Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 308/2025-T
Data da decisão: 2025-12-02  IRC  
Valor do pedido: € 219.498,98
Tema: IRC; Derrama Municipal; Rendimentos com origem no estrangeiro; Empresa participada; estabelecimento estável.
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Sumário:

I – Para efeitos de cálculo da Derrama Municipal, deve ser excluída do lucro tributável sujeito e não isento de IRC a componente do lucro tributável obtida fora do território nacional sempre e quando esta seja imputável a estabelecimento estável localizado no estrangeiro.

II – Nos demais casos, os rendimentos com origem no estrangeiro devem integrar a base de cálculo da Derrama Municipal, na medida em que sejam sujeitos a, e não isentos de, IRC.

III – Os números 2 e 13 do artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais(RFALEI) não contêm normas de incidência de Derrama Municipal, mas apenas de repartição do direito a tributar entre os municípios nacionais.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Rita Correia da Cunha (Árbitra Presidente), André Festas da Silva e António Pragal Colaço (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, acordam no seguinte:

 

 

I.        RELATÓRIO

1.A..., S.A. (anteriormente denominada B..., S.A.), sociedade anónima com sede na..., ..., ...-... Lisboa, Portugal, titular do NIPC ... (abreviadamente designada por “1.ª requerente” ou por “A...”), sociedade dominante de grupo (o “Grupo C...”, e “Grupo Fiscal C...”) sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades previsto no artigo 69.º e segs. do Código do IRC, e D..., S.A., sociedade anónima com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Porto, titular do NIPC...,  (doravante abreviadamente designada por “2.ª requerente” ou “D...”), na qualidade de sociedade que sucedeu a título universal, por fusão à E..., SGPS, S.A. (doravante abreviadamente designada por “E...”), que tinha sede também na Rua ..., n.º ...,  ...-... Porto, titular do NIPC n.º ... (conjuntamente designadas por “Requerentes”),vieram, nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, 6.º, n.º 2 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (doravante, “PPA”), em que é demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista (i) a declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra os atos de autoliquidação de IRC (derrama municipal) do Grupo Fiscal C... e da E... (esta entretanto incorporada por fusão na 2.ª requerente) relativos ao exercício de 2021, e, bem assim, (ii) a declaração de ilegalidade e anulação daquela parte das autoliquidações de IRC (derrama municipal) referentes ao exercício de 2021, mais especificamente, no que respeita ao montante de € 217.989,56 (Grupo Fiscal C...) e de € 1.509,42 (E...), num total de € 219.498,98, e bem assim, que se determine (iii) a condenação da Requerida a reembolsar as Requerentes dos montantes indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.

2.De acordo com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a) e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

3.Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 11 de julho de 2025 (a “Resposta”).

4.As Requerentes alegam, em síntese, no PPA, que, apresentaram reclamação graciosa contra as referidas autoliquidações respeitantes ao exercício de 2021, as quais foram indeferidas, e sendo o seu resultado líquido de exercício, e portanto o seu lucro tributável, composto por rendimentos com origem em território nacional e por rendimentos com origem no estrangeiro, auto-liquidaram e pagaram derrama municipal em excesso em relação ao exercício de 2021, uma vez que a Declaração Modelo 22 do IRC não permite expurgar o resultado líquido dos montantes correspondentes aos rendimentos com origem no estrangeiro, para efeitos de determinação da derrama municipal, sendo certo que considera que tais rendimentos obtidos no estrangeiro não devem integrar a base de cálculo da derrama municipal, ao abrigo do disposto no artigo 18.º  do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (doravante, “RFALEI”).

5.       Na Resposta, a AT juntou o Processo Administrativo instrutor (doravante, “PA”) e opôs-se a esse entendimento, defendendo, por um lado, que o IRC, e portanto as derramas, incidem sobre o worldwide income dos sujeitos passivos residentes em Portugal e, por outro, que mesmo que teoricamente se entendesse ser de retirar os rendimentos obtidos no estrangeiro da base de cálculo das derramas,  a Requerente não produziu prova suficiente de que os rendimentos concretamente em causa fossem realmente obtidos no estrangeiro.

