versão completa no PDF
DECISÃO ARBITRAL
SUMÁRIO:
1. O art. 3º, nº1, CIUC consagra uma mera presunção de propriedade do veículo para efeitos da incidência do IUC, que pode ser ilidida nos termos do art. 73º da LGT, demonstrando que o proprietário do veículo não é aquele que consta como tal do registo.
2. É inconstitucional, por violação dos arts. 13º e 103º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, uma interpretação do art. 3º, nº1, CIUC que considere facto tributário para efeitos do IUC o simples registo em nome de uma pessoa, mesmo que, na data em que se tornou exigível o imposto, o veículo já tivesse sido transmitido para outra.
I. RELATÓRIO
1. No dia 6 de Maio de 2025, o sujeito passivo A... S.A. - SUCURSAL EM PORTUGAL, doravante designada “Requerente”, NIPC..., com sede na Rua ...-..., ...-..., Carcavelos, apresentou pedido de pronúncia arbitral contra os actos de indeferimento expresso dos recursos hierárquicos Recursos Hierárquicos n.ºs ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2022... (juntos como Anexo A) e mediatamente contra os 201 actos de liquidação de imposto único de circulação (IUC), relativamente a 201 veículos automóveis, no montante global de € 20.726,31 (juntos como Anexo B).
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado pela Requerente em 6 de Maio de 2025 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente comunicado à Requerida que foi do mesmo notificada em 8 de Maio de 2025.
3. Nos termos do disposto no nº1 do art. 6º do RJAT, na redacção da Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro, e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como Árbitro único do Tribunal Arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 27 de Junho de 2025, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar o Árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído em 15 de Julho de 2025.
4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são em súmula, os seguintes:
4.1. A Requerente apresenta-se como uma instituição de crédito e é, actualmente, um dos maiores bancos especializado a operar no financiamento ao setcor automóvel, na área dos bens de consumo, cartões de crédito, co branded e empréstimos pessoais.
4.2. Nessa medida, uma parte substancial da sua atividade reconduz-se à celebração de – entre outros – contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.
4.3. A Requerente, depois de contactada pelo cliente – que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo automóvel que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço – adquire a viatura ao fornecedor que lhe for indicada pelo cliente, e procede, de seguida, à sua entrega ao respetivo cliente – que assume, pois, a qualidade de locatário.
4.4. De acordo com cada um destes contratos, o financiamento concedido ao locatário pela Requerente é restituído (dito de outro modo, recuperado) em prestações mensais, sob a forma de rendas.
4.5. Uma vez liquidadas as rendas, e assim alcançado o termo do correspondente contrato, o locatário tem o direito de adquirir o bem locado mediante o pagamento do valor residual da viatura automóvel, acrescido de despesas e IVA.
4.6. Os veículos automóveis catalogados no Anexo B, sem exceção, foram dados em contratos de aluguer de longa duração (ALD) ou de locação financeira (LSG) pela Requerente aos clientes ali melhor identificados – conforme resulta dos contratos que se juntam como Documentos n.ºs 1 a 8, destacados – por referência à viatura automóvel a que se reportam – no aludido Anexo B.
4.7. Todos estes clientes adquiriram, no termo de cada contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA – tal como atestam os documentos comprovativos das correspondentes transmissões (designadamente, facturas de venda), que se juntam como Documentos n.ºs 9 a 16, melhor assinalados – com menção ao veículo a que se referem – no Anexo B já junto.
4.8. Quer isto dizer que a propriedade de cada um dos veículos automóveis elencados no Anexo B, já junto, na maioria dos casos, havia sido transmitida para os seus anteriores locatários.
4.9. Não obstante, a Requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC.
4.10. O que veio a fazer, como evidenciam os respetivos comprovativos de pagamento que, ao abrigo do princípio da economia processual, não se juntam aos presentes autos, por não se tratar de matéria controvertida.
4.11. A AT veio então exigir o pagamento dos IUC alegadamente em falta à Requerente, mesmo sabendo – ou devendo saber – que os veículos automóveis em apreço já não eram da propriedade da Requerente no momento (no ano, mais concretamente) em que os impostos deveriam ter sido pagos.
4.12. Até porque no ano a que se reportam os actos tributários em contenda, os veículos automóveis já tinham saído (há muito) da esfera jurídica da Requerente, pertencendo a respetiva propriedade a outrem (devidamente discriminado no Anexo B, já junto).
4.13. Assim, nas datas respeitantes aos factos tributários que originaram estas liquidações, a Requerente já não era locadora nem proprietária daqueles veículos automóveis e, por conseguinte, não pode assumir a qualidade de sujeito passivo dos impostos que lhe foram erroneamente liquidados.
4.14. O fundamento invocado pela AT nos procedimentos graciosos assenta, sinteticamente, na seguinte linha de argumentação: a de que – nos anos em que se tornaram exigíveis aqueles IUC – a propriedade dos veículos automóveis ainda estava registada na CRA em nome da Requerente, apesar de os mesmos já terem sido alvo de transmissão, e a de que a falta de registo dos novos proprietários dos veículos automóveis identificados no Anexo B, no momento da exigibilidade dos IUC, determina que estes sejam assacados à Requerente.
