Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 738/2014-T
Data da decisão: 2015-05-21  IRC  
Valor do pedido: € 768.976,42
Tema: IRC – SGPS; dedutibilidade de encargos financeiros
Versão em PDF

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. A... SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º …, com sede na Av…, n.º …, Letra …, 3.º, …-… LISBOA, doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º n.º 1 a) e 10.º n.º 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas n.º 2013 …, de 5 de Dezembro de 2013, que se traduziu na redução do prejuízo fiscal apurado em 2009 para o valor de € 555.998,06.

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 28-10-2014.

 

  1. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 17-12-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 05-01-2015.

 

  1. A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu ao requerimento inicial apresentado, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

 

  1. Atenta a circunstância de, no caso, não se verificar qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada.

 

  1. As partes apresentaram alegações finais.

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

  1. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

  1. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são, em súmula, as seguintes:

 

Alegações da Requerente

11.1 Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI…, foi promovida uma acção de inspecção à Ora Requerente, com referência ao exercício de 2009.

 

11.2 Conforme relatório de inspeção, os Serviços da Administração Tributária desconsideraram determinados encargos financeiros, supostamente suportados pela Requerente com a aquisição de participações sociais susceptíveis de beneficiar do regime previsto no artigo 32.º n.º 2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na redacção em vigor à data, e acresceram, consequentemente, ao resultado líquido do exercício de 2009, o montante de € 768.979,43 (setecentos e sessenta e oito mil e novecentos e setenta e nove euros e quarenta e dois cêntimos), com a consequente alteração do prejuízo fiscal declarado pela Requerente de € 1.321.977,48 (um milhão trezentos e vinte e quarto mil novecentos e setenta e sete euros e quarenta e oito cêntimos) para € 555.998,06 (quinhentos e cinquenta e cinco mil novecentos e noventa e oito euros e seis cêntimos).

 

11.3 Considerou a AT que “tendo em conta o carácter fungível da moeda e consequente dificuldade de imputação directa de encargos, a imputação dos encargos financeiros foi efectuada com base nos seguintes critérios: os passivos remunerados foram imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados concedidos pelo S.P. às empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afectando-se o remanescente aos restantes activos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição”.

 

11.4 Assim, conforme quadro Q.II contante do Relatório de Inspecção (Doc. 2), foram imputáveis às partes sociais encargos no valor de € 768.979,43.

 

11.5 A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2013 …, emitida em 5 de Dezembro de 2013, e da demonstração de acerto de contas correspondente, com o n.º 2013 ….

 

11.6 A ora Requerente apresentou, em 7 de Maio de 2014, reclamação graciosa, que veio a ser indeferida, conforme Ofício n.º …, de 22 de Setembro de 2014, da Direção de Finança de Lisboa.

 

11.7 Na decisão de indeferimento, a AT alega que “Foi em obediência a esta circular [n.º 7/2014, de 30 de março] que os serviços de inspeção corrigiram a liquidação de IRC respeitante ao ano de 2009” (cf. Cit. Doc. 6). Considera, todavia, a Requerente que a Circular extravasa a mera interpretação da lei tributária, não tendo qualquer assento na mesma.

 

11.8 Com efeito, estabelece o n.º 2 do artigo 32.º que “As mais-valias e as menos-valias realizadas realizadas pelas SGPS, pelas SCR e pelos ICR de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um anos e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades”.

 

11.9 Nesta disposição, o legislador procurou reproduzir a regra que constava do artigo 23.º, na redacção em vigor em 2009, ou seja, a regra de indedutibilidade fiscal dos encargos relativos aos proveitos não sujeitos a IRC.

 

11.10 Assim, considerando que a interpretação do termo indispensabilidade defendida pela AT tem assentado na teoria da causalidade adequada que pressupõe uma conexão entre os custos e os proveitos, deverá também concluir-se, por paridade de razões, que os encargos financeiros excluídos do lucro tributável das SGPS são exclusivamente aquelas que estejam numa relação de causalidade necessária com as mais-valias ou as menos-valias também subsumíveis no regime de exclusão de tributação, como resulta, aliás, do disposto na parte final do n.º 2 do artigo 32.º (“encargos financeiros suportados com a aquisição”).

 

11.11 Significa isto que o método de identificação dos encargos suportados com a aquisição de participações sociais é o método comummente aplicável aos encargos associados a proveitos excluídos de IRC, como é o caso, da afetação/imputação directa.

 

11.12 Este método tem sido defendido, aliás, pela AT, na interpretação do artigo 23.º, concretizando-se na separação contabilística a efectuar de acordo com os diferentes regimes de tributação aplicáveis, que sobressai do disposto na al. b) do n.º 3 do artigo 17.º do Código do IRC e, bem assim, do princípio do balanceamento ínsito no artigo 18.º do Código do IRC.

 

11.13 Estribando-se numa alegada dificuldade de utilização do método-regra e possibilidade de manipulação, a AT entendeu que, relativamente aos encargos financeiros suportados pelas SGPS com a aquisição de partes de capital, a imputação deveria ser efectuada mediante aplicação da fórmula referida na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março.

 

11.14 Ou seja, a AT não se limitou a interpretar (ainda que extensivamente) o n.º 2 do artigo 32.º do EBF mas criou um método substitutivo.

 

11.15 Ora, conforme doutrina e jurisprudência amplamente citada, as orientações da administração fiscal só a ela vinculam, não dispondo de eficácia externa, sob pena de violação do princípio da legalidade.

 

11.16 Por isso, A AT não pode substituir-se ao legislador e adoptar, por via administrativa, um critério diferente para apurar os referidos encargos financeiros, ainda que o faça por uma razão atendível.

 

11.17 Acrescenta ainda, conforme exemplos práticos que apresenta, que o critério da Circular é susceptível de provocar entorses significativos ao princípio constitucional da tributação pelo lucro real e ao princípio de especialização dos exercícios. Estas distorções não evitam sequer, no entender da Requerente, eventuais manipulações do resultado fiscal.

