SUMÁRIO:
I. Conforme dispõe o artigo 18.º do CIRC, os rendimentos e gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação a que respeitem. As componentes respeitantes a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.
II. Por aplicação do princípio da periodização económica, deve ser registada a imparidade de um crédito sobre devedor insolvente com referência à data de decretamento da insolvência, que, no caso, ocorreu no período de tributação de 2020.
III. Tendo a Requerente optado por repartir o registo da perda por imparidade do crédito desse devedor, em partes iguais, por dois exercícios económicos – 2020 e 2021 – incumpriu parcialmente o regime da periodização previsto no artigo 18.º do Código do IRC.
IV. Na circunstância em que a inobservância da regra da periodização resulta, como no caso, de uma atuação intencional do sujeito passivo, não sendo neutra fiscalmente, quer ao nível da dedução de benefícios fiscais, quer de tributações autónomas, não é aceitável a transferência de resultados entre exercícios, nem a invocação da supremacia do princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios.
V. Os dispêndios em alojamento hoteleiro para gozo de férias da família do sócio-gerente não constituem gastos fiscalmente dedutíveis.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. Em 31/03/2025, o sujeito passivo de IRC A..., Lda., NIF..., com sede na Rua ..., ...-... ..., concelho de Viana do Castelo, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante RJAT), a constituição de Tribunal Arbitral com designação dos árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º, ambos do referido diploma.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 02/04/2025 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida) no dia 07/04/2025.
3. Foram designados os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Dr. Jesuíno Alcântara Martins (vogal) e Prof. Doutor Daniel Taborda (vogal relator) pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Coletivo. Os árbitros aceitaram o encargo nos termos legalmente previstos.
4. O Tribunal Arbitral foi constituído em 11/06/2025 e no mesmo dia proferiu despacho a ordenar a notificação da Requerida para apresentar a sua resposta.
5. A AT apresentou a sua resposta em 01/09/2025, da qual constava a alegação de que o pedido de pronúncia arbitral (PPA) não preenchia nem satisfazia os pressupostos legais de aceitação, sendo omisso em relação à pretensão da Requerente, com violação do artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, devendo, consequentemente, ser declarado inepto, conforme resulta do artigo 186.º do Código de Processo Civil (CPC).
6. Por despacho de 03/09/2025, a Requerente foi convidada a aperfeiçoar o PPA, com a indicação do que pretendia alcançar.
7. No dia 09/09/2025, a Requerente apresentou o aperfeiçoamento do PPA.
8. Por despacho de 11/09/2025, a Requerida foi convidada a pronunciar-se sobre o aperfeiçoamento do PPA, o que aconteceu em 23/09/2025. A Requerida considerou suprida a ineptidão e, no mais, sustentou que o PPA aperfeiçoado se reconduzia à mera repetição do original, pelo que conclui como na resposta.
9. A Requerente apresentou requerimento para substituição de uma testemunha, o que foi deferido em 17/09/2025 por despacho arbitral. Por despacho de 12/09/2025, determinou-se a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT no dia 22/10/2025, às 10:30, para produção de prova testemunhal.
10. Em 22/10/2025, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, com inquirição de três testemunhas indicadas pela Requerente e de uma testemunha da Requerida. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas e a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente até ao termo do prazo de alegações. O Tribunal fixou o prazo para a decisão até ao termo previsto no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT (v. ata e gravação áudio disponíveis no SGP do CAAD).
11. A Requerente apresentou alegações em 05/11/2025 e a Requerida em 06/11/2025.
12. A Requerente pretende que o Tribunal Arbitral declare a “nulidade da liquidação adicional de IRC” relativamente ao ano de 2021 n.º 2024..., a liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., a liquidação de estorno n.º 2022... e ainda a liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., que resultaram do procedimento inspetivo levado a efeito com suporte na OI2024..., tudo no valor de € 85 267,98, “com a consequente anulação total das mesmas por ilegais”.
I.1 - Posição da Requerente
A Requerente não aceita as correções técnicas relativas à desconsideração de dois tipos de gastos fiscais no exercício de 2021: imparidades em créditos sobre clientes (A) e gastos com alojamento hoteleiro (B).
A – Imparidades em créditos sobre clientes
1. Em 2018 e 2019, a Requerente recorreu aos serviços de intermediação do seu cliente B... para prestar serviços de soldadura naval na Holanda.
2. Estes serviços foram faturados ao cliente B... totalizando em 2018 €649 579,66 e em 2019 €87 645,79.
3. Em finais de 2019 foi atingido o limite de crédito possível de ser concedido ao cliente por imposição bancária. Os contactos frequentes com o representante do cliente (Sr.C...) eram no sentido de encontrar soluções para o pagamento da dívida no total de €687 225,45.
