Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 299/2014-T
Data da decisão: 2014-11-14  IRS  
Valor do pedido: € 324.926,00
Tema: IRS -Mais-valias; Cláusula Geral Antiabuso.
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  Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Marta Gaudêncio e João Ricardo Catarino, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral na seguinte

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. Em 9-1-2014, A... e B..., respetivamente contribuintes n.º … e n.º …, com residência fiscal na Rua … Lisboa, casados entre si, (adiante designados por “1.º Requerente” e “2.º Requerente”, respetivamente, ou conjuntamente designados por “Requerentes”), submeteram ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) o pedido de constituição de tribunal arbitral com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS de 9 de Novembro de 2013, n.º 2013 …, relativa ao ano de 2009, no valor de 378.837,73€, resultando numa dívida tributária no montante de 369.151, 54 €, dos quais 44.225, 54€ referentes a juros compensatórios.

  

  1. Os Requerentes pedem a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS, tal como, a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, com fundamento:
  2. Na aplicação indevida da cláusula geral antiabuso;
  3. Na errónea qualificação do facto tributário e vício de fundamentação legalmente exigida;
  4. E na violação da lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito.

 

  1. No dia 31 de Março, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 20 de Maio de 2014, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 04 de Junho de 2014.

 

  1. No dia 7 de Julho de 2014, a Requerida, dentro do prazo legal para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação e sustentando, em suma, que a AT, «(…) quer em sede de procedimento inspectivo, quer nos (…) autos arbitrais que estão reunidos os pressupostos previstos no n.º 2 do art. 38.º da LGT que determinam a aplicação da cláusula geral anti-abuso para efeitos de liquidação do imposto que se mostra devido no caso em apreço (…).», , defendendo a manutenção do ato tributário nos termos em que foi praticado e bem assim que não existiu erro imputável aos serviços da AT, não havendo, na sua opinião, fundamento para o pagamento de juros indemnizatórios.

 

  1. Posteriormente, notificadas para o efeito, ambas as partes vieram aos autos comunicar que prescindiam da realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, pelo que a realização da primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, foi dispensada, atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, e que o processo arbitral se rege pelos princípios da economia processual e proibição da prática de actos inúteis.

 

  1. Subsequentemente, o Requerente e a Requerida apresentaram, de forma sucessiva, as respectivas alegações escritas, nas quais mantiveram e desenvolveram as posições anteriormente assumidas e defendidas nos seus articulados.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      Em 8 de Maio de 2000, foi constituída a sociedade “C... - … Ld.ª”, tendo como objecto social o exercício das actividades de “Desenvolvimento, produção e comercialização de sistemas inteligentes para soluções de atendimento” e de “Representação, importação e exportação de equipamentos e prestação de serviços associados”.

 

2-      O capital social no montante de €500.000,00 encontrava-se representado por duas quotas com o valor unitário de €200.100,00, a que corresponde uma parte de capital de 39,94%, detidas pelo Requerente A... e por D...D..., e por uma quota no valor unitário de €99.800,00, correspondente a 19,92 % do capital social, subscrita por E....

 

3-      No dia 29 de Junho de 2009, reuniram os sócios da C... em Assembleia-geral e aprovaram por unanimidade o aumento do capital social para € 501.000,00, bem como a admissão de dois novos sócios e a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima.

 

4-      As deliberações aprovadas foram objecto da escritura pública datada de 24 de Julho 2009, sendo admitidas na sociedade as novas sócias B... e K…, casadas com os sócios A... e E..., com uma quota de € 500,00 cada uma, representativas de 0,2 % da totalidade do capital social.

 

5-      No mesmo acto notarial, procederam os sócios à transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, passando o capital social de €501.000,00 a ser representado por 100.200 acções, com o valor nominal unitário de € 5,00, tendo sido nomeados como administradores os anteriores gerentes A..., D...D... e E....

 

6-      As 100.200 acções da sociedade, que passou a denominar-se C... SA, foram atribuídas aos accionistas de acordo com o valor nominal das respectivas quotas, ficando assim o capital distribuído da seguinte forma:

 

 

 

7-      Quatro meses após a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, o requerente A... cedeu a totalidade das suas acções (40.020), pelo valor de € 3.441.400,00, ao accionista E..., mediante Contrato de Compra e Venda de Acções outorgado em 18 de Novembro de 2009.

