SUMÁRIO:
1. Os pagamentos mensais pagos a gerente como ajudas de custo que não cumprem os pressupostos legais do artigo 2.º n.º 3 do CIRS, não beneficiam do regime de não incidência aí previsto.
2. O dever de verificação de que os montantes abonados a título de ajudas de custo cumprem os pressupostos legais é da entidade patronal, sendo a responsabilidade tributária desta, em caso de erro detetado em processo correção oficiosa.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Prof. Doutor Vasco António Branco Guimarães, árbitro designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 03-06-2025, decide o seguinte:
1. Relatório
A..., S.A (doravante designada por A...), contribuinte com o NIF ... e sede na Rua ..., ..., da área do Serviço de Finanças de Lousada, tendo sido notificado do ato de liquidação de Retenções na Fonte de IRS (RFIRS), para o ano de 2020, no montante de € 2.890,52, e do ato de liquidação de Juros Compensatórios (JC), para o mesmo ano de 2020, no montante de € 484,17, ao abrigo do disposto nos artigos 95º, nº 1 e nº 2, alínea a) da Lei Geral Tributária (LGT), 2º, nº 1, alínea a), 5º, nº 2, alínea b), e 10º, nº 1, alínea a) e nº 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, veio requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL tendo o pedido por objeto:
i) o ato de liquidação de RFIRS nº 2024..., relativo ao ano de 2020, no montante de € 2.890,52, e
ii) os atos de liquidação de JC nº 2024..., nº 2024..., nº 2024..., nº 2024..., nº 2024..., nº 2024..., nº 2024... e nº 2024..., relativos ao ano de 2020, no montante global de € 484,17.
Termina requerendo:
a) DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE PEDIDO, ASSIM SE DECLARANDO NULOS OU ANULANDO OS ATOS DE LIQUIDAÇÃO DE RETENÇÕES NA FONTE DE IRS E DE JUROS COMPENSATÓRIOS ORA CONTESTADOS, REFERENTES AO ANO DE 2020, NOS MONTANTES TOTAIS, RESPETIVAMENTE, DE € 2.890,52 E € 484,17, COM AS NECESSÁRIAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS;
b) RECONHECER O DIREITO À RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE; c) RECONHECER O DIREITO À INDEMNIZAÇÃO PELOS PAGAMENTOS INDEVIDAMENTE REALIZADOS, POR EXISTIR ERRO IMPUTÁVEL AOS SERVIÇOS.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 24-03-2025.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral o acima referido, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 14-05-2025 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03-06-2025.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta onde se defende por EXCEÇÃO e IMPUGNAÇÃO e juntou processo administrativo em 04-07-2025.
Por despacho de 03-09-2025, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e marcado o prazo para a sentença em função do pagamento do preparo subsequente.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
a. A Requerente é uma sociedade comercial que foi por quotas e atualmente é anónima por ações designada por A..., S.A (doravante designada por A...), contribuinte com o NIF ... e sede na Rua ..., ..., da área do Serviço de Finanças de Lousada;
b. A Requerente dedica-se às atividades de «Construção de Edifícios», «Compra e Venda de Bens Imobiliários», «Aluguer de Máquinas e Equipamentos para a Construção e Engenharia Civil» e «Arrendamento de Bens Imobiliários».
c. Em 2024 os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças (DF) do Porto levaram a cabo uma ação inspetiva no âmbito da Ordem de Serviço externa nº OI2022... sobre o ano de 2020.
d. Esta inspeção foi iniciada em 2024-04-24, tendo o Relatório de Inspeção Tributária (RIT) sido elaborado em 2024-10-23.
e. A Requerente no ano em análise (2020…) registou na conta 6313 - «Gastos com o pessoal - Remunerações dos órgãos sociais - Ajudas de custo» verbas relativas a ajudas de custo pagas ao gerente da empresa, que ascendem ao valor de € 10.707,00».
f. As verbas referidas e registadas pelo sujeito passivo a título de ajudas de custo do gerente foram processadas nos recibos de vencimento e tinham valores idênticos e constantes.