4. O processo de insolvência do cliente declarado em 2020 surpreendeu a Requerente, a quem aquele sempre prometeu pagar a dívida.
5. No encerramento de contas de 2020, a Requerente registou uma perda por imparidade de €343 612,72, representando 50% da totalidade da dívida. Assim o refere no ponto 11 do PPA: “No final de 2020, no seu encerramento de contas anual, atendeu essencialmente ao critério da antiguidade dos vencimentos, levou em consideração tudo o que resultava das negociações em curso, também da sentença declaratória inicial da situação de insolvência, e avaliou o seu risco de incobrabilidade da dívida em 50% do total”.
6. No encerramento de contas de 2021, dando como incobrável a totalidade da dívida, reforçou a imparidade nos restantes 50%.
7. A AT desconsiderou o gasto fiscal relativo à constituição da imparidade de 50% da dívida em 2021 (€343 612,72). Para a AT, dado que a insolvência fora declarada em 2020, a imparidade total da dívida deveria ter sido reconhecida nesse ano, pelo que o gasto com o reforço da imparidade em 2021 viola o princípio da periodização económica.
8. A Requerente alega que não considerar uma primeira evidência de incobrabilidade (a insolvência do cliente) não pode ter consequências fiscais, uma vez que “As regras contabilísticas constantes das NCRF são regras puramente contabilísticas, não normas de incidência fiscal camufladas e muito menos normas de incidência fiscal que possam ser invocadas para a liquidação de impostos, como foi o caso dos autos”.
9. Segundo a Requerente, o que o artigo 28.º-B do CIRC faz é estabelecer “algumas das situações em que se considera fundamentado o juízo de incobrabilidade, processo de insolvência do devedor, processo de insolvência, PER ou processo de recuperação por via extrajudicial; ou de que o crédito tenha sido reclamado judicialmente ou em tribunal arbitral, ou estejam em mora com vencimentos há mais de seis meses, 12, 18 ou 24 meses, para efeitos dos limites das perdas por imparidade por créditos duvidosos”. E que “a adoção de um só destes indicadores, como o faz nos presentes autos a AT no RIT, a de declaração de insolvência do devedor, e com a determinação que apenas as imparidades constituídas nesse mesmo ano são aceitáveis fiscalmente, vai contra todo o sistema de indicadores elegíveis e consagrados na lei fiscal, artigos 28-A e 28-B do CIRC, tornando de uso obrigatório o que apenas são indicadores da existência e da fundamentação de um risco de incobrabilidade a ser apreciado, estimado, objeto de julgamento por parte da administração da contribuinte e dos preparadores da contabilidade”.
10. Defende, pois, que “Mesmo o critério de declaração de insolvência é por si só inválido e insuficiente para determinar se a imparidade deve ser reconhecida, sobre que montante, e quando. Já que é quase intuitivo de que a simples declaração da situação de insolvência nada mais pode significar que um início de um processo de liquidação universal do património do devedor em benefício de todos os credores, que pode não ter continuidade (…)”. Neste caso concreto, “a devedora B... foi simplesmente declarada insolvente em 2020” e “Não sendo certo em 2020 de que a insolvência não fosse levantada através de um qualquer processo de revitalização ou equivalente, ou de um plano de pagamentos mais ou menos compreensivo, e não sendo previsível qual o resultado da liquidação dos bens da devedora e se seriam ou não suficientes para o pagamento da dívida”. Logo, “o melhor juízo da administração da contribuinte foi o de que pelo menos 50% da dívida seria recuperável. Pelo que reconheceu uma imparidade dos demais 50% para os quais considerou existir um risco de incobrabilidade acrescido”.
11. Prossegue que “o reconhecimento do risco de incobrabilidade em 50% no ano em que foi declarada a situação inicial de insolvência, sem mais, e 50% no ano seguinte, de acordo com a avaliação ou estimativa da gerência, não constitui qualquer violação da NCRF nº 27, designadamente do seu parágrafo 24, nem constitui qualquer violação do princípio do acréscimo ou da especialização dos exercícios como caraterizada nos artigos 18º e 28-A e 28-B do CIRC”. Adicionalmente, refere que desconsideração do gasto em 2021 viola o princípio da justiça que, segundo a Jurisprudência, deve prevalecer sobre o princípio da especialização dos exercícios.
