconhecer que não é idêntico, de acordo com o próprio programa normativo legal, o tratamento dos prédios urbanos com afectação habitacional em relação ao tratamento dos prédios urbanos sem essa afectação, pelo que não se pode dizer que todas estas situações devam a priori ser objecto da mesma espécie de regulação, já que se diferenciam em substância.

Ora, estando-se aqui perante uma diferenciação material explicitamente assumida pelo sistema de tributação do património, é intuitiva a motivação racional para a limitação da tributação prevista pela verba 28.1 da TGIS aos prédios com afectação habitacional.

É que, como já foi ponderado neste CAAD pelo acórdão proferido no proc. 53/2013-T sobre a “ratio legis perceptível da restrição do campo de aplicação da norma aos prédios com afectação habitacional, no contexto das “circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, que o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil também erige em elementos interpretativos”:

a limitação da tributação em Imposto do Selo aos «prédios com afectação habitacional» deixa perceber que não se pretendeu abranger no âmbito de incidência do imposto os prédios com afectação a serviços, indústria ou comércio, isto é, os prédios afectos à actividade económica, o que se compreende num contexto em que, como é notório, a economia se encontra em espiral recessiva, publicamente proclamada ao mais alto nível, com as taxas de desemprego a atingir níveis máximos históricos, com avalanche de encerramento de empresas derivado de insustentabilidade económica.

Tendo em mente esta situação e sendo consabido e público que a reanimação da atividade económica e o aumento das exportações são as portas de saída para a crise, compreende-se que não se tomassem legislativamente medidas que dificultassem a atividade económica, designadamente o agravamento da carga fiscal que a dificulta e afecta a competitividade em termos internacionais”.

Subscrevendo-se estas considerações, não se pode deixar de afirmar, em consequência, que possui fundamento material bastante, nos termos de “um critério ponderativo racionalmente credenciável”, a limitação da incidência da tributação em causa aos prédios habitacionais de luxo, com exclusão dos prédios com afectações estritamente económicas.  

Com efeito, emergem aqui razões de política económica e social, alinhadas às realidades conjunturais do país e às opções políticas do legislador, que este Tribunal entende não lhe caber aferir. Na verdade, por força das diretrizes resultantes da jurisprudência do Tribunal Constitucional acima convocadas (n.º 18), este Tribunal entende ser imperioso respeitar o primado do discurso do legislador (Dictum des Gesetzgebers) quanto às opções político-normativas, o que implica deixar à liberdade de conformação legislativa uma ampla margem de discricionariedade sobre as medidas que se julgam necessárias e apropriadas para realizar os objectivos de política económica e fiscal assumidos.

Não se pode, aliás, deixar de notar neste âmbito que, como ensina XAVIER DE BASTO (no estudo acima citado), p. 271, a concepção presente na Constituição “faz do sistema fiscal um instrumento ao serviço de objectivos mais vastos de justiça social e económica, transcendendo pois concepções de justiça tributária estrita, entendida como justiça na repartição dos encargos com os impostos”, como o revela o facto de não existir “norma específica que relacione o pagamento do imposto com a capacidade contributiva (ability to pay)”, “sintoma de que a concepção de justiça tributária subjacente às normas constitucionais transcende uma concepção isolada de justiça fiscal”. O próprio Tribunal Constitucional observa (cfr. o acórdão n.º 142/2004, de 10.3): “é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal”.

Justamente, como este Tribunal não pode deixar de admitir a existência de razões políticas, sociais e económicas justificativas da escolha normativa subjacente à delimitação do âmbito de incidência do imposto do selo objecto da verba 28.1 da TGIS, que não lhe cabe sindicar, pois legislar é precisamente, na sua função própria, instituir disciplinas diferenciadas, impõe-se concluir que não se mostra demonstrado, a este propósito, que a opção de regime feita pelo legislador configure uma diferença de tratamento carecida de justificação em fundamentos razoáveis. Antes, o que se afigura presidir à opção de regime em apreciação são as circunstâncias económicas e sociais envolventes acima indicadas, pelo que vale aqui a liberdade de conformação do legislador das  escolhas políticas em matéria de repartição dos encargos fiscais.