4.15. Quando, como se aflorará adiante, aquele registo – ou a sua falta – não pode ser em momento algum considerado elemento decisivo da responsabilidade tributária da Requerente, razão pela qual se encontram irremediavelmente feridos de ilegalidade quer o acto de indeferimento do recurso hierárquico, quer os actos tributários subjacentes – amplamente contestados.
4.16. Como a jurisprudência maioritariamente arbitral tem realçado, nem mesmo durante a vigência de um contrato de LSG (vulgo, leasing) ou de um ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo do imposto.
4.17. Assim sendo, e por maioria de razão, menos ainda deve ser atribuída a incidência subjetiva deste imposto quando – após o término do contrato – o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, acrescido de despesas e IVA, tornando-se, nestas circunstâncias, o (novo) proprietário do veículo automóvel outrora locado, passando a aplicar-se-lhes integralmente o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC.
4.18. É por demais evidente que não subscrevemos quaisquer argumentos que insinuam que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece uma «presunção ilidível de incidência subjetiva» do imposto com base tão só no registo automóvel, desde logo, porque os efeitos do registo automóvel e o princípio da equivalência não apontam nessa direção, mas também porque esta proposta hermenêutica não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis, nos termos dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 9.º do Código Civil (CC).
4.19. Em primeiro lugar, um dos argumentos aduzidos a favor da presunção ilidível parte da realidade jurídico-civil subjacente a este artigo 3.º do Código do IUC, notando que o registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem somente de eficácia declarativa.
4.20. Em segundo lugar, e socorrendo-nos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica, porque o princípio da equivalência está consubstanciado no artigo 1.º do CIUC – no atual e novo quadro da tributação automóvel – decorre daí que o sujeito do passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.
4.21. Em terceiro lugar, através do recurso às regras elementares de hermenêutica jurídica (elemento histórico), extrai-se a observação preliminar de que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o Código do IUC aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, o legislador consagrou (ou sempre quis consagrar) a presunção (segundo cremos, ilidível) dos sujeitos passivos do imposto serem as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontravam registados.
4.22. Em quarto lugar, para estarmos perante uma presunção não é estritamente necessário que seja usado o verbo «presumir» ou «considerar», basta-nos que de um facto conhecido – a pessoa em nome da qual a propriedade do veículo automóvel se encontra registada – se retire um facto desconhecido – se considere proprietário da viatura – para asseverar, a final, a incidência subjetiva de um indivíduo.
4.23. Pelo que as presunções – sobretudo em matéria de incidência tributária – podem ser explícitas ou implícitas, sem que tal signifique que as presunções implícitas sejam, por isso, inilidíveis.
4.24. E o artigo 73.º da LGT ao prever que as presunções relativas a normas de incidência tributária são sempre ilidíveis – «admitem sempre prova em contrário» –, então, o único desfecho possível é o de que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC é uma presunção juris tantum, portanto, ilidível.
4.25. Em quinto lugar, a conjugação do n.º 1 do artigo 3.º com o n.º 1 do artigo 6.º, ambos do CIUC, nos termos do qual «[o] facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional», levada ao extremo provocaria situações em que, por exemplo, o proprietário registado do veículo automóvel, depois de o ter destinado ao abate a sucateiros, a maior parte das vezes desapossado de quaisquer provas de que procedeu ao abate do veículo, muito menos do certificado de destruição ou de desmantelamento qualificado do mesmo, pelo facto da propriedade se encontrar registada junto da CRA e de estar legalmente impedido de promover o «cancelamento da matrícula», iria dever IUC por uma viatura automóvel já abatida há anos ad eternum.
4.26. Em sexto lugar, o artigo 215.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro que aprovou o Orçamento de Estado para 2015, que veio aditar o artigo 17.º-A do CIUC sob a epígrafe «[e]feitos fiscais da regularização da propriedade», apenas aplicável às transmissões de veículos automóveis ocorridas em ou após o dia 1 de Janeiro de 2015, mais não são do que uma «clarificação» das normas de incidência subjetiva do IUC.
4.27. Efectivamente, o artigo 17.º-A não contempla uma regra de incidência subjetiva, mas versa sobre os «[e]feitos fiscais da regularização da propriedade» e principia com «[s]em prejuízo do disposto no artigo 3.º», inferindo-se da redação do artigo que, sem prejuízo da possibilidade de ilidir a presunção derivada do registo, «a alteração da titularidade do direito de propriedade efetuada ao abrigo do procedimento especial para registo de propriedade de veículos adquirida por contrato verbal de compra e venda releva para efeitos de imposto único de circulação, desde a data da transmissão, quando aquele pedido for apresentado pelo vendedor no prazo de um ano após o decurso do prazo para cumprimento do registo obrigatório referido no artigo 2.º daquele procedimento especial».
4.28. Em sétimo lugar, e como que sintetizando o que vem dito na jurisprudência arbitral, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção ilidível, conforme das decisões proferidas nos processos n.º 740/2016-T, 333/2018-T, 236/2019-T, 283/2019-T e 695/2020-T.
