Sumário:
Não logrando o sujeito passivo demonstrar o destino dado aos bens em falta e, ainda que alegue que o montante apurado é diminuto quando comparado com o volume global de compras realizadas em 2020, impõe-se neutralizar o respetivo impacto fiscal, desconsiderando tal montante como gasto dedutível na determinação do lucro tributável, nos termos do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, na medida em que recai sobre ele o ónus da prova nos termos do art. 74.º, e 75.º, 1, 2, a), LGT.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Ricardo Marques Candeias, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, decide nos termos que se seguem:
I — RELATÓRIO
A. Dinâmica processual
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A..., Lda., NIPC..., com sede na Rua ..., ..., de ..., ...-... Porto de Mós, apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), para que seja declarada a anulação parcial da liquidação de IRC e JC do exercício de 2020, n.° 2024..., e respetiva demonstração de acerto de contas n.° 2024..., pela qual foi apurado o montante a pagar de € 15.770,22, e efetuada a restituição do imposto indevidamente pago, acrescido dos juros indemnizatórios.
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No dia 5 de dezembro de 2024 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerente e à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, 1, e artigo 11.º, 1, b), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 27 de janeiro de 2025 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído a 14 de fevereiro de 2025.
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A 24 de março de 2025, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, impugnando.
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A 7 de maio de 2025 foi agendada a reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, para o dia 3 de junho de 2025.
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A 12 de maio de 2025, a Requerente veio pedir o aproveitamento para os presentes autos da prova produzida no processo 1297/2024-T e a desmarcação da diligência que se encontrava agendada.
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Após ouvida a Requerida, que não se opôs ao solicitado, a 14 de maio de 2025, determinou-se o aproveitamento da prova produzida no processo 1297/2024-T, bem como a junção aos presentes autos da certidão da decisão proferida no citado processo, com a indicação de trânsito em julgado.
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A 15 de maio de 2025 foi junto aos autos cópia da ata de inquirição de testemunhas do processo 1297/2024-T bem como a respetiva gravação em suporte digital.
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Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art. 16.º, e n.º 2 do art. 29.º, ambos do RJAT, a 10 de julho de 2024 foi dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, bem como a de apresentação de alegações escritas. Mais foi indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 30 de setembro de 2024.
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Por despacho de 31 de julho insistiu-se pela junção da referida certidão bem como pela prorrogação do prazo de emissão da decisão por dois meses.
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Por despacho de 7 de outubro de 2025 de novo se prorrogou o prazo de emissão da decisão por mais dois meses, considerando que a citada certidão ainda não tinha sido junta.
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A 21 de novembro de 2025 veio a Requerente juntar aos autos certidão do processo 1297/2025.
B. Posição das partes
Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que a AT, ao emitir a nota de liquidação adicional de IRC e JC relativa a 2020, na sequência de ação inspetiva externa, considerou que as diferenças de inventário não tinham correspondência direta com os ganhos obtidos, nomeadamente, relacionadas com diferenças entre os acertos de entrada e acertos de saída dos produtos comercializados pela Requerente.
Para a Requerente, as perdas de inventário resultam de causas normais e inevitáveis da atividade, relacionadas com o armazenamento, transporte e manuseamento de mercadorias; erros humanos, administrativos e logísticos; produtos defeituosos, embalagens deterioradas e trocas de referências.
Estas perdas são inerentes ao risco do negócio e não configuram situações extraordinárias, além de terem sido devidamente registadas em inventário e representam apenas 0,08% do volume de vendas.
Cita jurisprudência que sustenta serem este tipo de perdas aceites como custos dedutíveis, por força do disposto no art. 23.º, CIRC.
Pede a anulação parcial da liquidação de IRC/JC na parte em que tributa o montante de € 34.344,04, correspondente à correção indevida, a que corresponde o montante de imposto de € 9.511,73; juros indemnizatórios sobre o valor pago indevidamente (€ 9.511,73); e a restituição integral dos montantes liquidados de forma ilegal.