6.       Por despacho arbitral de 1 de outubro de 2025, ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da livre determinação das diligências de prova necessárias (cf. artigo 16.º, alíneas c) e e), do RJAT), e considerando a inexistência de prova testemunhal por produzir e a clareza da posição das partes, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações escritas, não se tendo as partes se oposto a tal despacho.

II.      SANEAMENTO

1.      O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.

2.      O PPA é tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do RJAT.

3.      As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º da n.º 112- A/2011, de 22 de março (Portaria de Vinculação).

 

III.   MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

1.A Requerente “A...” é uma sociedade anónima de direito português, qualificando-se como sujeito passivo de IRC, residente em território português, sociedade dominante do Grupo Fiscal C..., que integrava no ano de 2021 as sociedades:

  1. F..., Sociedade Unipessoal, Lda. (doravante “F...”), com o número de identificação fiscal...;
  2. G... SGPS S.A. (em diante, “G... SGPS”), com o número de identificação fiscal...;
  3. H..., S.A. (em diante, “H...”), com o número de identificação fiscal...;
  4. I..., S.A. (em diante, “I...”), com o número de identificação fiscal...;
  5. D... SA, NIF ... na qualidade de sociedade que sucedeu a título universal, por fusão à E..., SGPS, S.A., com o NIF n.º...;

Todas fazendo parte do perímetro de consolidação fiscal do grupo C... e também do seu grupo económico – facto provado por acordo;

2.A Requerente “A...” encontrava-se, no exercício de 2021, sujeita ao regime geral de tributação de IRC, adotando um período de tributação coincidente com o ano civil, e estando sujeita ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades, pelo que, como sociedade dominante, apresentou no dia 03.06.2022 a DM22 do Grupo Fiscal nº ... referente ao exercício de 2021, onde apurou em 2019 e 2021, um lucro tributável de € 6.630.421,80 e de € 13.842.186,62, respetivamente, tendo incluído rendimentos no

2.montante de € 12.320.934,00 em 2019 e € 17.819.474,00 em 2021, referentes a juros de capitais próprios obtidos no Brasil junto da “J... S.A.” (doravante “J...”) – facto não controvertido;

3.A Requerente “A...”, posteriormente apresentou uma DM22 de substituição do Grupo, em 30.05.2023, com o n.º..., onde altera a derrama municipal para o valor de € 7.109.642,43, mantendo o valor da reposição de benefícios fiscais em € 217.989,56, consubstanciada na liquidação de IRC n.º 2024... de 2024-02-05 – facto não controvertido;

4.A E... SGPS, S.A., com o número de identificação fiscal..., integrava o grupo económico da “A...” mas não fazia parte do perímetro do Grupo Fiscal / RETGS da “C...” – facto provado por acordo;

5.A “E...” apresentou no dia 03.06.2022 a DM22 n.º ... referente ao exercício de 2021, onde declarou um lucro tributável de € 427.767,47, derrama

5.municipal no montante de € 4.277,67, e reposição de benefícios fiscais no valor de € 1.509,42, consubstanciada na liquidação de IRC n.º 2022... de 2022-

5.07-29 – facto provado por acordo.

6.No triénio 2019 a 2021, as cinco sociedades pertencentes ao grupo Económico “A...”, tiveram os seguintes lucros tributáveis individuais, derrama municipal e incentivos:

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- facto não controvertido;

7.Para efeitos dos incentivos de minimis de benefício fiscal de derrama municipal, conjugando os lucros tributáveis de todas as sociedades do grupo económico no triénio 2019 a 2021, temos os seguintes valores:

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- facto não controvertido;

8.A reposição dos valores de benefícios fiscais em derrama municipal, valores e empresas identificadas no quadro do artigo anterior, foram efetuadas no montante de € 217.989,56, no campo 372 do quadro 10 da declaração Modelo 22 agregada/RETGS e no mesmo campo nas declarações de rendimentos IRC Modelo 22 individuais para 2021, sendo que quanto à “E...”, porque faz parte do grupo económico “A...”, repôs no exercício de 2021 derrama municipal, no montante de € 1.509,42 no campo 372 do quadro 10 da declaração Modelo 22 desse ano – facto não controvertido;