4.29. Foram já proferidas variadíssimas decisões arbitrais, designadamente decisões transitadas em julgado, no sentido de que a presunção derivada do registo automóvel não pode deixar de ser entendida como uma presunção ilidível, em especial por força do disposto no artigo 73.º da LGT, por admitir sempre prova em contrário, as quais, em múltiplos, foi alcançada através da junção de documentos comprovativos das transmissões, nomeadamente, de cópias das faturas de venda dos veículos automóveis ali em causa, documentos esses que se juntou como docs. nºs 35 a 68 relativamente a cada uma das viaturas automóveis em discussão.
4.30. Assim sendo, atendendo à documentação suficientemente concludente anexada ao presente Pedido de Pronúncia Arbitral, não resta outra alternativa ao douto Tribunal Arbitral senão concluir que a Requerente não era a real proprietária dos veículos automóveis a que respeitam os actos tributários postos mediatamente em crise e, por isso, não era o sujeito passivo dos IUC (i.e., não está verificada a incidência subjetiva do imposto), pelo que que os mesmos estão inquinados de insanável ilegalidade, por terem sido emitidos ao abrigo de um erro crasso de facto sobre os pressupostos e, portanto, de uma violação flagrante da lei.
4.31. Ilegalidade essa que contamina irremediavelmente o acto de indeferimento do recurso hierárquico por padecer do mesmo vício, e, em consequência, deve ser anulado – o que, nesta sede, expressamente se peticiona.
4.32. Caso se admita que deve singrar a tese da presunção inilidível suportada pela AT – o que, atento o supra exposto, não se concebe e apenas se equaciona por mero dever de ofício -, ou seja, caso o douto Tribunal Arbitral entenda que, ao abrigo do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, o sujeito passivo do imposto deverá ser necessariamente a pessoa em nome da qual se encontre registada a propriedade do veículo automóvel, incluídas as entidades locadoras, sempre se dirá que a interpretação daquela norma, nesses termos, padece de inconstitucionalidade, revelando, pois, a sua desconformidade com o princípio da equivalência consagrado no artigo 13.º da CRP.
4.33. O Tribunal Constitucional (TC) já se debruçou sobre a (in)admissibilidade de presunções inilidíveis no direito fiscal, no que diz respeito à sua (des)conformidade com o princípio da igualdade, subprincípio da capacidade contributiva, no Acórdão n.º 348/97, de 29 de abril de 1997.
4.34. Em conclusão, mesmo que se pudesse interpretar o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC como se de uma presunção inilidível se tratasse, não era possível, contudo, aplicar essa interpretação à situação vertente (entidade locadora), sob pena de manifesta e crassa inconstitucionalidade, ferindo o acto de indeferimento do recurso hierárquico e, em consequência, os atos de liquidação mediatamente impugnados – o que se invoca expressamente nesta sede – com apoio legal no artigo 13.º e 18.º da CRP.
4.35. Em jeito de conclusão, e a par da anulação das liquidações e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, a Requerente peticiona (ainda) que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º da LGT e que a AT seja condenada em custas arbitrais.
4.36. Sabendo de antemão a AT que os veículos automóveis em causa se situavam na esfera jurídica de outrem, não sendo a Requerente a real proprietária, logo, não sendo o sujeito passivo do imposto, e não tendo a primeira emitido as liquidações em nome dos verdadeiros proprietários, prevalece, sem mais, o direito da segunda aos juros indemnizatórios nos termos legais, contados desde o pagamento (indevido) dos IUC.
4.37. Caso assim não se entenda, sempre se dirá que os juros indemnizatórios serão devidos, pelo menos, a partir do indeferimento da reclamação graciosa, tal como aventado na já citada decisão proferida no âmbito do processo n.º 695/2020-T e ainda nas decisões dos processos n.ºs 258/2017-T e 462/2019-T.
5. Em 26 de Setembro de 2025, após notificação à Requerida para apresentação de resposta, a mesma apresentou-a, bem como juntou o respectivo processo administrativo, invocando em síntese o seguinte:
5.1. A posição da AT assenta na linha de argumentação, de que – nos anos em que se tornaram exigíveis aqueles IUC – a propriedade dos veículos automóveis ainda estava registada na CRA em nome da Requerente, apesar de os mesmos terem sido objeto de contrato de locação financeira, cf. documentos junto aos autos, e a de que a falta de registo destes contratos no momento da exigibilidade dos IUC, determina que estes sejam assacados à Requerente.
5.2. Não subscreve os argumentos que insinuam que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece uma «presunção ilidível de incidência subjetiva» do imposto com base apenas no registo automóvel, desde logo, porque os efeitos do registo automóvel e o princípio da equivalência não apontam nessa direção, mas também porque esta proposta hermenêutica não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis, nos termos dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 9.º do Código Civil.
5.3. A questão apresentada pela Requerente, com o devido respeito, não faz sentido pois a resposta já foi dada e fixada por Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo em recurso para uniformização de jurisprudência, de 26 de Junho de 2024, no processo n.º 159/23.9 BALSB, interposto pela própria requerente.