Por sua vez, a AT considera que apenas parte das despesas documentadas podem ser aceites como custos. Com efeito, o valor em discussão (€ 34.344,04) corresponde a diferenças não comprovadas documentalmente, conclusão a que chegou depois de ter analisado todos os argumentos e documentos apresentados, aceitando os suportados (por exemplo, as guias B...), mas recusando os que careciam de prova. Isto é, tudo o que foi alegado já foi considerado anteriormente pela AT e encontra-se devidamente espelhado no RIT.
Invoca o art. 74.º, LGT, no sentido de fundamentar que cabe ao contribuinte demonstrar a realidade das quebras, nomeadamente, a Requerente não apresentou autos de destruição, relatórios, fotografias ou testemunhos, que afastasse a presunção legal do art. 86.º, CIVA (presunção de transmissão onerosa dos bens em falta). Sem prova inequívoca, a AT mantém a desconsideração do gasto. Deste modo, deve manter-se a nota de liquidação em causa.
C. Thema decidendum
A questão em apreciação centra-se em saber se as perdas de inventário em causa constituem gastos indispensáveis e dedutíveis em IRC ou, não estando documentalmente devidamente comprovadas, devem ser desconsideradas fiscalmente nos termos do CIRC e do CIVA, afastando-se também a pretensão de juros indemnizatórios.
II — SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), 5.º, 6.º, 1, e 10.º, 1, RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. arts. 4.º e 10.º, 2, RJAT, e art. 1.º, Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Preliminarmente, importa apreciar estas questões sendo que, para nos debruçarmos sobre elas, é relevante determinar a factualidade dada como provada e como não provada.
III — FUNDAMENTAÇÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
A) A Requerente, A..., Lda., NIPC..., exerce a atividade principal de comércio por grosso de produtos farmacêuticos (CAE 46460).
B) Encontra-se enquadrada no regime geral de determinação do lucro tributável, de acordo com o art 17.º, CIRC, de 1 de janeiro de 2014, possuindo contabilidade organizada.
C) Utilizou, para o período de 2020, as normas de relato financeiro — NCRF’s.
D) A requerente foi objeto de ação inspetiva externa, que decorreu ao abrigo da ordem de serviço n.° O|2023..., de âmbito geral, ao exercício de 2020.
E) No decurso da ação inspetiva, foi analisada a contabilidade da Requerente e analisados os inventários e demais elementos documentais contabilísticos.
F) O procedimento visou verificar o cumprimento das obrigações declarativas em IRC e IVA.
G) No âmbito do RIT, foi analisado, entre outras, a Conta SNC 684 – Perdas em Inventários – a qual registava um montante global de €511.176,92, tendo da versada análise resultado o seguinte:








H) Parte desse valor total registado por - Perdas em Inventário (€ 511.176,92) - veio a ser considerado como justificado (compensado) o valor de €476.932,88, através de:
a) recolhas pela B... (produtos danificados/fora da validade): € 16.493,49;
b) produtos danificados/inutilizados compensados por fornecedores (conta SNC 611): € 236.308,20;
c) perdas por transformação/junção de produtos em kits: € 18.956,92;
d) ganhos em inventários (conta SNC 784): € 205.074,27;
tudo em conformidade com o teor do quadro-resumo VII, no qual se concluiu pela existência, ainda assim, de um diferencial de € 34.344,04.
I) Com base na fundamentação de facto vinda de supra expor, a AT efetuou, no RIT, o apuramento em sede de IRC relativo a tal diferencial, nos termos seguintes, do qual resultou uma correção ao lucro tributável no montante de € 56.941,48.

J) Os bens adquiridos que comporiam o valor de € 34.344,04 não justificados no âmbito de inventários, não se encontravam em qualquer dos locais onde a Requerente exerce a sua atividade — facto este que decorre do posicionamento congruente das partes quanto a esta matéria.
K) A Requerente encontrava-se, no decurso de 2020, numa fase de transição quanto ao modelo de gestão de armazém, uma vez que estava a ser progressivamente implementado um novo sistema para o efeito, o qual até esse ano era, essencialmente, manual, sendo que o sistema de controlo ainda não abrangia todos os produtos e armazéns, o que limitava a rastreabilidade das mercadorias – cfr. resulta dos depoimentos das testemunhas, com especial enfoque, no de D... .