9.Quanto à “F...”, conforme quadro 09, campo 302 das Modelos 22 entregues nos exercícios de 2019, 2020 e 2021, o seu lucro tributável (ou prejuízo fiscal, que quando assim for é colocado entre parêntesis), que serviu de base de incidência para a derrama municipal, ascendeu a € 6.630.421,80 (2019), € (1.921.369,47) (2020) e € 13.842.186,62 (2021), respetivamente – facto não controvertido;

10.O lucro tributável do ano de 2019 de € 6.630.421,80 da “F...”, era composto em € 12.320.934,00 por juros de capitais próprios obtidos no Brasil, junto da “J... S.A.”, sociedade brasileira dominada pelo Grupo “C...” e participada pela “F...”, residente e a operar no Brasil, sendo o lucro tributável em 2021 de € 13.842.186,62 da “F...” composto em € 17.819.474,00 por juros sobre capitais próprios obtidos no Brasil junto dessa mesma participada – facto não controvertido;

11.As Requerentes “A..., SA.” e “E...” apresentaram reclamação graciosa (autuada sob o n.º ...2024...), peticionando a anulação parcial da autoliquidação de IRC, referente ao período de tributação de 2021, na parte respeitante à derrama municipal, por entenderem as Requerentes que este tributo não deve incidir sobre rendimentos gerados fora do território português, o qual foi objeto de indeferimento, proferido pelo Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), em 06.12.2024, por subdelegação das suas competências – facto provado por acordo.

 

A.2. Factos dados como não provados

12.Não se provou que os rendimentos das Requerentes com origem em países estrangeiros fossem imputáveis a sucursal ou  a estabelecimento estável instalado nesses países.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

13.Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneasa) e e), do RJAT).  

14.Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

15.Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

16.Não se deram como provadas nem não provadas as alegações argumentativas feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada. 

 

IV.    MATÉRIA DE DIREITO

1.A questão jurídica em causa nos presentes autos tem sido tratada largamente na jurisprudência recente, em termos nem sempre coincidentes, e pode ser resumida da seguinte forma:

i)    Os rendimentos gerados no estrangeiro e obtidos pelas Requerentes em 2021, sujeitos passivos de IRC, devem ou não ser incluídos na base tributável em sede de derrama municipal?

ii)  A resposta a essa questão é diferente consoante esses rendimentos sejam ou não imputáveis a um estabelecimento estável no estrangeiro, ou a uma sociedade aí residente?

Vejamos:

2.Nos termos da norma resultante das disposições conjugadas do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 4.º do Código do IRC, quanto às pessoas coletivas com sede em território português – como as Requerentes – o IRC incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território, considerando-se, entre outros, também obtidos em território português os rendimentos referidos na alínea c) do n.º 1 que não constituam encargo de estabelecimento estável situado no estrangeiro ou que, sendo derivados de prestações de serviços realizadas fora do território português, estejam relacionados com apoio técnico (n.º 4 e n.º 1, alínea c), regra 7, a contrario).

3.In casu, estamos perante juros de capitais próprios obtidos por sociedade portuguesa que participa em sociedade residente no Brasil, que não se assemelham a dividendos, mas mais a outros rendimentos de capitais.[1]

4.Um das questões jurídicas que  se colocaria imediatamente, seria o de analisar no âmbito do direito tributário internacional se os mesmos rendimentos seriam de considerar auferidos em Portugal, ou antes no Brasil, “consultando-se” a Convenção celebrada entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil Destinada a Evitar a Dupla Tributação e a Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento, mas, nem as partes colocam essa questão em causa, nem as Requerentes deixaram de considerar englobados no lucro tributável esses montantes, pelo que é despiciendo abordá-la.[2]

5.Ora, estabelece o n.º 1 do artigo 18.º do RFALEI que os municípios “podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC)que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território” (destaques e sublinhados nossos).

6.E aqui está, a nosso ver, a pedra de toque do caso presente no que se refere à subsunção dos factos ao direito – é que, no fundo, a norma de incidência objetiva de derrama apenas distingue entre lucro tributável sujeito ou não sujeito a, e isento ou não isento, de IRC.

7.O n.º 2 deste artigo 18.º prevê que “para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município […] o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua [ou seja, no município que pretende tributar] e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional” (destaques e sublinhados nossos).