g. Não foram exibidos aos Senhores Inspetores quaisquer documentos de despesa, boletim de itinerário ou outros que justificassem tal atribuição.
h. A Requerente não fez prova de ter controlado o destino das verbas atribuídas ao gerente como «ajudas de custo».
i. O órgão de gestão da Requerente é o autorizante e beneficiário das verbas atribuídas a título de «ajudas de custo».
j. A Requerida qualificou as verbas atribuídas a título de ajudas de custo como remuneração e exigiu o cumprimento legal de retenção na fonte e juros compensatórios que deu origem à liquidação contestada com o valor de imposto de € 2.890,52, e as liquidações de JC, com o valor de € 484,17.
a. A Requerente pagou o imposto e juros compensatórios devidos resultantes da liquidação corretiva.
2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto.
Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.
Não se retiram outros factos relevantes dos articulados por serem citações de textos legais, referências a Jurisprudência ou posições de parte sem conteúdo fáctico.
3. Matéria de direito
As questões de mérito que são objeto deste processo são:
A responsabilidade pelo pagamento das retenções na fonte não feitas pela entidade patronal em relação a quantias que denominou como «ajudas de custo» são sempre responsabilidade do trabalhador? Conforme leitura atualizada dos artigos da lei e de acordo com o entendimento de que existem dois tipos de responsabilidade tributária, com especificidades próprias e que justificam tratamentos distintos entre elas: i) uma, originária, «quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa» (artigo 21º da LGT) e em que existe uma ligação direta dos obrigados solidários ao facto gerado da obrigação de imposto, ii) outra, a que se refere o artigo 22º, nº 2 da LGT, no sentido de que «para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas» e em que os pressupostos em que assentam o facto tributário que dá origem à liquidação do imposto não se verificam em relação ao responsável solidário, uma vez que este não é o sujeito passivo originário.
3.1. Posições das Partes
A Requerente defende o seguinte, em suma:
O beneficiário das quantias recebidas foi o gerente e é este que deveria ter justificado de acordo com a lei as verbas entregues;
A AT defende:
Que a designação como «ajudas de custo» (não tributadas) de quantias regulares no recibo de vencimento que não respeitam o definido nas normas aplicáveis às ajudas de custo dos funcionários públicos são rendimento e deveriam ter sido tratadas como tal pela Requerente.
3.2. Apreciação da questão.
3.2.1. Das Exceções.
A Requerida alega (de forma induzida) que é parte ilegítima no processo devendo as responsabilidades ser exigidas ao beneficiário das «ajudas de custo». Acontece que o beneficiário das «ajudas» é simultaneamente o gerente que as autorizou.
Afirmar que a Requerente não tem responsabilidade legal porque as retenções a efetuar são «por conta» e não definitivas é pretender que existe um desconhecimento do destino dado aos montantes depositados a título de «ajudas de custo» na mesma pessoa física que autorizou e beneficiou.
Ora, sendo o órgão societário autorizante – gerente – igualmente o beneficiário das transferências feitas, como é possível, com grau de razoabilidade e seriedade, defender que o decisor gerente desconhecia o que o beneficiário gerente fazia.
A esquizofrenia é uma doença psiquiátrica. O planeamento fiscal abusivo é, em si, um mal social, que se caracteriza por um autismo jurídico e um desrespeito pelo conteúdo e função das normas.
A separação das responsabilidades entre pessoa coletiva e beneficiário pessoa individual visam defender a parte que, não tendo participado do processo de atribuição das verbas, possa vir a ser prejudicado em situações de litígio.
No caso, a separação entre gerente autorizante e gerente beneficiário é artificial e ofende a realidade. Improcede em consequência a exceção invocada de ilegitimidade.
3.2.2. Da Impugnação.
O objeto da pronúncia arbitral foi delimitado no PPA pelo Requerente pelo que é sobre as questões relevantes aí suscitadas que o Tribunal se pronunciará.
A douta argumentação expendida para impugnar a liquidação oficiosa parte do pressuposto de que os montantes abonados não podem ser objeto de correção porque:
I) São ajudas de custo não sujeitas a tributação;
II) A serem remunerações seriam sujeitas a retenção não definitiva pelo que o trabalhador não foi prejudicado;
III) Em ambos os casos a responsabilidade pelo cumprimento dos deveres declarativos acessórios seria do beneficiário individual e não da Requerente.