 

8-      Atualmente a C..., com a denominação F…, S.A., mantém a forma jurídica de sociedade anónima, tal como, o capital social e a composição do conselho de administração.

 

9-      A venda da participação social do 1.º Requerente na C... foi declarada pelos Requerentes, em sede de IRS, como não sujeita a tributação, à luz do disposto no artigo 10.º, n.º 2, alínea a), do Código do IRS.

 

10-  O 1.º Requerente, a 28 de Fevereiro de 2013, através do ofício n.º …, de ….02.2013, da Direção de Finanças de Lisboa, para além de tomar conhecimento da acção inspetiva interna aberta a coberto da ordem de serviço OI 2012…, foi também «(…) notificado para o exercício, em 30 dias, de audiência prévia relativamente ao «Projecto de Aplicação da Cláusula Geral Anti-abuso».

 

11-  A 27 de Março de 2013, o 1.º Requerente exerceu por escrito o seu direito de audição, e pugnou para que fosse alterado o projeto notificado.

 

12-   A 1 de Agosto de 2013 (com a autorização do Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira) foi aplicada a Cláusula Geral Antiabuso, tendo como principal fundamento as informações referidas na Informação n.º …, da Direção de Serviços de Planeamento e Coordenação da Inspeção Tributária, de 5 de Julho de 2013 que: «(…) demonstram claramente que a celebração dos negócios jurídicos e dos actos praticados pelos sujeitos passivos, tiveram como fim único a eliminação do imposto que seria devido em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico.».

 

13-  A informação n.º …, referida no n.º 15 do relatório, foi elaborada tendo por base a informação da Direcção de Finanças de Lisboa nela expressamente referida, preparada após e como análise do exercício do direito de audição pelo 1.º Requerente, não tendo todavia esta última sido objecto de notificação aos Requerentes.

 

14-  A … de Setembro 2013, através do oficio n.º …, de ….09.2013, da Direção de Finanças de Lisboa, os Requerentes foram notificados para o exercício de audição prévia, em 15 dias, relativamente a Projecto de conclusões de Relatório de Inspecção.

 

15-  A 2.ª Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, relativamente ao Projeto de Relatório de Inspeção, no dia … de Outubro de 2013, e invocou, para além do mais, não ter sido notificada anteriormente sobre a matéria, sendo certo que os seus argumentos sobre tal matéria vieram corroborar, no mais, as teses já defendidas pelo 1.º Requerente.

 

16-  A … de Outubro de 2013, através do ofício n.º …, de ….01.2013, da Direção Geral de Finanças de Lisboa, os Requerentes foram notificados de Relatório Final de Inspeção, nos termos do qual foi convertido em definitivo o projeto anteriormente notificado.

 

17-  A 26 de Novembro de 2013, em concretização das conclusões do referido Relatório de Inspecção, os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS do ano de 2009 n.º 2013 …, de 9 de Novembro de 2013, no valor de €378.837,73, de que resultou uma dívida tributária de €369.151,54, correspondendo €324.926,00 a imposto e €44.225,54 a juros compensatórios, com termo do prazo para pagamento voluntário a 30 de Dezembro de 2013.

 

18-  A 16 de Dezembro de 2013 os Requerentes procederam ao pagamento integral da dívida tributária em causa, ao abrigo do Regime Excepcional de Regularização de Dívidas Fiscais e à Segurança Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro.

 

19-  A 28 de Março de 2014 os Requerentes requereram a constituição de Tribunal Arbitral.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

1-      A partir do final de 2007, os sócios fundadores da C... identificaram como importante para o desenvolvimento da empresa o respectivo reposicionamento junto de clientes e potenciais clientes, considerando conveniente que aquela se demarcasse da imagem PME de sucesso para se assumir abertamente como uma importante empresa tecnológica nacional - líder no sector das soluções de atendimento -, sendo uma das medidas a tomar para esse efeito a transformação societária da C... em sociedade anónima, pensando também na possibilidade de abertura do respectivo capital social a terceiros capazes de aportar experiência e recursos financeiros acrescidos para a empresa.