12. Em alegações finais, a Requerente salientou que as testemunhas confirmaram que, em 2020, as negociações e diligências para cobrar a dívida ainda estavam em curso, que o sócio e único gerente do cliente holandês B... esteve sempre disponível e em contacto regular prometendo que iria pagar toda a dívida e que só teve conhecimento da declaração de insolvência em 2021, “Pelo que em 2020 o reconhecimento da imparidade, do possível desajustamento entre o valor registado do crédito sobre o cliente e uma estimativa do valor provável de recebimento, se deveu à antiguidade do saldo vencido, e na convicção de que pelo que então se sabia, o crédito iria ser cobrado, totalmente, ou pelo menos parcialmente”. Aduz que “Na Holanda, como entre nós, à declaração de insolvência não se segue inevitavelmente a conclusão de que nada se vai receber do devedor insolvente, só com o desenvolvimento da liquidação e do seu resultado final tal virá a resultar com certeza. Pelo que, mesmo que a Requerente soubesse da declaração de insolvência em 2020, o que não sabia ou soube, ainda assim na estimativa da gerência, que a presumia e deve presumir-se como legítima e boa, a imparidade a reconhecer deveria apenas ser de 50% do montante da dívida”. Por fim, argumenta que a desconsideração do gasto fiscal em 2021 traduz “um extremo o formalismo do princípio da especialização dos exercícios ou do acréscimo, em sobreposição do princípio da justa tributação fiscal de acordo com o rendimento realmente obtido”.
13. Assim, para a Requerente, o reforço da imparidade em 50% no exercício de 2021, dando como incobrável a totalidade da dívida, deve ser aceite como gasto fiscal desse período.
B - Gastos com alojamento hoteleiro
1. Em 2021, a Requerente suportou € 8 573,04 com alojamento num hotel do Algarve, contabilizando-os como ofertas a clientes. Alega que se tratou de um erro na contabilização da fatura, porque os hóspedes não eram clientes.
2. Segundo a Requerente, a despesa refere-se a prémios atribuídos a dois trabalhadores, que, em conjunto com os seus familiares, foram os hóspedes do hotel.
3. Em alegações finais, a Requerente salientou que a testemunha Dr. D..., contabilista certificado que é responsável pela contabilidade, assumiu que registara a fatura com o alojamento como despesas com clientes, ao invés de remunerações ao pessoal (prémios de desempenho), por lapso de informação. E que todas as testemunhas comprovaram que duas beneficiárias desse prémio - a Eng. E... e a Dra. F..., diretora geral e diretora financeira - tinham contrato de trabalho celebrado com a Requerente.
4. Assim, para a Requerente, aquele montante deve ser considerado um gasto aceite fiscalmente, previsto no artigo 23.º do CIRC.
I.2 - Na sua Resposta, a AT invocou o seguinte:
1. O ato tributário impugnado resulta das conclusões do procedimento inspetivo à Requerente, em que não se aceitaram como gastos fiscais a perda por imparidade em dívidas a receber e a despesa suportada com o alojamento hoteleiro.
2. Sobre a ineptidão da petição inicial, após aperfeiçoamento do PPA pela Requerente, a Requerida considerou tal exceção sanada.
3. Relativamente às perdas por imparidades em créditos, a Requerida invoca que, segundo os parágrafos 24 e 25 da NCRF 27, deve ser reconhecida uma imparidade “na data de relato sempre que exista evidência objetiva de um evento de perda que afete os fluxos de caixa futuros do ativo financeiro”. E que a declaração formal de falência em março de 2020 constitui um evento de perda evidente, exigindo o reconhecimento da imparidade no exercício de 2020 no valor de € 687.225,45. Para além do modelo da dependência parcial que carateriza a relação entre as normas fiscais e as normas contabilísticas, no CIRC, a verificação objetiva do risco de incobrabilidade decorre da “existência de processo executivo, de insolvência, de revitalização (PER), ou procedimento extrajudicial ao abrigo do SIREVE, conforme estabelecido no Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto”.
4. Adicionalmente, ao abrigo do regime de periodização económica (artigo 18.º do CIRC), não se admite o reconhecimento, ainda que parcial, de perdas por imparidade como gastos de outros períodos de tributação, que não daqueles em que se verificaram as condições para o seu reconhecimento.
5. O registo de apenas 50% da perda por imparidade no exercício de 2020 traduz-se numa “omissão de perdas contabilísticas referentes a períodos anteriores, resultante de uma opção voluntária”, pelo que “não pode resultar no reconhecimento daqueles gastos com perdas por imparidade no resultado contabilístico de 2021, período em que a Requerente decide, discricionariamente, desrespeitando as regras contabilísticas, reconhecer 50% daquela imparidade”.
6. A AT mostra ainda que o IRC liquidado relativo ao exercício de 2020 foi nulo. E que se a imparidade fosse constituída na totalidade, haveria prejuízo fiscal, impossibilitando a dedução à coleta de benefícios fiscais (SIFIDE e CFEI II) e agravando as taxas de tributação autónoma, com impacto no IRC a pagar.