5.4. A requerente interpôs este recurso para a uniformização de jurisprudência ao abrigo do disposto nos artigos 25.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e no artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi do art.º 25.º, n.º 3 do RJAT, com base em oposição de acórdãos, aí melhor identificados, em que na Decisão Fundamento, o Tribunal Arbitral considerou que o art.º 3.º, n.º 1 do CIUC estabelecia uma presunção ilidível, por oposição à Decisão Recorrida em que o tribunal arbitral considerou que com a nova redação dada a este normativo, pelo Decreto Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, ficou estabelecido que o preenchimento da norma de incidência subjetiva do imposto afere-se em função do elemento registal, não relevando o facto de as propriedades dos veículos já não estarem há muito tempo na esfera jurídica da ora requerente.
5.3. Contextualizando a questão apresentada no presente processo e que foi objeto de elevado contencioso, ao longo dos últimos anos entre a ora requerente e a Administração Tributária sobre a determinação de quem deve ser considerado o sujeito passivo do imposto de IUC, face ao art.º 3.º, n.º 1 do CIUC na redação atual dada pelo Dec. Lei n.º 41/2016, de 01/08, instituiu o referido acórdão do STA na sua conclusão que: "Para efeitos do disposto no artigo 3º nº 1 do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, de 01-08, responde pelo pagamento do imposto a pessoa em nome da qual está registado o veículo à data da verificação do facto tributário, independentemente de nessa data já ter ocorrido transmissão da propriedade para outra pessoa".
5.4. Consequentemente, face à identidade factual subjacente às decisões arbitrais que motivaram este Acórdão com o aqui peticionado, não se compreende a (má) litigância da requerente em não aceitar a decisão do Supremo Tribunal Administrativo que fixou a uniformização da jurisprudência, em recurso por si interposto, sustentado em decisões sobre pedidos e causas de pedir em tudo idênticas, para não dizer iguais, ao peticionado neste processo.
5.5. A regra da incidência subjetiva, no CIUC, encontra-se tipificada no artigo 3.º, redação que sofreu alterações e cujo enquadramento é importante para se compreender a questão, dado que com a entrada em vigor do CIUC alterou-se de forma substancial o regime da tributação dos veículos, passando a propriedade, tal como atestada pelo registo, a ser o elemento definidor das regras de incidência, independentemente do uso ou fruição do veículo. Nesse sentido o imposto passou a ser devido pelas pessoas ou entidades que figuram no registo como proprietários dos veículos.
5.6. Face às diferenças interpretativas existentes e a alguma litigiosidade decorrente desse facto, entendeu o legislador através da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Orçamento do Estado para 2016), conceder ao Governo, pela Assembleia da República, autorização legislativa, para introduzir alterações ao Código do IUC, no sentido de “[d]efinir, com carácter interpretativo, que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito publico ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, no n.º 1 do art.º 3.º”.
5.7. Dessa autorização resultou a aprovação e entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 41/2016 de 01 de agosto, em cujo preâmbulo se afirmou: “(...) o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autoriza que se efetuem, também, alterações ao Código do Imposto Único de Circulação. Sendo estas, igualmente, conexas com a necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto (...)".
5.8. O art.º 3.º, n.º 1 do CIUC passou assim a estabelecer que, “[s]ão sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”.
5.9. Com esta alteração legislativa, ficou evidente que o legislador pretendeu que o sujeito passivo do imposto fosse indiscutivelmente o proprietário constante do registo, independentemente de ser ou não o titular do direito real de propriedade sobre o veículo, de forma a serem ultrapassadas dificuldades de natureza interpretativa que até aí existiam, entendimento este perfilhado pela AT e reiteradamente rejeitado pela requerente, que insistiu na falta de fundamentação da AT e na tese da presunção ilidível prevista no art.º 3.º, nº 1 do CIUC manifestada no presente pedido.
5.10. Ou seja, com a nova redação dada ao art.º 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, o legislador clarificou que o sujeito passivo do imposto é a pessoa em nome de quem está registado o veículo automóvel.
5.11. Consequentemente, ficou definitivamente esclarecido que a norma não contém qualquer presunção de propriedade do veículo decorrente do registo automóvel ou qualquer presunção de incidência subjetiva na determinação do sujeito passivo do IUC, sendo o registo de propriedade automóvel que define a incidência subjetiva do IUC e identifica o sujeito passivo, independentemente da identidade ou da pessoa que tem a propriedade efectiva.
5.12. Concluindo-se que o registo automóvel manifesta-se como um elemento determinante em todo o imposto, relacionando-se com o facto gerador, com a conexão fiscal, com o início do período de tributação e bem assim com todos os elementos essenciais e atinentes à liquidação do imposto.
5.13. A este propósito, veja-se que a jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais fez uma inequívoca distinção entre a redação originária do art.º 3.º n.º 1 do CIUC e aquela que decorreu da alteração operada pelo DL n.º 41/2016, de 01 de Agosto, que, sem entrar na qualificação jurídica da nova redacção, considerou que pelo menos a partir daquela data a lei não contemplava nenhuma presunção, afastando de vez a questão de saber se foi ilidida ou não a presunção, pois ao retirar a parte «os proprietários dos veículos, considerando-se como tais», a alteração operada visou, claramente, passar a incidência subjectiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu efectivo proprietário ou possuidor.