 

2-      No final de 2008, a sociedade comercial G... - SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A. (doravante "G...") manifestou interesse em entrar no capital da C..., o que foi encarado favoravelmente pelos sócios desta, tendo a G... promovido um procedimento de auditoria jurídica e financeira à C..., levado a cabo pela H… & ASSOCIADOS, SOCIEDADE DE ADVOGADOS R.L. e pela I… CONSULTORES DE GESTÃO, LDA.

 

3-      Esta exigência da G... foi compreendida e aceite favoravelmente pelos sócios da C..., enquadrando-se com a estratégia idealizada por estes de reposicionamento da empresa como passo necessário para o respectivo desenvolvimento.

 

4-      Em Outubro de 2009, já após conclusão positiva da auditoria financeira e jurídica promovida pela G..., os accionistas da C... foram confrontados com uma alteração unilateral dos termos assentes como base negocial para a entrada da G... no capital social da C... - fundamentalmente quanto à forma de pagamento do preço das acções a transmitir -, motivo pelo qual o negócio perspectivado se não concretizou.

 

5-      A frustração das expectativas criadas com a iminente parceria a estabelecer com a G... deu azo a uma situação de indefinição quanto ao rumo a prosseguir para desenvolvimento da C..., o que criou instabilidade e desacordo entre os accionistas da empresa.

 

6-      Em face dessa situação, o 1.º Requerente aceitou uma proposta de aquisição das suas acções na C... apresentada pelo também accionista J…, tendo o correspondente contrato de compra e venda sido assinado a 18 de Novembro de 2009.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto não contestados pelas partes.

Quanto aos factos não provados, devem-se, essencialmente, à insuficiência da prova apresentada a seu respeito. Com efeito, os documentos apresentados pelos Requerentes não são, só por si, susceptíveis de fundar, para lá de qualquer dúvida razoável, a prova dos factos tal como foram por si alegados.

Em especial, o documento 12, correspondendo materialmente a declarações de alguém que poderia depor como testemunha, sem justificação e sem que tenha havido contraditório, não poderá ser valorado.

 

B. DO DIREITO

 

            Os Requerentes expressamente colocam à apreciação deste Tribunal as seguintes questões:

a)      Preterição do dever de inquirir da Administração Tributária no procedimento de inspecção que determinou o acto tributário impugnado, em violação do artigo 58.º da LGT; e

b)      Falta de preenchimento dos pressupostos concretos de aplicação da cláusula geral antiabuso, em violação do disposto no artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

Não tendo sido arguidos vícios que conduzam à nulidade ou inexistência do acto impugnado, nem tendo sido expressamente requerido que, na apreciação das questões suscitadas, o Tribunal siga uma ordem determinada, cumprirá conhecer, nos termos do artigo 124.º do CPPT, do vício “cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”, o que no caso será o da alegada falta de preenchimento dos pressupostos concretos de aplicação da cláusula geral antiabuso.

            Cumprirá, assim, apurar desde logo se, em concreto, se verificam, ou não, os pressupostos para a aplicação da cláusula geral antiabuso, conforme foi levada a cabo pela AT.

            A referida cláusula geral antiabuso vem consagrada no artigo 38.º/2 da LGT, com o seguinte teor:

“São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”.

            Da análise da norma referida, de cuja aplicação decorre a ineficácia, no âmbito tributário, de actos ou negócios jurídicos, e independentemente da maior ou menor elaboração doutrinal que sobre ela incida, verifica-se da respectiva análise estrutural que a sua aplicação pressupõe a ocorrência dos seguintes elementos:

è que os atos ou negócios jurídicos sejam essencial ou principalmente dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais;

è que a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, resulte de meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas ou que as vantagens fiscais não fossem alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios.

No caso dos autos, o negócio jurídico que a AT pretende cobrir com o manto da ineficácia é a transformação da sociedade (então por quotas) C... em sociedade anónima. É este, para lá de qualquer dúvida, o negócio que, de forma causalmente adequada, obsta à tributação que a AT entende devida, sobre as mais-valias realizadas com a venda das participações sociais detidas na sociedade transformada.

Afigura-se claro, desde logo, que não se encontra provado que o negócio jurídico em causa – transformação das sociedades por quotas em sociedade anónima – se deu, senão essencialmente, pelo menos principalmente (o que é quanto baste, face à norma aplicanda) tendo em vista a obtenção de vantagens fiscais[1].