7. Em alegações finais, a AT salienta que “do depoimento das testemunhas arroladas pela Requerente não resulta provado que só teriam tido conhecimento da situação de falência do devedor em 2021. Ainda que essa situação de falência tivesse sido conhecida em 2021, ainda assim poderia ser efetivamente declarada em 2020, quer na declaração normal relativa a esse ano quer por via de uma declaração de substituição”. A contabilização da perda por imparidade no exercício de 2020, de €343.612,72, teria como consequência o apuramento de um resultado líquido negativo de 180 371,66 (€163.241,06 – 343.612,72) e de um prejuízo fiscal de 176 865,02 (166.747,70 – 343.612,72). Esta opção voluntária em omitir gastos com perdas por imparidade de 2020, transferindo-os para 2021, traduziu-se “numa efetiva lesão para o erário público, quantificada em €9.338,69 - não incluindo juros compensatórios” - porque “as tributações autónomas deixariam de ascender a €20.552,14, passando a ser agravadas para €29.890,83”).
8. Relativamente aos gastos com alojamento em hotel, a AT argumenta que dos onze hóspedes, distribuídos por quatro alojamentos, apenas dois eram trabalhadoras da empresa e que não foram registados em contas de gastos com o pessoal nem sujeitos a tributação em IRS na esfera dos beneficiários. Tendo estes gastos sido contabilizados em ofertas a clientes, e não sendo os beneficiários clientes da empresa, afasta-se a sua dedutibilidade fiscal por incumprimento do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC.
9. Em alegações finais, a AT referiu que o contabilista da Requerente testemunhou que contabilizara tal fatura em ofertas a clientes “por não lhe ter sido fornecida qualquer outra explicação para a mesma”, mas, que «nunca “retificou” tal contabilização». Admitiu que nunca os reclassificou em contas de gastos com o pessoal, nem foram “objeto de declaração e sujeição à correspondente tributação nos termos do artigo 2.º do Código do IRS, sendo exigível, por um lado, a declaração da entidade pagadora (através da DMR ou modelo 10) e por outro, a inclusão do rendimento na declaração anual dos beneficiários”.
II. SANEAMENTO
1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a),5.º e 6.º do RJAT.
2. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e encontram-se legalmente representadas.
3. A Requerida invocou a exceção de ineptidão da petição inicial, por entender que a Requerente não formulou no PPA o pedido/pretensão relacionado com a liquidação de IRC à qual imputou vícios. Considera que a identificação do pedido é um requisito essencial da ação arbitral, nos termos do disposto nos artigos 6.º do CPC e 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT e que a sua omissão impossibilita o Tribunal Arbitral de emitir uma pronúncia condenatória.
4. Como já se referiu, por despacho de 3 de setembro de 2025, o Tribunal determinou a notificação da Requerente para aperfeiçoamento do PPA, o que esta concretizou por requerimento apresentado em 9 de setembro de 2025, no qual conclui pelo pedido de:
“declaração de nulidade da liquidação adicional de IRC relativamente ao ano de 2021 n.º 2024..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., da liquidação de estorno n.º 2022... e ainda da liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., com a consequente anulação total das mesmas por ilegais.”
5. O artigo 98.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT indica como nulidade insanável do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial, sem, contudo, esclarecer as situações que configuram essa ineptidão, pelo que se aplica, a título subsidiário (artigos 2.º, alínea e) do CPPT e 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT), o disposto no compêndio processual civil que, no artigo 186.º, rege esta matéria (neste sentido, entre outras, as decisões dos processos arbitrais n.ºs 988/2023 e 1034/2023, que a seguir se acompanham).
6. No artigo 186.º, n.º 1 do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
7. O n.º 3 do mesmo artigo determina que “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
8. Retomando o caso concreto, constata-se que, na sequência do convite ao aperfeiçoamento que lhe foi dirigido pelo Tribunal Arbitral, a Requerente procedeu à reformulação do petitório e deduziu o pedido arbitral de “declaração de nulidade” dos atos tributários, com a “consequente anulação”. Embora tal pedido seja imperfeito, pois confunde nulidade com anulabilidade, que têm distintos regimes (causas e efeitos jurídicos – v. artigos 161.º a 163.º do CPA), é percetível que a Requerente pretende a invalidação de tais atos e são inteligíveis as razões subjacentes, como veio a ser reconhecido pela Requerida que considerou a exceção sanada. Conclui-se, assim, estarmos perante pedido idóneo ao meio processual – ação arbitral tributária –, como decorre do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o que se afigura suficiente a este Tribunal para o prosseguimento da ação.
9. Acresce salientar que a Resposta da Requerida evidencia que esta compreendeu o teor do PPA e dos fundamentos nele vertidos, pugnando pela manutenção na ordem jurídica dos atos tributários impugnados, pelo que a exceção sempre seria improcedente nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 3 do CPC.
10. Por fim, de referir que, contrariamente ao que a Requerida afirma, o Tribunal Arbitral não emite pronúncias condenatórias. As ações de impugnação de atos tributários, como a ação arbitral, têm por objetivo a anulação desses atos, sendo a anulação uma pronúncia constitutiva e não condenatória (v. artigo 10.º do CPC).