 

11.18 Em suma, a Requerente conclui que:

i) A aplicação da fórmula vertida na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, aos encargos financeiros da SGPS, contraria o disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, sendo, por consequência, ilegal;

ii) Sem prejuízo do que se afirma, e ainda que assim não se entenda (e, portanto, que se conclua que o referido preceito legal é omisso quanto à formula a utilizar para a determinação dos encargos financeiros em causa) sempre se impõe concluir pela inconstitucionalidade da circular n.º 7/2004, de 30 de Março, por violação do artigos 103.º, 112.º, n.º 5 e 165.º, n.º 1,  al. i), da CRP – rectius, pela inconstitucionalidade do artigo 32.º, n.º 2, do EBF interpretado no sentido de que é admissível, para efeitos de determinação dos encargos não dedutíveis, a adopção de um método inovador – e pela sua ilegalidade, por violação do artigo 8.º da LGT.

iii) Acresce, ainda, que a adopção da fórmula instituída pela circular sob apreciação configura uma violação ao princípio de tributação do lucro real, consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da CRP, e bem assim, uma violação ao princípio de especialização dos exercícios.

iv) Em qualquer caso, sempre se diz que, contrariamente ao afirmado pela Administração Tributária, a aplicação da fórmula prevista na Circular, ao invés de impossibilitar a manipulação do resultado fiscal, poderá mesmo acabar por legitimar essa conduta.”

 

Resposta da Requerida

 

12.1 Em primeiro lugar, a Requerida alega que a correcção efectuada e consequente liquidação é da exclusiva responsabilidade da Requerente já que não acresceu ao resultado líquido os encargos financeiros imputáveis a partes de capital nem tão pouco prestou esclarecimentos adicionais no âmbito da audição prévia à notificação definitiva do relatório de inspecção.

 

12.2 Por outro lado, como o n.º 2 do artigo 32.º do EBF não estabelece qual o método a utilizar para efeitos de afectação dos encargos financeiros às participações sociais, a Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, “mais não pretende que dar cumprimento à lei, determinando o método e a forma de cálculo dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais.” (artigo 22.º da Resposta).

 

12.3 Neste sentido, como se referiu no Proc. 21/2012-T do Tribunal Arbitral, “O que importa aqui retirar é que o acto tributário de autoliquidação aqui em causa não está viciado ou enfermado de qualquer ilegalidade (por violação de qualquer princípio constitucional) que lhe possa ser assacada com base nesta questão de afectação dos encargos financeiros, tanto assim que, tal como aduz a Requerida na resposta, associada à emanação da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, inexiste qualquer intenção legislativa por parte da AT, ou pelo menos, não a conseguimos descortinar.”

 

12.4 Não é a Circular n.º 7/2004 que cria normas de incidência, mas é a própria lei, interpretada nos termos acima expostos, que afasta a dedutibilidade, para efeitos de apuramento do lucro do exercício em que são incorridos, os encargos financeiros incorridos com financiamentos ligados à aquisição das participações sociais alienadas e que realizam, ainda que potencialmente, mais-valias excluídas de tributação.

 

12.5 Pelo que a interpretação constante da Circular n.º 7/2004 está conforme à letra a lei, na medida em que mais não faz do que empreender a descoberta do seu mais preciso significado, em respeito, aliás, pela teoria geral da interpretação da lei e do quadro normativo que a conforma.

 

12.6 Assim, a Circular n.º 7/2004 não alterou nem desvirtuou a estatuição legal do n.º 2 do artigo 32.º do EBF mas apenas uniformizar a interpretação e aplicação da norma, na adequada defesa do interesse público e respeito pelos direitos e interesses dos contribuintes – artigos 266.º da CRP e 55.º da LGT.

 

12.7 Acresce ainda que a explanação na circular do método a utilizar contribui para a realização efectiva das finalidades extra-fiscais que presidiram à sua criação e obstar a que os contribuintes utilizem o normativo para prosseguirem fins alheios aos visados na lei.

 

12.8 No caso concreto, não tendo sido fornecida pela Requerente qualquer informação relativa à quantificação da realidade consubstanciada na existência, no período em causa, de encargos financeiros imputáveis às partes de capital por si detidas, os Serviços de Inspecção Tributária procederam ao cálculo dos mesmos “tendo em conta o carácter fungível da moeda e a consequente dificuldade de imputação directa dos encargos, a imputação dos encargos financeiros foi efectuada com base nos seguintes critérios: os passivos remunerados foram imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados concedidos pelo S.P. às empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afectando-se o remanescente aos restantes activos, nomeadamente participação sociais, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição”.

 

12.9 Este é, aliás, o método utilizado pela generalidade das SGPS que o empregam, atendendo à extrema complexidade e subjectividade da afectação directa.

 

12.10 Com efeito, como se referiu na citada decisão arbitral, proferida no Proc. n.º 12/2013-T, “a lei fiscal não contém qualquer regra concreta ou principio específico de desconsideração fiscal dos custos, se os fundos deles obtidos não gerarem proveitos tributados. E não o contém por razões de simplicidade e de adesão à verdade. A simplicidade ancora-se na dificuldade de estabelecer uma relação causal directa entre um custo e um proveito financeiro, numa organização, como uma sociedade comercial, cujos financiamentos concedidos se destinam, por regra, à totalidade da sua actividade e que se socorre indistintamente de fundos próprios e de terceiros para prosseguir o seu escopo e é impossível aferir, por isso, se os fundos das prestações sem juros concedidos às dominadas provêm de financiamento de terceiro ou próprio e em que proporção ocorreu cada um deles…é este o motivo que preside, aliás, à Circular 7/2004, para as SGPS…”.

 

12.11 A utilização do método de imputação utilizado pela Circular 7/2004 visa a tributação o mais próxima possível ao lucro real, não existindo qualquer entorse ao princípio constitucional de tributação pelo lucro real.