Entendemos que não tem razão. Quem tem a obrigação de verificar que as quantias abonadas como «ajudas de custo» têm efetivamente essa natureza é a entidade patronal. No caso, como já vimos, o autorizante é o beneficiário não podendo invocar um argumento formal de separação e não prejuízo.
Uma vez desqualificado o abono feito como «ajudas de custo» e qualificado como remuneração (por manifesta violação da norma que fixa os critérios para a não tributação) a correção torna-se indispensável.
Dispõe o n.º 3 do artigo 2.º do CIRS:
3 - Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente:
(...)
d) As ajudas de custo e as importâncias auferidas pela utilização de automóvel próprio em serviço da entidade patronal, na parte em que ambas excedam os limites legais ou quando não sejam observados os pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado, e as verbas para despesas de deslocação, viagens ou representação de que não tenham sido prestadas contas até ao termo do exercício;
Ora, resulta do preceito que existem ajudas de custo que não são consideradas como rendimento de trabalho dependente. Para poderem beneficiar do estatuto de reembolso de despesa e não estarem na norma de incidência têm de respeitar os limites e pressupostos de atribuição aos servidores do Estado.
A entidade que tem de verificar estas condições e requisitos é a entidade patronal. No caso não exerceu esse seu poder/dever. Acresce que o órgão gestor é o beneficiário do erro cometido pela entidade patronal não podendo invocar «desconhecimento». Não é aplicável ao caso em concreto a distinção entre artigos 21.º e 22.º da LGT por não integrar as questões aí previstas.
Foram analisadas e resolvidas as questões colocadas ao tribunal com exceção das que ficaram prejudicadas pela fixação dos factos, ou inúteis, pela resposta dada às que as precediam ao abrigo do disposto nos artigos 608.º, n.º 2 do CPC, ex-vi do artigo 29.º alínea a) e e) do RJAT.
3.2.3. Dos pedidos.
Declaram-se improcedentes por não provados os pedidos feitos no PPA:
a) DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE PEDIDO, ASSIM SE DECLARANDO NULOS OU ANULANDO OS ATOS DE LIQUIDAÇÃO DE RETENÇÕES NA FONTE DE IRS E DE JUROS COMPENSATÓRIOS ORA CONTESTADOS, REFERENTES AO ANO DE 2020, NOS MONTANTES TOTAIS, RESPETIVAMENTE, DE € 2.890,52 E € 484,17, COM AS NECESSÁRIAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS;
b) RECONHECER O DIREITO À RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE;
c) RECONHECER O DIREITO À INDEMNIZAÇÃO PELOS PAGAMENTOS INDEVIDAMENTE REALIZADOS, POR EXISTIR ERRO IMPUTÁVEL AOS SERVIÇOS.
A posição da Requerida não merece censura pelo que a correção efetuada deverá manter-se na ordem jurídica, nada havendo a devolver à Requerente.
Quanto à qualificação dos vícios existentes rege o artigo 5.º, n.º 3 do CPC aplicável ex-vi do artigo 29.º do RJAT, sendo o direito a aplicar da exclusiva responsabilidade do juiz. Por outras palavras, a menos correta alegação das normas ou erro da interpretação do direito pelas Partes não impede nem limita a aplicação do Direito na decisão judicial.
Juros indemnizatórios.
Não são devidos juros por improcedência do Pedido principal.
5. Decisão.
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, determinando:
1. A improcedência da exceção e fundamentação do pedido principal invocada no PPA da Requerente;
2. A não devolução dos Juros compensatórios cobrados;
3. O não pagamento dos juros indemnizatórios peticionados.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 3.374,69 nos termos do artigo 97.º -A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29., n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Vai a Requerente condenada em custas por decaimento e ser sua a responsabilidade da ilegalidade existente, sendo o seu montante fixado em EUR 612,00 (seiscentos e doze).
Lisboa, 26 de novembro de 2025
O Árbitro
(Professor Doutor Vasco Branco Guimarães)