III. MATÉRIA DE FACTO
III.1 - Factos provados
Estabelece-se, de seguida, a matéria factual relevante para a decisão, depois de examinada a prova documental e testemunhal:
1. Em 2018 e em 2019, a Requerente faturou serviços de soldadura naval prestados na Holanda à sociedade holandesa B... B.V. (B... BV), totalizando, respetivamente, €649 579,66 e €87 645,79, que, até hoje, não foram pagos – conforme Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) com o acordo da Requerente.
2. Os serviços em causa foram prestados a clientes dessa sociedade B... BV, cujo sócio-gerente, C..., intermediava os contactos realizados com as entidades que detinham os navios nos quais os funcionários da Requerente realizavam os trabalhos especializados de soldadura que lhe tinham sido subcontratados – conforme contrato celebrado entre a Requerente e a B... BV anexo ao RIT e de acordo com o depoimento das testemunhas.
3. Em dezembro de 2018, a Requerente, através da sociedade de advogados G..., de Roterdão e do seu advogado/mandatário holandês Sr. H..., iniciou um contencioso na Holanda, relativo a processo cautelar para execução de uma penhora contra a B... BV, para cobrança de fatura em dívida, cuja petição foi apresentada em 20/12/2018 – conforme documentos anexos ao RIT.
4. A referida sociedade de advogados holandesa, acompanhou o processo judicial de tentativa de cobrança ao longo de 2019 e de 2020, e remeteu à Requerente documentos diversos, de que se destaca uma certidão da Câmara de Comércio holandesa (equivalente ao Registo Comercial) da sociedade B... , datado de 21/04/2020, que menciona que esta sociedade terminou a sua atividade em 03/03/2020, em virtude de declaração de insolvência com efeitos a essa data – conforme documentos anexos ao RIT.
5. Em finais de 2019, a dívida ascendia a €687 225,45, tendo sigo atingido o limite de crédito bancário com referência àquele cliente – conforme RIT e de acordo com a Requerente.
6. No encerramento de contas referente ao período de tributação de 2020 (que ocorreu no início de 2021), a Requerente avaliou o risco de incobrabilidade da dívida em 50%, registando uma imparidade de €343 612,72. No encerramento de contas de 2021, dando como incobrável a totalidade da dívida, reforçou a imparidade nos restantes 50% – conforme RIT e de acordo com a Requerente.
7. A Requerente registou em gastos do exercício de 2021 despesas de alojamento num hotel do Algarve de €8 573,04. Contabilizou estas despesas como ofertas a clientes, embora sustente constituírem um prémio atribuído a trabalhadores. Apesar do erro, nunca reclassificou o gasto, nem aquele montante foi declarado ou sujeito a tributação em IRS na esfera dos beneficiários – conforme RIT e de acordo com o depoimento do contabilista da Requerente.
8. A coberto da ordem de serviço n.º OI2024... de 29/01/2024, a Direção de Finanças de Viana do Castelo levou a cabo uma ação inspetiva externa, para o ano de 2021, resultando em correções aritméticas à matéria coletável de IRC de €352 185,76, correspondentes à não aceitação dos gastos referidos supra (€343 612,72 e €8 573,04) – conforme RIT.
9. Na sequência das conclusões do procedimento inspetivo suprarreferido, os serviços elaboraram a liquidação de adicional de IRC n.º 2024..., a liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., a liquidação de estorno n.º 2022 ... e ainda a liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., tudo no valor de € 85 267,98, com data limite de pagamento de 05/02/2025 – conforme documentos 1 e 2 juntos pela Requerente.
10. Inconformada com a liquidação de IRC supra identificada e dos juros compensatórios correlativos, a Requerente apresentou no CAAD, em 31 de março de 2025, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral na origem da presente ação – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.
III.2 - Factos não provados
1. Não se provou que no ano 2019 e 2020 existiam expetativas razoáveis de cobrança dos valores faturados por parte da Requerente e que o relacionamento com a sociedade devedora era “aberto e cordial”, existindo indícios incontestáveis do contrário.
2. Com efeito, logo em finais de 2018, a Requerente, receosa do não recebimento do valor de €649 579,66, propôs uma providência cautelar contra a sociedade devedora na Holanda, para tentar acautelar e garantir a dívida, tendo-se demonstrado que, mesmo nessa data, já foi demasiado tarde, pois a entidade não tinha património para solver as suas dívidas e acabou por ser decretada insolvente em 03/03/2020. Ora, a iniciativa de propositura de uma providência cautelar, de natureza antecipatória/conservatória, revela que a Requerente tinha sérias dúvidas de que iria receber, pelo que encetou, de imediato, o caminho dos tribunais. Também não se provou que os contactos com o sócio-gerente da empresa fizessem antever que a dívida seria saldada e que a declaração de insolvência tenha surpreendido a Requerente. Na verdade, dado o desenvolvimento da providência cautelar pedida ainda em 2018, processo de natureza urgente que se revelou improdutivo, o desfecho da insolvência não era menos do que possível (para não dizer provável).