 

12.12 Quanto ao específico preceito constitucional de tributação do rendimento real, o n.º 2 do artigo 104.º admite e incentiva – em nome, designadamente, dos princípios da operacionalidade e da praticabilidade do sistema – a existência de regimes especiais de tributação, como o das SGPS.

 

12.13 Por outro lado, cumpre referir que foi a actuação concreta da ora Requerente, pela absoluta omissão de quantificação dos encargos financeiros imputáveis às partes de capital por si detidas e, posterior ausência de prestação de esclarecimentos ou informações no decurso do procedimento inspectivo, que não deixou à Requerida outra alternativa.

 

12.14 Quanto à alegada violação do princípio de especialização dos exercícios, a solução adoptada pela circular reflecte a preocupação do legislador em não influenciar o lucro tributável: do exercício em que são suportados os encargos financeiros com a aquisição de participações susceptíveis de beneficiar do n.º 2 do artigo 31.º do EBF, sem antes conhecer se os mesmos podem ou não concorrer para a formação do lucro tributável da sociedade.

 

12.15 Assim, determina a circular que caso se conclua, “no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo” no exercício fiscal em que foram considerados.

 

12.16 Esta solução respeita ainda do disposto no artigo 23.º do CIRC porque o custo só é reconhecido quando se verificam os pressupostos legais de indispensabilidade.

 

12.17 Reitera, por fim, que, em nenhum momento, a Requerente demonstrou, em concreto, as pretensas falhas dos cálculos efectuados pela Requerida, nomeadamente por oposição aos valores que efectivamente teriam de ser acrescidos ao resultado líquido.

 

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-Em cumprimento da Ordem de Serviços n.º O… foi promovida uma acção de inspecção à Requerente, tendo como referência o exercício de 2009, com o seguinte motivo: “No âmbito do projecto n.º …/…/2012, verificou-se que a sociedade não corrigiu na declaração modelo 22, os encargos financeiros imputáveis às partes de capital (que não concorrem para a determinação do lucro tributável); Foram também detectadas divergências entre o anexo P do S.P. e o anexo O dos seus Fornecedores”;

 

2-Através do Ofício n.º …, de 13 de Novembro, da Direção de Finanças de Lisboa, a Requerente foi notificada do relatório de inspecção, que em síntese, determina que “Tendo em conta o carácter fungível da moeda e a consequente dificuldade de imputação directa dos encargos, a imputação dos encargos financeiros foi efectuada com base nos seguintes critérios: passivo remunerados foram imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados concedidos pelo S.P. às empresas particiapadas e aos outros investimentos geradores de juros, afectando-se o remanescente aos restantes activos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição”;

 

3-Em resultado da aplicação deste critério, foi acrescido ao resultado líquido o montante de € 768.979.42, tendo sido feita a correspondente correcção de natureza meramente aritmética à matéria colectável;

 

4-Em consequência, o prejuízo fiscal da Requerente para o exercício de 2009 foi fixado em € 555.998,00;

 

 

5-A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2013 …, emitida em 5 de Dezembro de 2013, e da demonstração de acerto de contas correspondente, com o n.º 2013 ….

 

6-A ora Requerente apresentou, em 7 de Maio de 2014, reclamação graciosa, que veio a ser indeferida, conforme Ofício n.º …, de 22 de Setembro de 2014, da Direção de Finança de Lisboa.

 

7-O indeferimento da reclamação graciosa foi notificada à Requerente por Ofício datado de 2014-09-22, e recebido em 2014-09-24.

 

A.2. Fatos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem fatos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 659.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os fatos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto consensualmente reconhecidos e aceites pelas partes.

 

 

B. DO DIREITO

 

As questões decidendi são, no essencial, duas, tal como foram devidamente expostas e formuladas pelas partes, na PI pela Requerente, bem como na resposta da Requerida.

 

Primeira: Os encargos financeiros suportados pela requerente são ou não dedutíveis em termos fiscais, nos termos do art. 31.º, n.º 2, do EBF (atual art. 32.º, n.º 2, do EBF)?

 

Segunda: Pode o método de determinação dos encargos financeiros não dedutíveis ser concretizado através da Circular 7/2004, de 30 de março?

 

Responderemos a cada uma das questões formuladas anteriormente, fundamentando a nossa decisão e trazendo à colação os argumentos invocados pelas partes.

 

Como referido anteriormente a Administração Tributária acresceu o valor de € 768.979.42 ao resultado líquido declarado pela Requerente no exercício de 2009, por considerar que esta deveria ter desconsiderado - para efeito de determinação do lucro tributável - os encargos financeiros supostamente suportados com a aquisição de participações sociais suscetíveis de beneficiar do regime previsto no artigo 32.º, n.º 2, do EBF (na redação em vigor em 2009).

 

A Administração Tributaria fundamentou os atos tributários de IRC, ora em crise, respeitante ao ano de 2009, bem como a sua posterior decisão de indeferimento da reclamação graciosa, na estrita obediência à Circular n.º 7/2004, de 30 de março, entendendo não considerar como custos dedutíveis ao lucro tributável os encargos financeiros imputáveis às partes de capital de sociedades participadas determinados de acordo com as regras previstas naquela circular.

 

B.1. O n.º 2 do art. 31.º do EBF

A Lei n.º 32-B/2002, de 20 de dezembro, pela qual se aprovou o Orçamento do Estado de 2003, veio não só alterar mais uma vez o regime de tributação das mais-valias realizadas pelas SGPS, passando a estar isentas de concorrerem para a formação do lucro tributável em IRC, como, paralelamente, excluir a dedutibilidade das menos-valias e dos encargos financeiros suportados por tais sociedades, com base no seu objeto contratual, que é no caso “(…) a gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indireta de exercício de atividades económicas”.