Com efeito, em atenção à margem de livre apreciação do legislador que o princípio da igualdade não comprime, não se pode deixar de reputar como admissível, ou se se quiser, numa versão negativa, não constitui solução absolutamente desrazoável, que, no contexto conjuntural particular de uma grave crise económica e financeira, de desequilíbrio orçamental e de degradação das finanças públicas, se faça incidir um esforço tributário adicional sobre os proprietários de prédios habitacionais de luxo, sem abranger igualmente os proprietários de prédios com afectações não habitacionais, que se encontram destinados ao desenvolvimento de atividades económicas, o que se terá pretendido salvaguardar.

Desta forma, como o tratamento diferenciado encontra justificação material bastante, mostra-se respeitado o teste do arbítrio que é essencial para configurar uma infracção ao princípio da igualdade por discriminação inadmissível.

Nestes termos, este Tribunal não julga inconstitucional a verba 28.1 da TGIS em atenção às exigências próprias do princípio da igualdade e da sua refracção fiscal da uniformidade da tributação.

 

24. Tem sido, porém, entendido, como se afirma no acórdão já acima citado do Tribunal Constitucional n.º 187/2013, n.º 36, que “o princípio da igualdade exige que, a par da existência de um fundamento material para a opção de diferenciar, o tratamento diferenciado assim imposto seja proporcionado”, pelo que “[a] desigualdade do tratamento deverá, quanto à medida em que surge imposta, ser proporcional, quer às razões que justificam o tratamento desigual – não poderá ser “excessiva”, do ponto de vista do desígnio prosseguido –, quer à medida da diferença verificada existir entre o grupo dos destinatários da norma diferenciadora e o grupo daqueles que são excluídos dos seus efeitos ou âmbito de aplicação”. E continua este acórdão, n.º 37: “a igualdade proporcional implica a consideração do grau de diferenciação imposto, quer na sua relação com as finalidades prosseguidas – o que pressupõe que as medidas diferenciadoras sejam impostas em grau necessário, adequado e não excessivo do ponto de vista do interesse que se pretende acautelar (...) –, quer no âmbito da comparação a estabelecer entre os sujeitos afetados pela medida e os sujeitos que o não são e, do ponto de vista daquela finalidade, entre uns e outros e o Estado”.

Nestes termos, por força do princípio da igualdade – ou, adjetivando, do princípio da igualdade proporcional – impõe-se um juízo de avaliação que atenda não apenas à existência de um fundamento racional objectivo na atribuição do tratamento diferenciado a categorias de cidadãos, mas que igualmente aprecie a medida da diferença estabelecida, de modo a verificar a sua adequação em face do fundamento invocado.

Justamente, invoca a Requerente (vd. supra al. f) do n.º 14) que a verba 28.1 da TGIS ignora a dimensão proporcional do princípio da igualdade, o que se manifestaria no facto de o imposto não incidir apenas na “diferença entre €999.999 e o VPT do prédio em causa, porque é nessa diferença que reside a capacidade contributiva mais elevada que fundamenta a tributação”.

A este respeito, importa observar que, num caso como o presente em que se joga apenas a titularidade de direitos reais sobre imóveis habitacionais com valor patrimonial tributário igual ou superior a €1.000.000,00 (imóveis ditos de luxo) que foram sujeitos a tributação específica, não estando em causa, pois, as categorias subjetivas visadas pelo n.º 2 do art. 13.º da CRP, só é viável apreciar jurisdicionalmente a observância da medida da diferença para censurar soluções legislativas que se mostrem indubitavelmente, gritantemente, absolutamente desrazoáveis quanto a essa medida da diferença, sob pena de o julgador estar a substituir-se ao legislador, consagrando as suas preferências em vez das opções legislativas. Deste modo, o único escrutínio que se considera legítimo que o julgador possa realizar é um controlo de evidência ou de erro manifesto de apreciação.

Dado o que já se referiu no ponto anterior, não se demonstra que isso suceda em relação à tributação imposta pela verba 28.1 da TGIS, tanto mais quanto para o problema desaparecer não seria necessário suprimir a verba em apreço da TGIS mas bastaria alargar a norma de incidência a todos os prédios urbanos seja qual for a sua afectação.

Julga-se, pois, que não é possível asseverar, em termos de juízo estritamente judicativo, assente num parâmetro normativamente seguro, que a medida objecto da verba 28.1 da TGIS, tendo em conta a sua teleologia, é desrazoável por ultrapassar uma certa medida de diferenciação, seja ela qual for, em relação às situações que não são tributadas nos mesmos termos em sede de imposto do selo.