8.E o que sucede quando o sujeito passivo não tenha estabelecimentos estáveis ou representações locais, além da sede, “situados em território nacional”, mas tenha lucro tributável sujeito e não isento de IRC? A esta questão responde o n.º 13 do artigo 18.º do RFALEI, sobre o qual nos vimos debruçando: “Nos casos não abrangidos pelo n.º 2 [ou seja, quando não haja dispersão de estabelecimentos estáveis ou representações locais pelo território nacional a que sejam imputáveis certas frações de rendimento]considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo […]”.

9.O n.º 2 e o n.º 13 do artigo 18.º do RFALEI são, portanto, meras normas de distribuição do poder de tributar entre municípios nacionais, não contendo quaisquer normas de incidência objetiva.

10.Ou seja, se por interpretação extrairmos uma norma das disposições conjugadas do artigo 4.º, n.os 1 e 4, do Código do IRC, e 18.º, n.os 1, 2 e 13 do RFALEI, o seu conteúdo será o de que sempre e quando não existam estabelecimentos estáveis a que sejam imputáveis certas frações de rendimento, o RFALEI  atribui ao município da sede ou direção efetiva o direito a tributar, em sede de derrama, o lucro tributável sujeito a, e não isento de, IRC, independentemente de onde ele tenha sido gerado, como resulta do Código deste imposto.

11.A verdade é que não existe qualquer norma de incidência no artigo 18.º do RFALEI (ou em qualquer outro lugar deste regime) que distinga, para efeitos de derrama, entre rendimentos obtidos no estrangeiro e rendimentos obtidos em território nacional – pelo que sendo a derrama dependente da sujeição a IRC, a incidência desta terá necessariamente algum grau de conexão com a incidência daquele.

12.E, como já se decidiu na Decisão Arbitral proferido no processo n.º 583/2023-T, “do princípio de que «o legislador se exprimiu de forma correta e completa« (consagrado no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, onde se pode ler: ‘Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados’) imana o princípio de que «onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir» («Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus»), ambos aceites pelos Tribunais Superiores como regras clássicas da hermenêutica (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.6.1993, processo n.º 084774; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.3.2015, processo n.º 4/2015; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17.6.2021, processo n.º 931/10.0BELSB; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 8.6.2012, processo n.º 01901/10.3BEBRG; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 17.2.2022, processo n.º 00419/12.4BEPRT)”.

13.Ou seja, não existindo essa distinção entre rendimentos obtidos em Portugal e rendimentos obtidos no estrangeiro, em termos metodológicos, o caminho interpretativo a seguir em obediência aos princípios hermenêuticos é o de considerar sujeita a derrama qualquer parte do lucro tributável sujeita e não isenta de IRC, sujeição e não isenção essa que só pode procurar-se no próprio Código do IRC.

14.Sendo apenas afastados dessa incidência – para o que aqui importa – os rendimentos obtidos no estrangeiro que sejam imputáveis a estabelecimentos estáveis aí situados.

15.É esta a ideia que resulta do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) proferido em 2 de abril de 2025, no âmbito do processo n.º 0560/22.5BEALM, no qual se decidiu que “[o]s montantes pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo fora do território nacional (sejam dividendos, juros, ou contrapartida da prestação de serviços fora do território nacional), que não sejam imputáveis a sucursal ou estabelecimento estável do sujeito passivo no estrangeiro, incluem-se no âmbito de incidência da derrama municipal” (destaques nossos), jurisprudência que, na presente decisão, se entende ser de seguir de perto, em obediência ao princípio da interpretação e aplicação uniformes do Direito, consagrado no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil.

16.Ao que acresce que a mesma linha jurisprudencial vinha já a ser desenhada desde o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal prolatado em 13 de janeiro de 2021, que, relativamente ao processo n.º 03652/15.3BESNT, em que o sujeito passivo obteve rendimentos de fonte estrangeira através de estabelecimento estável ali situado, decidiu (ainda no domínio da Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, que neste tema continha redação em tudo idêntica à do RFALEI), que a “totalidade do lucro tributável sujeito e não isento de IRC é sujeita a derrama municipal, e imputável ao município onde se situa a sede ou direção efetiva do sujeito passivo, com exceção dosrendimentos de fonte estrangeira imputáveis a sucursal ou estabelecimento estável do sujeito passivo no estrangeiro” (destaques nossos).