 

As razões que presidiram a esta alteração legislativa encontram-se explicitadas no Relatório do Orçamento do Estado para 2003. Sob o título “Principais alterações em sede de IRC,” e a epígrafe “Alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade”, aponta-se a isenção de tributação em IRC das mais-valias realizadas pelas SGPS com a alienação de partes de capital detidas há mais de um ano, acompanhada de medidas conducentes a evitar o planeamento fiscal abusivo, aproximando o regime nacional do modelo holandês, medida essa associada ao estabelecimento de regime de desconsideração da dedutibilidade, para efeitos de determinação do lucro tributável de tais sociedades, dos encargos de natureza financeira diretamente associados à aquisição das participações sociais correspondentes (relatório acessível em www.dgo.pt).

 

Assim, o regime previsto no artigo 31.º do EBF teve como objetivo na data da sua constituição a procura de um regime fiscal mais competitivo para as SGPS, ao mesmo tempo que procurava aproximar o regime português de algumas experiências internacionais consideradas mais relevantes[1], na sequência de muitas outras intervenções legislativas operadas sobre esse tipo de entidades desde a criação do seu regime jurídico, em 1988[2].

 

Visava-se, em concreto, desconsiderar para efeitos fiscais as mais-valias/menos-valias obtidas na alienação das participações financeiras pelas SGPS, desconsiderando, simultaneamente, os encargos financeiros que viessem a ser suportados em resultado da necessidade de procurar meios financeiros junto de terceiros para financiar a aquisição dessas participações sociais. Esta não consideração dos encargos financeiros visava contrabalançar o benefício fiscal concedido às mais-valias das SGPS.

 

A redação conferida pela mesma lei ao artigo 31.º, n.º 2, do EBF, foi a seguinte[3]:

Artigo 31.º

Sociedades gestoras de participações sociais (SGPS) e sociedades de capital de risco (SCR)

1 - (...)

2 – As mais valias e as menos valias realizadas pelas SGPS e pelas SCR mediante a transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.

3 – (...)

 

Entendemos que a base legal para suportar a correção efetuada pela Administração Tributária e Aduaneira (ATA) deve ter por base o disposto no n.º 2 do art. 32.º “As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS e pelas SCR de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades”.

 

Esta norma procura assegurar o eventual equilíbrio da situação, que se traduz na não dedução de juros no cálculo do lucro tributável sujeito a imposto, mas em contrapartida, também, não vê sujeito a imposto sobre o rendimento as mais-valias resultantes da alienação de participações sociais, terá de ser, pelo menos à partida, minimamente assegurado, sob pena de violação dos princípios da capacidade contributiva, da tributação do rendimento real e da igualdade e neutralidade (este dois últimos por via da comparação com sujeitos passivos que não assumem a figura jurídica de SGPS). Assim, este eventual equilíbrio, com base no pressuposto da continuidade, não impõe a relação de causalidade necessária invocada pela Requerente.

 

“A intervenção legislativa abona-se em razões de interesse público prevalecente, seja no apontado balanceamento ou encontro das variações patrimoniais positivas e negativas concorrentes para a formação do lucro tributável, seja na procura de fatores que preservem a atractibilidade do regime fiscal das SGPS, com vista à dinamização da organização e instalação de grupos económicos em Portugal,  mas fazendo-o em termos de atingir justa e equilibrada repartição dos encargos fiscais entre os vários contribuintes e removendo a possibilidade de conceder a esses contribuintes - e apenas a eles - duplo benefício: isenção de tributação de mais-valias e dedução de encargos financeiros decorrentes da aquisição das participações sociais transmitidas onerosamente e detidas por não menos de um ano”. (in Acórdão n.º 42/2014, de 9 de janeiro, do Tribunal Constitucional).

 

A intenção do legislador fiscal, no preceito em análise (n.º 2, do artigo 32.º do EBF), foi conceder a hipótese de não tributar os rendimentos associados aos ganhos/perdas (mais-valias e menos-valias) resultantes da alienação das participações sociais detidas pelas SGPS, desde que cumpridas as condições impostas na lei, ou seja a sua detenção por período não inferior a um ano. Todavia, o aproveitamento desse benefício, nas condições definidas na lei, vai impor uma limitação à dedutibilidade dos encargos financeiros suportados com os financiamentos necessários à aquisição desse tipo de investimentos.

 

A preocupação de balanceamento subjacente ao preceito em questão, procurando fazer um “matching” entre ganhos/rendimentos (mais-valias) e custos/gastos (menos-valias) das SGPS, e a recusa da acumulação de vantagens, é enunciada por Luís Graça Moura na seguinte passagem: “o legislador terá visado a atribuição de um benefício – exclusão total de tributação das mais-valias – que, contudo, fosse contrabalançado pela não concorrência de certos encargos financeiros suportados, criando um ambiente de neutralidade entre os eventuais ganhos com determinados ativos (certas imobilizações financeiras[4]) e o passivo necessário à criação das condições para a obtenção de tais ganhos, isto é, o passivo relacionado com a aquisição de tais participações. A construção subjacente seria a de que a contração de tais empréstimos representava, em potência, elemento capaz de colocar a SGPS na posição de realizar mais-valias que excluiu de tributação (...)[5].

 

No contexto da situação apresentada pela Requerente, uma das questões que importaria ponderar era se os encargos financeiros suportados pela requerente com a realização de aquisição de partes sociais são ou não dedutíveis nos termos do art. 23.º do CIRC? Se esses encargos financeiros são ou não indispensáveis para a obtenção dos seus proveitos ou manutenção da sua fonte produtora?

 

A resposta será claramente positiva, ou seja, esses encargos são indispensáveis para a obtenção dos proveitos/rendimentos e para a manutenção da fonte produtora.

 

Todavia, a questão aqui em causa não é exatamente essa, não se afigura necessário discutir a indispensabilidade ou não dos encargos financeiros de per si, mas a sua desconsideração do ponto de vista fiscal face a um benefício fiscal que o legislador fiscal resolveu conceder a um determinado tipo de entidade jurídica, as SGPS.