Por outro lado, o facto de o legislador estabelecer um valor (€1.000.000) como critério delimitativo da incidência do imposto, abaixo do qual não se preenche a previsão da norma tributária, constitui uma legítima escolha do legislador quanto à fixação do âmbito material dos “imóveis habitacionais de luxo” que se pretende tributar de modo mais gravoso, até porque qualquer outro valor de grandeza análoga assumiria, do mesmo modo, um carácter artificial que é conatural a qualquer fixação quantitativa de um nível ou limite.

Acrescente-se ainda que não há que confundir esta dimensão de proporcionalidade do princípio da igualdade com a clássica separação entre tributação proporcional e tributação progressiva, nada impedindo a nível constitucional que a tributação patrimonial em causa assente numa taxa ad valorem proporcional (cfr. o art. 104.º, n.º 3 da CRP, bem como o que se observou acima no n.º 17).

 

c) Sobre a “violação da proibição da dupla tributação jurídica”

 

25. Sustenta igualmente a Requerente (vd. supra n.º 14, g)) que a norma objecto da verba 28.1 da TGIS consubstancia uma dupla tributação jurídica, pelo que seria inconstitucional porquanto a proibição da dupla tributação jurídica constituiria uma “decorrência lógica e necessária da consagração dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade”.

Impõe-se começar por constatar que a introdução da verba 28.1 da TGIS consubstancia, efectivamente, uma duplicação de tributação incidente sobre a mesma realidade, já que, em relação a direitos reais sobre prédios urbanos destinados à habitação de valor igual ou superior a €1.000.000, passa a incidir, em atenção ao respectivo valor patrimonial tributário, quer a tributação em sede de CIMI quer a tributação em sede de imposto do selo nos termos da verba 28.1 da TGIS. Assim, o mesmo facto integra a previsão de uma dualidade de hipóteses legais distintas de incidência tributária. Isto mesmo é explicitamente assumido pelos documentos oficiais, como se observa no Relatório do Orçamento de Estado para 2013 acima citado (vd. supra n.º 19) que consigna o seguinte:  “os proprietários de prédios urbanos de elevado valor afetos à habitação (valor patrimonial tributário igual ou superior a 1 milhão de euros a 31 de dezembro de 2012) serão sujeitos a uma tributação agravada de 1%, através de uma nova taxa em sede de Imposto do Selo, à acrescer à taxa de IMI aplicável” (p. 69).

Não procede, assim, a argumentação desenvolvida pela Requerida para rejeitar a verificação in casu de dupla tributação jurídica (vd. supra n.º 15, al. e)), pois as duas tributações concernem à titularidade dos mesmos direitos reais sobre prédios urbanos (cfr. a verba 28 da TGIS e o art. 8.º, n.ºs 1 e 2 do CIMI).

 

26. Dito isto, cabe assinalar que não se acolhe a ideia da existência de uma proibição constitucional da dupla tributação jurídica, porquanto a mesma não possui qualquer expressão no texto constitucional nem tal proibição se pode deduzir como “decorrência lógica e necessária” do princípio da capacidade contributiva enquanto princípio concretizador no campo fiscal do princípio da igualdade.

Assim, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/01, de 12.7 (n.º 5) declarou-se que “não existe nos preceitos constitucionais invocados qualquer referência expressa ao fenómeno da dupla tributação e muito menos uma sua proibição expressa”. Igualmente no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 489/02, de 26.11 escreveu-se o seguinte: “não se encontra na Constituição da República qualquer explícita proibição de uma “dupla tributação” do rendimento – análoga, por exemplo, à proibição do ne bis in idem penal. Tal consideração só poderia, pois, relevar (...), de forma indireta, enquanto tal “dupla tributação” implicasse a violação de uma regra ou princípio constitucional, como, por exemplo, o artigo 104.º, nº 1, da Constituição, ou o princípio da proporcionalidade”.