17.Neste mesmo sentido têm sido proferidas algumas sentenças arbitrais, de entre as quais destacamos as relativas aos processos n.os 720/2021-T (“os rendimentos de fonte estrangeira que sejam imputáveis a sucursal no estrangeiro não se encontram sujeitos a derrama municipal”), e, em casos em que não ficou provada a existência de estabelecimentos estáveis situados no estrangeiro a que fossem imputáveis os rendimentos em causa, os processos n.os 32/2024-T, 950/2025-T, 631/2024-T e 1060/2024-T (todas elas prévias ao referido acórdão do STA proferido no processo n.º 0560/22.5BEALM).

18.Não se ignoram dois argumentos que têm sido aventados em defesa da não incidência de derrama sobre rendimentos com origem no estrangeiro, e que inclusivamente já foram acolhidos pelo Relator desta decisão – em particular nos processos n.os 1130/2024-T e 29/2024-T – que, tendo em consideração a recente jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo plasmada no já mencionado processo n.º 0560/22.5BEALM, refletiu e alterou a sua essa posição:

i)Um, de base teleológica e bastante impressivo, que reside no facto de a ratio legis subjacente ao lançamento das derramas municipais assentar na possibilidade de desgaste infraestrutural dos municípios lançadores por força das atividades neles desenvolvidas, aí residindo a legitimidade dos municípios portugueses para tributar em sede de derrama, ao abrigo do princípio do benefício – que estaria ausente no caso dos rendimentos com origem no estrangeiro (explicitando esta “legitimidade tributária”, cfr. a declaração de voto junta pelo Prof. Rui Duarte Morais ao processo n.º 665/2024-T, a cujo tribunal presidiu); e,

ii)Outro, de raiz literal, conexa com a segunda parte do n.º 1 do artigo 18.º do RFALEI, que permite aos municípios o lançamento da derrama “até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território” (destaques nossos).

19.Estes argumentos estiveram, em maior ou menor medida, na base das decisões proferidas nos processos arbitrais n.os 554/2021-T, 234/2022-T, 211/2023-T, 170/2023-T, 948/2023-T, 29/2024-T (em que participou o relator da presente decisão), 28/2024-T, 31/2024-T, 315/2024-T, 1111/2024-T, 969/2024-T, 1130/2024-T e 947/2024-T, todos eles relativos a casos em que não resultava dos factos provados que os rendimentos fossem imputáveis a um estabelecimento estável no estrangeiro e todos eles anteriores ao Acórdão do STA proferido em 2 de abril de 2025, no âmbito do processo n.º 0560/22.5BEALM, acima citado.

20.Mas também em momento posterior à prolação do referido acórdão do STA, ou seja, desde 2 de abril de 2025 (posteriormente publicado), têm vindo a ser proferidas decisões arbitrais que mantêm essa linha decisória de exclusão total dos rendimentos obtidos no estrangeiro da base de cálculo da derrama, mesmo quando não sejam imputáveis a estabelecimento estável localizado fora de Portugal. É o caso das decisões proferidas nos processos n.os 946/2024-T, 1120/2024-T, 1129/2024-T, 1038/2024-T, 17/2025-T, 1077/2024-T, 1072/2024-T e mais recentemente, 1282/2024-T.

21.Contudo, no entender deste tribunal, na esteira do defendido pelo STA no mencionado processo n.º 0560/22.5BEALM (e que reitere-se, já poderia ser inferido do teor do acórdão do mesmo Supremo Tribunal relativo ao processo n.º 03652/15.3BESNT, posto que naquele caso se deu por provada a existência de um estabelecimento estável no estrangeiro) o decidido nestes últimas arestos arbitrais não parece ser de continuar a seguir, sentido de resto já adotado noutras decisões arbitrais proferidas entretanto, de que são exemplos as proferidas nos processo n.os1055/2024 e 1082/2024-T (ambos com coletivo presidido pela também aqui Árbitra Presidente). 