 

Logo, entendemos que o legislador não procurou neste preceito reproduzir, sectorialmente, a regra que já constava do artigo 23.º do Código do IRC - na redação em vigor em 2009 -, ou seja, a regra da não dedutibilidade fiscal dos encargos associados a proveitos não sujeitos a IRC, contrariamente ao que a Requerente advoga. Com efeito, entendemos que o recurso à tese da indispensabilidade dos custos/gastos, sustentada em torno do disposto no artigo 23.º do CIRC, não está aqui em questão, pois os encargos financeiros consignados na alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC não contradiz o disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF. Certo é que os encargos financeiros são necessariamente um encargo indispensável para a realização dos proveitos/rendimentos nos termos do artigo 23.º. Outra questão, será o método a utilizar para a determinação dos encargos financeiros que devam ser excluídos da determinação do lucro tributável

 

Em síntese, o preceito fiscal em crise não pode ser entendido no contexto da orientação geral constante do artigo 23.º do CIRC, pois deve ser interpretado como uma lei especial, particularmente vocacionado para apoiar fiscalmente este tipo de entidades jurídicas, as SGPS.

 

Assim considerou o Acórdão do Tribunal Constitucional supra quando decidiu “Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 31.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na redação conferida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, na parte em que impõe a indedutibilidade fiscal dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital logo que estes sejam incorridos, independentemente da realização de mais valias isentas de tributação com a alienação de tais partes de capital”.

 

 

B.2. Da aplicação da Circular n.º 7/2004, de 30 de março

 

No âmbito do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, e das dificuldades da sua aplicação prática, a AT sentiu a necessidade de publicar uma circular, que visava esclarecer a forma de repartição dos encargos financeiros, atendendo ao modo de afetação dos financiamentos que originavam esses encargos, considerando a sua aplicação, ou seja, os ativos que tinham sido adquiridos através desses recursos pelas SGPS. Neste sentido, a Circular mais não faz que densificar o disposto no n.º 2 do artigo 32.º, permitindo ultrapassar as dificuldades práticas de imputação directa dos encargos.

 

A Requerente coloca em crise o papel jurídico dessa circular, alegando que a AT não se limitou a interpretar o n.º 2 do artigo 32.º do EBF, mas criou um método substitutivo do método previsto no preceito legal. Neste sentido, as normas contidas nos pontos 7. e 8. da Circular da DSIRC n.º 7/2004, de 30 de março, mais concretamente a fórmula que aí se prevê, com pretensão de aplicação imperativa, de segregação dos encargos financeiros a que se refere o (à data dos factos) artigo 31.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (atual artigo 32.º, n.º 2), é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade ou da reserva de lei, em matéria fiscal, previsto no artigo 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.

 

Assim sendo importa, em primeiro lugar, aferir qual o exacto alcance da Circular e, de seguida, atentos ao papel jurídico que cabe às Circulares, concluir se foi violado ou não o princípio da legalidade.

 

Analisemos, em primeiro lugar, de que forma a Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, interpretou esta disposição.

 

O n.º 7 refere que "dada a extrema dificuldade de utilização, nesta matéria, de um método de afetação direta ou específica e à possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria, deverá essa imputação ser efetuada com base numa fórmula que atenda ao seguinte: os passivos remunerados das SGPS e SCR deverão ser imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados por estas concedidos as empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afetando-se o remanescente aos restantes ativos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respetivo custo de aquisição”.

 

Assim, o que está em causa no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, e que pretende ser esclarecido, é a admissão de uma fórmula de cálculo indirecta que permita aos contribuintes determinar a possível repartição dos encargos financeiros totais suportados, entre encargos financeiros dedutíveis e não dedutíveis para efeitos fiscais, numa SGPS. Tal resulta do facto de não existir, em regra, uma relação factual direta entre os fundos totais obtidos pela SGPS, e que implicaram o pagamento de juros, e os fundos investidos na aquisição das participações sociais.

 

A Administração entendeu precisar a forma de estimar os encargos que podem ser imputados à aquisição dessas partes sociais, através da Circular 7/2004, com base na ideia da fungibilidade do dinheiro. Avança nessa circular com a adoção de uma fórmula matemática muito simples - ainda que complicada do ponto de vista dos pressupostos usados na classificação das rúbricas a ponderar -, no sentido de se apurar, na aplicação do art. 32.º, n.º 2, do EBF, quais os “encargos financeiros suportados” com a aquisição de partes de capital, face aos encargos financeiros totais suportados pela entidade no período contabilístico, dado que o legislador fiscal optou pela sua desconsideração fiscal para efeitos de apuramento do lucro tributável de cada um dos períodos económicos.

 

Constitui o método consagrado na Circular uma violação do disposto no n.º 2 do artigo 31.º do EBF?

 

Em questão semelhante à colocada pela Requerente, no âmbito do processo n.º 21/2012-T, onde a recorrente questionava a conformidade constitucional da aplicação de fórmula pro rata na determinação dos encargos financeiros associados à aquisição de participações, excluídos da formação do lucro tributável, por oposição ao método de afetação direta ou real, decidiu-se, neste sentido:

 

“63. Ainda assim, sempre se dirá que, concordando com a hermenêutica defendida pela Requerente, nada na letra do n.º 2 do artigo 31.º do EBF permite retirar a vigência e, por isso, necessária aplicação, do método indirecto de afectação de tais encargos financeiros.

64. Considera-se que nos casos em que há possibilidade de afetação direta, ela não deve ser afastada, que se a ratio legis da norma prevista no n.º 2 do art. 31.º do EBF, passa a acautelar a vigência de um regime de neutralidade dos proveitos e custos associado às mais-valias excluídas de tributação, garantindo-se que a rendimento não relevante fiscalmente deve corresponder, correspectivamente, custo que lhe esteja associado também ele irrelevante fiscalmente, então, assim sendo, para se alcançar tal desiderato, qualquer método (direto ou indireto) é bom uma vez garantida a salvaguarda da aludida ratio legis.