3. De igual modo, não se provou que o valor de € 8 573,04 relativo a uma fatura de hotel de alojamento da esposa do sócio-gerente da Requerente e familiares respeitasse ao pagamento de prémios/remuneração a trabalhadores da Requerente.
4. Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
III.3 - Motivação
Para a convicção dos árbitros foi essencial a prova documental junta aos autos, que evidenciou com clareza que a Requerente estava ciente do risco de incobrabilidade do seu crédito logo em 2018, pela correspondência e documentação enviada pela sociedade de advogados holandesa contratada para efetivar a recuperação do crédito. Os depoimentos das testemunhas arroladas pela Requerente (I..., técnica financeira e responsável pelo departamento administrativo da Requerente, F..., gestora financeira da Requerente, e D..., contabilista certificado da Requerente), não lograram contrariar o que os documentos revelam. Em relação à AT, os factos estão devidamente suportados pela prova documental constante do RIT.
IV. DO DIREITO
A- Imparidades em créditos sobre clientes
O artigo 28.º-A do CIRC - Perdas por imparidade em dívidas a receber estabelece que:
1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores:
a) As relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade;
(…)
3 - As perdas por imparidade e outras correções de valor referidas nos números anteriores que não devam subsistir, por deixarem de se verificar as condições objetivas que as determinaram, consideram-se componentes positivas do lucro tributável do respetivo período de tributação.
O artigo 28.º-B - Perdas por imparidade em créditos trata especificamente das imparidades relacionadas com créditos resultantes da atividade normal e consagra que:
1 - Para efeitos da determinação das perdas por imparidade previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:
a) O devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto;
b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral;
c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.
2 - O montante anual acumulado da perda por imparidade de créditos referidos na alínea c) do número anterior não pode ser superior às seguintes percentagens dos créditos em mora:
a) 25 % para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses;
b) 50 % para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses;
c) 75 % para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses;
d) 100 % para créditos em mora há mais de 24 meses.
(…)”
Subsumindo ao caso em apreço, trata-se de créditos decorrentes da atividade normal do sujeito passivo que remontam a 2018 e 2019.
Tendo sido reclamados judicialmente (em relação à faturação de 2018), em Tribunal holandês, em dezembro de 2018, a Requerente poderia, com referência a esse exercício, ter contabilizado logo a correspondente perda por imparidade. Bem como no ano 2019, tendo em conta a pendência da providência de penhora.
Acresce a circunstância de, no final do período de 2020, estes créditos estarem em mora entre 12 e 24 meses, o que, por si só, determinaria a aceitação fiscal de imparidades registadas na contabilidade, sem ter de atender à alínea a) do n.º 1 do artigo 28.º-B. Com efeito, a alínea c) do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 28.º-B admitem a aceitação fiscal ao longo do tempo das perdas por imparidades contabilizadas, contanto os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento, existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para a sua cobrança. Estas perdas por imparidade têm uma percentagem limite, anual acumulada, que pode ser deduzida ao lucro tributável de a) 25 % para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses; b) 50 % para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses; c) 75 % para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses; e d) 100 % para créditos em mora há mais de 24 meses.
O regime fiscal das perdas por imparidade para os créditos de cobrança duvidosa, que estão em mora há mais de seis meses, é um exemplo de uma diferença temporária entre a contabilidade e a fiscalidade, podendo levar à contabilização de ativos e passivos por impostos diferidos, nos termos da Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) n.º 25 (impostos sobre o rendimento).
Segundo as regras contabilísticas, deve ser avaliado pela entidade, em cada data de relato, se há qualquer indicação de que um ativo possa estar em imparidade (NCRF n.º 12, parágrafo 5). Caso esteja, o valor escriturado do ativo deve ser reduzido, por contrapartida de um gasto do exercício, para o seu valor recuperável (NCRF n.º 12, parágrafos 27 e 28).
As dívidas de clientes a receber são ativos financeiros (NCRF 27, parágrafo 5). O registo destes ativos no balanço de uma entidade determina que, em cada data de relato, “se existir uma evidência objetiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração dos resultados” (parágrafo 24).