5.14. Na esteira deste entendimento, veja-se a título de exemplos, o Acórdão do STA de 2020-06- 03, no Proc.º 0467/14.0BEMDL 0356/18, e os Acórdãos do TCA-Norte, no processo n.º 00611/13.4BEVIS, no processo 01271/14.OBEPNF e no processo 00888/13.5BEPRT.
5.15. Interpretação esta seguida em várias decisões arbitrais, como no processo 417/2020-T; processo 148/2022-T; processo 256/2020-T; processo 90/2020-T; processo 61/2020-T; processo 410/2020-T; processo 557/2019-T; processo 821/2019-T; e processo 658/2018-T.
5.16. Por fim, esta interpretação veio a ser fixada pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão para a uniformização de jurisprudência, no processo n.º 159/23.9BALSB, interposto pela ora requerente, a que se aludiu supra.
5.17. A factualidade que esteve na base do recurso para uniformização de jurisprudência interposto pela ora requerente, é precisamente a mesma base factual reportada nesta petição, em que todos os veículos em causa foram dados em contratos de aluguer de longa duração «ALD» ou de locação financeira «LSG» e no termo dos respetivos contratos foram adquiridos pelos clientes (locatários), mediante o pagamento de um valor residual, acrescido de despesas e IVA, mas que continuaram registados como propriedade da requerente.
5.18. A questão fundamental de direito identificada pela requerente, que justificou o recurso de uniformização aqui em causa, foi a de saber se o art.º 3.º do CIUC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, contempla ou não uma presunção legal iuris tantum, que seja susceptível de prova em contrário, isto é, se a pessoa em nome da qual está registado o veículo pode afastar a responsabilidade pelo pagamento do imposto caso faça prova de que à data da verificação do facto tributário o veículo já não lhe pertencia.
5.19. Tal como se referiu, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu a favor da Administração Tributária.
5.20. Consequentemente, a não actualização do registo de propriedade do veículo, que é obrigatório nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera do sujeito passivo de IUC, e apenas nela.
5.21. Em conclusão, a falta de registo em nome do novo adquirente (a impulso deste ou do alienante, cf. DL n.º 177/2014) faz com que a incidência subjetiva do IUC se mantenha no titular do direito de propriedade inscrito na Conservatória do Registo Automóvel e seja este o responsável pela liquidação e pagamento do IUC, independentemente da sua alienação, fundamentos pelos quais não se poderia acolher a pretensão da requerente.
5.22. O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º1 do artigo 43.º da LGT, derivado de anulação judicial de um acto de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afetado por erro imputável aos serviços de que tenha resultado pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
5.23. Uma vez que, à data dos factos, a Administração tributária fez a aplicação da lei nos termos em que como órgão executivo está adstrita constitucionalmente, não se pode falar em erro dos serviços nos termos do disposto no artigo 43º da LGT.
5.23. Em consonância, improcede, totalmente, a pretensão da requerente relativamente aos juros indemnizatórios por si peticionados, nos termos do art.º 43.º da LGT, uma vez que não se mostram devidos.
5.26. Nestes termos, deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral; manter-se na ordem jurídica os 201 actos de liquidação de imposto único de circulação, impugnados, no montante global de € 20.726,31, relativos ao período de tributação dos anos de 2022 e de 2023; manter-se os despachos de indeferimento expresso dos recursos hierárquicos n.ºs ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2022...; e em consequência ser a entidade requerida (AT) absolvida do pedido.
6. Por despacho de 27/9/2025 foi a Requerente notificada para informar a que factos pretendia inquirir as testemunhas que arrolou, tendo esta respondido por requerimento de 7/10/2025.
7. Por despacho de 24/10/2025, foi indeferida a inquirição de testemunhas, ao abrigo do art. 90º, nº3, do CPTA, aplicável por força do art. 29º, nº1, c) do RJAT, por se ter considerado, perante os factos indicados pela Requerente, que da mesma não poderia resultar qualquer prova.
8. Por despacho de 31/20/2025, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º e a produção de alegações, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (arts. 16º c) e 29º, nº1, do RJAT), tendo a data para a prolação da decisão final sido fixada, nos termos do n.º 2 do art. 18.º do RJAT, até ao dia 5 de Dezembro de 2025.
II. SANEAMENTO
8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º da n.º 112- A/2011, de 22 de Março (Portaria de Vinculação).
9. Não foram apresentadas excepções, nem existem quaisquer outras questões que impeçam o conhecimento do objecto do processo. Cabe por isso, após a análise da matéria de facto provada e não provada, resolver as seguintes questões de direito que se colocam nestes autos:
— Da ilegalidade dos actos de liquidação de IUC;
— Da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 3º do CIUC.
— Do direito a juros indemnizatórios.