(…)

 

Em sentido contrário, entende a Requerente que a Circular n.º 7/2004, de 30 de março utilizada pela Administração Tributária para proceder à correção sob apreciação, extravasa a mera interpretação da lei tributária, não tendo qualquer assento no artigo 31.º, nº 2 do EBF.

 

Vejamos.

 

A relevância das instruções administrativas da AT já foi objecto de aprofundado estudo e pronúncia pela doutrina e jurisprudência.

 

Sem a preocupação de uma inventariação exaustiva, citamos a súmula presente no Acórdão n.º 563/2009, do Tribunal Constitucional, em que se refere o seguinte:

Ora, um problema frequentemente colocado no direito fiscal é o da relevância normativa das chamadas orientações administrativas. Trata-se, como diz Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª ed., pág. 2001 (embora afirmando que isso não lhes retira a qualidade de normas jurídicas): 

“[…] de regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois, obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão autor dos mesmos.

Por isso não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. E isto quer sejam regulamentos organizatórios, que definem regras aplicáveis ao funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho ou modos de atuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à interpretação de preceitos legais (ou regulamentares).

É certo que eles densificam, explicitam ou desenvolvem os preceitos legais, definindo previamente o conteúdo dos atos a praticar pela administração tributária aquando da sua aplicação. Mas isso não os converte em padrão de validade dos atos que suportam. Na verdade, a aferição da legalidade dos atos da administração tributária deve ser efetuada através do confronto direto com a correspondente norma legal e não com o regulamento interno, que se interpôs entre a norma e o ato”.

Esses atos, em que avultam as “circulares”, emanam do poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens genéricas de serviço e é por isso e só no respetivo âmbito subjetivo (da relação hierárquica) que têm observância assegurada. Incorporam diretrizes de ação futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços. Embora indiretamente possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os tribunais.

A circunstância de a Administração Tributária ficar vinculada (n.º 1 do artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária) às orientações genéricas constante de circulares que estiverem em vigor no momento do facto tributário e de ter o dever de proceder à conversão das informações vinculativas ou de outro tipo de entendimento prestado aos contribuintes em circulares administrativas, em determinadas circunstâncias (n.º 3 do artigo 68.º da LGT), não altera esta perspetiva porque não transforma esse conteúdo em norma com eficácia externa. É certo que o administrado pode invocar, no confronto com a administração, o conteúdo da orientação administrativa publicitada e, se for o caso, fazê-lo valer perante os tribunais, mesmo com sacrifício do princípio da legalidade (cfr. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, comentada e anotada, 3.ª ed., pág. 344). Mas é ao abrigo do princípio da boa-fé e da segurança jurídica, não pelo seu valor normativo, que o conteúdo das circulares prevalece. O administrado só as acata se e enquanto lhe convier, pelas mesmas razões que justificam que possa invocar informações individuais vinculativas que o favoreçam (artigo 59.º, n.º 3, alínea e) e artigo 68.º da LGT).

Consequentemente, faltando-lhes força vinculativa heterónoma para os particulares e não se impondo ao juiz senão pelo valor doutrinário que porventura possuam, as prescrições contidas nas “circulares” da Administração Tributária não constituem normas para efeitos do sistema de controlo de constitucionalidade da competência do Tribunal Constitucional.”

Ainda a este respeito e conforme consta do referido acórdão do TC:

As "circulares" emanam do poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens genéricas de serviço e é por isso e só no respetivo âmbito subjetivo (da relação hierárquica) que têm observância assegurada. Incorporam diretrizes de ação futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços. Embora indiretamente possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os tribunais.”

 

Também Soares Martinez (1993)[6] confirma essa natureza às circulares e instruções ao afirmar que as mesmas têm por destinatários “(…) os funcionários da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, só vinculam aqueles mesmos funcionários, e em razão do seu dever de obediência hierárquica. Tais diplomas não têm por destinatários os particulares, os cidadãos, os contribuintes”. Também no mesmo sentido ver Alberto Xavier (1974)[7].

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e dos Tribunais Centrais Administrativos têm vindo a seguir essa mesma linha[8]. Veja-se, a título de exemplo, o referido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, Processo n.º 02312/08, em que se afirma: “a Circular além de ser ilegal por falta de habilitação legal para interpretar extensivamente normas de incidência tributária, seria ilegal, por abusiva desvirtuação de norma comunitária e respectiva transposição ilegal. Nesse sentido, também a referida Circular, ao limitar a norma de incidência seria inconstitucional por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, al. i) e no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, ferindo o princípio de separação dos poderes. Por essa via, a administração havia usurpado as funções do legislador.

 

Entende, por isso, a Requerente que a Circular n.º 7/2004, de 30 de março utilizada pela Administração Tributária para proceder à correção sob apreciação, extravasa a mera interpretação da lei tributária, não tendo qualquer assento no artigo 31.º, nº 2 do EBF.

 

Recordamos que o n.º 2 do artigo 31.º (actual 32.º) determina que:

 

 As mais valias e as menos valias realizadas pelas SGPS e pelas SCR mediante a transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades (nosso sublinhado).

 

Ou seja, não são tributadas as mais e menos valias realizadas com a transmissão onerosa de partes de capital, desde que detidas por período não inferior a um ano, bem como os encargos financeiros suportados com a aquisição destas participações sociais.

 

Do exposto, resulta que o legislador considera que só os encargos directamente suportados com a aquisição das partes de capital são afastados de tributação. Por outro lado, não considerou o legislador de instituir um critério distinto que, face às reais dificuldades práticas de distinção, permitisse apurar, ainda que de forma indirecta ou estimada, os encargos financeiros com a aquisição das partes de capital isentas.