L) A Requerente foi notificado do projeto de relatório de inspeção, no qual se concluía, no que a Perdas em Inventários em sede de IVA diz respeito, na qual a /AT considerou presumida a transmissão dos bens correspondentes, ao diferencial apurado, no valor de €34.344,04.
M) A Requerente exerceu o direito de audição, alegando que as diferenças de inventário resultavam de perdas normais relacionadas com armazenamento, transporte, manuseamento e distribuição.
N) A AT não aceitou essa fundamentação por ausência de documentação que comprovasse tais perdas.
O) Nesta sequência, foi emitida liquidação adicional de IRC e juros compensatórios, conforme demonstração de acerto de contas, datada de 30 de janeiro de 2024, resultando o valor a pagar de € 15.770,22.
P) A Requerente procedeu ao pagamento de € 15.770,22, para quitação da referida liquidação adicional de IRC e juros compensatórios.
Q) Inconformada com a correção constante no ponto anterior, a Requerente apresentou, em 25 de junho de 2024, reclamação graciosa, à qual coube o n.º ...2024..., peticionado a anulação parcial da liquidação, na parte em que tributou o montante de € 34.344,04.
R) Esta reclamação foi indeferida por despacho de 09 de setembro de 2024, com fundamento na ausência de comprovação documental das perdas invocadas e do destino de tais bens.
S) Inconformada, a Requerente deduziu, em 3 de dezembro de 2024, o pedido de pronúncia arbitral que está na origem destes autos, visando a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e a anulação parcial das liquidações adicionais de IRC e JC.
A.2. Factos dados como não provados
Para efeitos relevantes à decisão dos presentes autos, não se demonstrou que os bens correspondentes ao diferencial de €34.344,04, registados contabilisticamente pela Requerente como “perdas em inventários” e considerados pela Requerida como não justificadas, não tenham sido transmitidos, nem que tenham sido objeto de destruição, inutilização, deterioração, extravio, furto ou qualquer outra forma de desaparecimento devidamente comprovada.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art. 123.º, 2, CPPT, e art. 607.º, 3, CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, 1, a) e e), RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior art. 511.º, 1, CPC, correspondente ao atual art. 596.º, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e), RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do art. 110.º, 7, CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
No âmbito da valoração da prova produzida, a convicção deste Tribunal Arbitral assentou numa apreciação crítica e conjugada da prova documental junta aos autos e da prova testemunhal apresentada pela Requerente, nomeadamente os depoimentos de D..., E... e F... .
As testemunhas — colaboradores da Requerente com responsabilidades nas áreas de logística, armazém e compras — prestaram declarações coerentes e convergentes, descrevendo um cenário organizacional marcado, em 2020, por uma fase de transição tecnológica, decorrente da implementação de um novo sistema de gestão de armazéns, e por constrangimentos operacionais agravados pela pandemia de Covid-19. Tais circunstâncias teriam originado falhas operacionais, designadamente erros de expedição, trocas de referências, danos em produtos, lapsos de registo ou contagem, e dificuldades de controlo resultantes do aumento do volume de operações.
Todavia, nenhuma das testemunhas conseguiu identificar de forma concreta, individualizada e circunstanciada o destino dos bens que integram o diferencial de €34.344,04, considerado pela AT como não justificado, limitando-se a enunciar, em abstrato, possíveis causas para tais discrepâncias.
Do mesmo modo, foi reconhecido pelas testemunhas que o sistema informático e os mecanismos de controlo interno vigentes em 2020 não permitiam rastrear integralmente a circulação dos produtos, inexistindo registos documentais que comprovassem o desaparecimento, destruição, inutilização, deterioração, extravio ou outra forma de perda dos referidos bens.
Acresce que foi igualmente confirmaram que não existia qualquer documentação de suporte, como autos de destruição, relatórios de inutilização, notas de devolução, comunicações a autoridades competentes ou quaisquer outros elementos formais, que permitisse demonstrar que os bens em causa não foram transmitidos.
Por fim, apesar do conhecimento funcional e técnico das operações da empresa, nenhuma das testemunhas conseguiu concretizar, com referência a tempo, modo ou identificação específica, o destino dos bens cuja falta foi sinalizada pela AT, tendo os seus depoimentos permanecido no plano das explicações genéricas sobre o funcionamento do armazém e das operações internas.