O parágrafo 25 elenca diversos eventos de perda que trazem evidências de imparidade, de entre os quais se destacam:
a) Significativa dificuldade financeira do emitente ou devedor;
b) Quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida;
c) O credor, por razões económicas ou legais relacionados com a dificuldade financeira do devedor, oferece ao devedor concessões que o credor de outro modo não consideraria;
d) Torne-se provável que o devedor irá entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira;
Alguns destes eventos de perda verificaram-se antes de 2020, mas o sujeito passivo optou por não constituir imparidades sobre este cliente nos exercícios de 2018 ou de 2019. Apesar da significância dos valores em mora e de em finais de 2019 ter sido atingido o limite de crédito possível de conceder ao cliente, por imposição bancária, a Requerente decidiu não o fazer. Isto, sem prejuízo de, paralelamente, e de forma contraditória, ter iniciado diligências judiciais antecipatórias e conservatórias de cobrança – através da propositura de providência cautelar de penhora dos bens da sociedade devedora – que revelam que, afinal, já em 2018, tinha receios fundados e sérios de não vir a receber o crédito em causa.
Mesmo admitindo-se, por hipótese de raciocínio, que a constituição de uma perda por imparidade sobre estes créditos, nos exercícios de 2018 e 2019, envolvia algum grau de subjetividade e de incerteza sobre a incobrabilidade da dívida, e sem atender ao prazo em que o crédito se encontra em mora, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 28.º-B do CIRC, teria de considerar-se o risco de incobrabilidade liminarmente verificado quando “o devedor tenha pendente (…) processo de insolvência”.
Daí que, à face do quadro factual exposto, no exercício de 2020, não se vislumbre qualquer razão justificativa para que a perda fosse fixada em metade da dívida. Uma perda por imparidade contabilizada num período de tributação, motivada pela insolvência do devedor, é aceite fiscalmente na totalidade nesse exercício – ao qual respeita –, havendo coincidência, neste ponto, entre as regras contabilísticas e as regras fiscais.
O registo da perda por imparidade, em 2021, um ano depois da declaração de falência do devedor, relativamente a 50% do valor das faturas em dívida não tem justificação atendível. Nem pelo critério da antiguidade, que é aqui inaplicável, dado estarmos perante uma insolvência decretada judicialmente com cessação de atividade da entidade; nem por alegadas negociações com o devedor, dado o carácter infrutífero das iniciativas judiciais antecipatórias e urgentes empreendidas desde 2018, pela Requerente junto dos tribunais holandeses, que não surtiram efeito tangível, frustrando qualquer expetativa de recebimento razoável. Nem se alcança que facto se teria verificado em 2021 que não se tivesse verificado já em 2020 (para não ir a anos anteriores …) para sustentar o critério de repartição da perda por imparidade por dois períodos de tributação distintos.
Em síntese, a imparidade registada em 2020 devia corresponder a 100% da dívida, que seria aceite totalmente como gasto fiscal nesse exercício.
No que se refere ao argumento da Requerente de que, após o decretamento da insolvência, ainda poderia vir a receber algum valor, o mesmo não é, nas circunstâncias concretas acima descritas, credível. Aliás, em geral, os processos falimentares, quando existe património residual, satisfazem, em primeiro lugar, créditos privilegiados (fiscais, da segurança social, dos trabalhadores e créditos garantidos, vg. por hipoteca ou outra forma de garantia real), pelo que os fornecedores que não se enquadrem nestas categorias, como sucede com a Requerente, dificilmente e muito raramente verão satisfeitos, no todo ou em parte, os seus créditos.
Sem prejuízo do que antecede, se essa eventualidade improvável se verificasse, e parte da dívida viesse a ser ulteriormente paga, a mesma parte da imparidade seria revertida, por contrapartida de um rendimento contabilístico tributável, como decorre dos parágrafos 56 da NCRF 12 e 29 da NCRF 27 e do n.º 3 do artigo 28.º-A do CIRC, não comprometendo ou afastando o atrás exposto.
Conclui-se que a opção da Requerente em registar apenas 50% da perda por imparidade em 2020 foi intencional e voluntária, sem, contudo, estar suportada em factos que permitissem inferir uma fundada expetativa de recebimento dos remanescentes 50% no futuro. Assim, a Requerente transferiu a remanescente metade da perda por imparidade para o exercício de 2021, tendo violado o pressuposto do acréscimo ou o princípio da especialização dos exercícios (parágrafo 22 da Estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística), que, no CIRC, está regulado no artigo 18.º n.º 1: “Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica”.
A Jurisprudência entende que este princípio não deve ser aplicado de forma rígida, mas em conjugação com o princípio da justiça. Por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo relativo ao Processo n.º 01648/02, de 5 de fevereiro de 2003, refere que “Na verdade, não havendo qualquer prejuízo para a FP (por todos os custos terem sido contabilizados, embora com erro no tocante aos exercícios respectivos), e tal não resultar de omissões voluntárias ou intencionais, com vista a operar transferências de resultados entre exercícios, o princípio da especialização de exercícios deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com previsão no artigo 55.º da LGT”.