 

Convirá precisar que não há no n.º 2 do artigo 31.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais qualquer omissão quanto à definição dos encargos que não são sujeitos a tributação: os suportados com a aquisição das participações sociais. Não existindo uma presunção legal[9] ou um método alternativo que permita, de forma simples, estimar estes encargos, caberá, em concreto, precisar e estabelecer o nexo/relação entre o encargo financeiro e a participação social adquirida. É este o sentido da lei.

 

Assim sendo, o método aplicado pela Circular viola o disposto no n.º 2 do artigo 31.º do EBF, pois não atende aos encargos efetivamente suportados com a aquisição de participações sociais não tributadas, mas a valores aproximados e presunções que carecem de fundamento legal. Com efeito, a aplicação da fórmula prevista na Circular não permite percecionar quais os encargos suportados com a aquisição de partes sociais não tributadas, mas estabelecer uma afetação proporcional entre o conjunto dos passivos remunerados e os empréstimos às participadas e o restante que financia os demais ativos (incluindo participações sociais), da qual resulta uma estimativa dos encargos (que podem ou não corresponder aos encargos reais).

 

Mais, conforme decidido no Acórdão do CAAD de 21/12/2012, Proc. 24/2012, “a Circular n.º 7/2014, ao fixar critérios e métodos, através dos quais se verifica a incidência de imposto, é, na medida em que a sua aplicação reveste eficácia externa, nomeadamente em liquidações corretivas de imposto, inconstitucional, por violação do princípio da legalidade plasmado no artigo 103.º, e da reserva de lei formal constante do artigo 165.º, n.º 1 al, i), ambos da Constituição. Isto não obstante a mera ilegalidade que sempre resultaria do confronto entre aquela Circular e o artigo 8.º da Lei Geral Tributária”.

 

No mesmo sentido, se pronunciou o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 15 de Janeiro de 2015, Proc. 00946/09.0BEPRT:

 

“O facto de na sua metodologia ter usado os critérios preconizados na circular n.º 7/2004, de 30 de Março, em especial seus pontos n.ºs 7 e 8 não salva a legalidade da operação, pois os critérios e pressupostos de imputação dos passivos remunerados das SGPS ultrapassam manifestamente o conteúdo do art. 31º/2 do EBF criando presunções e apuramentos proporcionais que o legislador manifestamente não assumiu nem consentiu.  

 

  1. Como salienta Júlio Tormenta[10]: «Uma questão que se levanta a propósito do estabelecido no art. 32.º do EBF nos seus n.º 2 e 3 é saber como apurar ou quais os encargos financeiros directamente relacionados com aquisição de participações sociais (na sua maioria constituídos pelos juros correntes de serviço da dívida relativos a um mútuo ou outra forma de crédito utilizado pela SGPS para aquisição de participações sociais) daqueles que são usados pela SGPS para no prosseguimento do seu objecto que não tenha a ver com aquisição de participações.

 

A Administração tributária vem defendendo que essa afectação deve realizar-se no respeito pelo “princípio do equilíbrio financeiro” (cf. o Ofício de 1 de Setembro de 2003 do Director-Geral dos Serviços do IRC), o qual aconselha a que se financie um activo com capitais de maturidade compatível com a vida económica desse activo e capacidade de geração de meios monetários.

Para a Administração tributária os encargos financeiros deverão ser afectos com base numa fórmula que atenda ao seguinte: os passivos remunerados das SGPS deverão ser imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados por estes concedidos às empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afectando-se directa e automaticamente o remanescente aos restantes activos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição.

Em Portugal vigora o princípio da legalidade tendo como corolário segundo a doutrina clássica o princípio da tipicidade fechada sendo a matéria de incidência tributária de reserva relativa de Lei da Assembleia da República. No caso presente a lei não estabelece critérios de afectação de recursos financeiros à aquisição de participações sociais e não pode a administração tributária, por via administrativa criar normas de incidência (através do chamado ”direito circulatório”), sob pena de se estar perante uma inconstitucionalidade material, uma vez que tais normas devem emanar de lei (da Assembleia da República) ou Decreto-Lei (do Governo) devidamente autorizado.

Os contribuintes não estão obrigados a seguir os procedimentos vertidos na Circular 7/2004 de 30.3.2004 (doravante designada por circular 7/2004) pois aos mesmos apenas estão vinculados os funcionários tributários perante a sua tutela e nada mais.

Não podemos concordar com o enunciado na Circular 7/2004 no seu ponto 7 onde se refere “dada a extrema dificuldade de utilização, nesta matéria, de um método de afectação directa ou específica e à possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria”: devido ao desenvolvimento e sofisticação dos sistemas de informação de gestão disponíveis no mercado, deveria privilegiar-se o método de afectação directa e só na impossibilidade de utilização do mesmo; é que se avançaria como método alternativo o preconizado na Circular 7/2004»

 

Se o legislador não instituiu qualquer critério que permita distinguir nos custos financeiros totais das SGPS quais os que se devem à compra de participações sociais e quais os que foram usados para outros fins, a ATA só poderia mover-se no âmbito de um método que respeitasse a afectação directa ou específica, porque só esse seria compatível com o princípio da legalidade e da imparcialidade a que está sujeita (art. 55º LGT) e que resulta da redação do art. 31º/2 EBF ao excluir da formação do lucro tributável os encargos financeiros suportados com a aquisição das participações alienadas. Ao referir-se a encargos financeiros suportados a lei circunscreve claramente – a nosso ver – que só estes (apurados específica e directamente) são excluídos da tributação (esta é também a interpretação acolhida no douto parecer do Exmo. PGA junto do STA proferido a fls. 849 e segs: «…Ora, decorre da letra e espírito do citado normativo que apenas não concorrem para a formação do lucro tributável os encargos financeiros suportados com a sua aquisição. O critério a ter em conta para a determinação dos encargos financeiros parece só poder ser o critério da afectação/imputação directa ou real e não o critério indirecto sancionado pela Circular 7/2004. Uma pretensa impossibilidade prática em distinguir os encargos financeiros, efectivamente suportados com a aquisição de partes de capital, dos restantes encargos, salvo melhor juízo, não pode servir de fundamento para a utilização de um critério que parece não ter qualquer apoio legal…»