Ademais, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
Na verdade, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o n.º 5 do art. 607.º do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (v.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º, CCiv.) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
B — DE DIREITO
B.1. Thema decidendum
Importa saber se as perdas em inventários, no montante de €34.344,04, apuradas no exercício de 2020 e consideradas em sede de RIT, pela AT, como não justificadas, resultam do exercício normal da atividade em causa e são inerentes ao manuseamento dos produtos transacionados pela Requerente, de modo a que sejam fiscalmente dedutíveis, nos termos do art. 23.º, CIRC.
B. 2. Do mérito
Considerando o thema decidendum, para o SP a correção efetuada pela AT ao abrigo do RIT, relativa às “perdas em inventários” no montante de €34.344,04, é ilegal, por violação dos pressupostos legais que regem a dedutibilidade fiscal dos gastos e por erro na qualificação das diferenças de inventário. Afirma que as perdas resultam do exercício normal da atividade comercial, sendo inerentes a operações de armazenamento, manuseamento, transporte e expedição de produtos, verificadas com regularidade, são inevitáveis no âmbito da atividade desenvolvida, como descrito no relatório inspetivo.
A Requerente invoca o artigo 23.º do CIRC, defendendo que os custos resultantes de perdas normais de inventário são fiscalmente dedutíveis quando diretamente relacionados com a obtenção de proveitos ou para a manutenção da fonte produtora. Sustenta que as perdas detetadas constituem “perdas normais”, reconhecidas pela jurisprudência como inerentes a determinadas atividades económicas — citando, designadamente, os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul nos processos n.º 279/09.2BESNT, de 25 de junho de 2020, e 67/07.0BESNT, de 16 de dezembro de 2020.
Com fundamento nesta jurisprudência, afirma que tais perdas devem ser aceites como gastos dedutíveis, não podendo a AT exigir prova impossível ou excessiva quanto à destinação individualizada de cada bem desaparecido.
Conclui que a correção fiscal deve ser anulada por violação do artigo 23.º, CIRC, por erro na apreciação da prova e por desconsideração de custos indispensáveis ao exercício da atividade. Pede, assim, a anulação parcial da liquidação de IRC de 2020 na parte que incidiu sobre o montante de €34.344,04, bem como a restituição do imposto pago e o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.
Por sua vez, a AT afirma que a correção fiscal impugnada — relativa a “gastos não aceites – diferença de stocks”, no montante de €34.344,04 — foi efetuada de forma rigorosa e fundamentada no âmbito do procedimento inspetivo, tendo todos os argumentos apresentados pela Requerente sido já analisados, discutidos e ponderados durante a inspeção.
A AT sublinha que o sujeito passivo registou um total de €511.176,92 em quebras de inventário e que apenas desconsiderou a parcela cuja justificação documental não foi apresentada, sendo esta circunstância decisiva para a correção operada. A AT enfatiza que aceitou todas as perdas devidamente comprovadas, incluindo as relacionadas com recolhas da B..., e que a diferença corrigida corresponde exclusivamente a bens cujo destino não foi demonstrado.
Do ponto de vista jurídico, a AT fundamenta que, nos termos do artigo 23.º, CIRC, a aceitação fiscal de perdas em inventários exige prova clara, objetiva e inequívoca do destino dos bens, competindo ao contribuinte ilidir a presunção de transmissão prevista no artigo 86.º do CIVA. Cita doutrina da OCC e ofícios circulados que recomendam a elaboração de autos de destruição ou comunicações prévias à AT como meios adequados de prova. A AT considera que a Requerente, dispondo de meios humanos e tecnológicos, poderia e deveria ter produzido tais elementos. Assim, na sua perspetiva, as perdas não comprovadas não assumem natureza de “perdas normais” e não cumprem os critérios de indispensabilidade previstos no artigo 23.º, n.º 1, CIRC, pelo que devem ser desconsideradas para efeitos de IRC e IVA.
Conclui, por isso, que não existe erro imputável aos serviços, motivo pelo qual também não há lugar a juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º, LGT, pelo que requer a total improcedência do pedido arbitral e a manutenção integral da liquidação.