Vale a pena convocar aqui igualmente o que escreveu CASALTA NABAIS (O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, 2009 (reimp.), pp. 511-512): “A igualdade fiscal, aferida pela capacidade contributiva, em princípio também não obsta a existência de dupla (ou múltipla) tributação (...) jurídica ou económica. Com efeito, o legislador fiscal não está constitucionalmente impedido, mormente por força do princípio em análise, de estabelecer situações de dupla tributação (...), já que ele não pode deixar de gozar de ampla liberdade relativamente à configuração concreta do sistema fiscal. (...) Ora, em qualquer [das] situações de cumulação de impostos, o legislador goza de ampla liberdade, estando apenas impedido, por um lado, que dessa cumulação resulte uma tributação excessiva ou com carácter confiscatório e, por outro lado, de estabelecer dupla tributações que se revelem arbitrárias quanto ao âmbito de sujeitos abrangidos, por submeterem a uma sobrecarga fiscal determinados contribuintes e não outros com idêntica situação em termos de capacidade contributiva”.

Não sendo, pois, possível afirmar como padrão específico de constitucionalidade de uma norma a proibição da dupla tributação, um tal fenómeno de sobre-tributação apenas relevará no âmbito da aplicação dos princípios constitucionais da igualdade ou da proporcionalidade.

Ora, como decorre do que já se referiu no ponto antecedente, entende-se que, no quadro normativo e no circunstancialismo respeitante à verba 28.1 da TGIS, vale o primado do discurso do legislador. Para citar agora o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/01, de 2.5: “não pode deixar de reconhecer-se ao legislador (...), legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objectivos visados com a medida (que (...), dentro dos quadros constitucionais, ele próprio também pode definir). Tal prerrogativa da competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação (com o referido “crédito de confiança” (...)) afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer. Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do legislador”.

Em suma, não se pode reputar inconstitucional a norma objecto da verba 28.1 da TGIS em atenção à dupla tributação que envolve, dado não existir credencial constitucional para a proibição da dupla tributação. No mais, a matéria da infracção ao princípio da igualdade já foi objecto de resposta negativa no ponto antecedente.

 

d) Sobre a “violação do princípio da neutralidade”

 

27. Invoca, por fim, a Requerente para sustentar a inconstitucionalidade da norma objecto da verba 28.1 da TGIS o “princípio da neutralidade fiscal”, que caracteriza nos seguintes termos (vd. supra n.º 14, al. h)): “decorrente do princípio da igualdade e do direito fundamental de livre iniciativa económica, previsto nos art.°s 61.°, 80.°, al. c), e 86.° da CRP, pretende assegurar que as regras de natureza fiscal não tenham uma influência significativa nas decisões económicas dos contribuintes”, o que sucederia com a verba 28.1 da TGIS pois “penaliza injustificadamente as empresas que, como a Requerente, optaram por atuar no sector imobiliário” e ao tributar exclusivamente os prédios habitacionais “induz as empresas a investir menos no parque habitacional e mais em imóveis com outras afetações, única e exclusivamente por razões fiscais”, influenciando, assim, uma decisão que deveria ser determinada “apenas pelas estratégias comerciais das empresas e pela sua percepção do mercado”.

Pois bem, não se ignora que, a propósito da tributação das empresas, se encontra na doutrina (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª ed., Coimbra, 2014, p. 178), a invocação do “princípio da liberdade de gestão fiscal das empresas e a exigência para o Estado de neutralidade fiscal”: “[a] liberdade de gestão fiscal, que parte da própria ideia do Estado fiscal, tem a sua expressão nas liberdades de iniciativa económica e de empresa, contempladas nos arts. 61.º, 80.º, al. c) e 86.º da Constituição”; “[m]as a liberdade de gestão fiscal das empresas, vista pelo lado do Estado, concretiza-se no princípio da neutralidade fiscal, o qual tem clara expressão no art. 81.º, al. e) da Constituição”, “princípio que, tendo-se ficado a dever à influência do direito comunitário, se traduz em o Estado estar obrigado a não provocar e a obstar que outros provoquem distorções na concorrência entre as empresas”.

Pois bem, sem discutir hic et nunc a consistência constitucional destes princípios e os termos da sua concretização perante as opções normativas do legislador ordinário, importa imediatamente assinalar que estes princípios devem ver a sua incidência reportada a regulações dirigidas às empresas enquanto tais.

Pois bem, a verba 28.1 da TGIS respeita a uma tributação do património, sem visar especificamente empresas, pois compreende toda a espécie de sujeitos passivos que sejam titulares dos direitos reais enunciados sobre os prédios habitacionais em causa, independentemente de assumirem carácter empresarial ou não, abrangendo, assim, para além de sociedades, fundações, associações, pessoas singulares, em suma toda e qualquer entidade que seja titular de direitos reais sobre prédios urbanos habitacionais de valor patrimonial tributário igual ou superior a €1.000.000.