III. FACTOS PROVADOS
10. Analisada a prova documental nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
10.1. A requerente foi notificada para o pagamento das seguintes liquidações de IUC, relativas aos anos de 2022 e 2023:








10.2. Os veículos automóveis acima referidos foram dados pela Requerente em contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira às pessoas abaixo identificadas que depois adquiriram esses veículos, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA, nos termos da seguinte listagem:









10.3. À data em que se venceu a obrigação de pagar o IUC associado ao respectivo veículo, os veículos referidos supra não se encontravam na posse da Requerente.
10.4. A AT veio exigir o pagamento das referidas liquidações de IUC à Requerente.
10.5. Em 11/12/2023, a Requerente apresentou o recurso hierárquico nº ...2023... contra o indeferimento da reclamação graciosa onde solicitava a anulação de 37 actos de liquidação de IUC no montante de € 3.294,37, tendo o referido recurso hierárquico sido indeferido.
10.6. Em 19/2/2024, a Requerente apresentou o recurso hierárquico nº ...2024... contra o indeferimento da reclamação graciosa onde solicitava a anulação de 41 actos de liquidação de IUC no montante de € 4.208,08, tendo o referido recurso hierárquico sido indeferido.
10.7. Em 9/4/2024, a Requerente apresentou o recurso hierárquico nº...2024... contra o indeferimento da reclamação graciosa onde solicitava a anulação de 15 actos de liquidação de IUC no montante de € 1.370,07, tendo o referido recurso hierárquico sido indeferido.
10.8. Em 8/5/2024, a Requerente apresentou o recurso hierárquico nº ...2024... contra o indeferimento da reclamação graciosa onde solicitava a anulação de 19 actos de liquidação de IUC no montante de € 1.820,81, tendo o referido recurso hierárquico sido indeferido.
10.9. Em 2/10/2024, a Requerente apresentou o recurso hierárquico nº ...2024... contra o indeferimento da reclamação graciosa onde solicitava a anulação de 25 actos de liquidação de IUC no montante de € 2.367,60, tendo o referido recurso hierárquico sido indeferido.
10.10. Em 16/10/2024, a Requerente apresentou o recurso hierárquico nº ...2024... contra o indeferimento da reclamação graciosa onde solicitava a anulação de 23 actos de liquidação de IUC no montante de € 2.441,06, tendo o referido recurso hierárquico sido indeferido.
10.11. Em 7/11/2024, a Requerente apresentou o recurso hierárquico nº ...2024... contra o indeferimento da reclamação graciosa onde solicitava a anulação de 30 actos de liquidação de IUC no montante de € 4-050,41, tendo o referido recurso hierárquico sido indeferido.
10.12. Em 6/5/2025, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral, que deu origem aos presentes autos, no qual solicita a declaração de ilegalidade dos actos de indeferimento expresso dos recursos hierárquicos n.ºs ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024..., 3433202210000529 e mediatamente dos 201 actos de liquidação de IUC, relativamente aos referidos 201 veículos automóveis, no montante global de € 20.726,31.
IV- FACTOS NÃO PROVADOS:
11. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.
V- FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
12. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de seleccionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artº 123º, nº 2 do CPPT e artigo 607º, nº 3, aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110º, nº 7 do CPPT, bem como o processo administrativo e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.
VI. MATÉRIA DE DIREITO
— DA ILEGALIDADE DOS ACTOS DE LIQUIDAÇÃO DE IUC
13. Refere o art. 3º do Código do IUC o seguinte:
“Artigo 3.º
Incidência subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.
2 - São equiparados a sujeitos passivos os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.
3 - É ainda equiparada a sujeito passivo a herança indivisa, representada pelo cabeça de casal.
Por sua vez, o art. 6º, nº1, CIUC dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Facto gerador e exigibilidade
1. O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”.
Na decisão proferida no processo 740/2016-T, da autoria do signatário, considerou-se que o art. 3º, nº1, CIUC consagrava uma mera presunção, que poderia ser ilidida ao abrigo do art. 73º LGT, demonstrando, através das facturas de venda, que a propriedade constante do registo não corresponderia à propriedade efectiva, e que nesse caso a liquidação do IUC deveria ser efectuada ao proprietário efectivo.
Essa posição foi igualmente assumida na decisão do CAAD de 6/12/2018, processo 261/2018-T, onde se refere o seguinte:
"Na senda do referido na decisão 43/2014-T, que aqui seguimos de perto, “verifica-se, a título de exemplo, que nos artigos 243.º, n.º 3, do Código Civil e 45.º, n.º 6, e 89.º-A, n.º 4, da Lei Geral Tributária, também é utilizada a expressão “considera-se”, e no entanto, estamos perante presunções legais pelo que, de acordo com as normas gerais de interpretação prevista no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, considera-se que está assegurado o mínimo de correspondência verbal, para efeitos da determinação do pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma em apreço – elemento literal”.
Ou seja, ambas as expressões têm sido usadas pelo legislador sem que com isso, se possa concluir que este não quis estabelecer, de facto, uma presunção legal, não podendo retirar que a alteração da expressão pudesse levar a um sentido interpretativo distinto.
Por outro lado, como se extrai da aludida decisão 43/2014-T “ainda no âmbito dos elementos da interpretação de acordo com o artigo 9.º do Código Civil, importa atender ao elemento histórico. Assim, recordando o Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de dezembro e o Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de maio, no que diz respeito à incidência subjectiva foi prevista a presunção de que os sujeitos passivos de IUC são as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da liquidação”.