            Efectivamente, os factos, tal como resultam provados, não demonstram que a operação de transformação societária operada, se tenha preordenado à obtenção da vantagem fiscal obtida, ulteriormente, com a venda das participações sociais na sociedade tranformada.

            Com efeito, a proximidade temporal de cerca de 4 meses, verificada entre o momento da tranformação da sociedade e a venda pelos requerentes das participações que naquela detinham, único facto relevante que nesta matéria se provou, é claramente insuficiente para que se conclua, com a necessária segurança, que quando assentiu naquela transformação, o Requerente tivesse já em vista a venda da sua participação, e, menos ainda, que os restantes sócios o tivessem.

            É certo que os Requerentes sustentam que a transformação das sociedades por quotas por si levada a cabo se deveu, principalmente, não à vantagem fiscal que a mesma, a jusante, lhe veio a proporcionar, mas decorreu de uma condição imposta pela G... no quadro da perspectivada entrada desta no capital da empresa, fundando-se em razões económicas e jurídicas relacionadas com a política de gestão do Grupo G... e à pretendida criação de diferentes categorias de acções, o que, contudo, não se provou.

            Não se provando, quais as concretas motivações que, no caso, determinaram a realização do acto cuja ineficácia a AT pretende, naturalmente que não se poderá entender que aquele foi realizado por motivações exclusiva ou principalmente ligados a um ganho fiscal que, posteriormente, se verificou, já que tal demonstração era um ónus que aquela autoridade, enquanto pretendente à aplicação do artigo 38.º/2 da LGT, deveria cumprir, de acordo com o disposto no artigo 74.º/1, também da LGT.

Conclui-se, deste modo, que, face aos factos dados como provados, não é possível concluir para lá de qualquer dúvida razoável, que o negócio jurídico em causa – transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima – se deu, senão essencialmente, pelo menos principalmente tendo em vista a obtenção de vantagens fiscais.

 

*

Mesmo que assim não fosse, e que se tivesse concluído que o negócio jurídico em causa se deu, senão essencialmente, pelo menos principalmente tendo em vista a obtenção de vantagens fiscais, sempre se dirá que, tal não bastaria para legitimar a aplicação da cláusula antiabuso.

Subscrevem-se, assim, as considerações do Prof. Saldanha Sanches, transcritas pelo Requerente, segundo as quais “mesmo que a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima fosse motivada por razões exclusivamente fiscais, não se estaria perante um acto condenável face ao ordenamento jurídico tributário, uma vez que o próprio legislador fiscal optou expressamente por tributar em sede de IRS os ganhos decorrentes da venda das quotas e por não tributar em sede daquele imposto os ganhos resultantes da venda de acções naquele contexto.”.

De facto, e deixa-se tal bem claro, entende-se que a mera realização de um acto ou negócio jurídico por razões estritamente fiscais, e ainda que não tenha qualquer outra justificação material[2], que não aquelas, não licenciará, de per si, a AT a retirar-lhe eficácia[3].

Para que seja legalmente possível a privação da eficácia do acto ou negócio jurídico realizado essencial ou principalmente por razões fiscais, incluindo a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, torna-se, ainda, indispensável que tenha havido uma utilização de modo causalmente relevante, de meios artificiosos ou fraudulentos e de abuso das formas jurídicas.

            A expressão legal do requisito de aplicação da cláusula geral antiabuso  que ora nos ocupa não é particularmente feliz, sendo eminentemente conceptualista e, pensa-se, redundante.

            Seja qual for a construção doutrinal a que se adira na matéria em questão, estar-se-á em todo o caso de acordo que a expressão legal se reporta a um uso anormal das formas jurídicas, em termos de haver uma contradição entre a finalidade da tutela normativa concedida por meio das normas ou estruturas jurídicas utilizadas, e a utilização que delas, em concreto é feita.

            Ora, esta demonstração de que a vantagem fiscal que haja comprovadamente  motivado a prática do acto cuja ineficácia a AT pretenda, tenha ocorrido no quadro da utilização de meios fraudulentos e abusivos, que é, igualmente, ónus a cumprir por quem o invoca (ou seja: a AT), também não foi feita, minimamente, nos autos, sendo que se afigura meridianamente evidente que para tanto não bastaria:

è que a AT identificasse “o negócio jurídico realizado e qual seria o negócio jurídico lícito alternativo, bem como as normas aplicáveis” (artigo 41.º da resposta);

è “que era totalmente dispensável a transformação de sociedade por quotas em sociedade anónima, para a concretização dos objectivos dos sócios em termos de expansão da actividade da sociedade, naquele momento, imediatamente anterior à venda das acções.” (ponto 18 das alegações da AT);

sendo que nada mais – a não ser de forma estritamente conclusiva – é sequer alegado pela AT nos autos, nesta matéria.