Como vimos, a questão central consiste em saber se as diferenças de inventário correspondem a perdas inerentes e inevitáveis ao normal exercício da sua atividade, apesar de não terem ocorrido lançamentos contabilísticos para serem consideradas como custo fiscalmente dedutível, nos termos do art. 23.º, CIRC. Esta questão encontra-se também intimamente relacionada com o disposto no art. 86.º, CIVA, pois, não se enquadrando como um gasto, presumem-se transmitidos os bens adquiridos, que não se encontrem no local onde o SP exerce a sua atividade.
Determina o art. 23.º, 1, 2, b), e 3, todos do CIRC, que “1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC. 2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas: b) Os relativos à distribuição e venda, abrangendo os de transportes, publicidade e colocação de mercadorias e produtos. 3 — Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito. ”
Sabemos que enquanto que o n.º 1 estabelece uma cláusula geral, o n.º 2 não estabelece um elenco taxativo ou exaustivo dos gastos e perdas fiscalmente dedutíveis, mas antes uma enumeração meramente exemplificativa.
Segundo Rui Marques, Código do IRC — Anotado e comentado, 2.ª edição, Almedina, 2020, p. 221, “Para além da observância dos requisitos geral, contido no n.º 1 do artigo 23.º, todos os gastos dedutíveis deverão estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito. Não se afigura, pois, apta a prova testemunhal para efeitos estritos de dedutibilidade fiscal.
Recorde-se que, na execução da contabilidade, todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário (artigo 123.º, n.º 2, alínea a), constituindo uma das obrigações acessórias do sujeito passivo a de exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita (artigo 31.º, n.º 2, da LGT).
Normalmente, a comprovação documental faz-se por documento externo, ou seja, que provenha ou se destine ao exterior (exemplos: faturas, recibos e notas de crédito), com menção das características fundamentais da operação em causa. Mas, a falta de documento externo não impede a dedutibilidade, podendo a comprovação ser efetuada por documento interno, desde que permita aferir sobre a efetividade da operação e do montante.
(…) Sem prejuízo do antedito, a aparência formal dada pelo suporte documental não dispensa o sujeito passivo quanto à prova da materialidade das operações subjacentes aos gastos, pois é ele quem invoca o direito à dedução, fundando-se em certos factos constitutivos, e ao abrigo do dever de colaboração (art. 74.º, 1, e 59.º, ambos da LGT), sem prejuízo da presunção da veracidade de boa-fé do contabilizado e declarado pelo sujeito passivo (artigo 75.º, da LGT).”
Na perspectiva da Requerente, a perda de mercadorias é indissociável do seu sector de atividade, bem como das suas condições de laboração.
Por sua vez, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoca, como expressa e concretamente prevê o art. 74.º, LGT.
Assim, incumbe à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos legitimadores da sua atuação, para o que deve provar os factos constitutivos de que legalmente depende a decisão com um determinado conteúdo e sentido.
Por seu turno, cabe ao contribuinte provar os factos que operam como suporte das pretensões e direitos que invoca.
Por sua vez, conforme cristaliza o art. 75.º, LGT, “Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.”
Deste dispositivo resulta, essencialmente, que, nestes casos relacionados com a presunção de veracidade de declarações da contabilidade e escrita, se a administração tributária não demonstrar a falta de correspondência entre o teor de tais declarações, contabilidade a escrita e a realidade, o seu conteúdo terá de se considerar como verdadeiro.
Acontece que, in casu, a AT demonstrou, quanto ao montante em discussão, a falta de correspondência entre a contabilidade e a realidade.
Fazemos nosso o decidido no proc. 1297/2024-T relativamente à reflexão crítica que incidiu sobre a matéria de facto dada como provada, embora tendo como pano de fundo o art. 86.º, CIVA, o mesmo vale, mutatis mutandis, para o ora em apreciação, pois não deixa de navegar à vista do disposto nos arts. 74.º e 75.º, LGT.
Da análise conjunta da prova produzida evidencia-se, desde logo, que não foi apresentada qualquer prova documental que permita demonstrar o destino efetivo dos bens correspondentes ao montante de €34.344,04, considerado pela Autoridade Tributária e Aduaneira como perdas de inventário não justificadas.