22.Desde logo, quanto ao argumento teleológico, sempre se diga que não tendo sido provado que as atividades empresariais são imputáveis a estabelecimento estável no estrangeiro, o seu fluxo de gestão ocorrerá certamente a partir da sede – ou lugar de direção efetiva – da sociedade,  pelo que o “desgaste” sempre ocorrerá no município português em que esta se situar, na esteira aliás do que decorre de uma interpretação compatível com os princípios enformadores do direito financeiro local, designadamente da autonomia e responsabilidade financeira, mediante os quais cabe aos a gestão orçamental, de receita e despesa, em relação às atividades económicas aí efetivamente desenvolvidas (cf. Rocha, J., Direito Financeiro Local – Finanças Locais, Almedina, pp. 38 e ss e 76 e ss). 

23.No que respeita ao argumento literal, se em função da resposta dada ao argumento teleológico e ao abrigo das boas regras de interpretação jurídica, resulta da norma extraível das disposições conjugadas do n.º 2, a contrario, e do n.º 13, do artigo 18.º, do RFALEI,  que o rendimento oriundo de atividades no estrangeiro não imputável a estabelecimento estável situado noutro país é tributável em Portugal para efeitos de derrama, o mesmo deve ter-se por gerado no município da sede, sempre que não haja outro estabelecimento estável ou representação local em território nacional capaz de atrair tal rendimento.

24.Ora, no caso dos autos, como vimos, as Requerentes não alegaram nem provaram possuir um estabelecimento estável no estrangeiro nem que os rendimentos que obtiveram com origem no estrangeiro fossem de alguma forma imputáveis a um estabelecimento estável ali localizado.

25.Assim, considerando a jurisprudência do STA constante do processo n.º 0560/22.5BEALM de 2 de abril de 2025, e relendo a essa luz o que já havia defendido aquele Supremo Tribunal no acórdão relativo ao processo n.º 03652/15.3BESNT, de 13 de janeiro de 2021, entende este tribunal que, não tendo ficado provado que os rendimentos em causa no PPA são imputáveis a estabelecimento estável das Requerentes situado no estrangeiro, não existe base legal para os mesmos serem de desconsiderar na base tributável da derrama, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, do Código do IRC e 18.º, n.º 1 do RFALEI, sendo por isso de julgar improcedente o pedido.

26.Não vislumbramos em que medida a interpretação do STA constante do processo n.º 0560/22.5BEALM de 2 de abril de 2025, seguida por este Tribunal Arbitral, afronta o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), ou o princípio da capacidade contributiva (artigo 104.º CRP), corolários do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da CRP), nem as Requerentes precisaram o seu argumento relativo à inconstitucionalidade do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro.

27.Considerando a decisão do Tribunal Arbitral quanto a esta questão, fica prejudicado o conhecimento de outras questões suscitadas pelas partes.

 

V.      DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, condenar as Requerentes nas custas do processo.

 

VI.    VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 219.498,98, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

 

VII. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.284,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas Requerentes, em razão do decaimento, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.   

Notifique-se. 

CAAD, 2 de dezembro de 2025

 

A Presidente do Tribunal Arbitral

 

 

Rita Correia da Cunha

 

 

O Árbitro vogal

 

André Festas da Silva

 

 

O Árbitro vogal e Relator

 

António Pragal Colaço

 

 

 

 



[1] Os juros remuneratórios do capital próprio foram inseridos na legislação brasileira através da Lei n.º 9.249/95 (posteriormente alterada pela Lei n.º 9.430, de 30 de dezembro de 1996), a qual concedeu permissão para a dedutibilidade da despesa com juros sobre o capital próprio da base de cálculo do imposto sobre o rendimento.

Os juros remuneratórios do capital próprio são proveitos que o acionista recebe da empresa (brasileira) e que, ao contrário dos dividendos, não são pagos de acordo com o desempenho da empresa no período, baseando-se nas reservas do capital próprio da participada, ou seja, nos lucros apresentados nos anos anteriores e que ficaram retidos na empresa.

[2] Nos termos do n.º 7 do art.º 5.º da Convenção celebrada entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil Destinada a Evitar a Dupla Tributação e a Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e Protocolo anexo, assinados em Brasília em 16 de Maio de 2000, lê-se: 

“7 — O facto de uma sociedade residente de um Estado Contratante controlar ou ser controlada por uma sociedade residente do outro Estado Contratante ou que exerce a sua actividade nesse outro Estado (quer seja através de um estabelecimento estável, quer de outro modo) não é, por si só, bastante para fazer de qualquer dessas sociedades estabelecimento estável da outra”.