Do mesmo modo, carece por completo de suporte legal, o entendimento de que aos Requerentes competia demonstrar “que a transformação se deveu essencialmente:

• À prossecução de objectivos de expansão da sua actividade;

• Financiamento externo;

• Outra estrutura de controle.[4]

            Deste modo, e em síntese, considerando-se que à AT, em ordem a assegurar a legalidade da sua actuação de aplicação da cláusula geral antiabuso, competia demonstrar que:

è O negócio jurídico relativo à transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima foi, pelo menos, principalmente dirigido à obtenção de vantagens fiscais;

è As vantagens fiscais referidas, não seriam alcançáveis sem a utilização de meios artificiosos ou fraudulentos; e que

è As referidas vantagens foram, ainda, obtidas com abuso das formas jurídicas;

o que, relativamente a qualquer dessas elencadas circunstâncias não ocorreu, não se encontrando, como tal, verificados os pressupostos legais de aplicação da cláusula antiabuso, deverá, consequentemente, a presente acção arbitral proceder.

            Face à tutela conferida pela ilegalidade invalidante que se vem de apreciar, fica prejudicado o conhecimento da invalidade procedimental suscitada pelos Requerentes.

 

***

Cumulam os Requerentes, com o pedido anulatório do acto tributário objeto dos presentes autos, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

No caso em apreço, é manifesto que a ilegalidade do acto de liquidação cuja quantia os Requerentes pagaram é imputável à Administração Tributária, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal.

Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.

Os juros indemnizatórios são devidos desde 16-12-2013 até integral pagamento à Requerente das quantias liquidadas, calculados com base no valor de €324.926,00, à taxa legal, nos termos dos artigos, artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (sem prejuízo das eventuais alterações posteriores da taxa legal).

 

***

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular o acto tributário impugnado nos autos, e condenar a AT a restituir aos Requerentes o imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios;

b)      Condenar a AT nas custas do processo, no montante de €5.508,00, tendo-se em conta o já pago.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €324.926,00, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €5.508,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

14 de Novembro de 2014

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Marta Gaudêncio)

 

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(João Ricardo Catarino)

 



[1] Não se tratará de atos ou negócios jurídicos que sejam essencial ou principalmente dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, uma vez que não há negócio idêntico à transformação operada, do qual resultasse uma tributação. O que se passa, in casu, é que o status quo ante implicava, na operação global subsequentemente operada pelos Requerentes, onde se encaixa o acto cuja ineficácia a AT persegue, uma (avultada) tributação. Aquele acto, que a referida Autoridade pretende ineficaz, foi, assim, praticado tendo em vista a obtenção de vantagens fiscais, traduzidas na não tributação do acréscimo patrimonial dos Requerentes, decorrente da alienação subsequente das participações sociais.

[2] Será o caso, por exemplo, de um casal que se haja divorciado, ainda que mantendo vida em comum, por razões estritamente ligadas ao aberrante regime de IRS que os penalizava, caso em que se entende que a AT não poderá invocar a ineficácia do divórcio, por abusivo, para continuar a tributá-los como casados. Será também o caso da substituição de um veículo pesadamente onerado em sede de IUC, por outro que o seja em menor medida, exclusivamente por razões fiscais, caso em que se entende igualmente que a AT não poderá invocar a ineficácia do negócio, por abusivo, para continuar a tributar nos termos primitivos.

[3] Concorda-se, deste modo, com a asserção dos Requerentes, segundo a qual “não se pode falar em evitação fiscal quando alguém escolhe uma diferente forma jurídica para exercer uma determinada actividade por ter descoberto que, no seu caso particular, tal mudança lhe proporcionava uma economia fiscal: exerce apenas um direito legítimo” (artigo 152º do Requerimento Inicial), desde que a “economia fiscal” não derive, total ou parcialmente de meios artificiosos ou fraudulentos e de abuso das formas jurídicas!

[4] Artigo 89.º da resposta.