Por outro lado, considerando o elemento racional e teleológico, o IUC tem como pressuposto o custo ambiental e viário da utilização efetiva do automóvel. O IUC tem, portanto, subjacente o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CIUC, com vista a “onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
Dando assim cumprimento ao comando constitucional, previsto no artigo 66.º, em que o desenvolvimento sustentável, importa que o Estado assegure “que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com a protecção do ambiente e qualidade de vida” (al. h) do n.º 2).
Promovendo um princípio de “poluidor-pagador”, cumprindo pressuposto de igualdade material entre todos os cidadãos que dão causa ao custo ambiental, corporizando, desta forma o IUC as preocupações ambientes que à política fiscal se impõem.
Assim sendo, também de acordo com este elemento o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC deve ser interpretado no sentido de estar em causa uma verdadeira presunção".
A mesma posição ocorreu na decisão do CAAD de 29/11/2019, processo 271/2018-T, onde se refere o seguinte:
" Em suma, em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante. A título de exemplo, refere JORGE LOPES DE SOUSA que no artigo 40.º, n.º 1, do CIRS, se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46.º, n.º 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.
Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC.
Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria. Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel.
Nesta conformidade, considerando os elementos de interpretação da lei referidos, somos conduzidos à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exatamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível. Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo.
Por último, cumpre atender, na presente análise, ao valor jurídico do registo automóvel. Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 1.º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Acrescenta ainda o artigo 7.º do Código do Registo Predial que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. O registo de propriedade automóvel não tem, portanto, natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Logo, a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário. E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, salvas as exceções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo.
Em suma, o registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto. No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer exceção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo; do mesmo modo, o titular inscrito no registo deixará de ser o proprietário, pese embora ainda possa constar, por algum tempo ou mesmo muito, do registo como tal".
Esta posição, que considerávamos a mais correcta na jurisprudência arbitral, foi, no entanto, recentemente posta em causa pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 26/6/2024, processo n.º 0159/23.9BALSB, que uniformizou a jurisprudência no seguinte sentido:
“Para efeitos do disposto no artigo 3º nº 1 do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, de 01-08, responde pelo pagamento do imposto a pessoa em nome da qual está registado o veículo à data da verificação do facto tributário, independentemente de nessa data já ter ocorrido transmissão da propriedade para outra pessoa”.
A prevalecer esta interpretação efectuada pelo STA neste Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, teríamos que dar razão à Requerida. Resta, porém, averiguar se esta interpretação do art. 3º, nº1, do CIUC se pode considerar em conformidade com a Constituição, o que iremos examinar no ponto seguinte.
DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 3º DO CIUC.
14. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 26/6/2024, processo n.º 0159/23.9BALSB, foi tirado pela maioria mínima. com vários votos de vencido, onde se salienta a inconstitucionalidade da interpretação que a tese que fez vencimento atribuiu ao art. 3º, nº1, do CIUC.
Neste âmbito cita-se a declaração de voto do Senhor Conselheiro Nuno Bastos, a qual foi igualmente acolhida pela Senhoras Conselheiras Fernanda de Fátima Esteves e Isabel Marques da Silva:
"E não vejo como se pode considerar, à partida, assegurada a conformidade com os princípios constitucionais de um sistema de tributação que sobrepõe a eficiência à justiça fiscal (no pressuposto de que se possa considerar eficiente até um sistema que não assegure a justiça na tributação).
Nem que se possam considerar proporcionadas as soluções legislativas que se traduzam em atender aos dados do registo mesmo quando não sejam adequados a manifestar a riqueza que justifique a tributação nem necessários para identificar o seu titular. Como sucede quando a administração sabe (por se encontrar documentado), não só que o proprietário registado não é o verdadeiro proprietário, mas também quem é o verdadeiro proprietário.
E é aqui que, a meu ver, está o problema fundamental do caso: os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva do sujeito (é, de resto, o que resulta do artigo 4.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária).
Mesmo que o princípio da equivalência seja convocado para a determinação da medida da tributação (nomeadamente para atender a finalidades extrafiscais), parece que não pode prescindir-se da capacidade contributiva como pressuposto da tributação.
Ora, ao considerar como sujeito passivo o titular do registo o legislador permite que prevaleçam os dados do registo sobre a realidade tributária do sujeito (não só em situações limite, em que seja desconhecido o verdadeiro proprietário, mas também naquelas em que se sabe quem é o verdadeiro proprietário e, por isso, o titular da riqueza).
E um imposto que remeta para uma base de dados do registo sem atender ao seu significado e sem se importar com o facto de não traduzir nenhuma manifestação de riqueza não é, a meu ver, compatível com tal princípio, até porque não está muito longe de um imposto de capitação.
Por isso, concluiria pela inconstitucionalidade do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, na parte em que considera sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos e que não sejam os verdadeiros proprietários dos mesmos".