A Requerente limitou-se a tentar sustentar a origem e natureza dessas diferenças mediante prova testemunhal, cujos depoimentos, embora coerentes quanto à caracterização do funcionamento interno da empresa e das dificuldades operacionais verificadas em 2020, não lograram concretizar factualmente o destino dos bens em causa, nem fornecer elementos de verificação objetiva que permitam afastar a presunção de transmissão prevista no artigo 86.º do Código do IVA.
Com efeito, as testemunhas inquiridas — todas vinculadas à Requerente e com funções relevantes nas áreas de logística, armazém e compras — prestaram depoimentos convergentes quanto à explicação genérica das causas das diferenças de inventário, apontando, para diversas causas como fossem, erros de expedição, trocas de referências, produtos danificados, furtos não apurados, lapsos de contagem, erros administrativos e deficiências no sistema de controlo interno.
Tais explicações, todavia, não ultrapassaram o plano da plausibilidade geral, assumindo natureza meramente conjetural, destituída de concretização quanto a tempo, modo, natureza e identificação específica dos bens que deixaram de estar em poder (leia-se, nas instalações) da Requerente.
As testemunhas confirmaram, de resto, a inexistência de qualquer documentação de suporte — designadamente autos de destruição, relatórios de inutilização, notas de devolução, comunicações à B... ou a entidades competentes, ou quaisquer outros documentos internos que permitam individualizar e comprovar a perda efetiva dos bens.
Apenas foi afirmado que, em 2020, a empresa atravessava um período de transição tecnológica, com a implementação progressiva de um sistema de gestão de armazéns e que essa circunstância, conjugada com o impacto da pandemia de Covid-19 e o aumento do volume de operações, terá potenciado erros e divergências de stock.
Ainda que se reconheça a percentagem diminuta das «perdas em inventários» face ao volume de negócios – 0,08% - e a verosimilhança dos testemunhos quanto à realidade organizacional descrita e— marcada por um contexto de complexidade logística, crescimento de atividade e limitações tecnológicas — tais questões não podem deixar de ser a esta imputáveis e certamente com reflexos em matéria dos desvios de inventários.
A invocação de dificuldades associadas à implementação de um novo sistema de gestão em 2020 não pode, por si só, justificar as discrepâncias detetadas nos inventários.
Ainda que se admita, como se reconhece, que o sistema se encontraria em fase de transição, tal circunstância não exonera a entidade da obrigação de assegurar a fidedignidade e completude dos seus registos contabilísticos e de manter mecanismos eficazes de controlo interno sobre as existências.
Com efeito, a adoção ou substituição de um sistema informático de gestão deve ser acompanhada de procedimentos internos de validação e reconciliação, aptos a garantir que as operações de entrada e saída de bens são devidamente registadas e que o inventário físico corresponde ao contabilístico.
Durante qualquer período de adaptação tecnológica, compete à administração da entidade implementar medidas de mitigação, designadamente controlos paralelos manuais, verificações periódicas e reconciliações sistemáticas de stock, de modo a evitar ou identificar de forma atempada eventuais discrepâncias.
A simples alegação de falhas no sistema, desacompanhada da demonstração de tais mecanismos de supervisão e correção, evidencia antes a insuficiência dos procedimentos de controlo interno e a inexistência de um sistema eficaz de monitorização das existências.
A responsabilidade pela fiabilidade da informação contabilística e pela verificação do inventário é exclusiva da respetiva entidade, não podendo ser transferida para limitações técnicas ou circunstanciais.
Importa, ainda, salientar que o valor percentual reduzido dos desvios apurados — 0,08% face ao volume de vendas anual — não tem a virtualidade para afastar, de per se, a constatação de tais insuficiências.
A maior ou menor relevância quantitativa não elimina a aferição qualitativa que deve nortear o sistema de controlo, pois o dever de assegurar a integridade dos registos de existências é absoluto e não depende da dimensão dos desvios detetados, sendo certo que a via documental é aquela que, consabidamente, assegura uma maior fidedignidade ao nível da aferição desfasada no tempo, porquanto permite reconstruir com objetividade e rigor as operações e movimentos ocorridos, garantindo a rastreabilidade e uma mais objetiva verificação dos factos contabilisticamente relevados.