Admitindo porém que não é possível a partir da escrita da empresa saber qual o fim para que foram obtidos os financiamentos, isso poderá colocar em causa o controlo legal por parte da ATA. Mas mesmo que assim seja, não pode ser a ATA a completar a norma através de uma circular que institua um regime de apuramento proporcional, indirecto ou presuntivo, criando condições mais gravosas para o contribuinte do que as previstas na lei, desrespeitando o quadro normativo vigente. Com tal interpretação, a circular 7/2004 propõe-se completar a norma do art. 31º/2 EBF criando um modo de cálculo diferente do da imputação directa e específica dos passivos remunerados das SGPS que o legislador não contemplou e que ultrapassa drasticamente a mera interpretação da norma.”

 

Importa, agora, aferir, em concreto, da legalidade do acto de liquidação adicional objecto da presente impugnação.

 

No relatório de inspeção, a Requerida fundamenta e justifica a correção fiscal afirmando que “No exercício de 2009 a sociedade não acrescentou ao R.L.E. do exercício os encargos imputáveis a partes de capital.” No âmbito da resposta e alegações apresentadas junto do presente tribunal afirma ainda que a correção “tem origem na absoluta omissão da quantificação da parte da Requerente dos encargos financeiros imputáveis às partes de capital por si detidas na declaração de rendimentos respeitantes ao período em causa” (artigo 57.º da Resposta), bem como na “posterior ausência de prestação de esclarecimentos e informações.” (artigo 58.º da Resposta).

 

Assim sendo, perante a alegada falta de informação do sujeito passivo, a Requerida procede à aplicação do método previsto na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, atendendo, para o efeito, à informação constante do balancete analítico e da IES.

 

Ora, da análise do processo administrativo e do relatório de inspeção resulta que, face à inexistência de qualquer correção fiscal na declaração modelo 22 de encargos imputáveis a partes de capital que não concorrem para o lucro tributável, a AT presumiu a sua omissão e procedeu à determinação dos respetivos encargos através do método previsto na Circular n.º 7/2004.

 

Sem prejuízo do juízo de avaliação da legalidade do método utilizado, convirá explicitar que competia à AT comprovar os pressupostos da correcção fiscal operada, nomeadamente a existência de encargos financeiros não tributados com a aquisição de partes de capital.

 

Desde logo, a inexistência de correcções fiscais na declaração modelo 22 não significa, per si, que existiu uma omissão ou erro do contribuinte, mas tão só que inexistem encargos financeiros não aceites fiscalmente, atentos à presunção de veracidade e boa-fé das declarações do contribuinte (artigo 75.º da LGT). Aliás, da consulta do processo administrativo, verifica-se que um representante do sujeito passivo, em resposta a um pedido de informação da AT anterior à instauração do procedimento de inspeção, afirma que “Não obstante, de acordo com a informação que tenho disponível a A... SGPS não terá suportado encargos financeiros com financiamentos destinados especificamente à aquisição de partes de capital…” (p. 146).

 

Existindo indícios de que tal declaração não correspondia à verdade, competia à AT demonstrar e provar a existência de encargos financeiros não dedutíveis, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, o que não aconteceu.

 

Pelo contrário, em vez da prova, e apesar da Requerente ter realizado investimentos financeiros (aquisição de partes de capital ou constituição de novas sociedades) durante o ano de 2009, a AT limitou-se a proceder à correção de um certo montante de encargos financeiros, sem cuidar de provar a existência dos pressupostos factuais da sua actuação.

 

De seguida, conforme concluímos supra, ao aplicar o método previsto no parágrafo 7 da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, a AT violou o disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, que prevê a não dedutibilidade dos encargos financeiros dos encargos efectivamente suportados com a aquisição de partes de capital.

 

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas n.º 2013 …, de 5 de Dezembro de 2013, que se traduziu na redução do prejuízo fiscal apurado em 2009 para o valor de € 555.998,06;

b)      Condenar a Requerida ao pagamento das custas do processo, no montante de € 11.016.00, tendo-se em conta o já pago.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 768.976,42, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €11.016,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

21 de maio de 2015

 

O Árbitro Presidente

(Jorge Lopes de Sousa)

 

O Árbitro Vogal

(Amândio Silva)

 

O Árbitro Vogal

(Ana Maria Rodrigues)

 



[1] Júlio Tormenta, As Sociedades Gestoras de Participações Sociais como instrumento de planeamento fiscal e os seus limites, 2011, pp. 73 a 95.

[2] Decreto-Lei n.º 495/1988, de 30 de dezembro.

[3] Este preceito corresponde ao atual n.º 2 do artigo 32.º do EBF, em virtude da republicação operada pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26/06.

[4] Agora, em SNC, designados de “investimentos financeiros”.

[5] LUÍS GRAÇA MOURA, A “nova” Tributação do Rendimento das SGPS: Reflexões acerca da Tributação de Mais-Valias no Quadro do Princípio da Segurança Jurídicain Revista Jurídica da Universidade Portucalense Infante D. Henrique, n.º 10, março 2003, p. 122.

[6] Soares Martinez, Direito Fiscal, Coimbra, 1993, p. 111.

[7] Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, 1974.

[8] Ver, a título de exemplo, os Acórdãos:

- Supremo Tribunal Administrativo de 14 de junho de 1995, processo n.º 18.297;

- Supremo Tribunal Administrativo de 15 de novembro de 1995, processo n.º 19.451.

 

[9] Tal como aventado pelo Parecer do Centro de Estudos Fiscais, Parecer n.º 42/2003, de 17 de Junho, citado pela Requerente.

[10] Júlio Tormenta, Ob. Cit., 2011, p. 145.