A inconstitucionalidade desta interpretação foi igualmente acolhida no recente Acórdão do Tribunal Constitucional nº 1013/2025, de 5 de Novembro de 2025, que decidiu "julgar inconstitucional a norma constante do artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, na redação resultante do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01 de agosto, na interpretação segundo a qual o imposto deve incidir sobre as pessoas em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, abstraindo de quem é o seu efetivo proprietário, por violação do disposto no artigo 13.º, n.º 1, e 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa".
Na fundamentação desta decisão, em relação à violação do princípio da igualdade, constante do art. 13º da Constituição, sustenta o Tribunal Constitucional que "as exigências decorrentes do princípio constitucional da igualdade, estatuído no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, vedam ao legislador a possibilidade de fixar o IUC sem atender à conduta de quem efetivamente contribui para a deterioração da rede viária e para o impacto ambiental, sob pena de se instaurar uma desigualdade manifesta na tributação. Ora, o registo não é elemento bastante para assegurar, em todos os casos, que o tributado é, de facto, o causador das externalidades negativas em questão, como facilmente se compreenderá. Ainda que se pudesse alegar que o recorte do registo como facto tributário se justificaria por razões de praticabilidade administrativa, facilitando a identificação do sujeito passivo e a arrecadação de receita sem necessidade de prova adicional, a verdade é que a sua desadequação material é evidente, e ofende o princípio da igualdade, na sua dimensão de igualdade tributária, violando o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa".
Por sua vez, em relação à violação dos princípios da equivalência e da capacidade contributiva, refere o Tribunal Constitucional que “não pode deixar de se reconhecer que, ao impor o pagamento ao proprietário registado, sem lhe permitir demonstrar que já não o é, o sistema perde o seu fundamento material, deixando de refletir a correspondência entre o custo causado e o tributo exigido, violando, assim, o princípio da equivalência. Com efeito, a aplicação de métodos presuntivos inilidíveis, que impeçam o contribuinte de demonstrar que não obteve o benefício nem causou o custo correspondente, conduz inevitavelmente à tributação de situações que não revelam qualquer facto gerador de riqueza ou de responsabilidade ambiental, contrariando frontalmente a Constituição”.
Acompanha-se totalmente esta fundamentação, pelo que também se considera inconstitucional o art. 3º, nº1, do CIUC, na interpretação que lhe foi dada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 26/6/2024, processo n.º 0159/23.9BALSB, por violação dos arts. 13º e 103º, nº1 da Constituição.
Em consequência, e em cumprimento do dever imposto a este Tribunal Arbitral pelo art. 204º da Constituição, recusamos a aplicação dessa disposição interpretada nesses termos, pelo que em consequência teremos que anular por ilegalidade as decisões de indeferimento dos recursos hierárquicos e os actos de liquidação do IUC.
DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A Requerente solicita ainda o direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43º, nº1, da LGT, sustentado ter existido um erro imputável aos serviços.
É manifesto, no entanto, que não existe qualquer erro desse tipo, uma vez que a AT se limitou a aplicar a lei, de acordo com a interpretação que viria a ser uniformizada, não tendo examinado a sua constitucionalidade.
A situação cabe, por isso, antes no art. 43º, nº3, d) que prevê o débito de juros indemnizatórios "em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução".
A jurisprudência tem entendido que nestes casos o pagamento de juros deve ocorrer desde a data em que ocorreu o pagamento indevido até à data em que vier a ser emitida a nota de crédito relativamente ao tributo em causa, nos termos do art. 61º, nº3, do CPPT, independentemente da pronúncia do Tribunal Constitucional no caso concreto. Neste sentido, cfr. Acs. STA 10/4/2024, processo 0845/17.2BELRS, 11/7/2024, processo 0697/14.4BELRS, e 15/1/2025, processo 0107/22.3BELRS.
Pelo que terá a Requerente direito aos juros indemnizatórios nos termos dessa disposição.
VII. DECISÃO
15. Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral:
— Considerar inconstitucional a norma constante do artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, na redação resultante do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01 de Agosto, na interpretação segundo a qual o imposto deve incidir sobre as pessoas em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, abstraindo de quem é o seu efectivo proprietário, por violação do disposto no artigo 13.º, n.º 1, e 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, recusando consequentemente a sua aplicação, nos termos do art. 204º da mesma Constituição.
— Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das decisões de indeferimento dos recursos hierárquicos, procedendo consequentemente à sua anulação.
— Julgar procedente o pedido de anulação das liquidações de IUC no que diz respeito aos períodos de tributação e veículos acima identificados, determinando-se a restituição dos impostos pagos.
— Julgar procedente o pedido de condenação em juros indemnizatórios desde a data de pagamento do imposto até ao momento em que for emitida a respectiva nota de crédito.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se ao processo o valor de € 20.726,31 (vinte mil, setecentos e vinte e seis euros e trinta e um cêntimos), de acordo com o disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º- A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT.
CUSTAS
Custas no montante de € 1.224,00 (mil, duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Requerida, por ter sido total o seu decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifiquem-se as partes e o Ministério Público, este último para os efeitos do art. 70º, nº1, a) da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
Lisboa, 16 de Novembro de 2025
O Árbitro
(Luís Menezes Leitão)