Mesmo variações de menor expressão evidenciam deficiências estruturais na fiabilidade dos processos de contagem, registo e reconciliação, incompatíveis com as boas práticas contabilísticas e de governação empresarial.
Em suma, a circunstância de os desvios injustificados poderem ser apelidados de «limitados» não permite sanar as deficiências do sistema, antes confirmando que os mecanismos de controlo e registo ainda se encontravam aquém do nível de rigor exigível, revelando a ausência de um modelo de controlo interno robusto e devidamente testado.
Assim, os problemas internos de gestão e a reduzida expressão dos desvios não afastam a conclusão de que o sistema de controlo era insuficiente para garantir a fiabilidade dos inventários e a credibilidade da informação financeira.
Ora, é neste contexto marcado pelas limitações ao nível dos sistemas de controle, desacompanhado de quaisquer elementos documentais que é imperioso concluir pela insuficiência dos depoimentos prestados em ordem a estabelecer um nexo factual densificado entre as divergências contabilizadas e eventuais ocorrências, que pudessem justificar e suportar a saída dos bens do património da empresa sem transmissão onerosa.
Limitando-se as testemunhas a elencar um conjunto alargado de causas, genericamente plausíveis, mas desacompanhadas de quaisquer informações densificadas quanto ao tempo, modo e natureza da saída de tais bens das instalações da Requerente, pelo que é de concluir que a prova produzida não atinge um grau de concretização e objetividade mínimo para, desacompanhado de quaisquer elementos documentais (de natureza externa e/ou interna), lograr demonstrar a não transmissão onerosa dos bens.
Deste modo, a prova testemunhal, embora coerente e verosímil quanto ao contexto operacional e à natureza em abstrato plausível das múltiplas causas apontadas, não permite ultrapassar o ónus da prova que recaía sobre o SP, por força do disposto dos preceitos conjugados dos art. 74.º, 1, e 75.º 1, 2, a), LGT.
Não logrando o sujeito passivo demonstrar o destino dado aos bens em falta e, ainda que alegue que o montante apurado é diminuto quando comparado com o volume global de compras realizadas em 2020, impõe-se neutralizar o respetivo impacto fiscal, desconsiderando tal montante como gasto dedutível na determinação do lucro tributável, nos termos do artigo 23.º, n.º 1, CIRC.
Atenta a improcedência do pedido de declaração de ilegalidade — tal como configurado pelas causas de pedir invocadas na petição —, impõe-se a manutenção, na ordem jurídico-tributária, tanto do ato imediato, consubstanciado na decisão proferida em sede de Reclamação Graciosa, como do ato mediato, correspondente à liquidação de IRC e JC do exercício de 2020, n.° 2024..., e respetiva demonstração de acerto de contas n.° 2024..., pela qual foi apurado o montante a pagar de € 15.770,22.
B.3. Juros indemnizatórios
Atento o exposto, e nos termos dos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, CPC, aplicáveis subsidiariamente por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), RJAT, considera-se prejudicado o conhecimento das restantes questões e pedidos formulados, os quais dependiam de um juízo de procedência e da consequente anulação, ainda que parcial, do ato tributário. Entre tais pedidos incluem-se a condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios e a restituição do montante pago relativo à correção referente às “perdas em inventário”, apuradas na liquidação de IRC de 2020, bem como os juros compensatórios associados, igualmente impugnados na presente instância arbitral
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IV — DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar-se totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica tanto a decisão de indeferimento da reclamação graciosa anteriormente identificada como o ato tributário de liquidação de IRC e JC do exercício de 2020, n.° 2024..., e respetiva demonstração de acerto de contas n.° 2024..., pela qual foi apurado o montante a pagar de € 15.770,22, melhor identificado, e respetivos juros compensatórios, objeto dos presentes autos.
b) Considera-se prejudicado o conhecimento das questões respeitantes ao pagamento de juros indemnizatórios à Requerente e à restituição do montante pago no âmbito do segmento da liquidação concretamente impugnado, por dependerem de um juízo de procedência que não se verificou.
c) Condenar-se a Requerente no pagamento integral das custas do presente processo.
V — Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 9.511,73 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI — Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, 4, RJAT.
Notifique-se.
Bom Sucesso,
2 de dezembro de 2025
O Árbitro Singular
(Ricardo Marques Candeias)