Deste modo, julga-se inviável convocar, em atenção ao âmbito de aplicação da norma em apreciação, princípios de vocação estritamente empresarial como é o dito “princípio da neutralidade fiscal” na acepção acima citada.

De qualquer modo, não se pode deixar de lembrar o que se disse exemplarmente no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 846/2014, de 3.12: “A doutrina e a jurisprudência constitucional têm sido firmes no sentido de concluir que o exercício, por parte do Estado, do poder de tributar não pode ser concebido como uma afetação ou restrição de direitos fundamentais, face à qual seja legítimo invocar o regime dos requisitos ou exigências que valem, constitucionalmente, para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias. Isto mesmo decorre, desde logo, da existência da (impropriamente) chamada «constituição fiscal», na qual se definem as garantias dos contribuintes, os princípios formais e materiais que conformam o conceito constitucional de imposto, e a configuração deste último não como afetação de um direito mas antes como obrigação pública de todos os cidadãos, quando constituída nos termos do artigo 103.º da CRP”.

Na verdade, a Constituição exige que se realize uma articulação e ponderação entre direitos fundamentais reconhecidos e bens ou interesses constitucionalmente protegidos, o que implica que o conteúdo e os limites desses direitos sejam determinados em atenção àqueles bens protegidos. Ora, é manifesto que entre os interesses claramente protegidos pela Constituição se encontra a cobrança dos impostos em ordem à satisfação das necessidades públicas (art. 103.º, n.º 1 da CRP), pelo que o dever de contribuir para os gastos públicos por via dos impostos é um limite imanente aos direitos de propriedade e de liberdade de iniciativa económica.

Nestes termos, entende-se que não é possível configurar a inconstitucionalidade de uma norma fiscal com base simplesmente em que a mesma possui influência significativa nas decisões económicas dos contribuintes – por natureza, isso é um efeito típico das regras fiscais.

Em qualquer caso, não se encontra demonstrada a pretendida influência significativa sobre a titularidade de prédios habitacionais por empresas imobiliárias, dado que a verba 28.1 da TGIS não possui alcance geral, mas tem o seu âmbito de aplicação restringido aos prédios com valor patrimonial tributário igual ou superior a €1.000.000.

Por todos estes motivos, não se considera procedente a invocação da inconstitucionalidade da verba 28.1 da TGIS por infracção ao alegado “princípio da neutralidade fiscal”.

 

e) Conclusão

 

28. Conclui-se, pois, que não cabe censurar do ponto de vista dos parâmetros constitucionais configurados pela Requerente o regime consagrado pela verba 28.1 da TGIS, pelo que não procede o juízo de inconstitucionalidade que é pretendido a seu propósito.

Não constituindo objecto do processo qualquer outra questão sobre a legalidade da liquidação impugnada, improcede o pedido arbitral apresentado, pelo que se mantém na ordem jurídica a liquidação controvertida.

 

f) Juros indemnizatórios

 

 29. Tendo em conta que, nos termos acima expostos, improcede o pedido de anulação do ato tributário impugnado, necessariamente improcede o pedido de juros indemnizatórios, que é suscitado em termos consequenciais a esse pedido.

 

 

IV. Decisão

 

Termos em que se decide:

i) julgar improcedente o pedido formulado no presente processo arbitral tributário e, em consequência, manter o ato tributário de liquidação de Imposto do Selo com o n.º 2014..., impugnado nos autos, absolvendo do pedido a Autoridade Tributária e Aduaneira;

ii) julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios, absolvendo do pedido a Autoridade Tributária e Aduaneira;

iii) condenar a Requerente nas custas do processo.

 

 

V. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), fixa-se ao processo o valor de €12.149,00, que constitui o montante total do imposto objecto da liquidação impugnada.

 

VI. Custas

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €918,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente, dada a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

 

 Notifique-se.

 

 Lisboa, 20 de fevereiro de 2015.

 

 

O Árbitro

(João Menezes Leitão)



[1] Adopta-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, tendo sido atualizada, em conformidade, a grafia constante das citações efectuadas.

[2] Disponível, como os demais acórdãos do Tribunal Constitucional adiante citados, em www.tribunalconstitucional.pt.

[3] Ministério das Finanças, Orçamento de Estado para 2013, Relatório, Outubro 2012.