A AT mostrou que o encargo com o IRC de 2020 foi reduzido, por não ter havido agravamento das tributações autónomas decorrente do prejuízo fiscal que deveria ter sido registado naquele exercício. Mas as motivações que podem estar na base da transferência de gastos para períodos subsequentes não se esgotam na poupança fiscal, por via da redução do IRC. A prática de alisamento de resultados, ou gestão de resultados, conseguida, por exemplo, através da “movimentação” de perdas por imparidade entre exercícios, pode melhorar a imagem da entidade junto dos utilizadores da sua informação financeira, violando o princípio da especialização dos exercícios[1]. O princípio da justiça pode prevalecer sobre o princípio da especialização, quando a violação deste não foi intencional, como sucede, por exemplo, quando a contabilização de um gasto num determinado exercício requer um juízo de valor, envolvendo algum grau de subjetividade.
Neste caso, como já foi referido, não se alcançam razões válidas para o diferimento da perda da imparidade por dois exercícios. Para além do prejuízo para o erário público por via das tributações autónomas, a decisão de Requerente em registar apenas 50% da perda por imparidade no exercício de 2020 foi intencional e voluntária. Assim, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo relativo ao Processo n.º 01382/14.2BEBRG 0528/17, de 10 de abril de 2024, refere que «(…) para além de não se sabermos, com segurança, quais as razões que determinaram a Recorrente a repercutir apenas em 2009, a título de custos, parte dos “proveitos” inscritos em 2006 (e, consequentemente, que verdadeiras ou efectivas implicações essa distribuição dos “proveitos” a título de “custos” geraram em termos de apuramento da matéria tributável em cada um dos exercícios que medeia um e outro dos anos) é absolutamente seguro afirmar-se que não foram razões externas e incontroláveis que determinaram a elaboração da contabilidade nos termos apurados, que a contabilidade tal como apresentada não resultou de “ lapsos contabilísticos”». Acrescenta que “(…) o que se registou foi uma actuação deliberada e intencional de transferência de resultados tendo em vista a obtenção de vantagens, absolutamente alheia à verdade fiscal que aquela contabilidade devia assegurar. Daí que, no caso, se deva concluir que a actuação da Administração Fiscal, nos termos recortados no probatório, constitui um rigoroso cumprimento ou observância do preceituado no artigo 18.º do CIRC, totalmente conforme o entendimento que a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo vem firmando no que respeita à ponderação de princípios e valores que estão legal e constitucionalmente consagrados”. Conclui que “(…), não reflectindo o registo contabilístico em causa um custo em que a Recorrente haja incorrido no exercício de 2009, nem estando verificadas circunstâncias que legitimem a transferência de resultados operada, há que concluir pela violação do artigo 18.º do CIRC e pela não verificação das alegadas violações do princípio da tributação do rendimento real consagrado no artigo 104°, n° 2 da CRP, do princípio da boa-fé, da justiça e da proporcionalidade invocadas pela Recorrente tendo em vista a revogação da sentença recorrida”.
Idêntica conclusão retira este Tribunal Arbitral na situação sub iudice, pelo que improcede nesta parte a pretensão da Requerente.
B - Gastos com alojamento hoteleiro
A classificação destas despesas como ofertas a clientes, contabilizando-as na conta 6234-Artigos para oferta, está incorreta, porque o alojamento hoteleiro não foi oferecido a clientes. De salientar que não se provou a alegação da Requerente de que esse valor respeitasse à remuneração ou à atribuição de prémios a trabalhadores da Requerente.
Nestes termos, não ficando demonstrado que se tratou de um prémio atribuído a funcionários, como a Requerente alega, nem tendo o gasto sido reclassificado na conta 63 – Gastos com pessoal, ou integrado a base de incidência do IRS dos beneficiários, o mesmo [gasto] não é dedutível à luz do artigo 23.º, n.º 1 do CIRC, porque não se vislumbra qualquer relação com a atividade da Requerente passível de gerar rendimentos sujeitos a IRC. Improcede, também neste ponto, o pedido da Requerente.
V. DECISÃO
Considerando tudo quanto antecede, decidem os árbitros:
a) julgar integralmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IRC e juros do exercício de 2021, absolvendo a Requerida do pedido;
b) condenar a Requerente nas custas do processo.
Fixa-se o valor do processo em €85 267,98, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2 754,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4 do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5 do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 18 de novembro de 2025
A Presidente do Tribunal Arbitral
(Alexandra Coelho Martins)
O Árbitro vogal
(Jesuíno Alcântara Martins)
O Árbitro vogal - relator
(Daniel Taborda)
[1] V. Martins, A., Gomes, C.F., Taborda, D. & Ramos, M.E. (2024), A Normalização Contabilística, o SNC e a Multidisciplinaridade na Aplicação das Normas, Coimbra: Almedina, p. 84-85.